Reflexões ao léu: sobre a dia da Independência
Paulo Roberto de Almeida
Não consigo me
lembrar de um dia da Independência no qual o Brasil tenha amanhecido tão
dividido e tão temeroso. O medo se espalhou em todas as partes,
indistintamente: os poderosos de plantão manifestam temor em relação a
possíveis manifestações da massa contra eles, nos desfiles e discursos
patrióticos (tanto que os dois chefes do poder legislativo, minúsculas, sequer
compareceram ao ato oficial presidido pela chefe de Estado); temor também da
população em geral, de que vândalos e outros arruaceiros promovessem violência
nessa ocasião, colocando em risco a vida ou a integridade física de inocentes,
sobretudo mulheres e crianças; temor, talvez, dos oportunistas de sempre, dos
aproveitadores e mentirosos contumazes, de que o castelo de cartas fantasioso
que vêm construindo na última década possa ser derrocado a partir de
manifestações especificamente dirigidas contra eles, responsáveis que são pelo
descalabro registrado no país nos dias que correm; enfim, temor em todas as
partes, menos, provavelmente, da parte dos vândalos e arruaceiros, talvez os
anarquistas idiotas e niilistas inconscientes, que se aproveitam desse clima
para tirar algum proveito material, ou simplesmente pelo prazer de destruir as
instituições burguesas e o sistema capitalista. Temores cruzados, múltiplos,
autoalimentados e retroalimentados.
De fato, não
consigo me lembrar de um Sete de Setembro como este; talvez durante as
ditaduras que vivemos, na era Vargas e durante o regime militar, esse clima de
temor e de divisão do país, mesmo contrabalançado por fortes doses de
publicidade governamental, algo do ambiente atual pairasse sobre os encontros e
manifestações oficiais em torno da data da independência do país. Eu que não
sou nada patriota – e teria palavras fortes contra o patriotismo rastaquera
exibido por muitos – e menos ainda ufanista das nossas coisas, por
considerar-me um simples indivíduo, se possível universal, não vejo precedentes
para o clima atual de divisão e de perplexidade no país. Gostaria de ter um
simples fator explicativo para esse ambiente de temores recíprocos, mas não
acho apenas um, mas vários, múltiplos, talvez dificilmente identificáveis e
menos ainda obstáveis com base em alguma ação cirúrgica numa direção
determinada. Não existe, e não creio que consigamos identificar todas as causas
do malaise atual e encontrar
respostas adequadas para vencer esse estado no futuro previsível. Sinto muito:
gostaria de ser mais otimista, neste texto reflexivo, mas simplesmente não
consigo.
O que é a
independência de um país? No sentido estrito, liberar-se de mestres
estrangeiros e estabelecer o seu próprio sistema de governo, se possível
democrático, aberto a todos os cidadãos – alguns continuam súditos daquilo que um
historiador, aliás marxista, chamou de “ideologia do colonialismo” – e propenso
a facilitar a todos eles as condições pelas quais cada um sai em busca de sua
felicidade pessoal, exercendo seus talentos, mobilizando seu gênio criativo,
empregando seu tempo em criar prosperidade individual, ou simplesmente se
colocando ao serviço de alguma outra causa – ou emprego – que lhe dispense
faculdades de empreendedorismo, mas que lhe garanta, da mesma forma, um meio de
vida adequado e satisfatório.
Toda independência
se concentra, numa primeira etapa, na criação de um Estado, geralmente nacional
– em alguns casos multinacional, ou compósito – que passa então a representar
os cidadãos em face dos outros Estados da comunidade internacional e assume os
encargos da defesa externa, da segurança doméstica, das grandes obras coletivas
– infraestrutura de grande porte, por exemplo – e também se desempenha na
criação de um ambiente aberto ao exercício dos talentos individuais, que
passarão, por sua vez, a cuidar da produção, do abastecimento, da oferta de
bens e serviços (inclusive coletivos) dos mais variados tipos, segundo regras
de transparência e de abertura total ¡a competição de todos aqueles que
pretendem se lançar em atividades econômicas privadas. Estes são os deveres
primários de todo e qualquer Estado, aos quais talvez se pudesse acrescentar
tarefas de “equalização de oportunidades sociais”, consistindo em geral no
provimento da educação fundamental em bases universais – obrigatórias, pelo
menos nos ciclos elementares – e de condições sanitárias mínimas, para que
todos possam ser resguardados das epidemias e das endemias mais comuns que
atingem a raça humana. Creio que este é, sumariamente, o sentido da
independência de um povo.
O Estado brasileiro
–
no plural, o que emergiu da independência, os que se lhe seguiram nas várias
mudanças de sistemas e de regimes políticos que tivemos ao longo dos quase dois
séculos que nos separam da separação da metrópole, e o Estado atual, que
convive com uma democracia de fachada e de baixa qualidade – dificilmente
cumpriu as tarefas acima, e talvez venha até sendo o responsável pela erosão atual
de algumas instituições já criadas e cuja eficácia e proficiência estão sendo
nitidamente diminuídas na sua forma e na sua substância. Não é difícil
reconhecer isso na situação de insegurança que atinge todos os cidadãos
honestos, nas péssimas condições da infraestrutura – sobretudo comunicações e
energia – e nos serviços coletivos que supostamente estariam a cargo do Estado,
notadamente saúde e educação.
Mesmo aquela
larga fração da população que se beneficiou, nas últimas décadas, com generosas
políticas distributivas, se ressente da má qualidade dos serviços coletivos e
da insegurança geral que atinge a todos, especialmente os mais humildes.
Pode-se até argumentar que, no contexto mais amplo da América Latina, ou em
confronto com outros continentes – como a África, por exemplo – ainda mais
atingidos pela erosão de ineficiência estatal que atinge quase todos os Estados
contemporâneos, o Brasil não é dos piores exemplos de deterioração de qualidade
de sua governança, anda que isto não sirva de consolo, pois existem alguns
outros exemplos que demonstram que é possível, sim, atingir patamares mais
elevados de prosperidade de bem estar.
O Estado
brasileiro falhou, portanto, embora essa conversa de Estado seja muito
enganosa. O Estado é uma entidade impessoal, quase abstrata em suas
manifestações concretas, a não ser quando encarnado por governos reais,
liderados por determinados homens, como indivíduos ou grupos (partidos e suas
coalizões), que dão um sentido específico à ação do Estado. Os responsáveis
pela má situação de um país, de uma nação devem, assim, ser apontados,
devidamente: são as lideranças que falham, são as elites incompetentes, algumas
até criminosas, que não cumprem o mandato em prol da prosperidade e da
felicidade individual que todo povo imagina estar elaborando no momento de sua
independência.
Como as
comunidades humanas são sempre complexas e diversificadas, o mandato é primeiramente
negociados através de um contrato coletivo – a Constituição – que deveria
resumir os grandes objetivos nacionais e definir, de maneira ampla, os meios e
mecanismos para que eles possam ser atingidos. Um povo, como o nosso, que já
teve sete constituições, e oito moedas, não pode considerar especialmente bem
dotado de qualidades “constitucionais”, ou de simples educação política (na
verdade de educação, tout court).
Examinando a nossa Constituição – que foi objeto de uma análise sistemática de
minha parte recentemente: “A Constituição brasileira contra o Brasil”, em fase
de publicação – pode-se constatar como ela é totalmente inadequada para cumprir
o mandato que esbocei anteriormente. Ela pretende atribuir ao Estado uma série
inacreditável de tarefas que este simplesmente não consegue cumprir, nos
limites (parcos) de nossa riqueza nacional: pretenderam criar um oásis de
felicidade nacional antes de dispormos de recursos suficientes.
Por outro lado,
os governantes de plantão, vários, mas especialmente os atuais, são
singularmente incompetentes para mudar esse estado de coisas: eles estão apenas
interessados em se perpetuar no poder, e vão utilizar-se de todos os meios para
tentar conseguir esse objetivo monopólico (o que aliás combina bem com o espírito
autoritário, quando não totalitário, de vários dos integrantes do partido no
poder). Não creio que a situação mude de maneira significativa no futuro
imediato. Minhas previsões, já externadas em diversos trabalhos publicados, é a
de que o Brasil foi conduzido a um impasse de baixo crescimento, e de
malversação do Estado, o que torna difícil lograr grandes progressos sociais e
políticos no curto e médio prazo. Outros povos enfrentaram decadências
semelhantes ou similares: não estamos fazendo nada de extraordinário, ao
recuarmos um pouco, ou talvez muito, bem mais no plano mental, na verdade, do
que no plano propriamente material.
Desculpo-me por
ser pessimista no dia da Independência, mas estou tentando ser apenas realista.
Repito: nunca encontrei o país tão temeroso, e tão dividido num dia da Pátria.
Pode ser temporário, ou passageiro, mas a sensação que tenho é a de certo
desalento na população, ao ver que a situação não caminha para o melhor,
sobretudo no âmbito estatal, justamente. Quando vemos quadrilheiros sendo
saudados como salvadores do povo e heróis da pátria, é porque perdemos o
sentido da realidade; quando vemos mentirosos declarados se perpetuando é
porque perdemos nossa capacidade de indignação, e de reação. Quando vemos
tantos medíocres encarregados do Estado, é porque os homens de valor se
desinteressaram da coisa pública.
A
responsabilidade maior está com a elite, não todas as elites – porque existem
elites de diversos tipos, algumas até mafiosas – mas com as elites vinculadas
ao mundo produtivo, os criadores de riqueza e supostamente os financiadores de
alguns bandidos que os representam no poder. São estes que deveriam empreender
as tarefas de regeneração do país, mas que no momento estão muito ocupados
tentando extrair mais algumas vantagens do Estado (que recursos que lhes foram
previamente extorquidos, por sinal). Se eles não assumem sua responsabilidade,
não teremos condições de superar o estado atual (que não é apenas de letargia,
mas de recuo visível em várias areas). Por isso venho defendendo a ideia de uma
fronda empresarial, uma conquista do Estado pelos empreendedores, os únicos
interessados (ao que parece) na prosperidade geral do país num sentido
economicamente racional, previsível, aberto e competitivo.
Acontecerá isto?
Não tenho certeza, mas gostaria de acreditar...
Bom dia da independência
a todos...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2511: 7 de Setembro de 2013, 4 p.