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sábado, 26 de janeiro de 2019

Redescobrindo inéditos (9): Progresso e Poder - Paulo Roberto de Almeida


PROGRESSO E PODER
Notas sobre os Condicionantes Históricos
do Desenvolvimento Social

Paulo Roberto de Almeida
Genebra, 16/05/1988

Todas as sociedades organizam-se em relação mais ou menos estreita com o seu meio ambiente, mas é nas chamadas sociedades primitivas que a "ditadura da natureza" é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é, dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes.
Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplo, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas, isto é, dotadas da mola propulsora do Progresso, que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessa sociedades uma determinada categoria de pessoas detém a capacidade de comandar outras pessoas e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica.
A apropriação de excedentes econômicos (exploração) produzidos pela classe trabalhadora e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário (dominação) sobre o conjunto da população parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados pela propriedade e pelo poder. A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante deve ser em seguida legitimada por algum tipo de racionalização,    que eles não podem ser mantidos pelo emprego constante da violência institucionalizada. Uma ideologia da dominação tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade estrutural.
Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, o Progresso assume principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro modo de produção inventivo, transformando o Progresso em rationale da vida econômica e social.
Embora o Progresso nem sempre seja qualitativamente aferível, ele pode ser quantitativamente mensurável, o que significa uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas.
Ao disseminar mercadorias e transformar ecosistemas, o Progresso cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. O Progresso cria igualmente desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também de marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos.
Nesse sentido, as relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente inter-classista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível inter-societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais.
A racionalização conceitual do Progresso histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o desenvolvimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building.
Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas para a idéia do Progresso. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, em primeiro lugar, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos os conceitos de "mão invisível", de "vantagens comparativas" ou de "laissez-faire " no plano econômico. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes de países eles mesmos submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do progresso material das sociedades envolvidas.  Mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial um grande fator de progresso histórico de sociedades mais atrasadas.
O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do Progresso nas formações dominantes. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao - e não efeitos do -  exercício da vontade imperial. A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas  dominadora.
A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.
A experiência histórica indica que o Progresso, em suas diversas formas materiais, emana sempre dos diversos centros de poder econômico, e a eles retorna indefectivelmente após ter cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema inter-estatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional: as sociedades ou nações que não conseguirem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a se tornarem meros objetos da História e não em seus atores.
O discurso realista, de que estas notas constituem um mero exercício, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política - num contexto interno ou externo - razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer porém de que ele constitui o fundamento último e a razão secreta da atuação da maior parte dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e Professor da UnB.
 [Genebra, 16.05.88]
Relação de Trabalhos nº 160.

Redescobrindo inéditos (8): Política externa de FHC (1994-95) - Paulo Roberto de Almeida

Dando continuidade à divulgação de antigos trabalhos (só os relevantes) que acabaram não sendo publicados, ou divulgados de alguma forma, faço esta postagem de uma matéria enviada de Paris para a revista Política Externa, no final de 1994, quando FHC tinha sido eleito, mas ainda não tinha tomado posse. Eu procurava antecipar quais seriam as linhas mestras da política externa de FHC, o que não era muito difícil, pois tendo sido chanceler, e ministro da Fazenda, ele tendia a seguir as grandes diretrizes da burocracia de Estado, ou seja, não se esperavam grandes novidades.
Ainda assim elas ocorreram, e eu devo agora acusar aonde errei, mas compreensivelmente, pois tudo indicava que manteríamos nossa tradicional postura relativa ao TNP, quando dois anos depois FHC resolveu aderir a esse instrumento "discriminatório", por ter feito um cálculo de custo e benefício e concluído que valeria, sim, retirar o Brasil da companhia dos "rogue States", onde estávamos, na companhia de Líbia, Iraque, Coreia do Norte e outros.
Mas, eu deixei uma janela aberta para mudanças nessa áreia. O que eu escrevi a esse respeito? Isto: 

"Um mês depois [abril de 1995], tem início em Nova Iorque a conferência sobre a não-proliferação nuclear, na qual os países que detêm atualmente o monopólio da arma atômica tentarão renconduzir indefinidamente o desigual e discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, concluído sob a égide dos EUA e da ex-URSS em 1968. O Brasil não é parte do TNP, já deu todas as garantias requeridas pela comunidade internacional através do Tratado de Tlatelolco (de âmbito latino-americano) e do Acordo Quadripartite (Brasil/Argentina/AIEA/ABACC) sobre salvaguardas nucleares, possui uma Constituição que impede o uso de armas nucleares e caminha para manter sua postura independente. Trata-se contudo de uma problemática extremamente complexa, não qual não seria de se excluir novos desenvolvimentos conceituais ou em termos de diálogo do Brasil com alguns dos atores principais nessa área. Lembre-se que a Argentina decidiu renunciar à sua antiga política de denúncia do TNP e prepara-se para ratificá-lo proximamente, de modo a participar da conferência."


O texto completo segue abaixo, divulgado pela primeira vez. Mas, menos de três meses depois, eu fazia um novo trabalho, também sobre a política externa de FHC, mas sobre sua "estrutura". Transcrevo esse outro trabalho in fine...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26/01/2019



A agenda internacional do Governo Fernando Henrique Cardoso: temas dominantes, linhas de continuidade

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais
Autor de O Mercosul no contexto regional e internacional
(São Paulo: Edições Aduaneiras, 1993)


A maior parte das análises de conjuntura, nos planos interno ou externo, costuma enfatizar a importância dos eventos ou processos que estão sendo objeto de debate ou apresentação através de uma utilização excessiva (e geralmente indevida) dos conceitos de crise ou de transição. Tal hábito nada mais revela senão a falta de imaginação de seu próprio autor, uma vez que, sob determinados aspectos, toda época pode ser considerada como sendo marcada por algum tipo de “crise”, assim como, sendo a ordem mundial instável como ela é, estará sempre em “transição” para um novo estado de equilíbrio ou algum outro tipo de situação.
Dessa forma, se pretendêssemos fazer uma típica análise de conjuntura sobre a agenda externa do Governo Fernando Henrique Cardoso, poderíamos dizer que ele assume a direção do País num momento em que o Brasil, a América Latina e o próprio mundo atravessam uma fase de grandes transformações – econômicas, políticas, sociais, ideológicas e culturais – e que se está assistindo à conformação de um novo cenário regional e internacional: estabilização econômica e abertura internacional no plano nacional, Mercosul e integração hemisférica no cenário regional, bye-bye GATT-good morning WTO no sistema do comércio multilateral, reforma da Carta da ONU e nova guerra fria no terreno da política internacional, information highway e vídeo interativo no plano cultural etc.
Nada de mais banal, entretanto, já que, ademais de enfrentar sua quota de dificuldades e de “crises” habituais, nossa época constitui, como qualquer outra e por definição, um período de “transição” entre a situação anterior, que lhe deu nascimento, e um novo estado de coisas, ainda embrionário e indefinido. Com o Governo de Fernando Henrique Cardoso não deve ser muito diferente: será mais um exercício da arte de administrar o possível num país vagamente surrealista situado a centro-leste do continente sul-americano, tentando reforçar a racionalidade econômica em meio a um sistema político-partidário em eterna transição para algo ainda mais indefinido, com o agravante do provável surgimento de múltiplas mensagens milenaristas num Brasil decididamente fin-de-siècle.
Mesmo assim, é possível afirmar que FHC inicia seu Governo num contexto interno e externo relativamente inédito para os padrões de transição presidencial no Brasil, com um cenário internacional sensivelmente modificado pelos elementos que se mencionarão a seguir e em condições internas raramente vistas nas últimas sucessões da história recente do Brasil. Para começar, FHC recebe o comando do País em meio a um processo de estabilização macroeconômica que ele mesmo começou, mantendo aliás muitos dos nomes que já tinham trabalhado com ele, seja no Itamaraty, seja no ministério da Fazenda. Releve-se, do ponto de vista político, o relativo consenso atualmente existente em torno da necessidade de eliminação de alguns dos entraves constitucionais remanescentes à uma maior inserção do Brasil na economia mundial, reduzindo-se, por exemplo, as áreas ainda vedadas ao investimento estrangeiro na mineração, na geração de energia ou nas telecomunicações.
Em qualquer hipótese, o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, ademais de prosseguir com o programa de estabilização e com o processo de crescente abertura internacional da economia brasileira, terá ainda de, no plano interno, continuar a gigantesca tarefa de reforma do Estado, única força social suscetível de, numa Nação relativamente anômica como o Brasil, impulsionar as enormes reformas estruturais de que ele necessita para deixar de ser um país industrializado pobre e tornar-se medianamente desenvolvido. Na área externa, não são menores os desafios, com uma agenda relativamente complexa e movimentada, composta de alguns processos em curso e de outros elementos novos e estimulantes, à altura da capacidade de uma equipe de profissionais experientes como os que assumem o Itamaraty.

As bases da política externa de FHC
Na área internacional, o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso possuirá certamente seus temas dominantes, composto de algumas linhas obrigatórias de continuidade política e algo de inovação conceitual e metodológica, conhecedor como ele é da teia complexa das relações internacionais e do próprio funcionamento do Itamaraty. Caberia com efeito lembrar que FHC ostenta em seu currículo não só o título de ex-ministro da Fazenda, mas igualmente o de ex-chanceler, cargo este para o qual encontrava-se naturalmente preparado em virtude de uma grande vivência internacional, do amplo conhecimento de línguas e da realidade mundial, dos muitos contatos nos meios acadêmicos, políticos e empresariais da América Latina e dos principais países desenvolvidos e de uma forte dedicação aos temas econômicos e de política externa durante seu mandato de Senador por São Paulo. Uma rápida consulta ao currículo do jovem cientista político, do exilado involuntário e do irrequieto pesquisador do CEBRAP e convidado de inúmeras universidades estrangeiras revelaria um verdadeiro “passeio”, com perdão da expressão, pelos centros da reflexão mundial em três continentes.
Durante a campanha eleitoral para a presidência, a política externa e as relações internacionais do País, de um modo geral, não foram usualmente objeto de polêmicas entre os candidatos. Mas, quando abordados, esses temas propiciaram um debate civilizado sobre a temática internacional, longe dos posturas geralmente simplistas defendidas cinco anos antes.  Embora alguns dos candidatos ainda insistissem em falar na criação de um “Merconorte” – em contraposição ao Mercosul em construção, geralmente percebido como beneficiando apenas os Estados do Sul –, numa total incompreensão do que seja uma união aduaneira, a política externa apresentou-se como um tema relativamente consensual no quadro dos debates então em curso. Isto se deu tanto em virtude das grandes transformações por que passou o cenário mundial desde 1989, como também pelo fato de ter o Brasil se engajado num processo de integração regional e assumido novas responsabilidades políticas internacionais, enviando forças de manutenção da paz em alguns teatros de conflito e passando a disputar um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. As empresas nacionais, por outro lado, já se tornaram, segundo a velha fórmula leninista e rosa-luxemburgueana, “exportadoras de capitais” e o País passou a ostentar uma já considerável colônia de expatriados voluntários.
Alguns dos conceitos-chave da campanha presidencial de FHC, tal como revelados em artigo publicado no Boletim da Associação de Diplomatas Brasileiros, manifestaram-se através das noções de “inserção competitiva no mundo”, de “vocação universal” do País, de “integração com a economia mundial”, de “regionalização aberta” e “globalização” e de “democratização das relações internacionais”.  Nessa contribuição ao periódico da ADB, o candidato do PSDB não deixou de lembrar que foi em sua gestão que foi lançada a iniciativa brasileira de uma “área de livre-comércio sul-americana”, sem exclusivismos, porém, já que as relações com os EUA, enquanto parceiro mais importante, são consideradas como prioritárias.
As principais vertentes da diplomacia brasileira foram definidas pela busca da democratização nas relações internacionais e pela defesa do multilateralismo econômico, com regras estáveis e transparentes. Nesse contexto, sua proposta de política externa se ajustava inteiramente às diretrizes por ele formuladas para o Plano de Estabilização econômica, identificado com a introdução da Unidade Real de Valor e com o lançamento do Real como nova moeda nacional. Com efeito, Fernando Henrique afirmava nesse artigo que “nossa inserção na economia global dependerá da estabilidade interna e da retomada do crescimento”. Ele proclamou ainda a necessidade de “promover ajustes estruturais” e de “manter a política de abertura para o exterior”.
Em outros termos, não deveria haver ruptura com a política externa tal como praticada tradicionalmente pelo Itamaraty, nem com as linhas básicas que passaram a orientar a política econômica, sobretudo em seus capítulos monetário, financeiro e comercial. Destaca-se, portanto, não só a postura aberta para as relações exteriores do Brasil, como sua vocação natural para o universalismo: “O Brasil é um país sul-americano, latino-americano e panamericano. Compartilhamos com a África nossas raízes étnicas, culturais e históricas e um destino comum de transformação do Atlântico Sul em um espaço econômico vivo de integração. Somos um país atlântico, mas temos vínculos crescentes com o Pacífico. Somos um país continental, mas não buscamos o fechamento, e sim a integração. Essas características nos permitem desenvolver alianças, coalizões e parcerias em nível global, procurando nichos de oportunidade em diversos quadrantes do planeta”.
Fernando Henrique também enfatizou a importância do embasamento interno da diplomacia brasileira: “Em qualquer hipótese, é fundamental que a diplomacia brasileira procure cada vez mais alicerçar-se em instituições internas democráticas e estáveis e, nessa ordem de pensamento, a interação permanente com o Congresso Nacional, com a universidade, a imprensa, os sindicatos e demais setores representativos, é fundamental para a elaboração das linhas de nossa política externa”. Na mesma linha do que pretende Lula, mas não com os mesmos objetivos, Fernando Henrique acredita que a “política externa deve estar intimamente vinculada com os interesses internos do País”, uma vez que ela “não é obra nem de homens, nem de instituições, isoladamente, mas do país e da sociedade”.
Seu programa de governo, apresentada no livro Mãos à obra Brasil, sintetizou em seis páginas as principais diretrizes de relações internacionais que ele se propunha impulsionar em seu Governo.  De início, a política externa é definida como “um instrumento de participação ativa do Brasil na construção da nova ordem internacional em formação e como suporte decisivo para o esforço de retomada em novas bases do desenvolvimento econômico e social”. Depois de reconhecer a competência da Chancelaria brasileira e o papel de um projeto de desenvolvimento para orientar sua ação, ele indica claramente quais são seus objetivos nessa área. “Ela deve voltar-se firmemente para reivindicar, no plano internacional, aquilo que nos propomos praticar no país: que se respeitem efetivamente as regras do mercado, com maior liberdade de comércio, maior concurso dos investimentos produtivos e maior acesso à ciência e tecnologia”.
Uma certa filiação conceitual com o pensamento de Araújo Castro e sua recusa em aceitar um congelamento do poder mundial – muito embora o contexto político do falecido diplomata fosse sobretudo o da dissuasão nuclear – transparece na seguinte passagem de seu programa: “O Brasil quer intensificar sua ação externa de modo a contribuir para que as normas do sistema internacional emergente estejam voltadas para atenuar desigualdades econômicas e sociais e não para congelar iniqüidades”.
Dentre o conjunto de onze diretrizes traçadas para a execução da política externa no Governo FHC, as seguintes merecem registro especial:
“• Ter presença atuante nos foros internacionais em que se discute a redefinição das regras de convívio entre os estados, defendendo o multilateralismo e uma maior participação no processo decisório internacional, particularmente no que se refere à ampliação do Conselho de Segurança da ONU.
 • Contribuir para a pacificação de conflitos, inclusive participando das operações de paz das Nações Unidas.
 • Consolidar o processo de integração regional (Mercosul), impulsionar os estudos e negociações para a criação da Área de Livre Comércio Sul-Americana – ALCSA e se esforçar para que a integração regional ultrapasse a dimensão econômica, de modo a fortalecer as instituições democráticas e os mecanismos de cooperação nas áreas da proteção ambiental e do intercâmbio educacional e cultural.
 • Ampliar a participação do Brasil nas negociações sobre o sistema econômico multilateral no âmbito da nova Organização Mundial do Comércio – OMC, incentivar a cooperação com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – OCDE e fortalecer nossa presença nas agências financeiras multilaterais...
 • Priorizar os estudos sobre (...) a eventual criação de zonas de livre comércio com outras macro-regiões econômicas do globo, especialmente com a União Européia, os países do Acordo de Livre Comércio da América do Norte – NAFTA e a África Austral.
 • Lutar contra as antigas e novas formas de protecionismo econômico e de monopólios do saber, que dificultem a participação dos países em desenvolvimento nos fluxos internacionais de comércio, de capitais e de ciência e tecnologia” (Mãos à obra Brasil, pp. 87-89)
Em resumo e levando em conta as orientações atuais da política externa brasileira (que ele mesmo encarregou-se de formular, lembre-se), pode-se dizer que FHC encontra-se inteiramente à vontade para atuar com perfeito conhecimento e no comando efetivo dos principais vetores das relações internacionais do Brasil, não procura atribuir à sua política externa nenhum rótulo simplificador, nem traça um programa radical de reformas conceituais ou instrumentais para a diplomacia profissional do Itamaraty. Conhecendo perfeitamente, e apreciando, o modo de funcionamento da Casa, ele certamente defende as doutrinas e princípios permanentes que fazem os méritos da diplomacia brasileira: “tradição, memória, estabilidade, previsibilidade, respeito a compromissos assumidos, proteção dos interesses nacionais, visão de futuro”.  Partidário de uma diplomacia ativa, ele tem consciência de que, para combater as imensas desigualdades sociais de que padece a Nação, todos os recursos externos devem ser mobilizados para acelerar o processo de desenvolvimento brasileiro, sem discriminações de origem ou xenofobia.

A agenda internacional do novo governo
Independentemente de diretrizes próprias, o novo Governo não poderá eludir alguns temas já colocados na agenda internacional, que a diplomacia brasileira se esforçará, obviamente, por administrar o mais possível em acordo com o interesse nacional. Vejamos rapidamente quais seriam os principais elementos dessa agenda internacional no curto e médio prazo.
No terreno da política econômica externa, o ano começa com a entrada do Mercosul em sua etapa de “união aduaneira flexível”, isto é, o pleno funcionamento de sua zona de livre comércio, a experiência certamente difícil de administração de uma união aduaneira parcial e o processo de convergência progressiva para uma Tarifa Externa Comum, com vigência plena em princípios do próximo século. A conferência intergovernamental de Ouro Preto, em 16 e 17 de dezembro de 1994, já definiu o novo espaço geoeconômico latino-americano como “personalidade de direito internacional” e desenhou-lhe instituições condizentes com os requerimentos atuais do processo integracionista. O salto para a supranacionalidade ainda não se deu, compreensivelmente aliás, tendo sido preservado o atual “modelo Benelux”, em contraposição com o que seria a entrada prematura em estruturas comunitárias do tipo “Tratado de Roma”.
No mês de junho, como a cada seis meses, os chanceleres e os ministros de economia do Mercosul deverão encontrar-se mais uma vez, oportunidade que poderá servir para aprofundar a discussão em torno das diferentes estratégias integracionistas que se oferecem aos subgrupos regionais latino-americanos em face das propostas hemisféricas lançadas no “summit” de Miami, realizado em 10 de dezembro de 1994. A chamada “Cúpula das Américas” lançou um ambicioso programa de cooperação e de “interdependência” econômica em escala continental que, se plenamente concretizado no horizonte 2005 (o que certamente não será o caso) poderia introduzir algumas linhas de clivagem em relação ao projeto Mercosul. O Mercosul estaria testando aí sua recentemente adquirida “personalidade de direito internacional”, que o habilita a falar de uma só voz em foros como o da OMC e frente a parceiros continentais e extra-regionais. Ainda que estejam estatutariamente obrigados a reunir-se apenas uma vez por ano, os Presidentes do Mercosul costumam comparecer a todas as reuniões de seu Conselho.
No terreno do comércio exterior, 1995 também assiste à substituição do GATT pela Organização Mundial do Comércio, instrumento valioso para a promoção dos objetivos de desenvolvimento de países como o Brasil, que têm no multilateralismo um dos meios de defesa de seus interesses em face do protecionismo aberto ou disfarçado de sócios mais poderosos. Estes, aliás, vêm recusando-se a dar à OMC os meios materiais necessários para que ela possa cumprir adequadamente seu papel de guardiã das “tábuas da lei” do comércio internacional, justificando antecipadamente talvez a adoção continuada de medidas unilaterais.
O mês de março assistirá, na Dinamarca, à conferência mundial de chefes de governo sobre o progresso social. O Brasil terá certamente algo a dizer, no “summit” de Copenhague, sobre o papel do crescimento sustentado na geração de empregos e na diminuição da pobreza, mas deverá estar igualmente disposto a ouvir alguns ensinamentos sobre a eliminação da miséria não-necessária. Em todo caso, os países ricos, confrontados com os fenômenos inéditos da exclusão social – os “novos pobres”, assustadoramente em número crescente – e da precariedade ocupacional, terão desta vez poucas lições a nos dar em matéria de justiça social.
No mesmo mês, os chanceleres do Grupo do Rio encontram-se com seus colegas europeus na França, país que assegura momentaneamente a presidência da União Europeia (agora com 15 membros), com a qual estão em curso diversos projetos de cooperação. A UE vêm entretanto reforçando seu instrumental protecionista e sua política de comércio dirigido, ao revisar por exemplo seu Sistema Geral de Preferências com a introdução de cláusulas ambiental e social que podem excluir o Brasil de algumas áreas de mercado a partir de 1998. No que diz respeito às relações da UE com o Mercosul, mais especificamente, se buscará avançar na concretização de um amplo acordo de cooperação econômica e de liberalização comercial. Resta apenas saber se a Política Agrícola Comum (a “loucura agrícola comum”, segundo a Economist) permitirá o acesso de alguns dos nossos produtos aos mercados comunitários: os “eurocratas” e os paysans da França certamente dirão que só em 2020, senão mais adiante. Os países do Mercosul, que ainda não criaram sua própria variedade de “mercocratas” e que possuem camponeses decididamente capitalistas, nunca foram tão abertos à entrada de bens, serviços e capitais do exterior, inclusive de alguns bons queijos franceses, devidamente subsidiados.
Um mês depois, tem início em Nova Iorque a conferência sobre a não-proliferação nuclear, na qual os países que detêm atualmente o monopólio da arma atômica tentarão renconduzir indefinidamente o desigual e discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, concluído sob a égide dos EUA e da ex-URSS em 1968. O Brasil não é parte do TNP, já deu todas as garantias requeridas pela comunidade internacional através do Tratado de Tlatelolco (de âmbito latino-americano) e do Acordo Quadripartite (Brasil/Argentina/AIEA/ABACC) sobre salvaguardas nucleares, possui uma Constituição que impede o uso de armas nucleares e caminha para manter sua postura independente. Trata-se contudo de uma problemática extremamente complexa, não qual não seria de se excluir novos desenvolvimentos conceituais ou em termos de diálogo do Brasil com alguns dos atores principais nessa área. Lembre-se que a Argentina decidiu renunciar à sua antiga política de denúncia do TNP e prepara-se para ratificá-lo proximamente, de modo a participar da conferência.
Em maio, as Nações Aliadas estarão comemorando o 50° aniversário do final da segunda guerra mundial na Europa. Tendo participado do esforço de liberação do continente do jugo nazista, no solo italiano, o Brasil deveria em princípio ser convidado para as festividades. Será mais uma oportunidade para se reafirmar nosso conhecido compromisso com a paz e o primado do Direito internacional e nosso desejo de colaborar com as operações de manutenção da paz da ONU (que aliás também comemora meio século de existência em outubro).
Junho e julho são meses repletos de conferências ministeriais e de chefes de governo envolvendo países desenvolvidos, entre elas a do G-7, a da OTAN (Bósnia again?), a da União Europeia (começo da preparação da conferência intergovernamental de revisão institucional de 1996) e da OCDE, esse “clube de países ricos” ao qual já aderiu o México e se prepara para fazê-lo a Coreia. Em seu programa de Governo, FHC manifestou seu desejo de “incentivar a cooperação com a OCDE”, propósito que vem sendo cumprindo através de nossa participação no “diálogo informal” mantido com as “economias dinâmicas não-membras” (eufemismo para os tigres asiáticos e alguns NPIs da América Latina) e nas atividades do Centro de Desenvolvimento, ao qual aderimos em abril de 1994. O cenário não deve alterar-se no curto prazo.
O segundo semestre não será menos intenso do que o primeiro, com destaque para a abertura dos debates na ONU sobre a possível reforma da Carta e a eventual incorporação de novos membros ao Conselho de Segurança.  Será uma excelente oportunidade para que a posição brasileira seja reapresentada pessoalmente pelo Presidente. Dada a complexidade e sensibilidade do tema é pouco provável que se tenha um encaminhamento rápido dessa questão, considerada prioritária pela diplomacia brasileira. O problema, no caso, não está com o Brasil, considerado “candidato natural”, mas com potenciais interessados em outras regiões do Sul, considerando-se ainda que não sobrevenha oposição irredutível ao ingresso da Alemanha e do Japão.
No intervalo, sem contar uma reunião sobre mudanças climáticas, a ONU promoverá mais uma conferência mundial sobre os direitos da mulher, desta vez em Pequim, tema sobre o qual o Brasil dispõe, como no caso da conferência do Cairo sobre a população, de uma postura avançada e equilibrada. No plano de suas relações com os países detentores de tecnologias sensíveis, o Brasil poderá ser convidado a ingressar no regime de controle da tecnologia de mísseis (MTCR), caso disponha até o final do primeiro semestre de legislação adequada aplicada ao comércio exterior de equipamentos de uso dual; em todo caso, o país já declarou, em fevereiro de 1994, sua disposição unilateral em aplicar plenamente as diretrizes formuladas no âmbito do MTCR.

O novo “realismo” na política externa
De um modo geral, FHC sabe que não há respostas simples a um conjunto de desafios externos que são basicamente comuns aos países em desenvolvimento: acesso a mercados e a novas tecnologias, inserção econômica internacional, captação de recursos externos para fins de crescimento, participação plena nas grandes decisões políticas e econômicas que afetam a comunidade internacional. As respostas a esses desafios não podem ser equacionadas com base apenas na manifestação da vontade nacional, por mais forte que ela seja. Elas requerem bastante consistência operacional, mas, também e sobretudo, capacidade externa de implementá-las, o que depende basicamente dos recursos globais de um país (econômicos, políticos, culturais e militares).
A superação de algumas dessas “lacunas de poder” depende, de certa forma, da implementação de um projeto nacional de desenvolvimento, o que confirmaria a política externa brasileira num papel supletivo dos grandes objetivos nacionais. Essa diplomacia do desenvolvimento parece corresponder, finalmente, aos princípios e linhas de ação que sempre guiaram a atividade do Itamaraty. O novo Governo do sociólogo e ex-Senador Fernando Henrique Cardoso representa, nesse sentido, um reencontro da comunidade acadêmica e da classe política com o estamento diplomático. A experiência histórica e a postura do Itamaraty apontam, em todo caso, para uma integração soberana do País à ordem econômica e política internacional. A acadêmia será certamente chamada a opinar a esse respeito. Cabe, de certa forma, à classe política dar ao Governo e à Casa do Rio Branco os meios de implementar a agenda internacional do novo Governo.


[Paris, PRA/470: 23/12/1994]


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O outro trabalho referido é este aqui: 

473. “A Estrutura das Relações Exteriores no Governo Fernando Henrique Cardoso”, Paris, 16 janeiro 1995, 3 p. Artigo sobre o processo decisório em política externa no novo Governo. 

A ESTRUTURA DAS RELAÇÕES EXTERIORES
NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Paulo Roberto de Almeida

A reforma administrativa introduzida pela Medida Provisória de 2 de janeiro de 1995, que definiu a estrutura do Poder Executivo, não contempla mudanças substanciais no perfil da máquina estatal que servirá ao Governo Fernando Henrique Cardoso. Excetuando-se a extinção dos ministérios da Integração Regional e do Bem Estar Social, e de alguns órgãos subordinados (como a LBA e o Centro para a Infância e a Adolescência) ou a reorganização de algumas outras agências federais, o Poder Executivo continuará a funcionar essencialmente como ele vinha fazendo antes.
Não se chegou, assim, a implementar nenhuma redução drástica do número de ministérios: eles são 20 (mas lembre-se que eles tinham chegado a 27 sob o Governo Sarney), aos quais se acrescentam algumas secretarias e órgãos de assessoramento direto do Presidente. Confirmou-se inclusive a estabilidade do setor militar, mas o Estado-Maior das Forças Armadas passa doravante a integrar a Presidência da República. Sem entrar nos méritos ou desvantagens da criação de apenas um ministério militar (o da Defesa, com secretarias subordinadas para cada uma das Armas), cabe simplesmente observar que tal medida poderia trazer ganhos operacionais e políticos, já que supostamente se estaria caminhando para a formulação de uma verdadeira doutrina militar integrada, no quadro de uma mesma concepção estratégica global e em perfeita sintonia com uma política externa nacional. As razões que impedem tal esforço de racionalização administrativa e política, amplamente desejável do ponto de vista de nossa inserção internacional, não são provavelmente motivadas por considerações de ordem “externa”, mas se situam no âmbito propriamente interno e podem ter algo a ver com o estatuto das Forças Armadas no sistema político brasileiro.
No que se refere às entidades que atuarão na esfera das relações internacionais do País e de sua política externa no sentido amplo, uma primeira menção deve ser feita ao “Conselho de Defesa Nacional”, instituído pela Carta constitucional de 1988 e definido como “órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático”. Ao Conselho compete opinar sobre eventos relevantes para a vida do País, como as questões da guerra e da paz, a segurança do território nacional e temas relativos à independência nacional, dele fazendo parte, como membro nato, o Ministro das Relações Exteriores.
Precisamente nesse setor da “segurança do Estado e da sociedade”, a reforma administrativa do Governo Cardoso cria, como autarquia federal vinculada à Presidência da República, uma “Agência Brasileira de Inteligência”, destinada, previsivelmente, a reconstituir algumas das funções do antigo Serviço Nacional de Informações, que havia desaparecido dos organogramas nos últimos anos (mas representado, por exemplo, por uma Subsecretaria de Inteligência na Secretaria de Assuntos Estratégicos, que perde agora seu estatuto ministerial). É claro, por outro lado, que a ABI não terá nenhuma atividade orientada no sentido da “segurança interna”, como acontecia com o antigo SNI.
No caso do Ministério das Relações Exteriores, cuja competência básica está na área da “política internacional”, foram mantidas algumas de suas particularidades, no confronto com os demais ministérios. Relativamente intocado em sua competência funcional e em seu funcionamento efetivo, o Itamaraty ainda assim teve suprimida uma Subsecretaria-Geral de Planejamento Político, tendo suas funções sido recuperadas por uma Secretaria de Planejamento Diplomático. Ele continua de toda forma a contar com um Conselho de Política Externa (destinado à assessoria política do Chanceler) e uma Comissão de Promoções (que se destina presumivelmente a assegurar a completa autonomia da Casa e a independência das decisões quanto à ascensão funcional dos diplomatas).
Preservado portanto o instrumento principal de atuação externa da Nação, isto não significa contudo que todos os temas da política externa nacional ou sua estrutura decisória estejam restritas à área das relações exteriores, estrito senso. Outros ministérios e órgãos da máquina executiva participam igualmente da formulação ou implementação dos chamados “temas externos”. Este é o caso, por exemplo, do comércio exterior, que cai sob a competência do Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, mas cuja fiscalização incumbe ao Ministério da Fazenda (encarregado ainda da política aduaneira), reservada porém a atribuição específica do Itamaraty para as “negociações comerciais” internacionais.
Uma mesma interpenetração de competências ou de divisão de tarefas ocorre com diversos outros temas que apresentam uma interface interna e externa: a questão da imigração, a cooperação nos terrenos educacional, científico e tecnológico, o comércio de produtos de base, o processo de integração regional, o problema do meio ambiente, o dos espaços territoriais, o da dívida externa e vários outros nas esferas econômica, técnica ou militar, envolvendo, com maior ou menos grau de interação, ministérios e demais órgãos da administração direta e indireta. O Mercosul, por exemplo, que não pretende ser uma mera zona de livre-comércio, mas desdobrar-se numa verdadeiro espaço econômico integrado, pode ser considerado como o epítome do moderno processo decisório em matéria de política externa: global por sua própria natureza, ele não só realiza a síntese das diplomacias presidencial, ministerial e técnica, como também busca contribuição e apoio nos mais diversos setores da sociedade civil .

Paulo Roberto de Almeida é PhD em Ciências  Sociais.
[Paris, 473: 16/01/1995]


473. “A Estrutura das Relações Exteriores no Governo Fernando Henrique Cardoso”, Paris, 16 janeiro 1995, 3 pp. Artigo sobre o processo decisório em política externa no novo Governo.