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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 19 de janeiro de 2019

O que eu penso do Brics? O mesmo que pensava em 2014 - Paulo Roberto de Almeida

O que eu pensava do Brics em 2014? 
Continuo pensando o mesmo
Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: revisão de trabalho; finalidade: esclarecimento público]

Em 2014, depois de ter feito dois ou três trabalhos sobre o Brasil no Brics – o que me rendeu profunda e acrescida inimizade do antigo chanceler lulopetista –, eu fui convidado por um acadêmico português a colaborar num livro em preparação sobre esse grupo meio esquizofrênico (sim, penso isso dessa coisa). Hesitei um pouco, pois eu me encontrava há mais de dez anos numa espécie de exílio interior, para não dizer ostracismo completo, na diplomacia, trinta anos depois de uma carreira razoavelmente bem sucedida, a não ser por essa “pedra no meio do caminho” que representou o regime lulopetista, que por boas e más razões me deixou no deserto durante TODA a duração dos governos mais corruptos que jamais ocuparam o poder no Brasil.
Acabei aceitando, e escrevi o trabalho aqui referido, disponível livremente aos interessados:
2600. “Brasil no Brics”, Hartford, 16 Abril 2014, 33 p. Contribuição a obra sobre o Brics do ponto de vista do Brasil. Publicado In: Jorge Tavares da Silva (ed.), Brics e a Nova Ordem Internacional (Casal de Cambra: Caleidoscópio; Aveiro: Mare Liberum, 2015, 320 p.; ISBN: 978-989-658-279-1; p. 71-115). Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10200076/108_Brasil_no_Brics_2015_).

Agora, em janeiro de 2019, ratifico, confirmo, reafirmo, apoio, continuo sustentando TODOS os argumentos por mim defendidos nesse ensaio, sobretudo os de natureza política e diplomática. O texto mereceria, obviamente, alguma atualização quanto aos dados, pois muita coisa mudou desde 2014, não exatamente em relação ao que eu penso – pois continuo pensando exatamente igual – mas em relação à própria dinâmica dos Brics e às mudanças ocorridas no sistema mundial – sobretudo nos últimos dois anos – e no Brasil, pois tivemos um processo de impeachment, um governo de transição (que os lulopetistas chamaram sempre de "governo golpista"), e agora estamos ao início de um novo governo, supostamente oposto em quase tudo aos governos anteriores, mas que parece manter, fundamentalmente, a mesma postura quanto ao Brics. Eu não, eu continuo mantendo a minha posição e ela está claramente expressa na última seção desse trabalho, que os interessados podem acessar no link fornecido: https://www.academia.edu/10200076/108_Brasil_no_Brics_2015_.

Quanto à atualização, eu faria apenas duas, uma relativa aos "regimes" políticos do Brasil, a outra em relação à matriz SWOT relativa ao Brasil, justamente em função dessas mudanças (que aliás ainda não vieram). Apresento abaixo essas duas atualizações (indicadas em vermelho, para destacar a diferença em relação a 2014).

Quadro 1
Constituições e regimes políticos no Brasil, 1824-2019
Constituições
Tipo de instituição
Características
1a.: 1824
Outorgada; longa duração, 65 anos de regime parlamentar
Pedro I dissolve a Constituinte; quatro poderes, inclusive o Moderador, exclusivo do imperador, podendo dissolver a câmara; voto censitário;
2 a.: 1891
Promulgada; emendada, eleições fraudadas
Regime republicano federativo, autonomia dos estados; presidencialismo de 4 anos, sem reeleição; voto restrito aos alfabetizados; Estado laico;
3 a.: 1934
Promulgada; representação corporativa
Centralização, nacionalismo econômico; direitos sociais e laborais; direito de voto às mulheres; analfabetos continuam excluídos;
4 a.: 1937
Outorgada; fecha o Congresso
Autoritária, inaugura o Estado Novo: fechamento do congresso, dissolução dos partidos; centralização
5 a.: 1946
Promulgada por Assembleia Constituinte
Tensão entre a maioria presidencial e o Congresso, de base proporcional, fragmentado pelo aumento do número de partidos e coalizões heteróclitas;
Emenda: 1961 Plebiscito: 1963
Regime parlamentar; Volta ao presidencialismo
Crise política de substituição presidencial contornada por um governo de gabinete: instabilidade; plebiscito opera retorno ao presidencialismo; novas crises;
Golpe 1964; Ato Institucional
Primeiro Ato (sem número), seguido de outro: 1965
Regime autoritário iniciado com golpe militar em 1964; novo ato dissolve os partidos políticos; eleições indiretas para presidente e governadores;
6 a.: 1967
Outorgada; Comissão Juristas
Decretos-leis diretamente aplicáveis; eleições para presidente por colégio eleitoral: generais presidentes
Emenda: 1969
Outorgada por Junta Militar
Novas restrições no sistema político, por meio de atos institucionais outorgados pelo regime militar;
7 a.: 1988
Promulgada: 315 artigos, 573 parag.
Retorno ao regime democrático, descentralização; voto do analfabeto; extremamente prolixa;
Plebiscito consultivo: 1993
Tipo de regime e forma de governo
Previsto nas disposições transitórias da CF-1988: confirma governo republicano e presidencialismo;
Emenda: 1997
Reeleição
Cargos majoritários; mandato presidencial de 4 anos.
1988-2018
100 emendas à CF
Acréscimos e correções; detalhamento excessivo.
2002
Eleição de Lula: PT chega ao poder
Pode ser caracterizado como mudança de regime em função das muitas transformações que se seguiram.
2003-2010
2 mandatos de Lula com apoio popular e muita corrupção
Início do regime mais corrupto da história do Brasil, populista econômico, socialmente distributivista e destrutivo no plano político-institucional; sucesso.
2011-2016
Mais do mesmo: inépcia, corrupção
Eleição e reeleição de Dilma Rousseff: sucessora e destruidora dos governos do PT, por incompetência.
2016-2018
Impeachment: fase de transição
Governo reeleito (2014) do PT é denunciado por casos de corrupção; impeachment, eleições divisivas.
2019-202?
Governo de direita: Jair Bolsonaro
Início de um governo declaradamente de direita: mudanças anunciadas, ainda não implementadas.
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida (atualizada até 19/01/2019).


No que se refere à matriz de “fortalezas” e “fraquezas” do Brasil, nos quadros doméstico e internacional, muito pouca coisa mudou, do lado dos fatores objetivos de suas vantagens comparativas e das várias “desvantagens” auto-infligidas, sobretudo no campo da produtividade e da educação, que continuam – e aparentemente continuarão por muito tempo ainda – medíocres, com chances mínimas de alterações positivas nos próximos anos, a menos de uma mudança radical na mentalidade das elites, que são elas mesmas de uma mediocridade exemplar. Eis o meu quadro ligeiramente modificado:

Quadro 2
Quadro SWOT para o Brasil
Ambiente
Fatores Positivos
Fatores Negativos




Interno
Grande território; diversidade e abundância de recursos naturais; fontes diversificadas de energia (renováveis, em grande parte); bônus demográfico (mas menor proporção de ativos); regime democrático; expansão da economia de mercado; população receptiva à globalização; talentos individuais disponíveis; unidade cultural, mesma língua, sem conflitos religiosos; federalismo atuante; relativa estabilidade econômica; riscos sociais moderados; flexibilidade adaptativa da população e grande tolerância nos costumes e nos modos de vida.
Exploração predatória dos recursos naturais; baixa capacidade tecnológica de transformação; matriz energética sendo “poluída” por novos recursos em fósseis; mercado interno ainda de baixa renda; crescimento acelerado do número de velhos; altos custos previdenciários e de gastos com saúde; sistema político disfuncional e democracia de baixíssima qualidade; altos níveis de tributação regressiva; aumento da delinquência, dos particularismos culturais, raciais e de gênero; gastos públicos elevados; baixa produtividade pela má educação; burocracia estatal ineficiente.




Externo
Enorme capacidade para expandir a oferta de produtos básicos, sobretudo alimentares; agricultura capitalizada, produtividade garantida por P&D e administração conectada a mercados; lições das crises financeiras e da dívida externa trouxeram menor dependência e altas reservas internacionais; atração de IED, pelas oportunidades de mercado; mão-de-obra sendo formalizada; prêmio de risco reduzido e depois aumentado, rebaixado no grau de investimento; diplomacia profissional qualificada, convivendo com diplomacia partidária e eventuais intrusões amadoras.
Uso extensivo, mais do que intensivo, dos recursos naturais; políticas setoriais (industrial e comercial) incompatíveis com aumento da oferta externa; má infraestrutura de exportação; baixo coeficiente de abertura externa; poupança interna insuficiente; oferta externa de baixo valor agregado, baixa elasticidade; mão-de-obra protegida, cara; baixa competitividade externa; inserção reativa na globalização; volatilidade das políticas econômicas externas, defensivas; política externa: da esquerda à direita, com liberalização comercial e abertura econômica externa.
Elaboração: Paulo Roberto de Almeida, 03/03/2014 e revisão em 19/01/2019.

No que se refere, finalmente, a meus argumentos políticos, em relação às posturas dos governos brasileiros no campo da política externa, e especificamente no tocante à chamada “diplomacia Sul-Sul”, confirmo inteiramente meus argumentos de 2014, como expressos nas duas últimas seções desse meu trabalho, como transcrevo seletivamente a seguir:

(...)
5. A política externa brasileira desde 2003 e sua atuação no âmbito do Brics
Como típico partido esquerdista latino-americano, a “política internacional” do PT sempre foi marcada por um anti-imperialismo instintivo e por um antiamericanismo infantil, o que sempre o colocou do lado dos adversários do grande irmão hemisférico, quaisquer que fossem eles. Também fazia parte dessa postura um apoio de princípio às “lutas dos povos oprimidos” contra as “potências hegemônicas”, e um compromisso de forma e de substância com os autoproclamados regimes progressistas ou de esquerda, na região e fora dele. Deve-se igualmente considerar os laços íntimos mantidos por vários dos seus dirigentes, saídos da guerrilha contra o regime militar, com os dirigentes cubanos, além de diversos outros vínculos cultivados com partidos e movimentos de esquerda ao redor do mundo, mesmo quando fossem ditaduras que de outro modo sufocavam os direitos dos trabalhadores que o partido dizia defender no Brasil.
Antes mesmo de assumir o poder, Lula e o PT já prometiam conduzir uma política externa alinhada com essas teses típicas dos movimentos esquerdistas dos anos 1960 e 70, mas que tinham sido restauradas e colocadas sob um novo formato depois da queda do muro de Berlim, entre outros mecanismos através do Foro de São Paulo, criado em 1990, sob a iniciativa aparente do PT, mas de fato controlada totalmente pelos dirigentes comunistas cubanos. Tendo visitado a China um ano antes de sua vitória eleitoral de 2002, Lula prometia estabelecer, de modo preventivo e unilateral, uma aliança estratégica com a República Popular, que ele imaginava que viria a ser o grande parceiro das causas políticas internacionais do PT no governo. Aliás, antes mesmo de se instalar no comando do Estado, Lula já movimentava a diplomacia brasileira em apoio a seu amigo Chávez, que enfrentava grandes dificuldades com a oposição política a seu modelo socialista, requerendo, e obtendo, do governo FHC um navio inteiro carregado de combustíveis, para romper uma longa greve dos funcionários da companhia estatal venezuelana de petróleo. Não admira, assim, que todas as demais iniciativas diplomáticas de seu governo tenham sido no sentido de apoiar esse tipo de regime, na região e no mundo, e de se contrapor, numa linha coincidente com o regime comunista cubano, à maior parte das políticas inspiradas ou sustentadas pelos Estados Unidos, na região ou alhures (como no caso da invasão do Iraque, por exemplo).
O primeiro mandato do presidente Lula foi marcado, no plano externo, por seus esforços intensos para criar mecanismos exclusivamente sul-americanos de coordenação política – os quais resultaram na criação da Unasul, embora não no formato talvez desejado pela diplomacia do seu governo – e por iniciativas tomadas no âmbito da chamada diplomacia Sul-Sul: criação do grupo Ibas, as cúpulas presidenciais entre sul-americanos e chefes de Estado e de Governo dos países árabes e africanos, além da busca de parcerias estratégicas com um número seleto de atores “não-hegemônicos”, tidos como suscetíveis de responder a acenos no sentido de “mudar a relação de forças no mundo” e de criar uma “nova geografia do comércio internacional”. O mesmo determinismo geográfico marcou a maior parte de suas viagens ao exterior, repetidas dezenas de vezes no contexto sul-americano e uma dúzia de vezes em direção do continente africano, além dos parceiros estratégicos na Ásia e em outras regiões.
As iniciativas tinham como propósito reforçar o atingimento dos três principais objetivos diplomáticos do governo Lula, como tais proclamados desde o primeiro dia do seu primeiro mandato: a) o primeiro e o mais obsessivo era o de conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU (pretensão, aliás, que nunca figurou nos documentos políticos do partido, tendo sido mais bem impulsionados pelos diplomatas que serviam ao seu governo); b) reforçar e ampliar o Mercosul, fazendo dele o núcleo de um espaço econômico integrado na América do Sul, e secundariamente uma espécie de fortaleza antiamericana nos planos político, comercial e estratégico; c) concluir as negociações comerciais da Rodada Doha, num sentido favorável às teses brasileiras, ou seja, obter uma ampla liberalização dos mercados agrícolas (o que sempre figurou na agenda da diplomacia profissional), ao mesmo tempo em que se afirmava a necessidade (já em consonância com a ideologia econômica do partido) de preservar a “soberania econômica” do país e assegurar “espaços de liberdade para a tomada de decisões sobre políticas nacionais de desenvolvimento” (Almeida, 2012).
O projeto de se constituir o Bric “diplomático” sequer entrou em cogitação durante o primeiro mandato de Lula, embora a sigla estivesse “à disposição” desde 2001 e que as relações com seus integrantes designados já estavam sendo impulsionadas nos planos bilateral e plurilateral. Com efeito, paralelamente a essa consolidação das parcerias estratégicas (previamente definidas), a diplomacia de Lula deu enorme importância, durante o primeiro mandato, às ações desenvolvidas no âmbito do Ibas, embora com objetivos mais vinculados ao desenvolvimento e a cooperação trilateral – ademais de certa coordenação na agenda multilateral – do que propriamente à grande ambição de estabelecer uma competição com o grupo hegemônico no ordenamento mundial tradicional. A ideia do Bric foi amadurecendo lentamente, à medida que o bloco virtual recebia a atenção dos investidores internacionais, a partir, justamente, dos fatores selecionados na sua atratividade de origem: as oportunidades de retornos ampliados com base nas dimensões demográficas e nas dinâmicas de mercados em crescimento rápido. O Brasil não se caracterizava especialmente por taxas elevadas de crescimento econômico, tanto quanto um ambiente de negócios desimpedido era apenas parcialmente válido no caso do Brasil, mas a forte personalidade de Lula, e sua ativa diplomacia, compensavam os magros resultados apresentados pelo país em termos de crescimento e de abertura aos investimentos.
Quando a iniciativa finalmente frutificou, já no segundo mandato de Lula, com a plena aceitação do acrônimo Bric e sua rápida apropriação política pelos chanceleres da Rússia e do Brasil, a diplomacia do governo Lula se movimentou rapidamente para consolidar o que, até então não era apresentado nem como grupo, nem como bloco, mas como um simples foro de conversações e de convergência política em direção de objetivos comuns no plano da agenda mundial. Essa convergência, justamente, se revelou mais complicada do que as promessas iniciais. Diferentemente do Ibas, mas animado por propósitos semelhantes, os quatro membros do Bric, no que se refere à sua primeira agenda de trabalhos, em nível ministerial, buscavam uma coordenação para um posicionamento comum em relação a diferentes temas em debate no cenário mundial, em especial no terreno econômico, que era o elemento pelo qual eles foram distinguidos pelo economista do banco de investimentos que propôs a sigla, ou seja, a capacidade de serem grandes mercados emergentes, suscetíveis de acolher oportunidades de ganhos ampliados para os investidores globais.
Para a diplomacia de Lula, os objetivos principais eram de natureza política, a exemplo do não obscuro e pouco discreto desejo de conseguir uma cadeira permanente no CSNU. Nesse terreno, não houve, porém, unidade de propósitos no Bric no tocante à reforma da Carta da ONU e à ampliação de seu Conselho de Segurança, para a grande frustração dos dois candidatos a cadeiras permanentes, o Brasil e a Índia. Os quatro Brics tampouco obtiveram perfeita coordenação econômica no que se refere a temas inscritos na agenda das reuniões técnicas, ministeriais ou de cúpula do G20 financeiro, entre eles o da reforma das instituições de Bretton Woods ou as medidas a serem adotadas com relação a questões sensíveis para certos países, mas de interesse de alguns membros do Bric, como por exemplo o da chamada “guerra cambial”, terreno no qual nunca foram registrados resultados tangíveis, inclusive em virtude de uma oposição não coincidente dos dois membros mais poderosos do G20, os EUA e a China. Essa coordenação parece se afigurar ainda mais problemática a partir da incorporação, um ano depois da primeira cúpula, da África do Sul, com o que o grupo passou a ser conhecido como Brics. O Brasil não era, a princípio, favorável a essa nova adesão, preferindo preservar uma diferenciação do Bric em relação ao Ibas, mas teve de se dobrar aos interesses da China nesse particular. (...)
(...)
Independentemente dessas contradições em questões tópicas ou em temas setoriais, é um fato que a diplomacia do PT se sente mais à vontade no âmbito do Brics do que no diálogo com as potências do G7, embora o primeiro grupo tenha tido um desempenho modesto na promoção de uma agenda alternativa à oferecida pelos países avançados, mais concentrados na liberalização ampliada dos mercados, na defesa de regras mais estritas para propriedade intelectual e para investimentos e fluxos financeiros, e em meio ambiente, do que nas questões do desenvolvimento, do acesso à tecnologia e na abertura (mas seletiva) dos mercados agrícolas, como pretendem os países em desenvolvimento, em primeiro lugar o Brasil, a Índia e a África do Sul. Dentre os temas do G20 financeiro, tem havido certo consenso no seio dos Brics – exceto pela questão cambial – quanto à reforma de foros e instituições dessa área, como o poder de voto nas organizações de Bretton Woods, bem como a preservação da soberania nacional nos fluxos financeiros (como controles de capitais e intervenções cambiais, por exemplo). Esta é, provavelmente, uma das poucas áreas em que pode existir convergência entre os Brics, a despeito de diferenças notórias em várias outras.
De fato, os Brics possuem, na economia mundial, um peso bem maior do que o seu poder de voto conjunto nas instituições de Bretton Woods, embora estas considerem outros critérios, que não apenas o PIB – como a participação no comércio e nas reservas internacionais –, para fins de cálculo do volume de cotas requeridas nas tomadas de decisão. Esta é provavelmente a razão essencial para que, por ocasião da cúpula de Fortaleza, realizada em julho de 2014, tenha sido aprovada a criação de um banco dos Brics (com capital autorizado de US$ 100 bilhões, subscrito à razão de 50%, dividido igualmente entre eles) e de um fundo contingente de reservas destinado a empréstimos emergenciais (pelo valor total de US$ 100 bilhões, com quase a metade integralizado pela China). A rigor, nenhum dos Brics necessitaria, por motivos estritamente econômicos, dos recursos dessas duas novas instituições, a menos que seja para contornar os requerimentos técnicos mais exigentes para os projetos que são financiados pelo Banco Mundial e para aceder a uma nova fonte de capitais não condicionados a políticas de ajuste no modelo do FMI; em ambos os casos, trata-se, fundamentalmente, de uma decisão política, que tem a ver com o prestígio internacional dos Brics, e com a utilização do banco para projetos de desenvolvimento em direção de países que talvez não possam ser adequadamente assistidos pelas instituições de Washington.
O poder econômico real e a capacidade financeira de alavancagem operacional desses dois novos instrumentos, que confirmam certa consolidação institucional do Brics, residem evidentemente na China, que deverá moldar a maior parte das regras de gestão e de mobilização de capitais segundo seus próprios interesses nacionais. De toda forma, vários países da América Latina – e um número expressivo deles na África – têm na China um grande, em muitos casos o maior, parceiro comercial, posição que vai se estendendo igualmente aos terrenos financeiro e de investimentos. Assim, seja no caso do Brasil, seja no de outros países, que buscam compreensivelmente apresentar a parceria com a China como constituindo um relacionamento igualitário, tanto a direção, quanto a forma e o conteúdo da agenda de relacionamentos são determinados em grande medida pelo país asiático. Tal realidade também se reflete no plano plurilateral do Brics.

6. Conclusões: o que busca o Brasil nos Brics?; o que deveria, talvez, buscar?
Esta é uma pergunta que não pode ser respondida com esse sentido unitário, ou nacional, que está subentendido pelo conceito de país (ou de Estado). Como é o caso de grande parte das, senão de todas as, iniciativas de política externa tomadas no âmbito da diplomacia brasileira entre 2003 e 2016, não se pode dizer, exatamente, que elas tenham sido concebidas por seu staff diplomático, ou que elas correspondessem a determinado consenso nacional em torno das opções escolhidas, das políticas adotadas, das ações empreendidas, em âmbito regional, bilateral, pluri ou multilateral. Não; elas são claramente o resultado de escolhas do partido hegemônico, superficialmente temperadas por alguns formalismos diplomáticos, mas profundamente impregnadas por conceitos, objetivos e metodologias diretamente produzidas a partir da Weltanschauung partidária do PT, expressando, basicamente, suas concepções políticas (em alguns casos, até, suas práticas semiclandestinas, que se desdobram paralelamente à ação do Estado brasileiro. Esta é uma constatação que pode ser feita a partir de uma análise do discurso e da prática da diplomacia brasileira entre 2003 e 2016, ainda que tenham sido elaboradas basicamente – por vezes até inteiramente – no âmbito institucional das relações exteriores oficiais, mas elas expressavam um profundo sentido partidário, como jamais ocorreu antes no Brasil.
É sob essa perspectiva que cabe interpretar a participação do Brasil do PT no Brics, bem como as modalidades adotadas para definir políticas puramente diplomáticas, ou de natureza econômica, ou ainda com certo sentido social ou cultural, conforme seja o caso dos temas na agenda. Seria possível conceber o Brasil no Brics sob um outro tipo de governo? Provavelmente sim, ainda que as escolhas, os discursos e as opções políticas e diplomáticas pudessem ser outros, parcialmente ou totalmente diferentes das iniciativas que foram sendo tomadas desde meados da década passada, e que se materializaram no tipo de participação que o governo do PT vem imprimindo à ação do Brasil no Brics. As alternativas às políticas efetivamente adotadas no Brics, eventualmente tomadas por um governo diferente – de inspiração liberal clássica, possivelmente, ou mesmo social-democrática da vertente reformista capitalista – talvez não fossem tão radicalmente diferentes quanto as preferidas por um governo declaradamente socialista (como ainda se pretende o PT), mas uma última reflexão sobre o sentido do Brics, o que ele representa no mundo, e sobre os países que o integram, pode oferecer uma plataforma conceitual para algumas reflexões conclusivas sobre o papel do Brasil no Brics.
A primeira constatação a ser feita é que o grupo, ou bloco, ou foro, é tão desigual, ou “assimétrico”, quanto parece ser o Nafta, o acordo de livre comércio da América do Norte, com a diferença que o Nafta aspira apenas a ser o que ele é, um acordo de livre comércio, e não um instrumento para a coordenação de posições no plano internacional. A China – como parece ser o caso dos EUA no Nafta – representa, de certo modo, “metade” dos Brics para os componentes mais relevantes desse grupo (economia, finanças, crescimento, investimento, etc.), ainda que Rússia, por um lado, e Índia e Brasil, por outro, tenham certo peso na conformação dos temas e formato das agendas dos encontros ministeriais e de cúpula, tanto quanto nos termos das declarações aprovadas. Esta é uma realidade que se coaduna com a presente fase de nova “guerra fria econômica”, em substituição à velha Guerra Fria geopolítica que existia na era bipolar (...). Pode-se dizer do Brics algo semelhante ao que Nixon havia dito ao ditador brasileiro, quando de sua visita a Washington em 1972: “Para onde se inclinar o Brasil, se inclinará a América Latina”. Exagerado, certamente, mas não é difícil concluir, igualmente, que o Bric dificilmente poderá escapar do que se pode chamar de uma enorme “sobredeterminação chinesa”.
A diplomacia do PT no governo procurou fazer do Brics uma grande alavanca de sua presença internacional, talvez como compensação por algumas frustrações no plano regional da América do Sul, onde sua liderança nunca foi acolhida de forma consensual; ao contrário, ela sofreu a oposição velada, mas concreta, da Argentina, bem como de outros países, mesmo aqueles considerados aliados no terreno das simpatias ideológicas, como poderia ser o caso da Venezuela ou da Bolívia. Embora a consulta e coordenação de posições nos Brics tampouco seja isenta de fricções e de interesses diferenciados, o grupo tem procurado mostrar ao mundo uma frente comum que busca se apresentar como uma alternativa à velha preeminência econômica e diplomática do G7 (que voltou ao formato anterior, em vista dos percalços da Rússia no G8, como resultado de suas ações no entorno imediato, como no caso da crise política da Ucrânia).
A questão relevante para a diplomacia brasileira, não suficientemente discutida seja no âmbito profissional do seu corpo de servidores do Itamaraty, seja no plano da opinião pública responsável (mídia, academia) ou da sociedade, de modo geral, é a de saber se as iniciativas anteriores do governo petista podem atender a todos os critérios, constitucionais inclusive, que deveriam pautar as relações exteriores do Brasil no âmbito multilateral e no quadro de suas relações bilaterais. Dois componentes importantes dentre o conjunto de valores e princípios pelos quais o Brasil se deve guiar em suas relações externas – mas regularmente e consistentemente “esquecidos” ou obscurecidos pelo Brics, em suas reuniões e declarações – são as dimensões dos direitos humanos e da democracia, temas que muito marcaram a sociedade brasileira na sua longa trajetória de saída do regime autoritário dos militares (1964-1985) para a igualmente lenta consolidação de sua democracia política, mas que é ainda muito frágil no respeito aos direitos humanos, ou a simples direitos elementares dos seus muitos cidadãos de condição social modesta. Um tipo de preocupação ainda válido em 2019.
Democracia e direitos humanos são moeda corrente nos encontros do G7, como de resto nos foros euro-atlânticos, de modo geral, mas são bem mais raros, se por acaso aparecem, nos encontros do Brics. Dos quatro integrantes originais do Bric, os dois ex-socialistas apresentam características autoritárias, resultado de um legado de séculos de tradição totalitária, e que ainda não evoluíram para democracias de verdade (e talvez demorem a fazê-lo). Os outros dois apresentam trajetórias democráticas mais ou menos consolidadas, ainda que com deficiências de funcionamento e de justiça social, mas também são as economias de mercados que mais se aproximam dos padrões capitalistas de organização. O quinto membro, já no quadro do Brics, emergiu há menos de uma geração de uma longa história de segregação racial e de Apartheid social, que ainda parecem pesar no seu processo de desenvolvimento e de construção de uma nova institucionalidade; no plano social, ele parece longe do ideal de uma sociedade inclusiva, de características multirraciais, como é, por exemplo, o Brasil.
O Brasil, de todos eles, era o que possuía as estruturas capitalistas mais avançadas, embora a China venha fazendo enormes progressos nessa direção, podendo ser considerada, atualmente, e sob certos aspectos, mais “capitalista” do que o próprio Brasil. No plano do seu ordenamento social, o Brasil ostenta a mais moderna dentre as sociedades do Brics: inclusiva, multirracial, religiosamente diversa e tolerante, e aberta a todos os influxos externos da globalização capitalista. O Brasil também parece ser a sociedade mais integrada – nos planos linguístico, cultural, étnico e, talvez, religioso – o que permite, em princípio, melhores formas de administração política, sem rupturas institucionais, com condições mais favoráveis para a continuidade de sua modernização. O grau relativamente avançado de democratização social – a despeito dos enormes defeitos de sua superestrutura política, excessivamente marcada pela corrupção – pode tornar mais lento o ritmo de crescimento econômico e os processos de adaptação aos novos ambientes globais, mas isso também pode contribuir para uma maior coesão em torno dos objetivos nacionais (...). Infelizmente, a educação de qualidade ainda não parece fazer parte desses objetivos nacionais prioritários, e é isso que torna mais lento o crescimento do Brasil, por representar uma enorme bola de ferro amarrada aos vetores dos ganhos de produtividade.
Pode o Brics, enquanto grupo, enquanto organização que parece tender a maior grau de formalização, contribuir para o avanço político, econômico, social, espiritual, de seus membros, individualmente, ou em conjunto? Talvez, mas conviria receber com algum ceticismo sadio tais pretensões, que não parecem fazer parte da “ideologia” dos Brics, se algo desse gênero existe como substrato “filosófico” aos objetivos políticos e diplomáticos desse novo foro de consulta e coordenação relativamente sui generis. Todo foro de consulta e coordenação política é, por princípio, positivo nas diversas dimensões sobre as quais ele atua, uma vez que reforça laços de cooperação e diminui, no mesmo plano de inserção internacional, os pontos de fricção que porventura possam existir entre eles, ou entre eles, como bloco, e outros membros da comunidade internacional. Mas cabe reconhecer igualmente que a aproximação entre os Brics, e sua atuação enquanto grupo, não se deu exatamente em torno de uma grande plataforma comum de objetivos e valores voluntariamente compartilhados – como podem ter sido, por exemplo, em suas respectivas esferas, a aliança atlântica e a integração europeia – mas em razão de ganhos políticos e diplomáticos, de cálculos de oportunidade que foram feitos pelos dirigentes dos países membros, em função de uma determinada conjuntura da ordem internacional e de alguns traços estruturais de suas próprias sociedades, de suas economias e de suas formações políticas. O que une os Brics, portanto?
O que parece unir todos os membros do Brics – ou pelo menos seus dirigentes atuais – numa mesma plataforma comum de ação são duas características contingentes, que talvez possam ser alteradas num futuro de médio prazo. No plano interno, eles parecem partilhar da crença que os poderes do Estado são capazes de corrigir ou, caso necessário, até a se contrapor a tendências ou ao fluxo “natural” dos comportamentos dos mercados. Em outros termos, existe uma aposta implícita no sentido de que seus próprios governos encontram-se em condições de influenciar decisivamente a ação dos agentes primários dos mercados, o que pode, talvez, ser verdade para suas respectivas empresas nacionais, mas se torna especialmente problemático no caso de grandes empresas transnacionais, em especial considerando-se a natureza da interdependência econômica contemporânea e dos circuitos da integração produtiva e comercial.
No plano externo, eles têm a pretensão de contrapor sua própria interpretação do que seja a democratização das relações internacionais e o tratamento da agenda mundial de assuntos correntes de forma diferente, em alguns casos oposta, ao que vem sendo oferecido pelas tradicionais potências do G7, consideradas, implícita ou explicitamente, como potências “hegemônicas”. A declaração emitida ao final do primeiro encontro de cúpula (2010) estabelece claramente que os chefes de Estado estão comprometidos com “o apoio a uma ordem mundial multipolar mais democrática e justa, baseada no primado do direito internacional, da igualdade, do respeito mútuo, da cooperação, na ação coordenada e na tomada de decisão coletiva de todos os Estados.” Além disso, eles “reiteram seu apoio aos esforços políticos e diplomáticos para resolver pacificamente as controvérsias nas relações internacionais”.
Trata-se, obviamente, de uma declaração tipicamente diplomática, que poderia ser igualmente subscrita pelos países membros do G7, ou por quaisquer outros grupos regionais. Observe-se, porém, a não referência a elementos que poderiam aparecer em declarações do G7, como por exemplo a defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas, ou de uma economia aberta à interdependência global. Como pode ficar evidente pelas ações dos governos atualmente responsáveis nos membros do Brics, nenhum desses países pode ser considerado, na superfície ou nos seus fundamentos profundos, uma democracia liberal de mercado, e todos eles partilham de uma crença comum que a economia deve, sim, ser submetida a regras de ordenamento, ou de regulação, que contenha tendências “naturais” de mercado que são, de uma forma ou de outra, consideradas “nefastas” do ponto de vista dos objetivos políticos ou sociais que seus dirigentes pensam dever implementar para salvaguardar seus objetivos enquanto Estados ativos na definição das políticas nacionais de desenvolvimento que seus líderes pensam impulsionar internamente. Algo pode mudar no Brasil, mas resta a ver...
Este parece ser o “código secreto” dos Brics, não explicitamente revelado em suas ações e muito menos em suas declarações, mas implicitamente compreendidos nas iniciativas diplomáticas que eles tomam, conjuntamente ou individualmente. Poderia ser diferente? Talvez, mas seria preciso supor outros tipos de governança na China e na Rússia, principalmente, e secundariamente na Índia e no Brasil, subsidiariamente na África do Sul, para conceber uma ação conjunta dos Brics de forma ligeiramente ou radicalmente diferente da que vem sendo adotada pelo grupo desde sua emergência formal enquanto foro de coordenação política e diplomática. No que se refere ao Brasil sob a hegemonia do Partido dos Trabalhadores e da figura de Lula, a participação do Brasil no Brics correspondia ao que vinha sendo feito em outras esferas e outros contextos, nos planos regional, bilateral ou multilateral. O sentido do Estado como “corretor” dos desequilíbrios dos mercados, o papel dirigente da vanguarda esclarecida a organizar a sociedade e guiar os passos dos cidadãos no emaranhado da burocracia estatal (mas controlada pelo partido), a suposição de que o mundo é composto por interesses conflitantes em face dos quais algumas iniciativas devem ser tomadas com algum sentido de exclusão – como numa concepção econômica equivalente ao chamado jogo de “soma zero” –, todas essas características cabiam no sentido da anterior ação diplomática tomada pelo governo do PT para sua participação no Brics e também para diversas outras iniciativas de caráter regional ou plurilateral. Cabe ver o que mudará.
O Brics, na verdade, era uma das poucas iniciativas adotadas, ou “incorporadas”, pelo governo do PT, não resultando diretamente de seu planejamento político, pelo menos não diretamente. Mas ele correspondia inteiramente ao que partido teria feito se lhe fosse dada oportunidade de conceber uma forma de ação diplomática que melhor expressasse sua concepção do mundo e determinadas iniciativas políticas no âmbito internacional. Se o Brics não foi feito para o PT, precipuamente, o PT se encaixou bem no espírito político e diplomático do Brics, pelo menos em seu formato político atual, com a “ideologia” que lhe é implícita nas declarações e ações de seus dirigentes.
Pode ser que o mundo esteja, efetivamente, no limiar de uma nova ordem internacional, que se pretende multipolar, democrática, respeitadora das soberanias nacionais, com total autonomia dos Estados sobre suas jurisdições respectivas (e algumas até mais além). Se este é o caso, a História de fato não terminou, e o mundo ainda conhecerá novas astúcias da razão a guiar os passos dos dirigentes políticos das novas potências emergentes. Será o Brasil uma delas? Talvez, mas a História justamente não terminou...
Referências seletivas (sem as demais remissões bibliográficas):
Almeida, Paulo Roberto de (2010). “O Bric e a substituição de hegemonias: um exercício analítico (perspectiva histórico-diplomática sobre a emergência de um novo cenário global)”, In: Renato Baumann (org.): O Brasil e os demais BRICs: Comércio e Política. Brasília: Cepal-Ipea, pp. 131-154 (disponível no link: https://www.academia.edu/5794579/086_O_Bric_e_a_substitui%C3%A7%C3%A3o_de_hegemonias_um_exerc%C3%ADcio_anal%C3%ADtico_perspectiva_hist%C3%B3rico-diplom%C3%A1tica_sobre_a_emerg%C3%AAncia_de_um_novo_cen%C3%A1rio_global_2010_).
_______ (2009). “O papel dos Brics na economia mundial”, In: Comércio e Negociações Internacionais para Jornalistas. Rio de Janeiro: Cebri-Icone-Embaixada Britânica em Brasília, p. 57-65; disponível in Academia.edu (link: https://www.academia.edu/5794475/078_O_papel_dos_Bric_na_economia_mundial_-_The_Bric_s_role_in_the_Global_Economy_2009_).
_______ (2006). “O papel dos Brics na economia mundial (corrigindo alguns equívocos de compreensão)”, disponível in Academia.edu (link: https://www.academia.edu/5902271/1691_O_papel_dos_BRICs_na_economia_mundial_corrigindo_alguns_equ%C3%ADvocos_de_compreens%C3%A3o_2006_).

Relação de Originais n. 2600; Publicados n. 1162.
[1a versão: Hartford, 16 de Abril de 2014;
2a versão: Hartford, 21 de Julho de 2014;
Revisão formal: 16 de Janeiro de 2015]

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Continuidade em 19/01/2019:
O que foi transcrito acima, retirado das duas últimas seções do trabalho de 2014-2015, ainda corresponde a muito do que penso, atualmente, embora eu talvez devesse efetuar uma revisão completa de alguns elementos relativos à participação do Brasil nesse grupo, assim como em demais foros e instâncias das relações exteriores do país, tal como essa participação pode se exercer a partir do novo governo, eleito em outubro de 2018 e inaugurado em 1/01/2019. Sinto entretanto não poder exercitar esses meus dotes analíticos, uma vez que ainda não estão fixados, de forma definitiva, em sua atual (janeiro de 2019) configuração, a real postura diplomática desse novo governo, que carece ainda de uma exposição mais clara, bem mais completa, e transparente, dos seus principais vetores de funcionamento, de seus princípios de funcionamento, de seus novos valores e prioridades para a política externa do país e para a operacionalização de sua diplomacia, aparentemente em fase de grandes mudanças organizacionais e até, se ouso dizer, “espirituais”.
Se, e quando, essa nova diplomacia for claramente exposta, em especial em relação ao Brics, terei prazer – o que considero até uma obrigação, mas puramente no plano intelectual, sem qualquer conotação funcional ou profissional – em expressar minha opinião sobre essas novas orientações, como aliás sempre fiz, em todas as etapas de minha já longa carreira diplomática, e bem mais do que isso, no decorrer de toda a minha vida acadêmica e intelectual. Até lá...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de janeiro de 2019


O sistema monetario internacional no século XX: book review

Ao colocar uma resenha de livro abaixo, permito-me remeter, novamente a meu artigo sobre o euro, elaborado no momento em que a moeda comum da Euroland era lançada fiduciariamente, 20 anos atrás.

O euro aos 20 anos; ensaio PRA quando de sua criação (2000)

Paulo Roberto de Almeida

Behind the Scenes at the Central Banks that Created our Modern Monetary System

[From the Summer 2018 Quarterly Journal of Austrian Economics. A review of How Global Currencies Work: Past, Present, and Future by Barry Eichengreen, Arnaud Mehl, and Livia Chitu, Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2018, 250 pp.]
The present volume is an engaging and intriguing account of how global currencies, such as British sterling and the U.S. dollar, have risen to global dominance in the international monetary arena, and how currencies such as the Chinese renminbi, for example, could follow in their footsteps. Divided into twelve chapters, the work focuses primarily on the international monetary history of the 20th century, complemented by a comparatively brief account of the 19th and 21st centuries. The narrower focus of the discussion in these chapters—and most of the data supplied in each chapter’s appendices—concerns the composition of foreign reserves, i.e. the balance between holdings of pounds and dollars, and later of yen, euro, and renminbi.
From this, the authors propose to tease out a few new factual discoveries and some implications for the future of the international monetary system. More precisely, they disavow the traditional theoretical view which argues that international currency status resembles a natural monopoly that arises organically from the benefits of using the currency of the most economically (commercially and financially) powerful country in international economic transactions, i.e. a monopoly due to network returns (p. 4), and winner-takes-all and lock-in effects.
Because, argue the authors, this ‘old’ model is not supported by much of the data from the 20th century, they propose a ‘new’ view arguing that multiple currencies can be used concomitantly on an international scale, such as the pound sterling and the dollar during the 1920s. These currencies played “consequential international roles” (p. 11) demonstrating that inertia and persistence due to network effects in international transactions are not as strong as previously thought. Their updated theoretical framework is borrowed from the process of technological development, where new technologies are adopted gradually by users and grow exponentially, thus using an analogy between the workings of international currencies and those of computer operating systems.
Eichengreen, Mehl and Chitu’s discussion also seems to revolve around the interplay between the political sphere and national monetary policies on an international scale, but this insight remains latent throughout their analysis. The authors focus rather on the technical aspects of international currency status and deliberately treat political and monetary matters as separate—in parts dismissing political matters completely.
Chapters 2, 3, and 4 contain a factually rich historical narrative of the origin and development of the holding of foreign reserves, particularly before and after the First World War. Scattered throughout are little gems useful to any scholar of monetary theory, like the fact that “foreign exchange reserves had accounted for less than 10 percent of total reserves in 1880, [but] accounted for nearly 15 percent in 1913” (p. 17).
In Chapter 4 the authors provide evidence of the currency composition of foreign exchange reserves in the 1920s and 1930s that best underpin their ‘new’ view: they find that the dollar overtook sterling as the international reserve currency in the mid-1920s, and not in the 1930s to 1940s as previously thought by monetary scholars. This proves that the sterling and the dollar shared, at the same time, the status of international currency. Contrary to the traditional view, then, international currency status is not subject to a natural monopoly.
To further explain how this came about, the authors show in subsequent chapters the great intervention efforts of the U.S. Federal Reserve to ‘support the market between 1917 and 1937’ (p. 69). The Fed’s heavy-handed approach to trade credit (chapter 5) and international bond markets (chapter 6) propelled the dollar to international currency status over a short period before its collapse during the Great Depression. However—and again disproving the theoretical model—the dollar recovered its status around the time of the Second World War and completely surpassed the British sterling, showing that the status of international currency is, once lost, not lost forever. Rather, it can be regained through the coordinated efforts of a powerful central bank, which can heavily benefit from engineering this rise to global currency status. Moreover, the authors argue, other countries benefit as well from not relying on one global lender of last resort, but rather on a network of lenders. Chapters 9, 10, and 11 discuss along the very same lines the rise and fall of the yen and the euro (with the euro crisis), and the future prospects of the Chinese renminbi, respectively.
Despite the great amount of historical information contained in this book, and the ample new data available to the authors, the volume falls short of the promise in its title. The narrative does not actually show how global currencies work in a comprehensive manner, but only how the global ascension of a currency can be traced back to the behind-the-scenes machinations of a central bank. As such, the subject could have been—and was—satisfactorily treated in a half dozen journal articles published by the authors between 2009 and 2016 (p. xv).
Nevertheless, it is still interesting to note that the geopolitical history of the world can be read through the history of monetary policy, or perhaps, that the history of monetary policy is mirrored in the history of geopolitics. As the authors themselves explain, the dominance of one country’s currency in international exchanges can indicate the “singular leverage” (p. 3) of that country’s central bank over international financial relations and international politics. More importantly, the reverse is also true: the dominance of one country in international politics is a good indicator of the international status of its currency throughout history.
However, because the authors choose to separate the political causes and implications of monetary policies from their economic aspects, the book ultimately provides a rather hesitant and unassuming analysis that makes it feel lackluster. Two questions arise that remain unanswered: Why do central banks benefit from their currency becoming global, if not by preventing domestic inflation from reflecting in their exchange rate and foreign reserves? And why do other countries benefit from having multiple lenders of last resort (multiple reserve currencies), if not by accomplishing the same disguise? Without an answer to these questions, or even an acknowledgment of their existence, the book appears to be a collection of great insights whose potential remains unrealized.
Let me briefly illustrate this by contrasting Eichengreen, Mehl, and Chitu’s analysis of the momentous change in international monetary relations at the Genoa Conference in 1922 with the one put forward by Mises and Rothbard.
The authors discuss in chapter 3 (From Jekyll Island to Genoa) the leading countries’ efforts to restore the gold standard in the 1920s whilst avoiding the deflationary repercussions following the period of great inflation during the First World War. According to the report of the financial commission,
the Genoa resolutions called for negotiating a convention based on the gold-exchange standard with a view to “preventing undue fluctuations in the purchasing power of gold”… The idea was to create an environment in which ‘credit will be regulated… with a view to maintaining the currencies at par with one another (pp. 38–39).
Eichengreen, Mehl and Chitu view this solely as an open effort of Great Britain to recover the lost dominance of the pound sterling, and the otherwise innocent desire to renounce the golden fetters of the pre-WWI gold standard. While discussing monetary competition between London and New York, they fail to pinpoint the nature of this competition, and avoid answering the question whether the new reserve system was “badly designed or badly managed” (p. 41).
In the system’s design lurked a fateful goal: the continued inflation of money supplies. Coordination efforts among central monetary authorities in reaching this goal was a first step toward abandoning the commodity money system. While the authors only seem to skirt around the issue, Rothbard (2010, pp. 94–95) explicitly argued that Great Britain wanted to establish
a new international monetary order which would induce or coerce other governments into inflating or into going back to gold at overvalued pars for their own currencies, thus crippling their own exports and subsidizing imports from Britain. This is precisely what Britain did, as it led the way, at the Genoa Conference of 1922, in creating a new international monetary order, the gold-exchange standard.
Mises had explained this need for policy coordination in a similar way:
Various governments went off the gold standard because they were eager to make domestic prices and wages rise above the world market level, and because they wanted to stimulate exports and to hinder imports. Stability of foreign exchange rates was in their eyes a mischief, not a blessing (2010a, p. 252).
If the various governments and central banks do not all act in the same way, if some banks or governments go a little farther than the others… those who expand [the money supply] more are forced to return to the market rate of interest in order to preserve their solvency through liquidity; they want to prevent funds from being withdrawn from their country; they do not want to see their reserves in… foreign money dwindling (Mises, 2010b, p. 77).
The crucial issue here, therefore, is not the prominence of one currency or another, but that this prominence was engineered to speed up the renunciation of the gold standard, and greatly enlarge the freedom of all central banks to inflate money supplies. The Genoa Conference had thus paved the way for the next steps: the Bretton-Woods conference of 1944 and the “closing of the gold window” in 1971. This process did not unfold without problems, but it created the auspicious environment for inter-governmental monetary agreements, and allowed the U.S. and other powerful nations to employ a “policy of benign neglect toward the international monetary consequences of [their] actions” (Rothbard, 2010, p. 101). This further removed many obstacles to creating “the ideal condition for unlimited inflation” (Rothbard, 2009, p. 1018)—a system mimicking a global fiat currency as closely as possible.
In this light, the desire to engineer global currency status for one nation’s currency is open to another, more somber interpretation, which highlights the pressing dangers of international fiat money. According to Mises (2010b, p. 254):
Under a system of world inflation or world credit expansion every nation will be eager to belong to the class of gainers and not to that of the losers. It will ask for as much as possible of the additional quantity of paper money or credit for its own country.
It is not usual in a book review to criticize the authors for failing to achieve something they did not explicitly set out to accomplish. And yet, How Global Currencies Work: Past, Present, and Future is wanting in both its depth and breadth of analysis. Nonetheless, the abundance of data on the composition of foreign exchange reserves the authors make available is impressive, and their accomplishment in this regard must be commended. The book is easy to read, even though largely technical in nature and much too narrow in its focus.
I remain hopeful that this project will be followed by another, more extensive investigation into the workings of global currencies. An alternative analysis of this data, focused on the differences in kind between commodity and paper money, would provide a much deeper and richer illustration of how global fiat currencies are made to work to serve the political purposes of one powerful nation or another. This would indeed illuminate much of the dark history of monetary policy over the last three centuries.
Dr. Carmen Elena Dorobăț is a Fellow of the Mises Institute and assistant professor of business and economics at Leeds Trinity University in the United Kingdom. She has a PhD in economics from the University of Angers, and is the recipient of the 2015 O.P. Alford III Prize in Political Economy and the 2017 Gary G. Schlarbaum Prize for Excellence in Research and Teaching. Her research interests include international trade, monetary theory and policy, and the history of economic thought.

A ideologia da anti-ideologia do governo - Deutsche Welle


Bolsonaro e a ideologia

A palavra aparece com frequência nas falas do presidente brasileiro e de integrantes do círculo mais próximo do governo. Em seu discurso, esconde-se também uma concepção de mundo. Mas afinal: o que é ideologia?

Bolsonaro no ato de posse do novo ministro da Defesa: militares reforçam ideia de governo "livre de ideologias"
Bolsonaro no ato de posse do novo ministro da Defesa: militares reforçam ideia de governo "livre de ideologias"
Ideologia: só no discurso de posse, o presidente Jair Bolsonaro usou essa palavra – ou suas variações – quatro vezes. Ele prometeu libertar o país "da submissão ideológica" e das "amarras ideológicas", combater a "ideologia de gênero" e conduzir uma economia "sem viés ideológico".
O termo é uma das marcas no discurso não só de Bolsonaro, mas dos membros do círculo mais próximo do governo. Na maioria das vezes, numa tentativa de desclassificar projetos políticos anteriores.
Foi assim, por exemplo, na última segunda-feira (14/01). Em seu perfil no Twitter, Bolsonaro, ao falar de sua ida ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, disse que estava feliz com a oportunidade de apresentar um Brasil "livre das amarras ideológicas".
Na boca de políticos governistas e do próprio presidente, o termo ganhou uma conotação negativa, que pouco remete ao seu real significado. Nas ciências sociais, ideologia é definida com uma forma de concepção de mundo (Weltanschauung) que se diferencia de outras ideias e projetos políticos.
"Por um lado, ideologias são sistemas de ideias, que enfatizam algumas poucas características e critérios para reduzir significativamente a complexidade social e, assim, explicar a realidade de uma maneira simplificada. Por outro lado, ideologias apontam para soluções, como certos males podem ser corrigidos, e dão impulsos para o que deve ser feito na política", afirma o cientista político Klaus-Gerd Giesen.
O professor da Universidade Clermont Auvergne, na França, diz que ideologia seria algo como o "reino dos ismos" – conservadorismo, liberalismo, anarquismo, fascismo, etc. "No cotidiano político, elas são aplicadas por partidos e outras organizações políticas que respectivamente querem pôr em prática uma ideologia", exemplifica.
Já o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser, da Universidade Diego Portales, no Chile, destaca que não há como conceber um mundo político sem ideologias. "Academicamente, todos os discursos são ideológicos", explica. Segundo ele, até tecnocratas, que tentam passar uma imagem de neutros, também são movidos por princípios ideológicos.   
"Os tecnocratas afirmam que há uma somente uma solução técnica para um problema. Porém, não é 100% verdade, pois há diferentes mecanismos para solucionar um problema e a ideologia também tem um papel decisivo nesta escolha", acrescenta Kaltwasser.
Desta maneira, explicam os especialistas, as ideias políticas de extrema direita de Bolsonaro e sua equipe também são uma forma de ideologia. Sua estratégia de tentar desclassificar os adversários políticos como aqueles que possuem tendências ideológicas é frequentemente associada ao populismo.
Esse discurso foi construído por Bolsonaro desde o início da campanha eleitoral, na qual ele aproveitou a oportunidade para se apresentar como uma alternativa à política tradicional, alvo da insatisfação popular desde os protestos de 2013, que culminaram com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Ao estigmatizar a ideologia de seus adversários nas urnas e discursivamente ocultar, assim, a sua própria, conseguiu transmitir a uma parte do eleitorado uma imagem de neutralidade e apartidarismo, apesar de ter sido deputado federal desde 1991.
Neutralidade como disfarce
Mesmo com a eleição, os ataques a projetos ideológicos diferentes dos seus continua presente no discurso de Bolsonaro, sendo reforçado nas últimas semanas por integrantes da sua equipe. Desde que assumiu o poder, o presidente não se cansa de repetir que fará um governo livre de "amarras ideológicas" e pretende combater "ideologias nefastas".
Segundo o cientista político Markus-Michael Müller, há paralelos temporais de como a ideologia foi rejeitada na época da ditadura e agora com Bolsonaro. Essa rejeição ocorre numa retórica discursiva que associa ideologia a tudo o que seria de esquerda e apresenta a direita como um projeto livre de concepções de mundo.
"Os militares se apresentavam como apolíticos e com um projeto neutro, que combatia um projeto ideológico de esquerda que vinha de fora e deveria ser excluído por não corresponder aparentemente aos valores da sociedade brasileira", afirma Müller, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.
No caso de Bolsonaro, essa estratégia discursiva de suposta neutralidade ganha força com a nomeação de tecnocratas para comandar ministérios, como o economista Paulo Guedes, na pasta de Economia, o ex-juiz Sérgio Moro, na Justiça, ou o general da reserva Fernando Azevedo e Silva, na Defesa. A retórica usada: nenhum outro governo buscou especialistas como ministros.
"Com essa estratégia tecnocrática, Bolsonaro tenta disfarçar para a população sua própria ideologia de extrema direita ou pelo menos fazer com que ela pareça moderada", afirma Giesen.
Para o cientista político Christoph Harig, da Universidade das Forças Armadas da Alemanha, em Hamburgo, essa luta contra inimigos imaginários e abstratos, como o muitas vezes evocado 'marxismo cultural', pode ser bastante vantajosa para o governo Bolsonaro.
"Em caso de não alcançar objetivos políticos concretos, a referência à luta contra 'o politicamente correto' ou contra a 'ideologia de gênero' pode ser suficiente para manter, pelo menos, uma parte de seus seguidores em modo de campanha e, assim, ao seu lado. Agora só resta esperar se isso será suficiente para alcançar os setores da população que votaram nele sem convicção", avalia Harig.

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Bolsonaro e a ideologia p.dw.com/p/3BQhb?tw via @dw_brasil - Excelente artigo da Deutsche Welle sobre a obsessão anti-ideológica do novo governo, que busca esconder uma ideologia de direita (ficou fora um grande ideólogo diplomata).
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Uma livraria para dormir dentro, no Pais de Gales

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