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quarta-feira, 6 de março de 2024

Ipea analisa alinhamento entre Brasil e EUA em cooperações militares - Agência Brasil

 Ipea analisa alinhamento entre Brasil e EUA em cooperações militares

IstoÉ Online, 06 de março de 2024

Agência Brasil,  06/03/2024 

"Os Estados Unidos figuram como o principal destino dos postos e missões militares brasileiras no exterior", diz estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Segundo a análise do Ipea, relativa ao período de 2020 a 2023, "a alta recorrência de capacitações e de cooperações militares nos Estados Unidos (EUA) aponta para um desalinhamento entre os objetivos gerais apresentados na PND [Política Nacional de Defesa] e na END [Estratégia Nacional de Defesa], uma vez que concentra as influências políticas, estratégicas e doutrinárias preponderantemente em um único país."

De acordo com o texto para discussão O Setor de Defesa Brasileiro no Exterior: Desafios, Oportunidades e Subsídios para a Revisão dos Documentos de Defesa, a preferência é um resquício do alinhamento do Brasil com os Estados Unidos como ocorria à época da Guerra Fria (1947-1991).

Notícias relacionadas:

"A presença norte-americana tem sido grande historicamente desde o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), assinado em 1947, criação da OEA [Organização dos Estados Americanos], em 1948, a assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos em 1952 - denunciado [extinto] em 1977 -, a existência das Comissões de Aquisições do Brasil em Washington, e a expansão dos mecanismos institucionais regionais liderados pelos EUA na área de defesa como a Conferência de Ministros da Defesa das Américas, criada em 1995, o William J. Perry Center for Hemispheric Studies, criado em 1997, e a própria Junta Interamericana de Defesa [criada em 1942, antes da OEA]."

Cenário multipolar

A predileção pelos EUA nas cooperações militares fica mais remissa quando considerado o cenário internacional multipolar atual. "Daí defronte a um aumento da competição entre grandes potências, com crescente influência de China, Índia e Rússia, um excessivo e assimétrico vínculo pode não ser tão produtivo quanto buscar diversificação de parcerias, característica tradicional da política externa brasileira."

O estudo foi elaborado com base em registros publicados no Diário Oficial da União, de informações coletadas na Biblioteca da Presidência da República e da base de dados "Concórdia", acervo de atos internacionais do Brasil mantido pelo Ministério das Relações Exteriores. A partir dessas informações, a análise contempla mais de uma dezena de indicadores sobre a atuação internacional do setor de defesa.

Segundo o material apurado, os Estados Unidos são o país em que os militares brasileiros mais fazem cursos de pós-graduação: 27 estudantes nos três anos observados - o triplo do Reino Unido que fica em segundo lugar. No período, 134 militares brasileiros frequentaram algum curso nos EUA, e 97 eram oficiais superiores (com patente a partir de major).

Conselho de Segurança

A aglutinação das cooperações militares nos EUA desfavorece interesses da política externa do Brasil, assinala a publicação. "Ao concentrar em um único parceiro, da forma como verificamos nesse período, perdemos a oportunidade reunir conhecimento sobre países que são importantes no cenário internacional e que estão em espaços de decisão multilaterais, como o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas", descreve o economista Pedro Silva Barros, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, em nota publicada pelo instituto. O economista também tem formação na Escola Superior de Defesa (ligada ao Ministério da Defesa) e escreveu o texto para discussão em parceria com os pesquisadores Paula Macedo Barros e Raphael Camargo Lima

Publicado no fim de fevereiro, o texto "busca contribuir para o debate público", diz Pedro Barros à Agência Brasil. Até o fim deste semestre, o Poder Executivo deverá encaminhar para apreciação do Congresso Nacional a nova Política de Defesa Nacional, a nova Estratégia Nacional de Defesa e o novo Livro Branco de Defesa Nacional - um documento público sobre modernização das Forças Armadas, o suporte econômico da defesa nacional, a participação em operações de paz e ajuda humanitária e outras informações públicas, "que o Brasil apresenta ao mundo, sobre visão e os seus interesses e a sua política de defesa", informa Barros.

Após as conclusões, o estudo traz 14 recomendações políticas para a atuação internacional do setor de defesa, entre as quais a de dar prioridade ao "entorno estratégico brasileiro", que inclui a América do Sul, o Atlântico Sul, os países da costa ocidental africana e a Antártica; a reativação sob novas bases, da Escola Sul-Americana de Defesa"; e "propor mecanismos de colaboração em ensino e capacitação de defesa no âmbito de outras áreas estratégicas para o Brasil", como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e países banhados pelo Atlântico Sul.


terça-feira, 11 de julho de 2023

Defesa Nacional: desafios externos e internos - Rubens Barbosa (OESP)

 DEFESA NACIONAL: DESAFIOS EXTERNOS E INTERNOS


Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/07/2023


O cenário internacional vem passando por profundas transformações que terão impacto nos esforços brasileiros para alcançar objetivos relacionados ao seu desenvolvimento econômico e social e, também, à preservação de sua soberania e projeção externa. 

A geopolítica voltou a ocupar o centro das atenções das grandes potências. Os principais atores com capacidade militar e vontade para usá-la, como a OTAN, liderada pelos EUA, a Rússia e a China, encontram-se claramente em rota de colisão. Os EUA deixam cada vez mais claro a intenção de conter os avanços da China no cenário internacional, apesar de atitudes táticas de estabilizar as relações bilaterais e reduzir as tensões. A perspectiva de um conflito entre esses atores não deve ser descartada. A confrontação entre os EUA e a OTAN com a Rússia, por meio da guerra na Ucrânia dividiu o mundo. O Brasil, nas duas crises, definiu sua posição como de autonomia estratégica, de equidistância ativa entre os dois lados. Deve ser lembrado que os países ocidentais estão adotando uma posição muito proativa em questões de clima, inclusive no contexto da Defesa, como evidenciado por declaração da OTAN em sua última reunião na Espanha em 2022. O Brasil tem sido alvo da atenção desses países e reiteradamente criticado pela política ambiental e pela devastação da Amazônia.

Por outro lado, cabe apontar que uma nova era de operações bélicas com o uso de alta tecnologia já começou tornando obsoletos os sistemas de armas usados nos conflitos e os sistemas de defesa para a proteção das fronteiras. Se o Brasil não dispuser de capacidade tecnológica para utilizar meios robóticos e de inteligência artificial estará em grande desvantagem em seu poder de dissuasão, caso tenha de enfrentar qualquer ameaça para a defesa de seus interesses, seu território, sua extensão marítima ou seu espaço aéreo.

Em qualquer desses cenários, o Brasil necessitará de uma capacidade militar crível e muito superior à que hoje possui, para dissuadir possíveis ameaças e para aumentar sua projeção externa. As três áreas ressaltadas na END (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na OTAN, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios da inteligência artificial. Nenhum país de grande porte, como o Brasil, pode prescindir de uma capacidade industrial, tecnológica e de inovação própria para manter FFAA modernas e capazes de enfrentar qualquer tipo de ameaças. O Brasil possui uma base industrial de defesa muito pequena e incapaz de atender às necessidades de suas FFAA. Quase todos os meios existentes, e/ou os seus principais componentes e tecnologias críticas, são fornecidos por países da OTAN. É necessário atentar para a qualidade dos investimentos em Defesa já que mais do que 3/4 dos gastos são com bens e serviços de origem estrangeira. É fundamental criar condições para aumentar o conteúdo nacional dos sistemas de Defesa de forma a potencializar a reindustrialização e a geração de empregos. Esta dependência de meios e tecnologias dos países da OTAN se constitui em enorme vulnerabilidade, especialmente no momento que estamos atravessando. Nesse contexto, parece claro que o Brasil necessita começar imediatamente um grande e continuado esforço para desenvolver, da forma mais autônoma possível, sua capacidade militar. É necessário estabelecer uma agenda positiva para a Defesa de curto, médio e longo prazo, que inclua a Defesa como uma das vertentes da reindustrialização do país. A agenda de curto prazo deveria incluir, entre outros aspectos, o fortalecimento da Base Industrial da Defesa por meio de sua crescente nacionalização, da atuação do BNDES e Banco do Brasil para o financiamento do comprador de produtos da BID e outorga de performance bonds e para a criação de empresas críticas de defesa.

Os acontecimentos político-militares recentes e as desconfianças criadas no mais alto nível do atual governo, é importante ressaltar, estão sendo contrabalançados pelo fato de   que, apesar das tentativas da presidência anterior e do envolvimento de militares da ativa em ações político-partidárias, as FFAA, como instituição, nos últimos quatro anos, reafirmaram seu profissionalismo e evitaram qualquer interferência que colocasse em risco a democracia.

Dentro desse contexto, torna-se urgente discutir dois temas: uma grande estratégia para o Brasil, uma estratégia de segurança nacional de médio e longo prazo, a exemplo dos documentos recentes da Alemanha, EUA e Reino Unido. Nesse contexto, deverão ser levadas em conta as atuais vulnerabilidades das FFAA e estimulada, no âmbito das políticas de reindustrialização, o fortalecimento da indústria de defesa. E, com base na nova atitude profissional das FFAA, examinar, de forma transparente, a normalização do relacionamento entre civis e militares com a definição de regras e práticas de um efetivo controle do executivo, legislativo e judiciário sobre os militares, como em muitos países.

Com a palavra a sociedade civil e o Congresso Nacional.

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)

 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A competição estratégica EUA-China e a diplomacia brasileira - Paulo Roberto da Silva Gomes Filho e Paulo Roberto de Almeida

 Um coronel da Reserva, xará meu, Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, publicou no Estadão desta sexta-feira, 30/12/2022, um interessante e utilíssimo artigo, “Os inimigos e ‘aliados’ dos Estados Unidos” — quem puder postar o texto na íntegra eu agradeço —, sobre dois novos documentos do governo americano, a Estratégia Nacional de Segurança e a Estrégia Nacional de Defesa dos EUA, com ponderações parcialmente corretas sobre nossos interesses nacionais, no sentido de permanecermos equidistantes do grande conflito estratégico entre os EUA e a China. 

Escrevi “parcialmente corretas” pois que ele tratou mais do cenário geopolítico atual, esquecendo a dimensão do Direito Internacional nas relações internacionais do Brasil e, sobretudo, da dimensão MORAL de certas opções de políticas, que deveriam levar em conta as cláusulas de relações internacionais da CF-1988, assim como valores e princípios tradicionais de nossa diplomacia.

Parece-me que, como na Guerra Fria geopolítica, de 1946 a 1991, estamos em fsce de duas concepções de mundo, de política e de sociedade, uma baseada na liberdade dos indivíduos, a outra no predomínio do Estado e no cerceamento dessas mesmas liberdades. Não é difícil distinguir uma da outra e não creio que os interesses materiais e os fluxos de comércio devam prevalecer sobre o universo dos valores. 

As escolas militares deveriam ter mais aulas sobre direitos humanos, relações internacionais e filosofia política. Se o fizessem, não teriam apoiado um troglodita boçal, inepto e psicopata perverso, como o que conspurcou a cadeira presidencial nos últimos quatro anos (sintomaticamente em troca de vantagens corporativas e de benefícios pessoais). Os militares mancharam seu prestígio nesta mais do que infeliz conjuntura política do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 30/12/2022

Extraído do site pessoal do coronel Paulo Roberto da Silva Gomes Filho (paulofilho.net.br), que foi a base para a redação do artigo mais sintético.

Os dois novos documentos dos EUA

Introdução

Recentemente, o governo norte-americano divulgou dois documentos da área de Segurança e Defesa, em sequência: sua nova Estratégia Nacional de Segurança, no dia 12 de outubro, e sua Estratégia de Defesa, no dia 27 de outubro de 2022.

Em conjunto, os dois documentos desvelam a maneira como os norte-americanos enxergam o mundo e definem os princípios que guiarão suas ações estratégicas, para conformá-lo, de maneira que, no futuro, esteja alinhado aos seus interesses e princípios.

1. Estratégia Nacional de Segurança

De acordo com o diagnóstico do documento, o mundo está atravessando um momento crucial, sendo os próximos anos decisivos para a definição do futuro dos Estados Unidos (EUA) e de todo o planeta. Nessa circunstância, o país teria dois grandes desafios estratégicos: o primeiro seria a competição com a China, cujo resultado definiria a ordem internacional pós Guerra Fria. O segundo seria o enfrentamento dos desafios compartilhados globalmente, quais sejam, as mudanças climáticas, a insegurança alimentar, as doenças pandêmicas, o terrorismo, a escassez energética e a inflação. Por serem desafios compartilhados, esses últimos exigiriam a cooperação entre os países. Entretanto, essa cooperação estaria sendo dificultada pelo próprio ambiente de competição geopolítica, que alimentaria nacionalismos e populismos.

No documento, os EUA se posicionam como líderes das democracias mundiais no enfrentamento às autocracias. A Rússia é apresentada como uma ameaça imediata à ordem internacional aberta e livre, pelo desrespeito ao Direito Internacional e pela invasão à Ucrânia. Os russos são acusados de atuar contra os interesses norte-americanos, em várias partes do mundo, inclusive, dentro dos EUA. O apoio à Ucrânia é reafirmado, bem como a intenção de conter a Rússia em todos os campos do poder.

A China, entretanto, é apresentada como o verdadeiro competidor dos EUA, uma vez que teria a intenção de reconfigurar a ordem internacional em seu próprio benefício e, consequentemente, em desfavor dos norte-americanos.

Ao afirmar que pretendem competir com a China, os EUA asseveram, dentre outros aspectos, que irão apoiar seus aliados no Indo-Pacífico, para que tomem suas decisões de forma livre da coerção chinesa. Também dizem que irão responsabilizar Pequim por “genocídio e crimes contra a humanidade em Xinjiang, violação dos direitos humanos no Tibet e desmantelamento da autonomia e das liberdades em Hong Kong”.

Em relação à Taiwan, os norte-americanos afirmam que a paz e a estabilidade do Estreito de Taiwan são críticas para a segurança da região e do mundo. Afirmam que continuam apoiando a política de “uma só China”, contrária à independência da ilha, discordando de quaisquer tentativas de mudança no “status quo” da região. Entretanto, de acordo com a lei que rege as relações com o país, manterão o apoio militar para que aquela ilha esteja em condições de se defender de qualquer agressão chinesa.

A crise climática recebe destaque, sendo apresentada como o “desafio existencial do nosso tempo”. Afinal, o aquecimento do planeta colocaria em perigo os norte-americanos e demais habitantes do planeta, arriscando os suprimentos de comida e água, a saúde pública, a infraestrutura e a própria segurança nacional norte-americana. O documento cita, ainda, as afirmações de cientistas, segundo os quais, sem uma ação global imediata para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, em breve, serão excedidos os 1,5°C de aquecimento, o que ocasionará o aumento do nível do mar e uma perda catastrófica de biodiversidade.

Ao tratar da postura dos EUA em relação às regiões do mundo, o documento esclarece sua opção pela Ásia, mais especificamente pelo Indo-pacífico, considerado o epicentro da Geopolítica no século 21. A Aliança Atlântica, entretanto, não é esquecida, e os EUA reafirmam seu compromisso com a OTAN e seus parceiros europeus. A América do Sul não é citada especificamente, sendo englobada quando o documento trata sobre o Hemisfério Ocidental. Porém, o texto aborda a proteção da “interferência e coerção” que seriam praticadas por Rússia, China e Irã contra países da região. O Brasil só é citado no documento devido à Amazônia, uma vez e superficialmente, para se falar na necessidade de preservação daquele bioma.

O documento deixa nítido o entendimento norte-americano de que, apesar da guerra na Ucrânia e das ameaças nucleares que ressurgiram com ela, o mundo caminha para uma nova disputa bipolar, entre EUA e China. Portanto, na China, estarão a atenção e o foco da política exterior norte-americana. Entretanto, a competição dar-se-á em todo o globo terrestre, com os EUA buscando espaço e alinhamentos que lhes sirvam tanto na disputa contra a China quanto no apoio às políticas e estratégias de enfrentamento dos “desafios compartilhados” por toda a humanidade.

2. Estratégia Nacional de Defesa

Em perfeito alinhamento com a Estratégia de Segurança, a Estratégia de Defesa igualmente apresenta um cenário internacional de segurança complexo, com desafios causados por mudanças geopolíticas, tecnológicas, econômicas e ambientais. A competição estratégica com a China é apresentada como o mais complexo desafio à segurança dos EUA, uma vez que aquele país teria um comportamento “coercivo e crescentemente agressivo, com o objetivo de remodelar a região do Indo-Pacífico e o Sistema Internacional, com a finalidade de adequá-los aos seus interesses”. Por sua vez, a Rússia é apresentada como a ameaça do momento, uma vez que “usa a força para mudar fronteiras, ignorando a soberania de países vizinhos, para reimpor uma esfera de influência imperial”.

Portanto, China e Rússia, nessa ordem, são apresentadas como as mais perigosas ameaças à segurança dos EUA. Na verdade, trata-se do aprofundamento da mudança de foco, que também havia ocorrido no governo Trump, o qual listou China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como as principais ameaças, na Estratégia de Defesa divulgada à época. A mudança se detém no fato de que, até então, o terrorismo figurava, nos documentos oficiais dos EUA, como principal ameaça à segurança do país.

O documento também lista como ameaças: a Coreia do Norte, em razão de seu status de potência nuclear; o Irã, em razão de seu programa nuclear, das exportações de armas e de seu papel “desestabilizador no Oriente Médio”; além de grupos terroristas como a Al Qaeda, o ISIS e seus afiliados.

As mudanças climáticas, que são percebidas pela elevação das temperaturas médias, elevação dos níveis do mar, mudança nos regimes das chuvas e maior frequência de eventos climáticos extremos, são apresentadas como motrizes de novos conflitos, como, por exemplo, o derretimento da calota polar, no Ártico, que modifica a geoestratégia da região, aumentando a disputa interestatal naquela parte do globo.

Para enfrentar todos esses desafios, a Estratégia norte-americana apresenta uma ferramenta, a chamada “Dissuasão Integrada”. São ações destinadas a alinhar as políticas, os investimentos e as atividades do Departamento de Defesa dos EUA que sustentem e fortaleçam a dissuasão do país em relação aos seus adversários.

Essa dissuasão envolve o aprimoramento de ações em várias áreas que: neguem aos inimigos a possibilidade de conquistar territórios; aumentem a resiliência norte-americana em face de ataques adversários; e demonstrem aos inimigos que os custos de um eventual ataque serão muito superiores a eventuais benefícios. Nesse sentido, a Estratégia prevê investimentos em novas capacidades, como as de ataques a longas distâncias, sistemas de armas hipersônicas e sistemas autônomos. Ademais, priorizar-se-á o desenvolvimento dos campos espacial e cibernético, a capacidade de combater guerras irregulares, o apoio a aliados que estejam enfrentando os inimigos dos EUA, as medidas diplomáticas e as sanções econômicas.

 3. Outros documentos estratégicos

Em complemento às Estratégias de Segurança e de Defesa, os EUA também publicaram a revisão de sua postura nuclear. No documento, reafirma-se a importância da dissuasão nuclear nesse ambiente de deterioração da segurança internacional. A previsão é de que a China possua 1.000 ogivas nucleares até o final da década. Assim, segundo a avaliação norte-americana, na década de 2030, os EUA enfrentarão, pela primeira vez em sua história, duas grandes potências nucleares como concorrentes estratégicos e potenciais adversários. Isso criará novas tensões na estabilidade e novos desafios para a dissuasão, a segurança, o controle de armas e a redução de riscos.

Embora não seja considerada uma rival na mesma escala que a China e a Rússia, a Coreia do Norte também representaria uma ameaça persistente e um perigo crescente para os EUA e a região do Indo-Pacífico, à medida que expande, diversifica e aprimora suas capacidades nucleares, de mísseis balísticos e não nucleares, incluindo seu estoque de armas químicas. Uma crise ou conflito na península coreana poderia envolver vários atores com armas nucleares, aumentando o risco de um conflito mais amplo.

Ainda segundo o documento, o Irã não possui, hoje, uma arma nuclear. No entanto, as recentes atividades iranianas, anteriormente limitadas pelo acordo nuclear (JCPOA), são motivo de grande preocupação, pois são aplicáveis a um programa de armas nucleares. A política dos EUA é impedir que o Irã obtenha uma arma nuclear.

Os EUA consideram, ainda, que a aquisição de armas nucleares por outros Estados pode levar a novos desafios de dissuasão. A atual instabilidade do ambiente de segurança, incluindo as ações do Irã, da Coreia do Norte e a guerra na Ucrânia, poderia criar ou aprofundar incentivos à proliferação nuclear.

Outro anexo à Estratégia de Defesa é a Revisão de Defesa Contra Mísseis. O documento se destina a fornecer orientação ao Departamento de Defesa sobre a estratégia e política de defesa antimísseis. Segundo a análise, os adversários dos EUA estão desenvolvendo, colocando em campo e integrando capacidades aéreas e de mísseis cada vez mais avançadas. Essas capacidades aéreas e de mísseis representariam um risco crescente para o país, seus aliados e parceiros.

Em razão disso, as defesas antimísseis são consideradas críticas para impedir ataques contra os Estados Unidos. Dessa forma, o documento considera ser um imperativo estratégico continuar os investimentos e a inovação no desenvolvimento de capacidades antimísseis de amplo espectro.

Conclusão

Um aspecto da estratégia de dissuasão integrada proposta pelos EUA, em sua Estratégia de Defesa, que merece especial atenção do Brasil é a previsão de uma cerrada colaboração com “aliados e parceiros”. Nesse sentido, é interessante notar que, na Declaração de Brasília, resultante da 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, realizada em julho deste ano, os EUA fizeram constar um item que reconhece a “Dissuasão Integrada como um constructo para manter a paz e a estabilidade no Hemisfério Ocidental, priorizando a cooperação regional em todos os domínios de defesa e segurança e reduzindo barreiras em relação ao compartilhamento de informações e capacidades”. Por não ter sido alcançado um consenso sobre esse item, os Ministros da Defesa decidiram que o conceito de Dissuasão Integrada deveria ser aprofundado em estudos no âmbito da Junta Interamericana de Defesa.

Como se vê na Declaração de Brasília, os EUA tentam, por meio da aproximação com as Forças Armadas dos demais países das Américas, consubstanciada pela Dissuasão Integrada, reunir “aliados e parceiros” no enfrentamento de seus adversários. Uma vez que a China, seu principal oponente, é o principal parceiro econômico da maioria dos países da região e tem estabelecido laços cada vez mais estreitos com vários deles, fica claro que se está caminhando em um terreno particularmente espinhoso nas relações internacionais.

Os documentos de Segurança e Defesa dos EUA refletem o momento de contestação da Ordem Internacional, vigente desde o término da 2ª Guerra Mundial, reforçada pelo fim da Guerra Fria, segundo a qual os EUA ainda se apresentam como potência hegemônica. O desafio militar russo e a ascensão chinesa impõem aos norte-americanos uma série de desafios, no sentido de tentar manter sua proeminência geopolítica, sendo o que se constata com a publicação das Estratégias.

Esse tensionamento entre as grandes potências causa reflexos em todo o mundo. Na América do Sul, ele é percebido com crescente intensidade, com movimentos de ambos os oponentes para conter o adversário e atrair os sul-americanos para sua esfera de influência.

Os governos do subcontinente – e do Brasil, em especial – terão o desafio de atuar com equilíbrio, na busca por alcançar seus próprios objetivos sem abrir mão de seus princípios, mantendo a estabilidade e buscando o desenvolvimento regional, sempre com o foco nos próprios interesses nacionais e na manutenção da paz. 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Inteligência Artificial e a Defesa Nacional - Rubens Barbosa (OESP)

 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A DEFESA NACIONAL

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/01/2022

 

            Quem quer se torne o Número Um na Inteligência Artificial (IA) será o líder do mundo (ruler of the world), previu, em 2017, o presidente da Rússia, Wladimir Putin. China e EUA estão hoje bem à frente do desenvolvimento da tecnologia cognitiva.

            Como todo avanço e inovação tecnológica, a IA pode ser utilizada para projetos voltados para o bem, mas também para o mal. Apresentam muitos aspectos positivos, mas também negativos. Pelo potencial de risco de sua utilização, não deixa de ser surpreendente que até aqui a incorporação da IA na indústria bélica tenha sido tão pouco discutida.

Na edição de janeiro, a revista Interesse Nacional (www.interessenacional.com.br ) traz dois artigos, de Dora Kaufman e Marcelo Tostes, que resumem as tratativas internacionais para regulamentar o “sistema de inteligência artificial, que pode ser entendido como um sistema baseado em máquina, projetado para operar com vários níveis de autonomia, e que pode também, para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo ser humano, fazer previsões, recomendações ou tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais”, na definição da OCDE. A UNESCO (a Ética na IA), a União Europeia (IA Act), os EUA (FDA e Senado, com Projeto de Lei sobre Responsabilização Algorítmica) e a Administração da Cibernética Espacial, na China, apresentaram propostas que tratam de diversos aspectos desse sistema. Acrescento que o governo brasileiro divulgou, em 2021, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – EBIA, com fortes críticas por parte de especialistas por suas limitações técnicas e políticas. A Câmara dos Deputados aprovou, no ano passado, o Projeto de Lei 21/2020, que propõe a criação de uma base legislativa geral e vinculante para regular os sistemas de inteligência artificial no país.

               No campo militar, a IA representa o maior salto tecnológico qualitativo, desde o aparecimento da energia nuclear e da produção de armas nucleares, com a diferença do desenvolvimento e aplicação da IA ser substancialmente menos custoso e potencialmente mais fácil de ser empregado, inclusive por terroristas e por Estados Párias (Rogue States). A OTAN está desenvolvendo novas formas de guerra cognitiva, usando supostas ameaças da China e da Rússia para justificar travar batalha pelo cérebro, no domínio humano, para fazer de todos uma arma. Será a militarização da ciência do cérebro que envolve “hackear o individuo, explorando as vulnerabilidades do cérebro humano para implementar uma engenharia social mais sofisticada”. Apesar de as autoridades militares da China, Alemanha, Rússia, Estados Unidos e diversos outros países terem anunciado, há algum tempo, que a criação de sistemas de combate integralmente autônomos não era seu objetivo, tais sistemas provavelmente já devem ter sido criados. Na percepção militar, apenas sistemas de combate com IA poderão, no caso de guerras, penetrar em áreas fechadas e operar com uma relativa liberdade. 
               A regulamentação da utilização da IA para fins militares, contudo, começou a ser discutida no âmbito das Nações Unidas, mas encontra resistência por parte das principais potências que procuram ganhar tempo para obter vantagens, antes da negociação de acordos que coloquem limites e cautelas ao seu uso. Como, aliás, foi o que aconteceu com as armas nucleares, cujo tratado de não proliferação só se materializou quando finalmente as potências nucleares deram seu assentimento.

O problema que desafia os organismos multilaterais é como controlar os “sistemas de armas autônomas letais” (Laws, na sigla em inglês), representados por qualquer plataforma móvel: drônes, androides, aviões que voam sozinhos. A IA pode substituir os recursos humanos em tudo, desde armas operacionais para coleta e análise de inteligência, sistemas de alerta antecipado, e de comando e controle. A utilização de drônes para fins militares (robôs assassinos) já está muito difundida e a guerra antissatélite vem esquentando.

A disputa entre os EUA e a China pela hegemonia global no século XXI passa pela corrida tecnológica em todos os segmentos, inclusive na utilização da IA para fins militares, com impactos que vão alterar a correlação de forças no mundo. Os EUA contam com seus aliados europeus na OTAN e a China com seus parceiros, inclusive a Rússia.

As rápidas transformações que ocorrem em decorrência desses avanços tecnológicos trarão impactos importantes sobre países, como o Brasil. Do ângulo da Politica Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa, se o Brasil não dispuser de capacidade tecnológica para utilizar o sistema de inteligência artificial estará em grande desvantagem em seu poder de dissuasão, caso tenha de enfrentar qualquer ameaça para a defesa de seus interesses, seja em seu território, seja na sua extensão marítima. Urge, pois, a expansão da capacidade de criação e de desenvolvimento para a utilização da IA pelo Ministério da Defesa. Nesse sentido, o Centro de Defesa Cibernética, no âmbito do Exército, deveria ser fortalecido com recursos humanos e financeiros para, com o apoio da base industrial de defesa, gerar produtos, inclusive de uso dual para o mercado doméstico e para exportação.   

               

Rubens Barbosa, presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN) e membro da Academia Paulista de Letras

sexta-feira, 2 de março de 2018

Defesa Nacional: uma agenda estratégica: SAE-PR, 14/03


PROGRAMAÇÃO PRELIMINAR 

O papel do Setor de Defesa e de sua Base Científico-Tecnológica e Industrial para o Desenvolvimento Econômico e Tecnológico do Brasil: Desafios e Oportunidades.

Credenciamento: 08:00 – 08:45

Abertura: 08:45 – 09:30
Representante da Secretaria-Geral da Presidência da República
Representante do Ministério das Relações Exteriores
Representante do Ministério da Defesa
Representante do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República
Representante da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos

09:30 – 10:00
Keynote Speaker – Considerações Iniciais
Hussein Kalout, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos



10:00 – 11:30
Mesa 1: Agenda Estratégica de Defesa: Desafios e Oportunidades
Moderador: Joanisval Gonçalves – Diretor de Assuntos de Defesa e Segurança - SAE/PR
  1. Pensar Defesa Nacional no século XXI: desafios e oportunidades.
  2. Forças Armadas e os cenários de conflito no início do milênio.
  3. Defesa e Relações Exteriores: o Brasil como ator global.
·      Contra-Almirante Carlos Eduardo Horta Arentz (Ministério da Defesa)
·       Representante do Centro de Estudos Estratégicos do Exército Brasileiro
·      Conselheiro Hélio Franchini Neto -  Departamento de Assuntos de Defesa e Segurança (Ministério das Relações Exteriores)
·      Carlos Frederico Queiroz de Aguiar: Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança - ABIMDE

11:30 – 13:30 – Almoço

13:45 – 15:15
Mesa 2: O papel da Base Científico-Tecnológica e Industrial de Defesa (BCTID) para o desenvolvimento Nacional
Moderador: Eduardo Marson Ferreira – Presidente da Fundação Ezute
  1. A relação entre o Modelo Tríplice Hélice e o desenvolvimento econômico.
2.    O papel do Estado no setor produtivo de Defesa.
  1. A indústria de Defesa e o comércio internacional.
·      General-de-Exército Juarez Aparecido de Paula Cunha – Chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército
·      Secretário Flávio Augusto Corrêa Basílio: Secretaria de Produtos de Defesa - SEPROD
·      Cynthia Benedetto – Diretora Financeira -  Avibras
·      Professor Doutor Peterson Ferreira da Silva – Doutor pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP)
15:15 – 15:30 – Coffee Break

15:30 – 17:00
Mesa 3: Pesquisa e Inovação em Defesa
Moderador: Prof. Dr. Antonio Jorge Ramalho da Rocha, Diretor da Escola de Defesa da UNASUL
1.    Incentivos para pesquisa e desenvolvimento tecnológico: panorama atual e desafios.
2.    Os centros de pesquisa das Forças Armadas: o spill over tecnológico e a articulação com a sociedade civil e o setor produtivo.
·      Contra-Almirante Alfredo Martins Muradas, Diretor do Centro Tecnológico da Marinha
·      Representante da Diretoria Geral do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial
·      Marco Antonio Caffe – Gerente Geral da BAE Systems no Brasil
·      Professor Doutor Eugênio Diniz – PUC-Minas

17:00 – Encerramento
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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Dez mitos sobre defesa nacional no Brasil - Joao Paulo Soares Alsina (2008)

 DEZ MITOS SOBRE DEFESA NACIONAL NO BRASIL​
João Paulo Soares Alsina Jr
Revista Interesse Nacional – outubro/dezembro 2008 – pgs. 68 a 77

O artigo discute as percepções corriqueiras presentes em diferentes setores da sociedade brasileira sobre a problemática de defesa nacional. Dessa forma, dez mitos sobre a questão são identificados. Para cada um deles, o autor apresenta uma breve descrição e posterior refutação. Pretende, assim, esclarecer percepções tidas como errôneas e contribuir para o debate público sobre defesa nacional.

Este artigo aborda o que se poderia chamar de incompreensão generalizada sobre as questões de defesa nacional. A idéia de mito é empregada no sentido adquirido no senso comum: o de argumentação falaciosa que possui relevância em vista de sua ampla aceitação em um determinado contexto social. Procuro demonstrar a inconsistência dos argumentos que sustentam visões dominantes sobre a problemática brasileira de defesa, sem utilizar citações e notas de rodapé.

Mito 1. O Brasil não precisa de Forças Armadas
Esse mito deriva da incompreensão sobre o papel das Forças Armadas prevalecente em amplos setores da sociedade brasileira. Sua origem encontra-se no pacifismo antimilitarista proveniente de duas matrizes não-excludentes: a ingenuidade bem-intencionada e o preconceito puro e simples contra as instituições  de Estado que se ocupam da administração da coerção organizada. No primeiro caso, supõe-se que o sistema internacional tende à harmonia de interesses – embora os defensores dessa tese raramente sejam capazes de formulá-la em termos estruturados; no segundo caso, rejeita-se a instrumentalidade das organizações de força nacionais com base em seu suposto papel repressivo e na sua pretensa ausência de função social. Ambas as vertentes desse pacifismo à outrance, que nega, na prática, a necessidade de defesa da soberania e o papel do aparato militar na construção de sociedades democráticas, são pobres do ponto de vista conceitual. Com freqüência, não passam do nível do preconceito e da ignorância tout court, não estando respaldados pela Carta de 1 988.

Mito 2. O Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente
Esse mito merece explicação detida. Suas origens podem ser encontradas em visões, não necessariamente estruturadas do ponto de vista teórico-conceitual, presentes de maneira difusa na mídia, em setores da sociedade civil, no meio diplomático e mesmo nas hostes militares!

Qualquer medida de poder combatente – entendido como o quantum de capacidade destrutiva passível de ser aplicado pelas Forças Armadas em um conflito – deve ser sempre comparativa. Neste ponto, o analista depara-se com uma dificuldade de base: como definir os antagonistas com os quais o poder combatente do país deverá ser comparado? A resposta está longe de ser consensual, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do político. Em todo caso, ela terá de ser apresentada a partir de uma posição normativa passível de poucas restrições, uma vez que a Constituição brasileira e a Política de Defesa Nacional (pdn) permitem ampla margem para a interpretação do que constituiria ameaça à soberania e aos interesses nacionais. Portanto, para que se possa afirmar que o Mito dois é de fato mito, faz-se necessário demonstrar a necessidade de o Brasil contar com Forças Armadas com alta prontidão operacional e significativo poder combatente.

A apresentação da teoria que embasa os argumentos apresentados a seguir levaria este texto longe demais. No entanto, vale dizer que ela se fundamenta em inferências analíticas derivadas dos trabalhos de Barry Buzan, Ole Waever e David Mares. Abaixo, apresentam-se as premissas que justificam a necessidade de aumento do poder combatente e da prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras:

• o poder militar continua a ser fundamental para a mensuração do poder no plano das relações internacionais. Embora a capacidade de o poder militar servir de suporte em outras áreas de barganha (sua fungibilidade) seja limitada, ela de forma alguma pode ser considerada igual a zero;

• a força armada domina as demais expressões do poder em contextos de interação em que não haja limitações significativas ao seu emprego;

• o poder militar pode ser utilizado tanto coercitiva quanto persuasivamente. Logo, ele constitui uma ferramenta útil para a consecução dos interesses de um Estado específico;

• a imprevisibilidade de um sistema internacional de contornos indefinidos, a interconexão em tempo real permitida pelos meios de comunicação, os fluxos de pessoas e mercadorias entre Estados, os problemas ambientais de escala planetária, a diminuição do custo de utilização da força armada devido ao gigantesco gap tecnológico entre exércitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre outros fatores, fazem com que a eclosão e a escalada dos conflitos interestatais se processe de modo acelerado;

• logo, as Forças Armadas brasileiras precisam possuir alta prontidão operacional, de modo que estejam prontas a dar resposta imediata a contingências que atentem contra a soberania e os interesses brasileiros. Da mesma forma, a alta prontidão justifica- se como fator dissuasório e de projeção internacional do Estado;

• como a garantia da soberania é atributo das Forças Armadas, estas devem estar prontas a impor custos elevados a qualquer Estado que pretenda coagir o Brasil militarmente – seja de modo explícito ou velado;

• tendo em vista a atual inexistência de contenciosos ou de séria incompatibilidade de valores entre o Brasil e os países mais poderosos do Ocidente – aqueles que teriam condições de empreender ações do tipo mencionado no item anterior –, bastaria ao país ser capaz de mobilizar poder combatente suficiente para elevar acima de zero o custo de qualquer ação como a citada no item acima;

• em contrapartida, as Forças Armadas também precisam garantir a supremacia militar brasileira no subcontinente, forma de demonstração da vontade nacional de liderar o processo de integração regional. Em vista do que precede, afirma-se que se trata de mito a idéia de que o Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente. Nessa linha, proceder-se-á à enumeração dos argumentos que estão por trás do Mito 2, de acordo com uma versão estilizada, própria a cada um dos atores que se ocupam de reproduzi-lo.

A mídia não se pronuncia sobre o projeto de forças brasileiro e o nível desejável de prontidão operacional das Forças Armadas. Praticamente não há discussão pública sobre esses temas no Brasil. No entanto, com freqüência, programas de aquisição de sistemas de armas são avaliados a partir de uma perspectiva economicista, que se ocupa exclusivamente de ressaltar o valor da transação. Não raro, esse valor é cotejado com a resultante do investimento caso fosse aplicado na área social. Decorre desse nível de superficialidade, no tratamento do tema a inferência difusa de que o aumento do poder combatente e da operacionalidade das Forças Armadas não constituem objetivos socialmente válidos.

A representação política da sociedade civil pouco interesse demonstra em acompanhar e fiscalizar os assuntos militares. Essa abdicação de controle dá ensejo a todo tipo de distorções – circunstância inerente às burocracias desprovidas de supervisão. Os temas relacionados com a prontidão operacional e o poder combatente das forças são praticamente estranhos aos parlamentares brasileiros. À retórica de valorização das Forças Armadas corresponde a ausência de interesse em destinar recursos para um setor não identificado com os imperativos do clientelismo e da patronagem. Tudo isso ocorre em um contexto de profunda apatia da sociedade civil em relação às questões castrenses. Estruturada conceitualmente a partir da apropriação seletiva do legado de Rio Branco, a diplomacia brasileira não encara o poder militar como ferramenta essencial de projeção dos interesses nacionais. Isso se deve a variadas razões, sendo a mais saliente delas o fato de que, ao longo do século xx, o Itamaraty jamais pôde contar com um aparato militar que lhe permitisse maior latitude de atuação. Ademais, a retórica relacionada com a identidade internacional brasileira como a de uma potência pacífica limita a utilização clausewitziana da força armada. Logo, o plano declaratório da política externa não é conducente ao incentivo ao aumento do poder combatente das Forças Armadas. Mais do que isso, a possibilidade desse aumento é suficiente para suscitar temores de desequilíbrio do balanço estratégico regional e de eventuais conseqüências negativas no que se refere à percepção do Brasil por parte de seus vizinhos.

Os próprios militares não raro agem de maneira contrária ao incremento do poder combatente e da prontidão operacional das instituições a que pertencem. Essa postura pode ser identificada em três circunstâncias distintas: quando existe a possibilidade de um trade-off entre o aumento de poder combatente e a manutenção ou ampliação de benefícios corporativos (salários, aposentadorias, pensões etc.); quando alguma modificação organizacional coloca em perigo a autonomia corporativa das forças singulares (por exemplo, o processo de criação do Ministério da Defesa); e quando a prioridade da instituição não é o incremento de poder combatente per se, mas a consecução de algum outro objetivo (preservação da ordem interna, no caso do Exército; desenvolvimento científico, tecnológico e da infra-estrutura aerospacial, no da Aeronáutica, por exemplo).

Mito 3. O Brasil não deve incrementar seu poder militar sob pena de provocar desequilíbrio estratégico na América do Sul e fomentar corridas armamentistas
O conceito de equilíbrio estratégico, ao contrário do que supõe seu uso vulgar, é controverso do ponto de vista acadêmico. Torna-se ainda mais difícil falar em equilíbrio em uma região como a América do Sul, que se notabiliza por ser uma das menos armadas do mundo. A baixa capacidade de projeção de poder das Forças Armadas da região, acoplada aos limitados estoques de armamentos, acrescenta uma nota adicional de dificuldade em supor a existência de um equilíbrio estratégico que seja instrumental para a manutenção de relações amistosas entre os Estados sul-americanos. Na melhor das hipóteses, poder-se-ia falar em um equilíbrio na irrelevância, termo em si contraditório, pois a essência da tese defendida pelos partidários do equilíbrio estratégico é a crença realista de que a balança de poder garantiria a paz enquanto permanecesse ajustada. Ora, é difícil sustentar que a ausência de conflitos recorrentes na América do Sul seja o resultado da operação da balança de poder. No máximo, esse poderia ser considerado um entre outros fatores que explicam tal circunstância. Corolário da suposição de que o balanço estratégico seria instrumental para a manutenção da paz é a tese de que corridas armamentistas adviriam de eventual desequilíbrio. Novamente, trata-se um tema controverso como se fora um dado inequívoco da realidade. Os partidários dessa suposição raramente consideram que não há parâmetros consensuais para diferenciar esforços de reaparelhamento militar e corridas armamentistas. Da mesma forma, desconsideram as diferenças de percepção decorrentes da existência de uma estrutura social das relações entre os Estados da região mais tendente ao conflito ou à cooperação. Com efeito, iniciativas de modernização militar podem ser vistas como corridas armamentistas ou reaparelhamento corriqueiro, de acordo com o nível de confiança mútua existente. Esse fato parece escapar aos que temem corridas aos armamentos em conseqüência de desequilíbrios estratégicos. A estes escapa, ainda, a dimensão da política doméstica – essencial para a tradução de inputs externos em ações internas – e da viabilidade material de uma reação ao que se conceba como desequilíbrio militar. Assim, a dinâmica da política doméstica e a disponibilidade de recursos modularão a reação de um país ao que entende ser um aumento de capacidades militares por parte de seu vizinho. Mesmo que as elites dirigentes de um país A entendam que a nação B está a ponto de adquirir vantagem militar considerável, isso não significa que terão coesão, vontade ou capacidade de reagir a essa circunstância. Portanto, o modelo ação-reação implícito na idéia de corrida armamentista não se sustenta empiricamente, pois não pode ser generalizado.

Logo, não é possível antever a priori reações negativas a um incremento do poder militar brasileiro. Ao contrário, pode-se supor que essas reações, consubstanciadas em corridas armamentistas, não ocorrerão. Isso porque prevalece um ambiente de distensão entre o Brasil e seus vizinhos, além do fato de que nenhum deles teria condições de acompanhar os esforços de reaparelhamento brasileiro mesmo que entendessem assim proceder, uma vez que o Brasil pode dispor de recursos mais abundantes do que todos eles. Conclui-se que a tese que encara o fortalecimento de capacidades militares como prejudicial às relações brasileiras com os países lindeiros não possui solidez. Ela supõe como certos efeitos que são duvidosos e que não estão respaldados pela experiência regional recente.

De outra parte, subjaz ao mito em questão a desconsideração pela influência que os planos hemisférico e global exercem sobre a política de defesa. Ainda que o Brasil, na condição de potência regional militarmente débil, não exerça papel sistêmico importante no que se refere à segurança internacional, isso não quer dizer que os desenvolvimentos globais não afetem o país. As recentes descobertas de petróleo no litoral sudeste provavelmente aproximarão o Brasil de um dos mais tradicionais eixos de conflito entre Estados: a disputa por recursos energéticos. Desconsiderar essa possibilidade equivale a agir de modo autista. Logo, o Mito três é ainda mais falacioso por supor que a inserção internacional de segurança do país limitar-se-ia ao espaço sul-americano.

Mito 4. As Forças Armadas brasileiras possuem poder de dissuasão adequado
Essa idéia é sustentada por dois grupos distintos: aqueles que pouco conhecem sobre  as Forças Armadas e aqueles que crêem que a posição internacional do Brasil recomenda a manutenção de um baixo perfil militar – supostamente adequado à realidade de país em desenvolvimento. O primeiro grupo sustenta essa posição baseado em uma visão nacionalista ingênua e irrealista, que entende que as Forças Armadas representam uma instituição imaculada – centrada nos valores do patriotismo, da retidão moral, da abnegação etc. Essa visão, contudo, não merece ser tratada em detalhe. O segundo grupo, por sua vez, poderia ser subdividido em vários subgrupos.

O que une todas as vertentes que gravitam em torno da idéia de que o perfil estratégico brasileiro estaria adequado à sua estatura internacional é a concepção de que o país não pode aspirar a ser mais do que atualmente é: Estado em desenvolvimento não assolado por ameaças externas prementes, fraturado por seriíssimo problema de insegurança pública, debilitado por gravíssimas desigualdades sociais etc. Essas vulnerabilidades tornariam impossível  a adoção de um perfil distinto do hoje prevalecente no plano militar.

Ora, não se pode negar as debilidades brasileiras. No entanto, a visão descrita acima encerra um notável derrotismo, além de não considerar as contradições inerentes à política de defesa levada a cabo no presente. Se se considera que o perfil estratégico nacional é adequado, deve-se acreditar, por analogia, que a aplicação dos recursos destinados à defesa é satisfatória. Uma pesquisa superficial sobre os países que mais investem em defesa no mundo e seus respectivos arsenais indicará que esse não parece ser o caso. Sinteticamente, o Brasil encontra-se entre os dezesseis países que mais investem em suas Forças Armadas em termos absolutos. No entanto, há um abismo em termos de capacidades militares entre o nosso país e qualquer um dos quinze que se encontram à sua frente no ranking. O mesmo ocorrendo em relação aos cinco que se situam logo atrás dele. Isso se processa pelo fato de que mais de 80% do orçamento da defesa se destina ao pagamento de salários, aposentadorias e pensões. Nessas condições, caso fossem implementadas reformas que diminuíssem gastos com pessoal, mas mantivessem o mesmo orçamento, haveria possibilidade de aumentar os investimentos no aparelhamento das Forças Armadas; o que, ipso facto, negaria a tese de que o Brasil não poderia possuir capacidades militares mais  importantes do que as atuais. Assim, o derrotismo paralisante daqueles que crêem nada poder ser feito não só é menos realista do que parece como também referenda um estado de coisas que é extremamente negativo, ou seja: o país investe tanto quanto muitos dos Estados melhor aparelhados em termos militares sem que obtenha retorno semelhante ao alcançado por estes últimos.

 Mito 5. As Forças Armadas devem cumprir seu papel social por meio de ações cívico-sociais e da manutenção do sistema de recrutamento universal obrigatório
Por trás dessa visão, encontra-se mais ou menos formalizada a idéia de que o Brasil pode prescindir de Forças Armadas como instrumentos de garantia da soberania nacional. Essa rationale supõe que:

• não haveria ameaças externas contra as quais o Brasil precisasse se preparar militarmente;

• as Forças Armadas, nesse contexto, precisariam “ser úteis” ao país por meio de ações não diretamente relacionadas com a preparação para a guerra;

• diante das grandes desigualdades sociais e da tibieza da presença do Estado em setores importantes da vida nacional, uma forma de conferir utilidade às Forças Armadas seria a de empregá-las nas chamadas ações cívico-sociais;

• nessa mesma linha, a ampliação do recrutamento de jovens das camadas mais desfavorecidas da população serviria como forma de inculcação de valores cívicos e de transmissão de conhecimentos básicos. O serviço militar obrigatório funcionaria, então, como um instrumento civilizatório. De início, há um problema central relacionado com esse tipo de perspectiva: a Constituição Federal. Esta estabelece que uma das duas funções precípuas das Forças Armadas é a defesa da soberania nacional. Logo, do ponto de vista legal, estas não podem abdicar dessa tarefa. Ocorre que o assistencialismo relacionado com a perspectiva mencionada encontra-se em direta contradição com a tarefa de defesa da soberania. Isso se dá porque existe um conflito entre a natureza das funções aludidas. A guerra moderna implica a necessidade de forças detentoras de alta prontidão operacional, capazes de atuar de modo coordenado com os demais ramos das Forças Armadas,  tecnologicamente atualizadas, flexíveis. Essas características requerem a existência de oficiais e praças altamente qualificados – tanto em termos de capacitação intelectual e técnica quanto de adestramento. Recrutas temporários de baixa instrução não têm nenhuma condição de atender aos requisitos para a formação de um soldado apto a operar no campo de batalha digital contemporâneo.

Não resta dúvida de que a lógica do Mito cinco conduz a uma contradição fundamental de quase impossível resolução. Portanto, a manutenção de Forças Armadas cuja estrutura organizacional não privilegia a preparação de profissionais adaptados às exigências da guerra contemporânea significa insistir em um modelo que, a um só tempo, não elimina as desigualdades sociais e não proporciona ao país forças aptas a garantir satisfatoriamente a defesa da soberania nacional. Mito 6. O orçamento militar brasileiro é baixo Como proporção do pib, o orçamento militar brasileiro é de fato baixo, mantendo-se, nas últimas duas décadas, em menos de 2% do produto. No entanto, em termos absolutos, o orçamento militar do Brasil não é pequeno. O país encontra-se em décimo sexto lugar no ranking das nações que mais investem no setor. Se se comparar, contudo, o inventário de sistemas de armas e o nível de prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras aos dos países que investem somas semelhantes em defesa – Holanda, Israel, Austrália, Coréia do Sul – chegar-se-á à conclusão de que existe uma enorme discrepância em desfavor de nossas Forças Armadas. A razão para que tal ocorra reside na parcela desproporcional ocupada pela rubrica relativa a pagamento de pessoal ativo, inativo e pensionistas. Nos últimos anos, essa parcela tem sido consistentemente superior a 80% do orçamento efetivamente executado – percentual que não inclui os elevados gastos com o sistema de saúde militar. Para se ter uma idéia, as Forças Armadas dos EUA não chegam a gastar 40% do orçamento com pagamento de pessoal .

Mito 7. As Forças Armadas podem colaborar decisivamente no combate à criminalidade, o que lhes conferiria utilidade
Esse mito é uma variante especialmente grave do Mito 5. Os partidários dessa tese acreditam que o emprego das Forças Armadas em substituição ou complementação às polícias seria capaz de resolver ou minorar os problemas relacionados com a criminalidade, conferindo utilidade àquelas. Há diversos problemas envolvidos nesse tipo de mitologia. O primeiro deles é o que se refere aos aspectos legais. Não há no Brasil legislação que proporcione às Forças Armadas garantias suficientes para que tal tipo de atuação possa desenrolar-se de maneira juridicamente segura e eficaz – tanto no que toca às prerrogativas dos agentes do Estado, os soldados, quanto na definição da cadeia de comando entre militares federais e polícias estaduais. O segundo é o que se refere à eficiência desse tipo de atuação.

As intervenções realizadas até o presente demonstram que o emprego das Forças Armadas proporciona tão-somente uma sensação temporária de segurança. Não sendo possível manter grandes efetivos militares 24 horas por dia, sete dias por semana, nas ruas, a insegurança volta a aflorar assim que os soldados são retirados de suas posições. Deve-se ressaltar, ademais, que a maioria desses últimos é formada por recrutas não-instruídos em aspectos básicos das tarefas policiais. O terceiro aspecto é o relacionado com a flagrante incompatibilidade entre as missões de segurança pública e de defesa da soberania nacional. Assim, a convivência de demandas profissionais tão distintas em uma mesma instituição, em essência o Exército, faz com que esta não seja capaz de desempenhar nenhuma delas com a proficiência ideal. O quarto aspecto é o que diz respeito à exposição das Forças Armadas à corrupção decorrente de seu emprego em missões de caráter policial. Resta claro que esse é um risco não desprezível, que colocaria em perigo instituições ainda preservadas da infiltração pelo crime organizado.

Mito 8. As Forças Armadas devem visar o desenvolvimento da Nação, aceitando trocar poder combatente imediato por projetos de desenvolvimento científico-tecnológico de prazo incerto.
A noção de que o Brasil vive em um paraíso kantiano no plano de suas relações exteriores dá ensejo à visão de que o país pode dar-se ao luxo de trocar poder combatente imediato por iniciativas de desenvolvimento científico e tecnológico de prazo incerto (por exemplo, o Veículo Lançador de Satélites – VLS – e o submarino de propulsão nuclear). Referência à idéia de que os países tenderiam à paz, pela universalização progressiva da razão, presente na obra de Immanuel Kant, filósofo alemão (1724–1804). Esse raciocínio, mais a ausência de percepção de ameaças externas iminentes permitiria que se investissem os parcos recursos destinados à aquisição de sistemas de armas em projetos nacionais de desenvolvimento tecnológico – alguns deles não-relacionados diretamente com a produção de armamento, como no caso do VLS. Esse tipo de mitologia esbarra em três aspectos da realidade contemporânea. Em primeiro lugar, parte da premissa controversa de que as Forças Armadas brasileiras não precisariam de alta prontidão operacional – que inclui a posse de armamento pronto a ser utilizado. Em segundo lugar, o trade-off poder combatente imediato versus  desenvolvimento tecnológico de longo prazo encontra um obstáculo insuperável na ausência de recursos para a rápida conclusão dos sistemas de armas pretendidos. Assim, a ausência de recursos dá origem a longuíssimos ciclos de desenvolvimento, o que resulta na produção de armamento inevitavelmente obsoleto em comparação com o que se fabrica nos principais países inovadores. Essa circunstância acaba por limitar a utilidade e a capacidade de exportação de tais sistemas de armas – ultrapassados antes mesmo de nascerem. Em terceiro lugar, a baixa capacidade de aquisição desses sistemas pelas Forças Armadas brasileiras acaba tornando seus custos de produção proibitivos e desincentivando a consolidação de um parque nacional de material bélico capaz de fornecer armamentos atualizados às forças singulares.

O quadro acima descrito revela o caráter problemático da manutenção de visões desenvolvimentistas que acabam por gerar efeitos duplamente perversos: não contribuem decisivamente para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, tampouco provêem os sistemas de armas necessários para garantir a adequada prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras. Exceção parcial a esse modelo é a representada pelo projeto naval nuclear, que, se, por um lado, deu ao país o domínio tecnológico do ciclo completo do enriquecimento de urânio, por outro, não foi capaz até o momento (30 anos depois de seu início!) de produzir o reator necessário à propulsão de submarinos.

Mito 9. A política externa de um país periférico como o Brasil não precisa estar respaldada por poder militar apreciável – sendo este somente útil no que concerne às operações de manutenção da paz
Este mito é uma variação sobre o tema dos mitos anteriores. Parte do pressuposto de que a força armada não é útil ou utilizável por parte de um país como o Brasil. Naturalmente, também vem embutida nessa perspectiva a noção de que o plano internacional tenderia ao kantianismo ou de que, mesmo que não tendesse, o país nada poderia fazer para resguardar seus interesses por meio de instrumentos militares. A exceção a essa regra seria a das operações de manutenção da paz da ONU. Por não envolverem o uso direto da força e por possuírem caráter essencialmente humanitário, esse tipo de operação constituiria uma forma válida de afirmação internacional do Brasil. Ademais, por não serem muito exigentes em termos de preparação militar e de meios materiais, poderiam ser desempenhadas por nossas Forças Armadas – o que reiteraria o comprometimento nacional com os esforços em prol da paz, legitimando as pretensões brasileiras de ocupar assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Embora não haja dúvida de que a participação em operações do gênero tenha como efeito o aumento do prestígio e da visibilidade internacional do Brasil, não se pode negligenciar os aspectos potencialmente negativos derivados da especialização das Forças Armadas em operações de manutenção da paz. Em primeiro lugar, é por demais duvidosa a premissa de que esse tipo de operação possa vir a constituir o cerne da política de defesa brasileira – por inúmeras razões, entre as quais a da dimensão do contingente militar brasileiro. Em segundo lugar, não é consensual a visão de que a participação nelas possa por si só influenciar a comunidade internacional a aceitar o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança. Em terceiro lugar, é controversa a suposição de que as operações de manutenção da paz possam ser instrumentais para aumentar a prontidão operacional das Forças Armadas – tendo em vista a ausência de identidade entre esse tipo de operação e as tarefas de defesa da soberania. Em quarto lugar, deve-se mencionar que o caráter parapolicial de operações desse tipo pode contribuir para reforçar as correntes de opinião que enxergam no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública uma espécie de bala de prata para a resolução dos problemas de criminalidade registrados no Brasil. Em quinto lugar, a utilização das operações de manutenção da paz como argumento em favor do aparelhamento e da modernização das Forças Armadas constitui uma faca de dois gumes, isso porque reforça a percepção de que Marinha, Exército e Aeronáutica não teriam papel relevante a exercer em termos de segurança militar externa (defesa stricto sensu).

Em resumo, as operações de manutenção da paz não podem constituir o alfa e o ômega da política de defesa, sob pena de se negligenciar a capacidade de defesa brasileira.

Mito 10. As questões de defesa não são prioritárias e, portanto, não há necessidade de maior integração entre as Forças Armadas por meio de um Ministério da Defesa forte e atuante
Esse mito vem sendo propalado de maneira intermitente pelo estamento militar como forma de preservar sua autonomia corporativa,  tendo sido utilizado durante o processo de redação da Carta Magna de 1988 e as discussões que deram origem ao I Plano de Defesa Nacional, em 1996, e ao Ministério da Defesa, em 1999. Ele é desmentido pelos conflitos militares recentes e pela prioridade que os países desenvolvidos vêm atribuindo ao fortalecimento da capacidade de articulação de seus respectivos ministérios da defesa e ao incremento da interoperabilidade de suas forças. A noção contemporânea de guerra baseada em redes, por exemplo, contradiz cabalmente a idéia de que cada ramo das Forças Armadas pode atuar de modo isolado dos demais. Portanto, não resta dúvida de que somente um MD forte e atuante poderá exercer a direção necessária ao atingimento da meta de garantir a interoperabilidade das forças, a eficiência na aplicação dos recursos disponíveis, a aderência às diretrizes emanadas do poder político, bem como a coordenação eficiente da política de defesa com a política externa brasileira.

Conclusão
A enunciação dos dez mitos demonstra a indigência do debate público sobre política de defesa no Brasil. Enquanto a sociedade brasileira em geral e as suas elites dirigentes em particular não forem capazes de encarar de maneira madura as questões relacionadas com a defesa nacional, o país continuará atolado em terreno pantanoso. Isso porque, sem direção política clara, sem definições precisas sobre suas atribuições, sem meios mínimos para garantir a soberania da nação, as Forças Armadas (em especial o Exército) são cada vez mais empurradas para as tarefas de garantia da lei e da ordem. Parece evidente que às forças singulares restará, ceteris paribus, apenas o papel de intervenção no campo da segurança pública – uma vez que a incapacidade de atuar no plano da defesa elimina a possibilidade de que esse papel seja sustentado como útil do ponto de vista de sua legitimidade social.

Levando em conta o que precede, a essência do problema relacionado com o lugar das Forças Armadas em uma sociedade desigual como a brasileira poderia ser resumido de modo singelo: a incompreensão generalizada sobre a funcionalidade social das instituições responsáveis pela administração da coerção coletivamente organizada conduz à sua utilização errática. Se não se compreende que o cerne da função social exercida pelos militares é justamente sua capacidade de provimento de segurança militar externa (defesa), mantém-se aberta a caixa de Pandora da transformação de funções subsidiárias (substituição das polícias em situações várias, apoio a ações assistenciais etc.) em primordiais. É preciso, portanto, que se alerte os formadores de opinião sobre o extremo perigo que o Brasil corre ao optar na prática – ainda que não na teoria – pela utilização das Forças Armadas no campo da segurança pública. Exemplos abundam sobre a inconveniência e a ineficiência do emprego dos militares em tarefas policiais ou parapoliciais. Se o país pretende combater a criminalidade, não será uma (falsa) solução de emergência – o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem – que lhe permitirá dar conta da questão. O difícil encaminhamento do problema da segurança pública será alcançado se, e somente se, o governo federal, juntamente com os estados, for capaz de empreender um amplo processo de reforma das instituições que têm a atribuição primária de combater o crime (polícias, sistema carcerário, sistema judicial etc.). Essa reforma é extremamente complexa, tanto do ponto de vista burocrático quanto do político. No entanto, terá de ser levada a cabo, sob pena de o Estado perder jurisdição sobre parcelas crescentes do território nacional, que seriam dominadas pelo poder paralelo do crime organizado.

Note-se, de outra perspectiva, que o Brasil não se encontra idilicamente isolado do mundo e que sua crescente importância no campo da energia, eixo tradicional dos conflitos interestatais, poderá expor o país a pressões externas de variados tipos. Essas pressões podem dar-se, inclusive, no campo militar. Somente essa circunstância deveria ser o bastante para que os tomadores de decisão conferissem atenção especial à política de defesa. Ocorre que as preocupações brasileiras no campo da segurança internacional não podem restringir-se apenas ao aspecto energético. Deve-se considerar também as implicações de uma ampla gama de fatores eventualmente perturbadores da lógica de baixa conflitividade entre os Estados prevalecente no sistema internacional contemporâneo. São eles:

• a diminuição do custo de utilização da força causada pelo aumento contínuo do abismo tecnológico entre as forças armadas de Estados desenvolvidos e em desenvolvimento (o que permitiria que as grandes potências viessem a utilizar seu poder militar contra Estados fracos militarmente com total impunidade);

• o aumento da conflitividade sistêmica causado pela disputa por recursos escassos em um contexto de degradação ambiental crescente;

• instabilidade crônica no complexo de segurança regional sul-americano causada pelo aprofundamento das contradições sociais e pela fragilidade institucional dos países que o compõem;

• disputas pelo acesso a recursos produzidos ou contidos em território brasileiro (petróleo, biocombustíveis, água doce, alimentos, material genético etc.);

• disputas sobre eventual opção brasileira em desenvolver tecnologias de uso dual;

• disputas sobre questões relacionadas com os direitos humanos de minorias indígenas, passíveis de serem instrumentalizadas contra o Brasil;

• ameaça à integridade física e à propriedade de populações brasileiras residentes em áreas de fronteira onde haja instabilidade política e social;

• infiltração, em território nacional, de células de grupos terroristas (em especial de organizações hostis à superpotência);

• associação entre grupos terroristas estrangeiros e o crime organizado doméstico.

Tendo em conta o cenário esboçado, o Brasil encontra-se diante de um impasse. As Forças Armadas nacionais custam ao erário soma não desprezível de recursos. No entanto, esses recursos não se traduzem em capacidade de dissuasão convencional aceitável, tampouco em forças aptas a dar conta satisfatória da garantia da lei e da ordem. Ainda que a discussão sobre o que fazer para modificar o atual status quo não esteja contemplada neste artigo, surge de maneira inequívoca a idéia do que não se deve fazer. Empregar Marinha, Exército e Aeronáutica em tarefas policiais e parapoliciais é o que se deve evitar a todo custo. Esse tipo de emprego praticamente assegura a materialização de dois fenômenos profundamente indesejáveis: a corrupção das forças constitucionalmente responsáveis pela defesa da soberania nacional (expostas ao convívio com a marginalidade) e a não-resolução da crise da segurança pública (ao manter indefinidamente esquemas paliativos de intervenção que não atacam o cerne do problema).

Cabe a indagação: é isso que desejamos para o Brasil?