O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Dez mitos sobre defesa nacional no Brasil - Joao Paulo Soares Alsina (2008)

 DEZ MITOS SOBRE DEFESA NACIONAL NO BRASIL​
João Paulo Soares Alsina Jr
Revista Interesse Nacional – outubro/dezembro 2008 – pgs. 68 a 77

O artigo discute as percepções corriqueiras presentes em diferentes setores da sociedade brasileira sobre a problemática de defesa nacional. Dessa forma, dez mitos sobre a questão são identificados. Para cada um deles, o autor apresenta uma breve descrição e posterior refutação. Pretende, assim, esclarecer percepções tidas como errôneas e contribuir para o debate público sobre defesa nacional.

Este artigo aborda o que se poderia chamar de incompreensão generalizada sobre as questões de defesa nacional. A idéia de mito é empregada no sentido adquirido no senso comum: o de argumentação falaciosa que possui relevância em vista de sua ampla aceitação em um determinado contexto social. Procuro demonstrar a inconsistência dos argumentos que sustentam visões dominantes sobre a problemática brasileira de defesa, sem utilizar citações e notas de rodapé.

Mito 1. O Brasil não precisa de Forças Armadas
Esse mito deriva da incompreensão sobre o papel das Forças Armadas prevalecente em amplos setores da sociedade brasileira. Sua origem encontra-se no pacifismo antimilitarista proveniente de duas matrizes não-excludentes: a ingenuidade bem-intencionada e o preconceito puro e simples contra as instituições  de Estado que se ocupam da administração da coerção organizada. No primeiro caso, supõe-se que o sistema internacional tende à harmonia de interesses – embora os defensores dessa tese raramente sejam capazes de formulá-la em termos estruturados; no segundo caso, rejeita-se a instrumentalidade das organizações de força nacionais com base em seu suposto papel repressivo e na sua pretensa ausência de função social. Ambas as vertentes desse pacifismo à outrance, que nega, na prática, a necessidade de defesa da soberania e o papel do aparato militar na construção de sociedades democráticas, são pobres do ponto de vista conceitual. Com freqüência, não passam do nível do preconceito e da ignorância tout court, não estando respaldados pela Carta de 1 988.

Mito 2. O Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente
Esse mito merece explicação detida. Suas origens podem ser encontradas em visões, não necessariamente estruturadas do ponto de vista teórico-conceitual, presentes de maneira difusa na mídia, em setores da sociedade civil, no meio diplomático e mesmo nas hostes militares!

Qualquer medida de poder combatente – entendido como o quantum de capacidade destrutiva passível de ser aplicado pelas Forças Armadas em um conflito – deve ser sempre comparativa. Neste ponto, o analista depara-se com uma dificuldade de base: como definir os antagonistas com os quais o poder combatente do país deverá ser comparado? A resposta está longe de ser consensual, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do político. Em todo caso, ela terá de ser apresentada a partir de uma posição normativa passível de poucas restrições, uma vez que a Constituição brasileira e a Política de Defesa Nacional (pdn) permitem ampla margem para a interpretação do que constituiria ameaça à soberania e aos interesses nacionais. Portanto, para que se possa afirmar que o Mito dois é de fato mito, faz-se necessário demonstrar a necessidade de o Brasil contar com Forças Armadas com alta prontidão operacional e significativo poder combatente.

A apresentação da teoria que embasa os argumentos apresentados a seguir levaria este texto longe demais. No entanto, vale dizer que ela se fundamenta em inferências analíticas derivadas dos trabalhos de Barry Buzan, Ole Waever e David Mares. Abaixo, apresentam-se as premissas que justificam a necessidade de aumento do poder combatente e da prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras:

• o poder militar continua a ser fundamental para a mensuração do poder no plano das relações internacionais. Embora a capacidade de o poder militar servir de suporte em outras áreas de barganha (sua fungibilidade) seja limitada, ela de forma alguma pode ser considerada igual a zero;

• a força armada domina as demais expressões do poder em contextos de interação em que não haja limitações significativas ao seu emprego;

• o poder militar pode ser utilizado tanto coercitiva quanto persuasivamente. Logo, ele constitui uma ferramenta útil para a consecução dos interesses de um Estado específico;

• a imprevisibilidade de um sistema internacional de contornos indefinidos, a interconexão em tempo real permitida pelos meios de comunicação, os fluxos de pessoas e mercadorias entre Estados, os problemas ambientais de escala planetária, a diminuição do custo de utilização da força armada devido ao gigantesco gap tecnológico entre exércitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre outros fatores, fazem com que a eclosão e a escalada dos conflitos interestatais se processe de modo acelerado;

• logo, as Forças Armadas brasileiras precisam possuir alta prontidão operacional, de modo que estejam prontas a dar resposta imediata a contingências que atentem contra a soberania e os interesses brasileiros. Da mesma forma, a alta prontidão justifica- se como fator dissuasório e de projeção internacional do Estado;

• como a garantia da soberania é atributo das Forças Armadas, estas devem estar prontas a impor custos elevados a qualquer Estado que pretenda coagir o Brasil militarmente – seja de modo explícito ou velado;

• tendo em vista a atual inexistência de contenciosos ou de séria incompatibilidade de valores entre o Brasil e os países mais poderosos do Ocidente – aqueles que teriam condições de empreender ações do tipo mencionado no item anterior –, bastaria ao país ser capaz de mobilizar poder combatente suficiente para elevar acima de zero o custo de qualquer ação como a citada no item acima;

• em contrapartida, as Forças Armadas também precisam garantir a supremacia militar brasileira no subcontinente, forma de demonstração da vontade nacional de liderar o processo de integração regional. Em vista do que precede, afirma-se que se trata de mito a idéia de que o Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente. Nessa linha, proceder-se-á à enumeração dos argumentos que estão por trás do Mito 2, de acordo com uma versão estilizada, própria a cada um dos atores que se ocupam de reproduzi-lo.

A mídia não se pronuncia sobre o projeto de forças brasileiro e o nível desejável de prontidão operacional das Forças Armadas. Praticamente não há discussão pública sobre esses temas no Brasil. No entanto, com freqüência, programas de aquisição de sistemas de armas são avaliados a partir de uma perspectiva economicista, que se ocupa exclusivamente de ressaltar o valor da transação. Não raro, esse valor é cotejado com a resultante do investimento caso fosse aplicado na área social. Decorre desse nível de superficialidade, no tratamento do tema a inferência difusa de que o aumento do poder combatente e da operacionalidade das Forças Armadas não constituem objetivos socialmente válidos.

A representação política da sociedade civil pouco interesse demonstra em acompanhar e fiscalizar os assuntos militares. Essa abdicação de controle dá ensejo a todo tipo de distorções – circunstância inerente às burocracias desprovidas de supervisão. Os temas relacionados com a prontidão operacional e o poder combatente das forças são praticamente estranhos aos parlamentares brasileiros. À retórica de valorização das Forças Armadas corresponde a ausência de interesse em destinar recursos para um setor não identificado com os imperativos do clientelismo e da patronagem. Tudo isso ocorre em um contexto de profunda apatia da sociedade civil em relação às questões castrenses. Estruturada conceitualmente a partir da apropriação seletiva do legado de Rio Branco, a diplomacia brasileira não encara o poder militar como ferramenta essencial de projeção dos interesses nacionais. Isso se deve a variadas razões, sendo a mais saliente delas o fato de que, ao longo do século xx, o Itamaraty jamais pôde contar com um aparato militar que lhe permitisse maior latitude de atuação. Ademais, a retórica relacionada com a identidade internacional brasileira como a de uma potência pacífica limita a utilização clausewitziana da força armada. Logo, o plano declaratório da política externa não é conducente ao incentivo ao aumento do poder combatente das Forças Armadas. Mais do que isso, a possibilidade desse aumento é suficiente para suscitar temores de desequilíbrio do balanço estratégico regional e de eventuais conseqüências negativas no que se refere à percepção do Brasil por parte de seus vizinhos.

Os próprios militares não raro agem de maneira contrária ao incremento do poder combatente e da prontidão operacional das instituições a que pertencem. Essa postura pode ser identificada em três circunstâncias distintas: quando existe a possibilidade de um trade-off entre o aumento de poder combatente e a manutenção ou ampliação de benefícios corporativos (salários, aposentadorias, pensões etc.); quando alguma modificação organizacional coloca em perigo a autonomia corporativa das forças singulares (por exemplo, o processo de criação do Ministério da Defesa); e quando a prioridade da instituição não é o incremento de poder combatente per se, mas a consecução de algum outro objetivo (preservação da ordem interna, no caso do Exército; desenvolvimento científico, tecnológico e da infra-estrutura aerospacial, no da Aeronáutica, por exemplo).

Mito 3. O Brasil não deve incrementar seu poder militar sob pena de provocar desequilíbrio estratégico na América do Sul e fomentar corridas armamentistas
O conceito de equilíbrio estratégico, ao contrário do que supõe seu uso vulgar, é controverso do ponto de vista acadêmico. Torna-se ainda mais difícil falar em equilíbrio em uma região como a América do Sul, que se notabiliza por ser uma das menos armadas do mundo. A baixa capacidade de projeção de poder das Forças Armadas da região, acoplada aos limitados estoques de armamentos, acrescenta uma nota adicional de dificuldade em supor a existência de um equilíbrio estratégico que seja instrumental para a manutenção de relações amistosas entre os Estados sul-americanos. Na melhor das hipóteses, poder-se-ia falar em um equilíbrio na irrelevância, termo em si contraditório, pois a essência da tese defendida pelos partidários do equilíbrio estratégico é a crença realista de que a balança de poder garantiria a paz enquanto permanecesse ajustada. Ora, é difícil sustentar que a ausência de conflitos recorrentes na América do Sul seja o resultado da operação da balança de poder. No máximo, esse poderia ser considerado um entre outros fatores que explicam tal circunstância. Corolário da suposição de que o balanço estratégico seria instrumental para a manutenção da paz é a tese de que corridas armamentistas adviriam de eventual desequilíbrio. Novamente, trata-se um tema controverso como se fora um dado inequívoco da realidade. Os partidários dessa suposição raramente consideram que não há parâmetros consensuais para diferenciar esforços de reaparelhamento militar e corridas armamentistas. Da mesma forma, desconsideram as diferenças de percepção decorrentes da existência de uma estrutura social das relações entre os Estados da região mais tendente ao conflito ou à cooperação. Com efeito, iniciativas de modernização militar podem ser vistas como corridas armamentistas ou reaparelhamento corriqueiro, de acordo com o nível de confiança mútua existente. Esse fato parece escapar aos que temem corridas aos armamentos em conseqüência de desequilíbrios estratégicos. A estes escapa, ainda, a dimensão da política doméstica – essencial para a tradução de inputs externos em ações internas – e da viabilidade material de uma reação ao que se conceba como desequilíbrio militar. Assim, a dinâmica da política doméstica e a disponibilidade de recursos modularão a reação de um país ao que entende ser um aumento de capacidades militares por parte de seu vizinho. Mesmo que as elites dirigentes de um país A entendam que a nação B está a ponto de adquirir vantagem militar considerável, isso não significa que terão coesão, vontade ou capacidade de reagir a essa circunstância. Portanto, o modelo ação-reação implícito na idéia de corrida armamentista não se sustenta empiricamente, pois não pode ser generalizado.

Logo, não é possível antever a priori reações negativas a um incremento do poder militar brasileiro. Ao contrário, pode-se supor que essas reações, consubstanciadas em corridas armamentistas, não ocorrerão. Isso porque prevalece um ambiente de distensão entre o Brasil e seus vizinhos, além do fato de que nenhum deles teria condições de acompanhar os esforços de reaparelhamento brasileiro mesmo que entendessem assim proceder, uma vez que o Brasil pode dispor de recursos mais abundantes do que todos eles. Conclui-se que a tese que encara o fortalecimento de capacidades militares como prejudicial às relações brasileiras com os países lindeiros não possui solidez. Ela supõe como certos efeitos que são duvidosos e que não estão respaldados pela experiência regional recente.

De outra parte, subjaz ao mito em questão a desconsideração pela influência que os planos hemisférico e global exercem sobre a política de defesa. Ainda que o Brasil, na condição de potência regional militarmente débil, não exerça papel sistêmico importante no que se refere à segurança internacional, isso não quer dizer que os desenvolvimentos globais não afetem o país. As recentes descobertas de petróleo no litoral sudeste provavelmente aproximarão o Brasil de um dos mais tradicionais eixos de conflito entre Estados: a disputa por recursos energéticos. Desconsiderar essa possibilidade equivale a agir de modo autista. Logo, o Mito três é ainda mais falacioso por supor que a inserção internacional de segurança do país limitar-se-ia ao espaço sul-americano.

Mito 4. As Forças Armadas brasileiras possuem poder de dissuasão adequado
Essa idéia é sustentada por dois grupos distintos: aqueles que pouco conhecem sobre  as Forças Armadas e aqueles que crêem que a posição internacional do Brasil recomenda a manutenção de um baixo perfil militar – supostamente adequado à realidade de país em desenvolvimento. O primeiro grupo sustenta essa posição baseado em uma visão nacionalista ingênua e irrealista, que entende que as Forças Armadas representam uma instituição imaculada – centrada nos valores do patriotismo, da retidão moral, da abnegação etc. Essa visão, contudo, não merece ser tratada em detalhe. O segundo grupo, por sua vez, poderia ser subdividido em vários subgrupos.

O que une todas as vertentes que gravitam em torno da idéia de que o perfil estratégico brasileiro estaria adequado à sua estatura internacional é a concepção de que o país não pode aspirar a ser mais do que atualmente é: Estado em desenvolvimento não assolado por ameaças externas prementes, fraturado por seriíssimo problema de insegurança pública, debilitado por gravíssimas desigualdades sociais etc. Essas vulnerabilidades tornariam impossível  a adoção de um perfil distinto do hoje prevalecente no plano militar.

Ora, não se pode negar as debilidades brasileiras. No entanto, a visão descrita acima encerra um notável derrotismo, além de não considerar as contradições inerentes à política de defesa levada a cabo no presente. Se se considera que o perfil estratégico nacional é adequado, deve-se acreditar, por analogia, que a aplicação dos recursos destinados à defesa é satisfatória. Uma pesquisa superficial sobre os países que mais investem em defesa no mundo e seus respectivos arsenais indicará que esse não parece ser o caso. Sinteticamente, o Brasil encontra-se entre os dezesseis países que mais investem em suas Forças Armadas em termos absolutos. No entanto, há um abismo em termos de capacidades militares entre o nosso país e qualquer um dos quinze que se encontram à sua frente no ranking. O mesmo ocorrendo em relação aos cinco que se situam logo atrás dele. Isso se processa pelo fato de que mais de 80% do orçamento da defesa se destina ao pagamento de salários, aposentadorias e pensões. Nessas condições, caso fossem implementadas reformas que diminuíssem gastos com pessoal, mas mantivessem o mesmo orçamento, haveria possibilidade de aumentar os investimentos no aparelhamento das Forças Armadas; o que, ipso facto, negaria a tese de que o Brasil não poderia possuir capacidades militares mais  importantes do que as atuais. Assim, o derrotismo paralisante daqueles que crêem nada poder ser feito não só é menos realista do que parece como também referenda um estado de coisas que é extremamente negativo, ou seja: o país investe tanto quanto muitos dos Estados melhor aparelhados em termos militares sem que obtenha retorno semelhante ao alcançado por estes últimos.

 Mito 5. As Forças Armadas devem cumprir seu papel social por meio de ações cívico-sociais e da manutenção do sistema de recrutamento universal obrigatório
Por trás dessa visão, encontra-se mais ou menos formalizada a idéia de que o Brasil pode prescindir de Forças Armadas como instrumentos de garantia da soberania nacional. Essa rationale supõe que:

• não haveria ameaças externas contra as quais o Brasil precisasse se preparar militarmente;

• as Forças Armadas, nesse contexto, precisariam “ser úteis” ao país por meio de ações não diretamente relacionadas com a preparação para a guerra;

• diante das grandes desigualdades sociais e da tibieza da presença do Estado em setores importantes da vida nacional, uma forma de conferir utilidade às Forças Armadas seria a de empregá-las nas chamadas ações cívico-sociais;

• nessa mesma linha, a ampliação do recrutamento de jovens das camadas mais desfavorecidas da população serviria como forma de inculcação de valores cívicos e de transmissão de conhecimentos básicos. O serviço militar obrigatório funcionaria, então, como um instrumento civilizatório. De início, há um problema central relacionado com esse tipo de perspectiva: a Constituição Federal. Esta estabelece que uma das duas funções precípuas das Forças Armadas é a defesa da soberania nacional. Logo, do ponto de vista legal, estas não podem abdicar dessa tarefa. Ocorre que o assistencialismo relacionado com a perspectiva mencionada encontra-se em direta contradição com a tarefa de defesa da soberania. Isso se dá porque existe um conflito entre a natureza das funções aludidas. A guerra moderna implica a necessidade de forças detentoras de alta prontidão operacional, capazes de atuar de modo coordenado com os demais ramos das Forças Armadas,  tecnologicamente atualizadas, flexíveis. Essas características requerem a existência de oficiais e praças altamente qualificados – tanto em termos de capacitação intelectual e técnica quanto de adestramento. Recrutas temporários de baixa instrução não têm nenhuma condição de atender aos requisitos para a formação de um soldado apto a operar no campo de batalha digital contemporâneo.

Não resta dúvida de que a lógica do Mito cinco conduz a uma contradição fundamental de quase impossível resolução. Portanto, a manutenção de Forças Armadas cuja estrutura organizacional não privilegia a preparação de profissionais adaptados às exigências da guerra contemporânea significa insistir em um modelo que, a um só tempo, não elimina as desigualdades sociais e não proporciona ao país forças aptas a garantir satisfatoriamente a defesa da soberania nacional. Mito 6. O orçamento militar brasileiro é baixo Como proporção do pib, o orçamento militar brasileiro é de fato baixo, mantendo-se, nas últimas duas décadas, em menos de 2% do produto. No entanto, em termos absolutos, o orçamento militar do Brasil não é pequeno. O país encontra-se em décimo sexto lugar no ranking das nações que mais investem no setor. Se se comparar, contudo, o inventário de sistemas de armas e o nível de prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras aos dos países que investem somas semelhantes em defesa – Holanda, Israel, Austrália, Coréia do Sul – chegar-se-á à conclusão de que existe uma enorme discrepância em desfavor de nossas Forças Armadas. A razão para que tal ocorra reside na parcela desproporcional ocupada pela rubrica relativa a pagamento de pessoal ativo, inativo e pensionistas. Nos últimos anos, essa parcela tem sido consistentemente superior a 80% do orçamento efetivamente executado – percentual que não inclui os elevados gastos com o sistema de saúde militar. Para se ter uma idéia, as Forças Armadas dos EUA não chegam a gastar 40% do orçamento com pagamento de pessoal .

Mito 7. As Forças Armadas podem colaborar decisivamente no combate à criminalidade, o que lhes conferiria utilidade
Esse mito é uma variante especialmente grave do Mito 5. Os partidários dessa tese acreditam que o emprego das Forças Armadas em substituição ou complementação às polícias seria capaz de resolver ou minorar os problemas relacionados com a criminalidade, conferindo utilidade àquelas. Há diversos problemas envolvidos nesse tipo de mitologia. O primeiro deles é o que se refere aos aspectos legais. Não há no Brasil legislação que proporcione às Forças Armadas garantias suficientes para que tal tipo de atuação possa desenrolar-se de maneira juridicamente segura e eficaz – tanto no que toca às prerrogativas dos agentes do Estado, os soldados, quanto na definição da cadeia de comando entre militares federais e polícias estaduais. O segundo é o que se refere à eficiência desse tipo de atuação.

As intervenções realizadas até o presente demonstram que o emprego das Forças Armadas proporciona tão-somente uma sensação temporária de segurança. Não sendo possível manter grandes efetivos militares 24 horas por dia, sete dias por semana, nas ruas, a insegurança volta a aflorar assim que os soldados são retirados de suas posições. Deve-se ressaltar, ademais, que a maioria desses últimos é formada por recrutas não-instruídos em aspectos básicos das tarefas policiais. O terceiro aspecto é o relacionado com a flagrante incompatibilidade entre as missões de segurança pública e de defesa da soberania nacional. Assim, a convivência de demandas profissionais tão distintas em uma mesma instituição, em essência o Exército, faz com que esta não seja capaz de desempenhar nenhuma delas com a proficiência ideal. O quarto aspecto é o que diz respeito à exposição das Forças Armadas à corrupção decorrente de seu emprego em missões de caráter policial. Resta claro que esse é um risco não desprezível, que colocaria em perigo instituições ainda preservadas da infiltração pelo crime organizado.

Mito 8. As Forças Armadas devem visar o desenvolvimento da Nação, aceitando trocar poder combatente imediato por projetos de desenvolvimento científico-tecnológico de prazo incerto.
A noção de que o Brasil vive em um paraíso kantiano no plano de suas relações exteriores dá ensejo à visão de que o país pode dar-se ao luxo de trocar poder combatente imediato por iniciativas de desenvolvimento científico e tecnológico de prazo incerto (por exemplo, o Veículo Lançador de Satélites – VLS – e o submarino de propulsão nuclear). Referência à idéia de que os países tenderiam à paz, pela universalização progressiva da razão, presente na obra de Immanuel Kant, filósofo alemão (1724–1804). Esse raciocínio, mais a ausência de percepção de ameaças externas iminentes permitiria que se investissem os parcos recursos destinados à aquisição de sistemas de armas em projetos nacionais de desenvolvimento tecnológico – alguns deles não-relacionados diretamente com a produção de armamento, como no caso do VLS. Esse tipo de mitologia esbarra em três aspectos da realidade contemporânea. Em primeiro lugar, parte da premissa controversa de que as Forças Armadas brasileiras não precisariam de alta prontidão operacional – que inclui a posse de armamento pronto a ser utilizado. Em segundo lugar, o trade-off poder combatente imediato versus  desenvolvimento tecnológico de longo prazo encontra um obstáculo insuperável na ausência de recursos para a rápida conclusão dos sistemas de armas pretendidos. Assim, a ausência de recursos dá origem a longuíssimos ciclos de desenvolvimento, o que resulta na produção de armamento inevitavelmente obsoleto em comparação com o que se fabrica nos principais países inovadores. Essa circunstância acaba por limitar a utilidade e a capacidade de exportação de tais sistemas de armas – ultrapassados antes mesmo de nascerem. Em terceiro lugar, a baixa capacidade de aquisição desses sistemas pelas Forças Armadas brasileiras acaba tornando seus custos de produção proibitivos e desincentivando a consolidação de um parque nacional de material bélico capaz de fornecer armamentos atualizados às forças singulares.

O quadro acima descrito revela o caráter problemático da manutenção de visões desenvolvimentistas que acabam por gerar efeitos duplamente perversos: não contribuem decisivamente para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, tampouco provêem os sistemas de armas necessários para garantir a adequada prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras. Exceção parcial a esse modelo é a representada pelo projeto naval nuclear, que, se, por um lado, deu ao país o domínio tecnológico do ciclo completo do enriquecimento de urânio, por outro, não foi capaz até o momento (30 anos depois de seu início!) de produzir o reator necessário à propulsão de submarinos.

Mito 9. A política externa de um país periférico como o Brasil não precisa estar respaldada por poder militar apreciável – sendo este somente útil no que concerne às operações de manutenção da paz
Este mito é uma variação sobre o tema dos mitos anteriores. Parte do pressuposto de que a força armada não é útil ou utilizável por parte de um país como o Brasil. Naturalmente, também vem embutida nessa perspectiva a noção de que o plano internacional tenderia ao kantianismo ou de que, mesmo que não tendesse, o país nada poderia fazer para resguardar seus interesses por meio de instrumentos militares. A exceção a essa regra seria a das operações de manutenção da paz da ONU. Por não envolverem o uso direto da força e por possuírem caráter essencialmente humanitário, esse tipo de operação constituiria uma forma válida de afirmação internacional do Brasil. Ademais, por não serem muito exigentes em termos de preparação militar e de meios materiais, poderiam ser desempenhadas por nossas Forças Armadas – o que reiteraria o comprometimento nacional com os esforços em prol da paz, legitimando as pretensões brasileiras de ocupar assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Embora não haja dúvida de que a participação em operações do gênero tenha como efeito o aumento do prestígio e da visibilidade internacional do Brasil, não se pode negligenciar os aspectos potencialmente negativos derivados da especialização das Forças Armadas em operações de manutenção da paz. Em primeiro lugar, é por demais duvidosa a premissa de que esse tipo de operação possa vir a constituir o cerne da política de defesa brasileira – por inúmeras razões, entre as quais a da dimensão do contingente militar brasileiro. Em segundo lugar, não é consensual a visão de que a participação nelas possa por si só influenciar a comunidade internacional a aceitar o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança. Em terceiro lugar, é controversa a suposição de que as operações de manutenção da paz possam ser instrumentais para aumentar a prontidão operacional das Forças Armadas – tendo em vista a ausência de identidade entre esse tipo de operação e as tarefas de defesa da soberania. Em quarto lugar, deve-se mencionar que o caráter parapolicial de operações desse tipo pode contribuir para reforçar as correntes de opinião que enxergam no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública uma espécie de bala de prata para a resolução dos problemas de criminalidade registrados no Brasil. Em quinto lugar, a utilização das operações de manutenção da paz como argumento em favor do aparelhamento e da modernização das Forças Armadas constitui uma faca de dois gumes, isso porque reforça a percepção de que Marinha, Exército e Aeronáutica não teriam papel relevante a exercer em termos de segurança militar externa (defesa stricto sensu).

Em resumo, as operações de manutenção da paz não podem constituir o alfa e o ômega da política de defesa, sob pena de se negligenciar a capacidade de defesa brasileira.

Mito 10. As questões de defesa não são prioritárias e, portanto, não há necessidade de maior integração entre as Forças Armadas por meio de um Ministério da Defesa forte e atuante
Esse mito vem sendo propalado de maneira intermitente pelo estamento militar como forma de preservar sua autonomia corporativa,  tendo sido utilizado durante o processo de redação da Carta Magna de 1988 e as discussões que deram origem ao I Plano de Defesa Nacional, em 1996, e ao Ministério da Defesa, em 1999. Ele é desmentido pelos conflitos militares recentes e pela prioridade que os países desenvolvidos vêm atribuindo ao fortalecimento da capacidade de articulação de seus respectivos ministérios da defesa e ao incremento da interoperabilidade de suas forças. A noção contemporânea de guerra baseada em redes, por exemplo, contradiz cabalmente a idéia de que cada ramo das Forças Armadas pode atuar de modo isolado dos demais. Portanto, não resta dúvida de que somente um MD forte e atuante poderá exercer a direção necessária ao atingimento da meta de garantir a interoperabilidade das forças, a eficiência na aplicação dos recursos disponíveis, a aderência às diretrizes emanadas do poder político, bem como a coordenação eficiente da política de defesa com a política externa brasileira.

Conclusão
A enunciação dos dez mitos demonstra a indigência do debate público sobre política de defesa no Brasil. Enquanto a sociedade brasileira em geral e as suas elites dirigentes em particular não forem capazes de encarar de maneira madura as questões relacionadas com a defesa nacional, o país continuará atolado em terreno pantanoso. Isso porque, sem direção política clara, sem definições precisas sobre suas atribuições, sem meios mínimos para garantir a soberania da nação, as Forças Armadas (em especial o Exército) são cada vez mais empurradas para as tarefas de garantia da lei e da ordem. Parece evidente que às forças singulares restará, ceteris paribus, apenas o papel de intervenção no campo da segurança pública – uma vez que a incapacidade de atuar no plano da defesa elimina a possibilidade de que esse papel seja sustentado como útil do ponto de vista de sua legitimidade social.

Levando em conta o que precede, a essência do problema relacionado com o lugar das Forças Armadas em uma sociedade desigual como a brasileira poderia ser resumido de modo singelo: a incompreensão generalizada sobre a funcionalidade social das instituições responsáveis pela administração da coerção coletivamente organizada conduz à sua utilização errática. Se não se compreende que o cerne da função social exercida pelos militares é justamente sua capacidade de provimento de segurança militar externa (defesa), mantém-se aberta a caixa de Pandora da transformação de funções subsidiárias (substituição das polícias em situações várias, apoio a ações assistenciais etc.) em primordiais. É preciso, portanto, que se alerte os formadores de opinião sobre o extremo perigo que o Brasil corre ao optar na prática – ainda que não na teoria – pela utilização das Forças Armadas no campo da segurança pública. Exemplos abundam sobre a inconveniência e a ineficiência do emprego dos militares em tarefas policiais ou parapoliciais. Se o país pretende combater a criminalidade, não será uma (falsa) solução de emergência – o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem – que lhe permitirá dar conta da questão. O difícil encaminhamento do problema da segurança pública será alcançado se, e somente se, o governo federal, juntamente com os estados, for capaz de empreender um amplo processo de reforma das instituições que têm a atribuição primária de combater o crime (polícias, sistema carcerário, sistema judicial etc.). Essa reforma é extremamente complexa, tanto do ponto de vista burocrático quanto do político. No entanto, terá de ser levada a cabo, sob pena de o Estado perder jurisdição sobre parcelas crescentes do território nacional, que seriam dominadas pelo poder paralelo do crime organizado.

Note-se, de outra perspectiva, que o Brasil não se encontra idilicamente isolado do mundo e que sua crescente importância no campo da energia, eixo tradicional dos conflitos interestatais, poderá expor o país a pressões externas de variados tipos. Essas pressões podem dar-se, inclusive, no campo militar. Somente essa circunstância deveria ser o bastante para que os tomadores de decisão conferissem atenção especial à política de defesa. Ocorre que as preocupações brasileiras no campo da segurança internacional não podem restringir-se apenas ao aspecto energético. Deve-se considerar também as implicações de uma ampla gama de fatores eventualmente perturbadores da lógica de baixa conflitividade entre os Estados prevalecente no sistema internacional contemporâneo. São eles:

• a diminuição do custo de utilização da força causada pelo aumento contínuo do abismo tecnológico entre as forças armadas de Estados desenvolvidos e em desenvolvimento (o que permitiria que as grandes potências viessem a utilizar seu poder militar contra Estados fracos militarmente com total impunidade);

• o aumento da conflitividade sistêmica causado pela disputa por recursos escassos em um contexto de degradação ambiental crescente;

• instabilidade crônica no complexo de segurança regional sul-americano causada pelo aprofundamento das contradições sociais e pela fragilidade institucional dos países que o compõem;

• disputas pelo acesso a recursos produzidos ou contidos em território brasileiro (petróleo, biocombustíveis, água doce, alimentos, material genético etc.);

• disputas sobre eventual opção brasileira em desenvolver tecnologias de uso dual;

• disputas sobre questões relacionadas com os direitos humanos de minorias indígenas, passíveis de serem instrumentalizadas contra o Brasil;

• ameaça à integridade física e à propriedade de populações brasileiras residentes em áreas de fronteira onde haja instabilidade política e social;

• infiltração, em território nacional, de células de grupos terroristas (em especial de organizações hostis à superpotência);

• associação entre grupos terroristas estrangeiros e o crime organizado doméstico.

Tendo em conta o cenário esboçado, o Brasil encontra-se diante de um impasse. As Forças Armadas nacionais custam ao erário soma não desprezível de recursos. No entanto, esses recursos não se traduzem em capacidade de dissuasão convencional aceitável, tampouco em forças aptas a dar conta satisfatória da garantia da lei e da ordem. Ainda que a discussão sobre o que fazer para modificar o atual status quo não esteja contemplada neste artigo, surge de maneira inequívoca a idéia do que não se deve fazer. Empregar Marinha, Exército e Aeronáutica em tarefas policiais e parapoliciais é o que se deve evitar a todo custo. Esse tipo de emprego praticamente assegura a materialização de dois fenômenos profundamente indesejáveis: a corrupção das forças constitucionalmente responsáveis pela defesa da soberania nacional (expostas ao convívio com a marginalidade) e a não-resolução da crise da segurança pública (ao manter indefinidamente esquemas paliativos de intervenção que não atacam o cerne do problema).

Cabe a indagação: é isso que desejamos para o Brasil?

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Brasil Paralelo: quase pronto: http://www.brasilparalelo.com.br/congresso/

Recebi a comunicação abaixo do Brasil Paralelo, a iniciativa de empreendedores visionários que gostariam de ver um país melhor do que é hoje, e que para isso se dedicaram a gravar entrevistas com seis dezenas de personagens de calibres, tamanhos e importância diversos, e que acabaram me entrevistando também, em Brasília, no dia 14 outubro 2016, quando fiz uma gravação de entrevista, em vídeo, com um depoimento sobre “A política externa paralela do lulopetismo diplomático”.
Continuo aguardando o início da série.
Paulo Roberto de Almeida 

Brasil Paralelo
Facebook: https://www.facebook.com/brasilparalelo/ 
Site: http://www.brasilparalelo.com.br/congresso/

Olá, Paulo! Tudo bem?

Aqui é o Filipe, do Brasil Paralelo, e eu gostaria de ter uma palavrinha com você.
Antes de começar: você está gostando do nosso conteúdo? Eu espero que ele esteja sendo útil para você e que também esteja servindo para você se sentir parte desse marco importante
que será o nosso congresso!

Essa semana é muito importante, porque marca o início da nossa reta final. Estamos trabalhando pra caramba para que tudo seja perfeito!

Sabemos que será um grande desafio (já está sendo!), mas que marcará para sempre a comunicação livre, independente e verdadeira sobre as questões mais importantes do nosso país.

Ainda mais em um momento tão delicado como este que vivemos agora...

Nesses últimos 170 dias, envolvemos 372 pessoas nesse grande grito pela liberdade a favor da verdade. Contamos com 10 colaboradores comprometidos 7 dias por semana, reforçando o
nosso padrão de qualidade e nosso comprometimento com você.

Nesses últimos 170 dias, 40 mil pessoas se cadastraram para assistir a nossa programação e
nós estamos realmente surpresos (e motivados!) com o volume de gente interessada!

O nosso congresso já alcançou a marca surpreendente de 68 palestras, com nomes de peso
como o professor Olavo de Carvalho, Luiz Felipe Pondé, Hélio Beltrão, Ives Gandra, entre muitos outros!

O aviso

A partir de hoje, nós começaremos a intensificar a nossa comunicação. Ficaremos mais pertinho de você para que você não perca nada da nossa programação!

Estamos combinados?Todos os dias, mais ou menos nesse mesmo horário, eu enviarei uma novidade para você direto na sua caixa de e-mail e é muito importante que você vá se atualizando dia após dia.

É a nossa forma de dizer muito obrigado pela sua confiança!

O nosso congresso ultrapassou todas as expectativas e já chamou a atenção de muita gente grande (para o bem ou para o mal).

Utilizamos o bem como uma alavanca para nos projetar a um número ainda maior de pessoas
e os que são inimigos da liberdade e da transparência como combustível e motivação!

Nós estamos só começando e queremos você com a gente em cada novo desafio.

Precisamos disso!
Falta pouco para o nosso grande dia D (a nossa estreia) e eu aproveito para agradecer a você
em nome de toda a equipe Brasil Paralelo, por estar fazendo parte disso.

Nos falaremos amanhã. Agora, vou me despedindo que ainda tem muito trabalho a ser feito!

Filipe Valerim.

Congresso Brasil Paralelo 

Marcelo Raffaelli: um embaixador historiador, e sua obra, no RI em Pauta

Nesta próxima quarta-feira, dia 23, vou receber no IPRI o embaixador aposentado Marcelo Raffaelli, que prestará um depoimento sobre sua vida, obra e atividades profissionais para a série "Relações Internacionais em Pauta", do IPRI (http://www.funag.gov.br/ipri/riempauta/).
Dele eu tenho um livro publicado em inglês sobre os acordos internacionais de produtos de base, elaborado com base em sua experiência de trabalho no Gatt, e a obra sobre as relações Brasil-Estados Unidos no século 19, publicado em dois volumes pela Funag.
Sobre essa obra eu fiz uma resenha quando os dois volumes foram divulgados, que transcrevo abaixo no formato publicado na revista Desafios do Desenvolvimento:


Relações Brasil-Estados Unidos, na infância

Paulo Roberto de Almeida
Desafios do Desenvolvimento (maio 2007)

Marcelo Raffaelli:
 A Monarquia e a República: Aspectos das Relações entre Brasil e Estados Unidos Durante o Império
(Rio de Janeiro-Brasília: Centro de História e Documentação Diplomática/Funag, 2006, 290 p.)

Exemplo de síntese histórica,em sua objetividade e concisão, a compilação de despachos e ofícios trocados ao longo do século XIX por diplomatas brasileiros e norte-americanos, com suas respectivas secretarias de Estado, compõe um relato saboroso das relações entre dois grandes países do hemisfério.O autor é diplomata experiente, com passagens por diversas embaixadas e longo estágio como funcionário do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, das iniciais em inglês de General Agreement on Tariffs and Trade). Aposentado, atual presidente da Associação dos Diplomatas Brasileiros, pesquisou velhos arquivos empoeirados (os americanos certamente microfilmados).

Organizado tematicamente, antes que cronologicamente, o livro abrange desde o reconhecimento da Independência brasileira até o fim do regime monárquico e a inauguração da República no Brasil, bem recebida pelos Estados Unidos.O delicado equilíbrio entre os poderes traçado na Constituição de 1786 – cuja inspiração os founding fathers foram buscar em Montesquieu – serviu de modelo para que Rui Barbosa e outros republicanos tentassem mimetizar o sucesso americano, a começar pela designação da nova federação como “Estados Unidos do Brazil”(assim mesmo, com “z”). Aparentemente, o molde não bastou para frutificar por aqui.

A obra realiza uma descrição sintética de cada um dos chefes de missão e suas respectivas instruções diplomáticas,o que permite contrastar a objetividade comercial dos anglo-saxões com a generalidade das metas brasileiras no gigante em formação. Analisa, ainda,os problemas do tráfico escravo (abolido bem antes nos EUA, que se dedicaram à “criação”de escravos) e alguns contenciosos diplomáticos decorrentes da Guerra de Secessão.Outro problema abordado é o da impossível abertura do rio Amazonas à navegação internacional, reclamada por americanos e europeus, mas temida pelos dirigentes da monarquia brasileira, numa posição diametralmente oposta às demandas brasileiras no rio da Prata,que era a única via de acesso às terras de Mato Grosso. Interessante à leitura, também, são os despachos nos quais os enviados a cada capital comentam características do povo e do país em que servem, com toda a franqueza dos papéis confidenciais.

No plano historiográfico, trata-se de um excelente resumo de fontes primárias, com intenso apoio nos arquivos oficiais e em bibliografia equilibrada.O autor deixa falar os velhos papéis,o que contrasta saudavelmente com certas obras que, ao pretender analisar a emergência da “nova Roma” da atualidade, descambam rapidamente para teorias conspiratórias. Raffaelli produziu uma excelente síntese sobre as relações entre os dois gigantes hemisféricos, antes que este gigante meridional pretendesse estabelecer “relações especiais” com o Big Brother do norte, já na era do barão de Rio Branco.

O livro está disponível na Biblioteca Digital da Funag: 
http://funag.gov.br/loja/download/329-monarquia-e-a-republica.pdf

Marcelo Raffaelli por ele mesmo: 

Nascido em 1929, formado em Direito pela PUC do Rio em 1953. Fiz o concurso, que tomou os inteiros 2 meses de 12/51 e 1/52, para o IRB e terminei o CPCD em maio de 1953. Na SE, trabalhei (1953-55) na velha Divisão Econômica, na Assessoria de Imprensa do Gabinete e novamente na DE; (1962-1964) na divisão da Europa Ocidental; (1971-3) chefe das Divisões de Produtos de Base e de Política Comercial; (1977-9) chefe dos departamentos da Àsia, África e Oceania e dos Organismos Regionais Americanos.
No exterior - Embaixada em Caracas, CG em Amsterdam, Missão na ONU, embaixada em Washington, Delegação junto a ALALC em Montevidéu (Representante Suplente), ministro em Londres, embaixador em Abidjã.
Em 1982 agreguei para servir no GATT, na presidência do Órgão de Vigilância dos Têxteis, onde fiquei até o fim de 1994; tinha pedido aposentadoria do MRE em 1990.
Assim, minha carreira levou-me a participar de muitas negociações bi e multilaterais, cobrindo tanto assuntos econômicos como políticos, ou políticos com fundo econômico, como os acordos sobre pesca da lagosta durante o período em que nosso mar territorial tinha 200 milhas...
Minhas publicações resumem-se a Rise and Demise of Commodity Agreements, escrito (em inglês) durante a época em que as negociações da Rodada Uruguai colocaram meu OVT em marcha lenta e me deram o tempo para tanto. Foi publicado na Inglaterra em 1995.
Também em 1995 publiquei, em coautoria com minha então assistente Tripti Jenkins, um relatório, que me foi encomendado pela associação dos países exportadores de têxteis, sobre o acordo de têxteis negociado no contexto da Rodada.
Em 1996 a FUNAG publicou A Monarquia e a República, livro que cobre aspectos das relações Brasil-EU durante o Império e que foi possibilitado pelo fato de que, morando naquele momento em Washington, pude pesquisar nos National Archives e na Biblioteca do Congresso, bem como em nosso Arquivo Histórico. Para o CHDD escrevi um artigo sobre a chamada guerra da lagosta.
Ultimamente, morando de novo em Washington, aproveitei a riqueza dos recursos oferecidos pela NARA e Bibl. do Congresso para um livro sobre o período que vai do fim da monarquia francesa, em 1792, a 1828; trata da interação, da influência que mutuamente se exerciam Europa e Estados Unidos de um lado, e do outro as colônias espanholas e o Brasil.