Francis Fukuyama, que publicou o monumental "As origens da ordem política, dos tempos pré-humanos à Revolução Francesa", seguido de "Ordem política e decadência política", esteve em Portugal, onde foi entrevistado pelo jornal Observador. Entre outras coisas, ele diz que "hoje é mais difícil tomar decisões e chegar a consensos". Segue abaixo um bom trecho da entrevista, com link para o texto completo:
O encontro teve por palco a lisboeta livraria Buchholz e como pretexto o segundo volume da obra monumental que Francis Fukuyama, o cientista político que ganhou fama mundial com o seu “O Fim da História”, dedicou ao estudo da evolução da ordem política. O primeiro volume, “As Origens da Ordem Política, Dos Tempos Pré-Humanos até à Revolução Francesa”, foi publicado em 2012, o segundo, “Ordem Política e Decadência Política”, das edições Dom Quixote, acaba de chegar às livrarias. Foi ele o pretexto para um “Conversas à Quinta” que, pela primeira vez, foi a quatro. Os temas, os de sempre: o presente e o futuro da democracia, as suas dificuldades, os seus defeitos e as suas virtudes. Foi mais uma daquelas conversas que se podia prolongar por várias horas…
José Manuel Fernandes: Gostaria de dar início a esta conversa perguntando-lhe se, tendo em conta os temas recorrentes que vemos na sua obra, desde “O Fim da História” até “Confiança”, sentiu a necessidade de fazer valer a sua opinião de modo mais forte ou diferente?
Francis Fukuyama: Um pouco de ambos. 2014 marcou o 25.º aniversário do artigo original, intitulado “The End of History”, que foi escrito seis meses antes da queda do Muro de Berlim. Os meus últimos livros são, de certo modo, uma tentativa de reescrever essa história porque muitas coisas mudaram no mundo e eu também mudei — tenho opiniões diferentes sobre diferentes temas. Por exemplo, a questão da deterioração política não era um tema em “O Fim da História” mas é um tema neste livro porque considero que todos os sistemas políticos, incluindo os democráticos, são capazes de regredir e de progredir e isso é algo que eu não tinha discutido antes.
JMF: Sobre o seu primeiro livro, “O Fim da História”, diz-se que continha uma visão muito otimista do futuro e do mundo. Atualmente é um pouco mais pessimista.
FF: Em 2015, creio que é difícil não estar preocupado com certas tendências que vemos no mundo. Existem dois poderes totalitários – a Rússia e a China – muito confiantes e interventivos e também vemos a propagação do caos no Médio Oriente, a falta de ordem, e após a esperança trazida pela Primavera Árabe é difícil de fazer uma previsão para os próximos anos. Portanto creio haver razões de preocupação sobre o destino da democracia.
JMF: Creio que a questão que levantou sobre a Primavera Árabe dá-nos uma excelente oportunidade de passarmos para o Jaime Nogueira Pinto, cujo último livro trata do Islão e do Ocidente.
Jaime Nogueira Pinto: Quando foi criticado por algumas pessoas, no sentido de achar que a sua ideia de fim da história seria o fim do conflito, creio que colocou bem a questão quando afirmou que mais nenhum sistema iria enfrentar a democracia de mercados, no sentido em que após 1945 o fascismo desapareceu, de certa maneira, e que após 1989 o comunismo soviético desapareceu. Mesmo os países que não fossem democráticos, não diziam que não o eram. Por exemplo, a China não queria exportar o seu modelo ou monarquias teocráticas mais antigas, como os sauditas, não tinham interesse nisso. Creio que, a certo ponto, colocou essa questão quando estava a ser altamente criticado e eu concordo com a sua opinião. Hoje em dia creio que, nesse sentido, as coisas não mudaram mas o que eu vejo é que, no fim de contas, a democracia pluralista requer duas coisas de modo a poder ser posta em prática ou os resultados serão caóticos: nação e o que podemos chamar de sociedade civil. Outros aspetos como a vida, a religião e a economia são exteriores a isso. De outro modo, acontecerá como na África subsariana onde existem democracias fingidas, com, por vezes, centenas de partidos mas as pessoas não aceitam eleições e temos, hoje em dia, o mundo islâmico, o Médio Oriente que permanece caótico após as tentativas de levar a democracia a países como o Iraque, Líbia e Síria, podemos dizer que, em parte, por culpa do seus país, e acho que isso se torna muito difícil. No fim de contas, a democracia está a funcionar bem na Europa Ocidental, nos Estados Unidos, em alguns países da América do Sul… no fim de contas, nos sítios onde o cristianismo foi importante, a propriedade privada e outros aspetos semelhantes. Claro que na Ásia temos o exemplo da Índia mas creio que aí se deveu ao papel desempenhado pelo exército, que sempre agiu dentro da lei, tal como na Grã-Bretanha.
Se existir um único tema subjacente ao livro é que a parte difícil do desenvolvimento político é a de passar de um estado patrimonial, como Max Weber lhe chamou, para um estado moderno.
JMF: Voltemos atrás, a algo que foi referido. Jaime Nogueira Pinto referiu os aspetos de nação e sociedade civil, mas há outros autores e estudiosos que referem outros aspetos como as instituições, cultura, tradição e capacidade de ter um estado moderno. Você não escolhe nenhum destes aspetos. Talvez não tenha uma opinião clara neste tema ou a opinião de que não exista apenas uma razão.
FF: No meu enquadramento, de modo a ter uma ordem política moderna, são necessários três elementos: um estado que seja moderno, Estado de Direito e uma forma de responsabilidade democrática. Estes três elementos estão em conflito entre si porque o estado gera poder e o Estado de Direito e a democracia limitam o poder, ou contêm-no, e é necessário um certo equilíbrio. Creio que se existir um único tema subjacente ao livro é que a parte difícil do desenvolvimento político é a de passar de um estado patrimonial, como Max Weber lhe chamou, para um estado moderno. Um estado patrimonial é, basicamente, um estado onde a elite política vê os políticos como uma forma de enriquecerem, de fazerem dinheiro e de obterem ganhos privados. Um estado moderno é impessoal, procura defender o interesse público e tratar os seus cidadãos com algum grau de imparcialidade e, na minha opinião, a grande falha em quase todos estes casos não é, na verdade, o fracasso da democracia mas sim o fracasso na criação de um estado moderno.
JNP: Porque são eles que criam o estado, no final de contas. No início todos os países eram um estado patrimonial.
FF: Sem dúvida. No entanto, essa transição de um estado patrimonial altamente corrupto para um estado moderno é uma transição muito mais difícil
JNP: No caso de Portugal, levou séculos.
FF: É uma transição muito mais difícil do que transitar para a democracia que, na minha opinião, é relativamente fácil de organizar.
JMF: Jaime Gama, a sua experiência é vasta, especialmente em África quando lidou, enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, com as novas democracias ou novos estados que tiveram origem no velho império português. É da opinião que nesses países ainda existem estados patrimoniais?
Jaime Gama: O problema em África é muito complexo. Houve uma primeira vaga de independência, depois a implementação de modelos comunistas da China juntamente com modelos autoritários do terceiro mundo, fossem eles civis ou militares e depois, a certo momento, acendeu-se o rastilho da ideia, estimulada por alguns dos seus livros e pela ideologia pós queda do Muro de Berlim, que seria fácil exportar facilmente a democracia parlamentar para o continente africano. Por exemplo, lembro-me Konaré do Mali era um herói da democracia e também Museveni, eles eram os modelos.
JMF: Até Mugabe.
JG: E houve algo que foi feito. Provavelmente não de modo direto, mas com inspiração indireta, houve um período em que a democracia, ou a comunidade da democracia, era a agenda das Nações Unidas. Ou mesmo o lançamento da União Africana, como um modelo de União Europeia em África guiado por princípios puramente democrático, embora o resultado não tenha sido muito eficaz. Provavelmente, o resultado tem sido positivo na transição da África do Sul, muito acompanhada e apoiada e bem-sucedida, pelo menos até agora, não é possível adivinhar o que acontecerá no futuro. No entanto, noutros casos, observámos o fracasso de todos esses aspetos e mesmo o fracasso dos conceitos operacionais das Nações Unidas porque não são produtivos e não são implementados conforme são propostos porque, nesse aspeto, tudo falhou. Além disso, as Nações Unidas não conseguiram acompanhar essas transições. Durante um longo período, as Nações Unidas dedicaram-se a teorias de descolonização, a transferência de poder dos colonizadores para um sistema monopartidário, não tendo em consideração as questões das instituições democráticas. Após isso, as Nações Unidas não foram capazes de conceber um modelo estável para os países, sociedades e regimes políticos africanos e estes têm estado a viver de um modo caótico.
FF: Terei de discordar. Na minha opinião, o registo dos últimos 15 anos, desde o fim da década de 90, em África, tem sido muito mais positivo do que isso. A taxa agregada de crescimento da África subsariana nesse período tem sido entre 5 a 6 %. Existem cerca de 16 países com democracias funcionais…
JNG: 16 países num total de 54.
Não sou da opinião de que a democracia seja um fracasso total e acho que existe um enquadramento político em países africanos suficientes que sustente a emergência de uma classe média, certamente houve muitas pessoas a saírem da pobreza.
FF: Sim mas não acho que o cenário seja assim tão negro. Mesmo num país como a Nigéria – dediquei um capítulo inteiro à Nigéria onde descrevo que o problema central está numa coalição de ricos que tem como objetivo distribuir receitas do petróleo e, portanto, existe este problema muito profundo relacionado com a corrupção. No entanto, mesmo neste país, parece-me que a recente eleição de Buhari é, no mínimo, um sinal de esperança que, num país onde o governo extremamente displicente e corrupto de Goodluck Jonathan que não conseguia lidar com o Boko Haram e com os outros grandes problemas, fez alguma diferença pois agora há um novo líder e foi uma passagem de poder pacífica. Não sabemos se o novo presidente irá conseguir lidar com estes problemas mas é assim que a responsabilidade deve funcionar. Não sou da opinião de que a democracia seja um fracasso total e acho que existe um enquadramento político em países africanos suficientes que sustente a emergência de uma classe média, certamente houve muitas pessoas a saírem da pobreza. Em termos de outros indicadores de desenvolvimento como a mortalidade infatil e saúde maternal, o continente tem tido muitos bons resultados nos últimos 20 anos e não acho que o cenário seja assim tão negro.
JNG: Creio que o problema grave atual em África veio do modelo de descolonização porque a maioria dos países na Europa e na América lutaram pela independência e em África essa independência foi concedida pelo colonizador para sua própria vontagem, falando de modo realista. É muito interessante que nos países onde a população local teve de lutar pela independência, como por exemplo dois países lusófonos, Angola e Moçambique, e a transição na África do Sul porque, no fim de contas, foram pressões internas, estão a ter melhores resultados em termos políticos e estão a ter mais unidade política porque, na minha opinião, estão a seguir o padrão que nós seguimos: lutaram pela independência, tiveram guerras civis e o vencedor implementou a paz. Por exemplo, a destribalização é um facto em Angola e em Moçambique, os outros países seguem linhas tribais e religiosas, o estado é menos importante do que outros aspetos e creio que esta é uma das questões com a qual temos de lidar em África. Eu concordo plenamente consigo, as estatísticas económicas são boas mas os problemas de segurança estão a emergir outra vez de um modo muito grave e podem pôr as coisas em causa.
JG: Eu não concordo com a versão idílica que apresenta sobre o crescimento em África porque se aprofundar a avaliação da composição do produto interno e das exportações verá que o crescimento é muito estimulado pelas exportações como o petróleo, gás, matérias-primas, bens de agricultura mas impulsionado pelas importações de outros, nomeadamente a implementação chinesa na economia africana. Isso não se traduz em crescimento, não representa capacidade de fabrico, capacidade de melhoria do nível de consumo da população que é melhor e maior nas cidades mas se for 1 km para fora da cidade irá testemunhar fome como no século XIX. Não há mudanças reais. E no campo da segurança, vemos todas as linhas de fratura. O Islão radical está a destabilizar não só a Somália e o Corno de África mas também todo o Golfo da Guiné e antigas colónias francesas da África Ocidental. As questões tribais estão a criar grandes problemas para manter a estabilidade de uma entidade política intitulada de estado, que desapareceu, e por outro lado, não se prevê nenhuma capacidade para criar uma coproração regional ou, digamos, uma visão africana como era o caso antes. Portanto, não podemos apenas avaliar a situação através do produto interno gerado pelas importações ou por outros, um novo tipo de colonialismo na era moderna, adicionando a China ao terreno difícil que é África. Temos de ir mais a fundo e avaliar a grande falta de oportunidades para a população e grandes conflitos potenciais. Olhemos para o Congo, onde não há estabilidade, que desempenha um papel crucial na instabilidade dos países vizinhos. E a Nigéria não é um bom modelo. Eu compreendo que na visão anglo saxónica surjam sempre a Nigéria e a África do Sul como os principais fatores que trouxeram estrutura e segurança para África. Bem, a Nigéria fracassou completamente em dar segurança aos seus vizinhos e a si mesma.
JMF: Gostaria de mudar de assunto. Há algo que mencionou e que é um aspeto importante dos seus livros – a importância da classe média. É possível concordar que em África a classe média, geralmente, não está muito desenvolvida e talvez esse seja um dos problemas mas a questão que eu gostaria de colocar é outra. As classes médias na Europa e nos Estados Unidos, com todos os direitos que elas têm, podem ser um problema agora? Após terem sido a base da democracia podem agora constituir um problema, a lutarem nos tribunais, dando destaque a estes partidos com agendas pequenas e muito focadas quando não temos o mesmo tipo de crescimento que vimos nas últimas décadas?
FF: Na minha opinião, esse é um grande problema. Creio que as razões pelas quais as previsões marxistas para a industrialização nunca se tenham concretizado estão relacionadas com o facto de a industrialização da Europa e dos Estados Unidos ter espalhado a riqueza por uma classe média em crescimento, o que deslocou a classe operária, que de certo modo é a classe dominante na sociedade, e essa é a razão pela qual a democracia se propagou e não uma forma de comunismo. No entanto, acho que isso está sob ameaça dos avanços tecnológicos e da globalização pois o problema subjacente… Sim, existe este problema dos direitos e um estado social criado que as pessoas esperava que fosse estável mas acho que, mais importante do que isso, tem havido uma erosão contínua dos salários da classe média, resultado de máquinas inteligentes a substituírem os seres humanos nos seus postos de trabalho e este processo tem sido incessante, o que explica a concentração crescente no topo da pirâmide institucional. E não vejo nenhum político que tenha aparecido com uma resposta particularmente boa a este problema de longo prazo.
JMF: Mas concorda com este tipo de análises que discutimos muito na FLAD no ano passado, como a análise de Piketty, que consideram que existe uma maior concentração de riqueza ou que é um número mais misto?
Tem sido muito interessante observar, na Turquia e no Brasil, estas grandes manifestações nos últimos anos contra a corrupção e contra determinadas formas de práticas autoritárias
FF: Não. Empiricamente, não existem dúvidas de que tem havido uma crescente concentração de riqueza. Pikety afirma que isto é algo inerente ao próprio capitalismo e que tem acontecido nos últimos 200 anos. Para responder a essa questão temos de esperar por análises de dados porque existem razões para eu pensar que essa pode não ser a análise correta mas, certamente, como um resultado de avanços tecnológicos e, em especial, avanços no campo das tecnologias de informação, acho que existe um problema mais recente relacionado com a desigualdade e com esta concentração de riqueza.
JMF: E os pontos fortes da classe média noutras partes do mundo, nomeadamente na China, podem criar democracia? Porque não estão a ser democráticos na China.
FF: Temos de separar estes casos diferentes. Por exemplo, acho que tem sido muito interessante observar, na Turquia e no Brasil, estas grandes manifestações nos últimos anos contra a corrupção e contra determinadas formas de práticas autoritárias, na Turquia, todas levadas a cabo pela classe média. Na Índia, vemos uma classe média em crescimento que está farta da corrupção da classe política indiana. Portanto, o objeto não é tanto a desigualdade mas sim os maus governos.
O problema na China é que a classe média alcançou bons resultados sob o regime comunista, eles foram os principais beneficiários do crescimento económico chinês, não têm razão para estarem incomodados.
JMF: Mas a classe média no Egito, como também indica no seu livro, escolheu voltar à ditadura.
FF: Sim. Não há dúvidas que a classe média, inevitavelmente, apoie a democracia. Foi o caso na América Latina nos anos 60, eles apoiaram muitos governos militares. No entanto, há uma base para a mudança política e esta emergência da classe média… Acho que o problema na China é que a classe média alcançou bons resultados sob o regime comunista, eles foram os principais beneficiários do crescimento económico chinês, não têm razão para estarem incomodados. No entanto, quando esse crescimento parar o problema irá aparecer e o crescimento vai parar a certo ponto. A China está a abrandar neste momento e assim que os filhos dessa classe média não tiverem oportunidades de emprego então a questão será sobre o que vai acontecer em termos políticos. (Continua).