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sábado, 21 de julho de 2018

Ensaios de grande estrategia brasileira - João Paulo Soares Alsina Jr.

Valendo-se da experiência adquirida no Itamaraty e no Ministério da Defesa e de quase 20 anos de estudos sobre o tema, João Paulo Alsina Jr. oferece aos leitores um diversificado painel sobre o conceito de grande estratégia, o sistema internacional de segurança, o caráter da guerra contemporânea, as operações de paz da ONU e o modelo de recrutamento militar brasileiro. Ensaios de grande estratégia brasileira reúne cinco capítulos sobre a articulação entre as políticas externa e de defesa do país, em que o autor enfatiza a necessidade inadiável de retirar o Exército do pântano da segurança pública, condição sine qua non para implementar uma grande estratégia coerente - e para enfrentar de maneira efetiva a ameaça do crime organizado. Este livro será de grande valia para todos os interessados em política externa, defesa, segurança internacional, história e ciência política, bem como para qualquer cidadão preocupado com o futuro do Brasil.

Minha transcrição de alguns trechos da Introdução do Autor: 

       “Esse texto inédito reflete, indiretamente, a perplexidade do autor diante da catástrofe que se abateu sobre o país nos últimos anos, reveladora de um estado de putrefação civilizacional sem paralelo em nossa história. A aterradora idiotizacão de nossa suposta elite cultural, produzida pela universidade brasileira ao longo de muitas décadas, está na base desse processo, razão pela qual torna impossível compreender o surrealismo nosso de cada dia sem referência ao quadro mais amplo que o engendrou. (...)
Sem que se proceda à discussão dessas mazelas primordiais, uma tão improvável quanto imprescindível reforma do modo brasileiro de estar no mundo não se materializará. Ao fim e ao cabo, novas aberrações serão criadas, talvez ainda mais nefastas do que as atuais. Roberto Campo afirmava que o Brasil ‘não perde oportunidade de perder oportunidades’. Talvez fosse o caso de não perder a oportunidade de apontar a oportunidade única que se apresenta com uma crise de tamanha envergadura. São nas crises que os indivíduos têm a chance de abandonar a complacência, de colocar em causa percepções longamente sedimentadas, de buscar a verdade sem o temor do ostracismo. A circunstância dos dias que seguem favorece a renovação, mas para tanto é preciso o diagnóstico correto e coragem moral para mudar. O indispensável senso de proporção, artigo raríssimo em nossas plagas, somente poderá ser reconstruído se formos capazes de recuperar o que de melhor o Brasil produziu no passado, e de acrescentar a esse patrimônio novos elementos que corrijam mazelas históricas.
Mais do que qualquer coisa, faz-se necessário questionar incisivamente as práticas recentes em todos os domínios da vida em sociedade – única forma de reverter o acelerado processo de decadência e de esgarçamento do tecido social. Somente no contexto de uma retomada vigorosa da modernização – de escopo igual ou superior em profundidade à restauração Meiji ou à fundação da Turquia liderada por Kemal Ataturk no pós-Primeira Guerra – poderá o Brasil aspirar a um futuro menos soturno. Evidentemente, a modernização não poderá seguir os moldes do modernismo nacional, que se transformou em uma tradição conservadora e deletéria – a despeito, ou talvez em função, da sua retórica de ruptura e emancipação. Se o mito modernista, associado ao mito revolucionário (ambos mediados pelos indivíduos que deles se nutriram), nos trouxe ao estado de coisas atual, caberia admitir que uma mudança qualitativa da nossa visão de mundo encontra-se dependente de duas tarefas prévias. A primeira, refere-se ao questionamento dos aspectos nefastos da cosmovisão reformista-revolucionária. A segunda, tem a ver com a criação de novos consensos virtuosos, menos dissociados da verdade e mais tendentes a fundamentar valores positivos: religiosidade tolerante, trabalho, honestidade, amor ao conhecimento, busca da verdade, solidariedade, patriotismo, apreço pela ordem, respeito ao mérito, autonomia do indivíduo em relação ao Estado, intolerância ao crime, universalismo na aplicação da lei, etc.
Ao contrário do que alguns querem fazer crer, os problemas atuais não têm a ver fundamentalmente com questões econômicas ou políticas. Trata-se de algo mais profundo e alarmante: uma crise multidimensional, que explicita a defasagem radical entre a mundivisão dominante, as elites do Brasil e as demandas da contemporaneidade. Esse fenômeno não diz respeito tão somente à obsolescência da base industrial ou à putrefação do sistema de educação – sequestrado ideologicamente pelo que há de mais retrógrado. Para onde se olhe, o observador encontrará atraso, corrupção, desalento, imobilismo, violência. Se é certo que essa não é uma tendência transversal – a justiça brasileira, apesar de suas carências e contradições, vem dando demonstrações de que pode agir de modo republicano –, parece igualmente correto afirmar que somente uma reforma em regra das nossas instituições e da nossa maneira de estar no mundo poderá reverter o processo de degeneração da vida coletiva no país.
A questão da grande estratégia brasileira encontra-se dependente desse processo de reforma, sempre penoso e repleto de obstáculos impostos pelo subdesenvolvimento – entrincheirado nas mentes de indivíduos que ocupam posições-chave na sociedade, o que apenas torna mais complexa a superação das redes de interesses materiais vinculados ao atraso. O pacto da mediocridade que prevalece na administração dos negócios do Estado, particularmente no tocante à gestão da política de defesa e à inércia de uma retórica de política externa castradora e derrotista, não nos permite antever que seja viável articular, de modo coerente, política, economia, poder militar e inteligência em prol dos interesses nacionais. Interesses, aliás, que são cada vez mais diluídos em função de um duplo cerco, representado pela adesão irrefletida de parcela das elites brasileiras ao globalismo e pela desorganização crescente de um aparato estatal assolado por níveis assustadores de entropia.
Nesse contexto, pensar a grande estratégia do país torna-se ainda mais relevante. Se a crise do presente vier a ser superada em bases sólidas, ela o será a partir de uma mudança de mentalidades que valorize o conhecimento e aqueles que o produzem de maneira séria e responsável. Nunca é demais enfatizar o quanto o proverbial desprezo brasileiro pelo estudo laborioso, baseado em um pragmatismo oportunista e acéfalo, prejudica, ou mesmo impossibilita, a obtenção de massa crítica indispensável à resolução de problemas.”

Retomo (PRA): 
Um livro que precisa ser lido não apenas por diplomatas e militares, mas por todos os brasileiros, em especial aqueles que pertencem (ou julgam pertencer) às elites do país (econômicas, políticas, os mandarins do Estado, etc.).
João Paulo Soares Alsina Jr. é um grande intelectual, um dos maiores que conheci na carreira diplomática.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 21/07/2018

Outros livros do autor: 


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Dez mitos sobre defesa nacional no Brasil - Joao Paulo Soares Alsina (2008)

 DEZ MITOS SOBRE DEFESA NACIONAL NO BRASIL​
João Paulo Soares Alsina Jr
Revista Interesse Nacional – outubro/dezembro 2008 – pgs. 68 a 77

O artigo discute as percepções corriqueiras presentes em diferentes setores da sociedade brasileira sobre a problemática de defesa nacional. Dessa forma, dez mitos sobre a questão são identificados. Para cada um deles, o autor apresenta uma breve descrição e posterior refutação. Pretende, assim, esclarecer percepções tidas como errôneas e contribuir para o debate público sobre defesa nacional.

Este artigo aborda o que se poderia chamar de incompreensão generalizada sobre as questões de defesa nacional. A idéia de mito é empregada no sentido adquirido no senso comum: o de argumentação falaciosa que possui relevância em vista de sua ampla aceitação em um determinado contexto social. Procuro demonstrar a inconsistência dos argumentos que sustentam visões dominantes sobre a problemática brasileira de defesa, sem utilizar citações e notas de rodapé.

Mito 1. O Brasil não precisa de Forças Armadas
Esse mito deriva da incompreensão sobre o papel das Forças Armadas prevalecente em amplos setores da sociedade brasileira. Sua origem encontra-se no pacifismo antimilitarista proveniente de duas matrizes não-excludentes: a ingenuidade bem-intencionada e o preconceito puro e simples contra as instituições  de Estado que se ocupam da administração da coerção organizada. No primeiro caso, supõe-se que o sistema internacional tende à harmonia de interesses – embora os defensores dessa tese raramente sejam capazes de formulá-la em termos estruturados; no segundo caso, rejeita-se a instrumentalidade das organizações de força nacionais com base em seu suposto papel repressivo e na sua pretensa ausência de função social. Ambas as vertentes desse pacifismo à outrance, que nega, na prática, a necessidade de defesa da soberania e o papel do aparato militar na construção de sociedades democráticas, são pobres do ponto de vista conceitual. Com freqüência, não passam do nível do preconceito e da ignorância tout court, não estando respaldados pela Carta de 1 988.

Mito 2. O Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente
Esse mito merece explicação detida. Suas origens podem ser encontradas em visões, não necessariamente estruturadas do ponto de vista teórico-conceitual, presentes de maneira difusa na mídia, em setores da sociedade civil, no meio diplomático e mesmo nas hostes militares!

Qualquer medida de poder combatente – entendido como o quantum de capacidade destrutiva passível de ser aplicado pelas Forças Armadas em um conflito – deve ser sempre comparativa. Neste ponto, o analista depara-se com uma dificuldade de base: como definir os antagonistas com os quais o poder combatente do país deverá ser comparado? A resposta está longe de ser consensual, tanto do ponto de vista acadêmico quanto do político. Em todo caso, ela terá de ser apresentada a partir de uma posição normativa passível de poucas restrições, uma vez que a Constituição brasileira e a Política de Defesa Nacional (pdn) permitem ampla margem para a interpretação do que constituiria ameaça à soberania e aos interesses nacionais. Portanto, para que se possa afirmar que o Mito dois é de fato mito, faz-se necessário demonstrar a necessidade de o Brasil contar com Forças Armadas com alta prontidão operacional e significativo poder combatente.

A apresentação da teoria que embasa os argumentos apresentados a seguir levaria este texto longe demais. No entanto, vale dizer que ela se fundamenta em inferências analíticas derivadas dos trabalhos de Barry Buzan, Ole Waever e David Mares. Abaixo, apresentam-se as premissas que justificam a necessidade de aumento do poder combatente e da prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras:

• o poder militar continua a ser fundamental para a mensuração do poder no plano das relações internacionais. Embora a capacidade de o poder militar servir de suporte em outras áreas de barganha (sua fungibilidade) seja limitada, ela de forma alguma pode ser considerada igual a zero;

• a força armada domina as demais expressões do poder em contextos de interação em que não haja limitações significativas ao seu emprego;

• o poder militar pode ser utilizado tanto coercitiva quanto persuasivamente. Logo, ele constitui uma ferramenta útil para a consecução dos interesses de um Estado específico;

• a imprevisibilidade de um sistema internacional de contornos indefinidos, a interconexão em tempo real permitida pelos meios de comunicação, os fluxos de pessoas e mercadorias entre Estados, os problemas ambientais de escala planetária, a diminuição do custo de utilização da força armada devido ao gigantesco gap tecnológico entre exércitos de países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre outros fatores, fazem com que a eclosão e a escalada dos conflitos interestatais se processe de modo acelerado;

• logo, as Forças Armadas brasileiras precisam possuir alta prontidão operacional, de modo que estejam prontas a dar resposta imediata a contingências que atentem contra a soberania e os interesses brasileiros. Da mesma forma, a alta prontidão justifica- se como fator dissuasório e de projeção internacional do Estado;

• como a garantia da soberania é atributo das Forças Armadas, estas devem estar prontas a impor custos elevados a qualquer Estado que pretenda coagir o Brasil militarmente – seja de modo explícito ou velado;

• tendo em vista a atual inexistência de contenciosos ou de séria incompatibilidade de valores entre o Brasil e os países mais poderosos do Ocidente – aqueles que teriam condições de empreender ações do tipo mencionado no item anterior –, bastaria ao país ser capaz de mobilizar poder combatente suficiente para elevar acima de zero o custo de qualquer ação como a citada no item acima;

• em contrapartida, as Forças Armadas também precisam garantir a supremacia militar brasileira no subcontinente, forma de demonstração da vontade nacional de liderar o processo de integração regional. Em vista do que precede, afirma-se que se trata de mito a idéia de que o Brasil não precisa de Forças Armadas com alta prontidão operacional e apreciável poder combatente. Nessa linha, proceder-se-á à enumeração dos argumentos que estão por trás do Mito 2, de acordo com uma versão estilizada, própria a cada um dos atores que se ocupam de reproduzi-lo.

A mídia não se pronuncia sobre o projeto de forças brasileiro e o nível desejável de prontidão operacional das Forças Armadas. Praticamente não há discussão pública sobre esses temas no Brasil. No entanto, com freqüência, programas de aquisição de sistemas de armas são avaliados a partir de uma perspectiva economicista, que se ocupa exclusivamente de ressaltar o valor da transação. Não raro, esse valor é cotejado com a resultante do investimento caso fosse aplicado na área social. Decorre desse nível de superficialidade, no tratamento do tema a inferência difusa de que o aumento do poder combatente e da operacionalidade das Forças Armadas não constituem objetivos socialmente válidos.

A representação política da sociedade civil pouco interesse demonstra em acompanhar e fiscalizar os assuntos militares. Essa abdicação de controle dá ensejo a todo tipo de distorções – circunstância inerente às burocracias desprovidas de supervisão. Os temas relacionados com a prontidão operacional e o poder combatente das forças são praticamente estranhos aos parlamentares brasileiros. À retórica de valorização das Forças Armadas corresponde a ausência de interesse em destinar recursos para um setor não identificado com os imperativos do clientelismo e da patronagem. Tudo isso ocorre em um contexto de profunda apatia da sociedade civil em relação às questões castrenses. Estruturada conceitualmente a partir da apropriação seletiva do legado de Rio Branco, a diplomacia brasileira não encara o poder militar como ferramenta essencial de projeção dos interesses nacionais. Isso se deve a variadas razões, sendo a mais saliente delas o fato de que, ao longo do século xx, o Itamaraty jamais pôde contar com um aparato militar que lhe permitisse maior latitude de atuação. Ademais, a retórica relacionada com a identidade internacional brasileira como a de uma potência pacífica limita a utilização clausewitziana da força armada. Logo, o plano declaratório da política externa não é conducente ao incentivo ao aumento do poder combatente das Forças Armadas. Mais do que isso, a possibilidade desse aumento é suficiente para suscitar temores de desequilíbrio do balanço estratégico regional e de eventuais conseqüências negativas no que se refere à percepção do Brasil por parte de seus vizinhos.

Os próprios militares não raro agem de maneira contrária ao incremento do poder combatente e da prontidão operacional das instituições a que pertencem. Essa postura pode ser identificada em três circunstâncias distintas: quando existe a possibilidade de um trade-off entre o aumento de poder combatente e a manutenção ou ampliação de benefícios corporativos (salários, aposentadorias, pensões etc.); quando alguma modificação organizacional coloca em perigo a autonomia corporativa das forças singulares (por exemplo, o processo de criação do Ministério da Defesa); e quando a prioridade da instituição não é o incremento de poder combatente per se, mas a consecução de algum outro objetivo (preservação da ordem interna, no caso do Exército; desenvolvimento científico, tecnológico e da infra-estrutura aerospacial, no da Aeronáutica, por exemplo).

Mito 3. O Brasil não deve incrementar seu poder militar sob pena de provocar desequilíbrio estratégico na América do Sul e fomentar corridas armamentistas
O conceito de equilíbrio estratégico, ao contrário do que supõe seu uso vulgar, é controverso do ponto de vista acadêmico. Torna-se ainda mais difícil falar em equilíbrio em uma região como a América do Sul, que se notabiliza por ser uma das menos armadas do mundo. A baixa capacidade de projeção de poder das Forças Armadas da região, acoplada aos limitados estoques de armamentos, acrescenta uma nota adicional de dificuldade em supor a existência de um equilíbrio estratégico que seja instrumental para a manutenção de relações amistosas entre os Estados sul-americanos. Na melhor das hipóteses, poder-se-ia falar em um equilíbrio na irrelevância, termo em si contraditório, pois a essência da tese defendida pelos partidários do equilíbrio estratégico é a crença realista de que a balança de poder garantiria a paz enquanto permanecesse ajustada. Ora, é difícil sustentar que a ausência de conflitos recorrentes na América do Sul seja o resultado da operação da balança de poder. No máximo, esse poderia ser considerado um entre outros fatores que explicam tal circunstância. Corolário da suposição de que o balanço estratégico seria instrumental para a manutenção da paz é a tese de que corridas armamentistas adviriam de eventual desequilíbrio. Novamente, trata-se um tema controverso como se fora um dado inequívoco da realidade. Os partidários dessa suposição raramente consideram que não há parâmetros consensuais para diferenciar esforços de reaparelhamento militar e corridas armamentistas. Da mesma forma, desconsideram as diferenças de percepção decorrentes da existência de uma estrutura social das relações entre os Estados da região mais tendente ao conflito ou à cooperação. Com efeito, iniciativas de modernização militar podem ser vistas como corridas armamentistas ou reaparelhamento corriqueiro, de acordo com o nível de confiança mútua existente. Esse fato parece escapar aos que temem corridas aos armamentos em conseqüência de desequilíbrios estratégicos. A estes escapa, ainda, a dimensão da política doméstica – essencial para a tradução de inputs externos em ações internas – e da viabilidade material de uma reação ao que se conceba como desequilíbrio militar. Assim, a dinâmica da política doméstica e a disponibilidade de recursos modularão a reação de um país ao que entende ser um aumento de capacidades militares por parte de seu vizinho. Mesmo que as elites dirigentes de um país A entendam que a nação B está a ponto de adquirir vantagem militar considerável, isso não significa que terão coesão, vontade ou capacidade de reagir a essa circunstância. Portanto, o modelo ação-reação implícito na idéia de corrida armamentista não se sustenta empiricamente, pois não pode ser generalizado.

Logo, não é possível antever a priori reações negativas a um incremento do poder militar brasileiro. Ao contrário, pode-se supor que essas reações, consubstanciadas em corridas armamentistas, não ocorrerão. Isso porque prevalece um ambiente de distensão entre o Brasil e seus vizinhos, além do fato de que nenhum deles teria condições de acompanhar os esforços de reaparelhamento brasileiro mesmo que entendessem assim proceder, uma vez que o Brasil pode dispor de recursos mais abundantes do que todos eles. Conclui-se que a tese que encara o fortalecimento de capacidades militares como prejudicial às relações brasileiras com os países lindeiros não possui solidez. Ela supõe como certos efeitos que são duvidosos e que não estão respaldados pela experiência regional recente.

De outra parte, subjaz ao mito em questão a desconsideração pela influência que os planos hemisférico e global exercem sobre a política de defesa. Ainda que o Brasil, na condição de potência regional militarmente débil, não exerça papel sistêmico importante no que se refere à segurança internacional, isso não quer dizer que os desenvolvimentos globais não afetem o país. As recentes descobertas de petróleo no litoral sudeste provavelmente aproximarão o Brasil de um dos mais tradicionais eixos de conflito entre Estados: a disputa por recursos energéticos. Desconsiderar essa possibilidade equivale a agir de modo autista. Logo, o Mito três é ainda mais falacioso por supor que a inserção internacional de segurança do país limitar-se-ia ao espaço sul-americano.

Mito 4. As Forças Armadas brasileiras possuem poder de dissuasão adequado
Essa idéia é sustentada por dois grupos distintos: aqueles que pouco conhecem sobre  as Forças Armadas e aqueles que crêem que a posição internacional do Brasil recomenda a manutenção de um baixo perfil militar – supostamente adequado à realidade de país em desenvolvimento. O primeiro grupo sustenta essa posição baseado em uma visão nacionalista ingênua e irrealista, que entende que as Forças Armadas representam uma instituição imaculada – centrada nos valores do patriotismo, da retidão moral, da abnegação etc. Essa visão, contudo, não merece ser tratada em detalhe. O segundo grupo, por sua vez, poderia ser subdividido em vários subgrupos.

O que une todas as vertentes que gravitam em torno da idéia de que o perfil estratégico brasileiro estaria adequado à sua estatura internacional é a concepção de que o país não pode aspirar a ser mais do que atualmente é: Estado em desenvolvimento não assolado por ameaças externas prementes, fraturado por seriíssimo problema de insegurança pública, debilitado por gravíssimas desigualdades sociais etc. Essas vulnerabilidades tornariam impossível  a adoção de um perfil distinto do hoje prevalecente no plano militar.

Ora, não se pode negar as debilidades brasileiras. No entanto, a visão descrita acima encerra um notável derrotismo, além de não considerar as contradições inerentes à política de defesa levada a cabo no presente. Se se considera que o perfil estratégico nacional é adequado, deve-se acreditar, por analogia, que a aplicação dos recursos destinados à defesa é satisfatória. Uma pesquisa superficial sobre os países que mais investem em defesa no mundo e seus respectivos arsenais indicará que esse não parece ser o caso. Sinteticamente, o Brasil encontra-se entre os dezesseis países que mais investem em suas Forças Armadas em termos absolutos. No entanto, há um abismo em termos de capacidades militares entre o nosso país e qualquer um dos quinze que se encontram à sua frente no ranking. O mesmo ocorrendo em relação aos cinco que se situam logo atrás dele. Isso se processa pelo fato de que mais de 80% do orçamento da defesa se destina ao pagamento de salários, aposentadorias e pensões. Nessas condições, caso fossem implementadas reformas que diminuíssem gastos com pessoal, mas mantivessem o mesmo orçamento, haveria possibilidade de aumentar os investimentos no aparelhamento das Forças Armadas; o que, ipso facto, negaria a tese de que o Brasil não poderia possuir capacidades militares mais  importantes do que as atuais. Assim, o derrotismo paralisante daqueles que crêem nada poder ser feito não só é menos realista do que parece como também referenda um estado de coisas que é extremamente negativo, ou seja: o país investe tanto quanto muitos dos Estados melhor aparelhados em termos militares sem que obtenha retorno semelhante ao alcançado por estes últimos.

 Mito 5. As Forças Armadas devem cumprir seu papel social por meio de ações cívico-sociais e da manutenção do sistema de recrutamento universal obrigatório
Por trás dessa visão, encontra-se mais ou menos formalizada a idéia de que o Brasil pode prescindir de Forças Armadas como instrumentos de garantia da soberania nacional. Essa rationale supõe que:

• não haveria ameaças externas contra as quais o Brasil precisasse se preparar militarmente;

• as Forças Armadas, nesse contexto, precisariam “ser úteis” ao país por meio de ações não diretamente relacionadas com a preparação para a guerra;

• diante das grandes desigualdades sociais e da tibieza da presença do Estado em setores importantes da vida nacional, uma forma de conferir utilidade às Forças Armadas seria a de empregá-las nas chamadas ações cívico-sociais;

• nessa mesma linha, a ampliação do recrutamento de jovens das camadas mais desfavorecidas da população serviria como forma de inculcação de valores cívicos e de transmissão de conhecimentos básicos. O serviço militar obrigatório funcionaria, então, como um instrumento civilizatório. De início, há um problema central relacionado com esse tipo de perspectiva: a Constituição Federal. Esta estabelece que uma das duas funções precípuas das Forças Armadas é a defesa da soberania nacional. Logo, do ponto de vista legal, estas não podem abdicar dessa tarefa. Ocorre que o assistencialismo relacionado com a perspectiva mencionada encontra-se em direta contradição com a tarefa de defesa da soberania. Isso se dá porque existe um conflito entre a natureza das funções aludidas. A guerra moderna implica a necessidade de forças detentoras de alta prontidão operacional, capazes de atuar de modo coordenado com os demais ramos das Forças Armadas,  tecnologicamente atualizadas, flexíveis. Essas características requerem a existência de oficiais e praças altamente qualificados – tanto em termos de capacitação intelectual e técnica quanto de adestramento. Recrutas temporários de baixa instrução não têm nenhuma condição de atender aos requisitos para a formação de um soldado apto a operar no campo de batalha digital contemporâneo.

Não resta dúvida de que a lógica do Mito cinco conduz a uma contradição fundamental de quase impossível resolução. Portanto, a manutenção de Forças Armadas cuja estrutura organizacional não privilegia a preparação de profissionais adaptados às exigências da guerra contemporânea significa insistir em um modelo que, a um só tempo, não elimina as desigualdades sociais e não proporciona ao país forças aptas a garantir satisfatoriamente a defesa da soberania nacional. Mito 6. O orçamento militar brasileiro é baixo Como proporção do pib, o orçamento militar brasileiro é de fato baixo, mantendo-se, nas últimas duas décadas, em menos de 2% do produto. No entanto, em termos absolutos, o orçamento militar do Brasil não é pequeno. O país encontra-se em décimo sexto lugar no ranking das nações que mais investem no setor. Se se comparar, contudo, o inventário de sistemas de armas e o nível de prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras aos dos países que investem somas semelhantes em defesa – Holanda, Israel, Austrália, Coréia do Sul – chegar-se-á à conclusão de que existe uma enorme discrepância em desfavor de nossas Forças Armadas. A razão para que tal ocorra reside na parcela desproporcional ocupada pela rubrica relativa a pagamento de pessoal ativo, inativo e pensionistas. Nos últimos anos, essa parcela tem sido consistentemente superior a 80% do orçamento efetivamente executado – percentual que não inclui os elevados gastos com o sistema de saúde militar. Para se ter uma idéia, as Forças Armadas dos EUA não chegam a gastar 40% do orçamento com pagamento de pessoal .

Mito 7. As Forças Armadas podem colaborar decisivamente no combate à criminalidade, o que lhes conferiria utilidade
Esse mito é uma variante especialmente grave do Mito 5. Os partidários dessa tese acreditam que o emprego das Forças Armadas em substituição ou complementação às polícias seria capaz de resolver ou minorar os problemas relacionados com a criminalidade, conferindo utilidade àquelas. Há diversos problemas envolvidos nesse tipo de mitologia. O primeiro deles é o que se refere aos aspectos legais. Não há no Brasil legislação que proporcione às Forças Armadas garantias suficientes para que tal tipo de atuação possa desenrolar-se de maneira juridicamente segura e eficaz – tanto no que toca às prerrogativas dos agentes do Estado, os soldados, quanto na definição da cadeia de comando entre militares federais e polícias estaduais. O segundo é o que se refere à eficiência desse tipo de atuação.

As intervenções realizadas até o presente demonstram que o emprego das Forças Armadas proporciona tão-somente uma sensação temporária de segurança. Não sendo possível manter grandes efetivos militares 24 horas por dia, sete dias por semana, nas ruas, a insegurança volta a aflorar assim que os soldados são retirados de suas posições. Deve-se ressaltar, ademais, que a maioria desses últimos é formada por recrutas não-instruídos em aspectos básicos das tarefas policiais. O terceiro aspecto é o relacionado com a flagrante incompatibilidade entre as missões de segurança pública e de defesa da soberania nacional. Assim, a convivência de demandas profissionais tão distintas em uma mesma instituição, em essência o Exército, faz com que esta não seja capaz de desempenhar nenhuma delas com a proficiência ideal. O quarto aspecto é o que diz respeito à exposição das Forças Armadas à corrupção decorrente de seu emprego em missões de caráter policial. Resta claro que esse é um risco não desprezível, que colocaria em perigo instituições ainda preservadas da infiltração pelo crime organizado.

Mito 8. As Forças Armadas devem visar o desenvolvimento da Nação, aceitando trocar poder combatente imediato por projetos de desenvolvimento científico-tecnológico de prazo incerto.
A noção de que o Brasil vive em um paraíso kantiano no plano de suas relações exteriores dá ensejo à visão de que o país pode dar-se ao luxo de trocar poder combatente imediato por iniciativas de desenvolvimento científico e tecnológico de prazo incerto (por exemplo, o Veículo Lançador de Satélites – VLS – e o submarino de propulsão nuclear). Referência à idéia de que os países tenderiam à paz, pela universalização progressiva da razão, presente na obra de Immanuel Kant, filósofo alemão (1724–1804). Esse raciocínio, mais a ausência de percepção de ameaças externas iminentes permitiria que se investissem os parcos recursos destinados à aquisição de sistemas de armas em projetos nacionais de desenvolvimento tecnológico – alguns deles não-relacionados diretamente com a produção de armamento, como no caso do VLS. Esse tipo de mitologia esbarra em três aspectos da realidade contemporânea. Em primeiro lugar, parte da premissa controversa de que as Forças Armadas brasileiras não precisariam de alta prontidão operacional – que inclui a posse de armamento pronto a ser utilizado. Em segundo lugar, o trade-off poder combatente imediato versus  desenvolvimento tecnológico de longo prazo encontra um obstáculo insuperável na ausência de recursos para a rápida conclusão dos sistemas de armas pretendidos. Assim, a ausência de recursos dá origem a longuíssimos ciclos de desenvolvimento, o que resulta na produção de armamento inevitavelmente obsoleto em comparação com o que se fabrica nos principais países inovadores. Essa circunstância acaba por limitar a utilidade e a capacidade de exportação de tais sistemas de armas – ultrapassados antes mesmo de nascerem. Em terceiro lugar, a baixa capacidade de aquisição desses sistemas pelas Forças Armadas brasileiras acaba tornando seus custos de produção proibitivos e desincentivando a consolidação de um parque nacional de material bélico capaz de fornecer armamentos atualizados às forças singulares.

O quadro acima descrito revela o caráter problemático da manutenção de visões desenvolvimentistas que acabam por gerar efeitos duplamente perversos: não contribuem decisivamente para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, tampouco provêem os sistemas de armas necessários para garantir a adequada prontidão operacional das Forças Armadas brasileiras. Exceção parcial a esse modelo é a representada pelo projeto naval nuclear, que, se, por um lado, deu ao país o domínio tecnológico do ciclo completo do enriquecimento de urânio, por outro, não foi capaz até o momento (30 anos depois de seu início!) de produzir o reator necessário à propulsão de submarinos.

Mito 9. A política externa de um país periférico como o Brasil não precisa estar respaldada por poder militar apreciável – sendo este somente útil no que concerne às operações de manutenção da paz
Este mito é uma variação sobre o tema dos mitos anteriores. Parte do pressuposto de que a força armada não é útil ou utilizável por parte de um país como o Brasil. Naturalmente, também vem embutida nessa perspectiva a noção de que o plano internacional tenderia ao kantianismo ou de que, mesmo que não tendesse, o país nada poderia fazer para resguardar seus interesses por meio de instrumentos militares. A exceção a essa regra seria a das operações de manutenção da paz da ONU. Por não envolverem o uso direto da força e por possuírem caráter essencialmente humanitário, esse tipo de operação constituiria uma forma válida de afirmação internacional do Brasil. Ademais, por não serem muito exigentes em termos de preparação militar e de meios materiais, poderiam ser desempenhadas por nossas Forças Armadas – o que reiteraria o comprometimento nacional com os esforços em prol da paz, legitimando as pretensões brasileiras de ocupar assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Embora não haja dúvida de que a participação em operações do gênero tenha como efeito o aumento do prestígio e da visibilidade internacional do Brasil, não se pode negligenciar os aspectos potencialmente negativos derivados da especialização das Forças Armadas em operações de manutenção da paz. Em primeiro lugar, é por demais duvidosa a premissa de que esse tipo de operação possa vir a constituir o cerne da política de defesa brasileira – por inúmeras razões, entre as quais a da dimensão do contingente militar brasileiro. Em segundo lugar, não é consensual a visão de que a participação nelas possa por si só influenciar a comunidade internacional a aceitar o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança. Em terceiro lugar, é controversa a suposição de que as operações de manutenção da paz possam ser instrumentais para aumentar a prontidão operacional das Forças Armadas – tendo em vista a ausência de identidade entre esse tipo de operação e as tarefas de defesa da soberania. Em quarto lugar, deve-se mencionar que o caráter parapolicial de operações desse tipo pode contribuir para reforçar as correntes de opinião que enxergam no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública uma espécie de bala de prata para a resolução dos problemas de criminalidade registrados no Brasil. Em quinto lugar, a utilização das operações de manutenção da paz como argumento em favor do aparelhamento e da modernização das Forças Armadas constitui uma faca de dois gumes, isso porque reforça a percepção de que Marinha, Exército e Aeronáutica não teriam papel relevante a exercer em termos de segurança militar externa (defesa stricto sensu).

Em resumo, as operações de manutenção da paz não podem constituir o alfa e o ômega da política de defesa, sob pena de se negligenciar a capacidade de defesa brasileira.

Mito 10. As questões de defesa não são prioritárias e, portanto, não há necessidade de maior integração entre as Forças Armadas por meio de um Ministério da Defesa forte e atuante
Esse mito vem sendo propalado de maneira intermitente pelo estamento militar como forma de preservar sua autonomia corporativa,  tendo sido utilizado durante o processo de redação da Carta Magna de 1988 e as discussões que deram origem ao I Plano de Defesa Nacional, em 1996, e ao Ministério da Defesa, em 1999. Ele é desmentido pelos conflitos militares recentes e pela prioridade que os países desenvolvidos vêm atribuindo ao fortalecimento da capacidade de articulação de seus respectivos ministérios da defesa e ao incremento da interoperabilidade de suas forças. A noção contemporânea de guerra baseada em redes, por exemplo, contradiz cabalmente a idéia de que cada ramo das Forças Armadas pode atuar de modo isolado dos demais. Portanto, não resta dúvida de que somente um MD forte e atuante poderá exercer a direção necessária ao atingimento da meta de garantir a interoperabilidade das forças, a eficiência na aplicação dos recursos disponíveis, a aderência às diretrizes emanadas do poder político, bem como a coordenação eficiente da política de defesa com a política externa brasileira.

Conclusão
A enunciação dos dez mitos demonstra a indigência do debate público sobre política de defesa no Brasil. Enquanto a sociedade brasileira em geral e as suas elites dirigentes em particular não forem capazes de encarar de maneira madura as questões relacionadas com a defesa nacional, o país continuará atolado em terreno pantanoso. Isso porque, sem direção política clara, sem definições precisas sobre suas atribuições, sem meios mínimos para garantir a soberania da nação, as Forças Armadas (em especial o Exército) são cada vez mais empurradas para as tarefas de garantia da lei e da ordem. Parece evidente que às forças singulares restará, ceteris paribus, apenas o papel de intervenção no campo da segurança pública – uma vez que a incapacidade de atuar no plano da defesa elimina a possibilidade de que esse papel seja sustentado como útil do ponto de vista de sua legitimidade social.

Levando em conta o que precede, a essência do problema relacionado com o lugar das Forças Armadas em uma sociedade desigual como a brasileira poderia ser resumido de modo singelo: a incompreensão generalizada sobre a funcionalidade social das instituições responsáveis pela administração da coerção coletivamente organizada conduz à sua utilização errática. Se não se compreende que o cerne da função social exercida pelos militares é justamente sua capacidade de provimento de segurança militar externa (defesa), mantém-se aberta a caixa de Pandora da transformação de funções subsidiárias (substituição das polícias em situações várias, apoio a ações assistenciais etc.) em primordiais. É preciso, portanto, que se alerte os formadores de opinião sobre o extremo perigo que o Brasil corre ao optar na prática – ainda que não na teoria – pela utilização das Forças Armadas no campo da segurança pública. Exemplos abundam sobre a inconveniência e a ineficiência do emprego dos militares em tarefas policiais ou parapoliciais. Se o país pretende combater a criminalidade, não será uma (falsa) solução de emergência – o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem – que lhe permitirá dar conta da questão. O difícil encaminhamento do problema da segurança pública será alcançado se, e somente se, o governo federal, juntamente com os estados, for capaz de empreender um amplo processo de reforma das instituições que têm a atribuição primária de combater o crime (polícias, sistema carcerário, sistema judicial etc.). Essa reforma é extremamente complexa, tanto do ponto de vista burocrático quanto do político. No entanto, terá de ser levada a cabo, sob pena de o Estado perder jurisdição sobre parcelas crescentes do território nacional, que seriam dominadas pelo poder paralelo do crime organizado.

Note-se, de outra perspectiva, que o Brasil não se encontra idilicamente isolado do mundo e que sua crescente importância no campo da energia, eixo tradicional dos conflitos interestatais, poderá expor o país a pressões externas de variados tipos. Essas pressões podem dar-se, inclusive, no campo militar. Somente essa circunstância deveria ser o bastante para que os tomadores de decisão conferissem atenção especial à política de defesa. Ocorre que as preocupações brasileiras no campo da segurança internacional não podem restringir-se apenas ao aspecto energético. Deve-se considerar também as implicações de uma ampla gama de fatores eventualmente perturbadores da lógica de baixa conflitividade entre os Estados prevalecente no sistema internacional contemporâneo. São eles:

• a diminuição do custo de utilização da força causada pelo aumento contínuo do abismo tecnológico entre as forças armadas de Estados desenvolvidos e em desenvolvimento (o que permitiria que as grandes potências viessem a utilizar seu poder militar contra Estados fracos militarmente com total impunidade);

• o aumento da conflitividade sistêmica causado pela disputa por recursos escassos em um contexto de degradação ambiental crescente;

• instabilidade crônica no complexo de segurança regional sul-americano causada pelo aprofundamento das contradições sociais e pela fragilidade institucional dos países que o compõem;

• disputas pelo acesso a recursos produzidos ou contidos em território brasileiro (petróleo, biocombustíveis, água doce, alimentos, material genético etc.);

• disputas sobre eventual opção brasileira em desenvolver tecnologias de uso dual;

• disputas sobre questões relacionadas com os direitos humanos de minorias indígenas, passíveis de serem instrumentalizadas contra o Brasil;

• ameaça à integridade física e à propriedade de populações brasileiras residentes em áreas de fronteira onde haja instabilidade política e social;

• infiltração, em território nacional, de células de grupos terroristas (em especial de organizações hostis à superpotência);

• associação entre grupos terroristas estrangeiros e o crime organizado doméstico.

Tendo em conta o cenário esboçado, o Brasil encontra-se diante de um impasse. As Forças Armadas nacionais custam ao erário soma não desprezível de recursos. No entanto, esses recursos não se traduzem em capacidade de dissuasão convencional aceitável, tampouco em forças aptas a dar conta satisfatória da garantia da lei e da ordem. Ainda que a discussão sobre o que fazer para modificar o atual status quo não esteja contemplada neste artigo, surge de maneira inequívoca a idéia do que não se deve fazer. Empregar Marinha, Exército e Aeronáutica em tarefas policiais e parapoliciais é o que se deve evitar a todo custo. Esse tipo de emprego praticamente assegura a materialização de dois fenômenos profundamente indesejáveis: a corrupção das forças constitucionalmente responsáveis pela defesa da soberania nacional (expostas ao convívio com a marginalidade) e a não-resolução da crise da segurança pública (ao manter indefinidamente esquemas paliativos de intervenção que não atacam o cerne do problema).

Cabe a indagação: é isso que desejamos para o Brasil?

terça-feira, 30 de junho de 2015

Barao do Rio Branco e sua estratégia naval - livro de João Paulo Alsina

O livro derivado da tese de doutorado de João Paulo Alsina - que reinterpreta o significado do legado do Barão do Rio-Branco à luz do programa de reaparelhamento naval brasileiro da primeira década do século XX - acaba de ser publicado pela FGV:


  • ISBN: 978-85-225-1682-7
  • Ano: 2015
  • Número de páginas: 404

Rio-Branco, grande estratégia e o poder naval

Autor(es): João Paulo Soares Alsina Júnio
R$ 45,00

 http://editora.fgv.br/rio-branco-grande-estrategia-e-o-poder-naval

"O Brasil atravessa crise profunda, cuja solução, ainda que parcial, demandará uma verdadeira reinvenção do País. Um novo olhar sobre a história representaria passo importante nessa direção: Rio-Branco, Grande Estratégia e o Poder Naval nos ajuda a refletir sobre o que fizemos de errado ao longo do nosso percurso histórico e os mitos do passado que nos aprisionam ainda hoje.
    
     Ao reinterpretar o legado de um dos emblemas do nacionalismo brasileiro, João Paulo Soares Alsina Jr. nos apresenta um barão do Rio-Branco muito distinto daquele difundido pelas narrativas oficialistas. O programa de reorganização da Marinha na primeira década do século XX - a mais importante iniciativa de incorporação de armamento naval da nossa história - serve de pano de fundo para a inquirição sobre a visão de mundo do Patrono do Itamaraty.
            O brilhante estudo desenvolvido pelo autor nos revela um estadista pragmático, realista, profundamente consciente de que, sem poder militar respeitável, o país estaria condenado à dependência e a uma posição subalterna no concerto das nações. Rio-Branco defendia a estreita simbiose entre diplomacia e defesa, voltada a permitir que o Brasil atuasse no plano internacional a partir de posição de força, jamais de fraqueza.
            Como decisiva contribuição à historiografia sobre um dos raros heróis nacionais brasileiros, este livro está destinado a se tornar marco incontornável sobre a obra do nosso diplomata-mor e o papel desempenhado pelas Forças Armadas na história do País."


DEPOIMENTOS SOBRE RIO-BRANCO, GRANDE ESTRATÉGIA E O PODER NAVAL

Ao mostrar, com precisão analítica e factual, os equívocos do oficialismo historiográfico acerca do barão – que o vê como um pacifista que só esgrimia argumentos históricos e geográficos -, o trabalho de Alsina Júnior está destinado a ser um ponto de inflexão nos estudos sobre a vida e a obra do nosso maior diplomata.
Carlos Ivan Simonsen Leal, Presidente da Fundação Getúlio Vargas
João Paulo Alsina Jr. alerta para um tema que continua válido hoje, como ao tempo de Rio Branco: o desenvolvimento em paz e tranqüilidade precisa do respaldo de poder militar que o garanta. Rio Branco entendia assim, para o bem de nossa história.
Mario Cesar Flores, Almirante-de-Esquadra
João Paulo Alsina Jr., o mais destacado diplomata-acadêmico de sua geração, lustra o legado de Rio Branco. Diplomatas sim são importantes para um país. E sobretudo para o Brasil, pois foi sob a égide do maior de todos que se construíram as nossas fronteiras. Por sinal, o Brasil deve ser o único país no mundo que tem um diplomata como Herói da Pátria. O novo e instigante trabalho de Alsina Jr. honra as tradições semeadas pelo nosso patrono.
Hélio Vitor Ramos Filho, Embaixador
(...) um estudo impressionante (...) Baseado em pesquisa exaustiva João Paulo Alsina Jr. demonstra que o Barão do Rio-Branco (...) apoiou o rearmamento naval (...) para atingir, a um só tempo, os objetivos diplomáticos que proporcionaram a atual conformação geográfica do país e a posição proeminente obtida no equilíbrio regional de poder no início do século XX. No Brasil contemporâneo, o mantra oficial de que "o Brasil não tem inimigos" tanto interpetra equivocadamente a realidade da diplomacia esposada pelo Barão do Rio-Branco quanto demonstra que o Brasil ainda não está pronto a assumir a liderança regional, sem falar na global, que se esperaria de um país com tamanho, população e riqueza equivalentes.
Thomas BruneauProfessor Emérito, Naval Postgraduate School, Monterey, California.
O Brasil sempre foi um país pacífico que resolveu os seus conflitos pela via diplomática. (...) Ou não? Com profundidade erudita e fervor nacional,  Alsina Jr. demonstra que o Barão não agia por principismo nem juridicismo abstrato. (...) Foi esse pragmatismo que o levou a desenvolver instrumentos de hard power, entre os quais o estratégico poder naval. Combinando a análise histórica das políticas externa e de defesa do Brasil, este livro é fundamental para perceber a brecha que separa o discurso oficial da realidade dos fatos.
Andrés Malamud, Professor de Ciência Política,  Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa