O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Ernesto Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações - Filipe Figueiredo (GP)

O autor desta matéria, muito bem pesquisada e excelentemente bem exposta, Filipe Figueiredo, coloca água no feijão do chanceler, que pretende provar que está em campanha para salvar uma coisa chamada civilização cristã ocidental, mas que na verdade nunca existiu com essa consistência que o patético chanceler beatamente afirma.
Como demonstra Filipe Figueiredo, os que derrotaram os muçulmanos foram mobilizados por algo mais (o vil metal) do que a fé e a religião, e sobretudo não possuíam unidade.
Mais importante: a tal conversa de "política externa sem ideologia" (e comércio exterior idem), nada mais é do que uma conversa fiada, pois o que mais faz o chanceler, e seus patrões, é defender uma ideologia conservadora de extrema-direita, eu até diria reacionária.
Paulo Roberto de Almeida


Ernesto Araújo, a batalha de Viena e o choque entre civilizações
Filipe Figueiredo
Gazeta do Povo, 15/05/2019

A História é uma das mais preciosas matérias-primas da humanidade. Ela serve de sustento para bons argumentos e para falácias; para avaliação e compreensão das sociedades; para derrubar mitos e ilusões. Nesse campo, a História é tanto remédio quanto insumo para essas mesmas mitologias e visões românticas sobre o passado, sobre a cultura e sobre si. E, como já disse o historiador britânico Peter Burke, “o dever do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer”. 

Na última semana, o chanceler Ernesto Araújo postou em seu perfil uma foto defronte uma pintura, com a legenda: “Ontem, no castelo de Varsóvia, com o retrato do rei polonês Jan Sobieski, vencedor da batalha dos portões de Viena em 1683”. A viagem do chanceler passou por Roma, Budapeste e Varsóvia, encontrando-se com representantes desses governos e da Santa Sé. Outro post com Matteo Salvini chamava o político italiano de “grande líder da regeneração europeia”.

A batalha de Viena
A batalha de Viena, em 12 de Setembro de 1683, quando os exércitos otomanos foram derrotados às portas da capital do império Habsburgo, foi de fato um importante evento histórico, uma data que se tornou posteriormente símbolo do fim do avanço otomano na Europa. O “posteriormente” é explicado pelo fato de que, naquele momento, ainda não se sabia do posterior declínio otomano, nem que os avanços de Habsburgos e da Rússia seriam tão rápidos e vastos quanto foram nos séculos seguintes.

Por causa desse significado posterior, de um momento em que os otomanos foram detidos em seu máximo avanço na Europa, a batalha ganhou contornos de um choque de civilizações. A cristandade europeia versus o califado muçulmano. É nesse contexto que o chanceler a celebra seu tuíte; embora não de forma explícita, a postagem por si só é uma celebração. E também congruente com suas ideias e como ele vê o mundo. Algumas dessas visões foram expressas em seu discurso de posse, já comentado neste espaço.  

Essa visão de uma batalha entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e muçulmanos, é certamente sedutora, como toda visão romantizada. Uma épica luta entre valores, civilizações que se jogam uma contra a outra em um mesmo dia, em meio a poeira levantada pela maior carga de cavalaria da História, brados retumbantes, o som do choque de espadas e outras armas, o cheiro de pólvora dos mosquetes, onde surgem heróis e vilões. E, claro, assim como toda visão romantizada, uma amostra superficial e estreita.

A batalha de Viena está inserida em um contexto muito mais complexo e contraditório do que um “choque de civilizações”. O combate tampouco foi Islã versus cristianismo, mas parte de uma guerra política e com alianças e lealdades motivadas também por interesses políticos. No cerco de Viena estava em jogo a autoridade de Leopoldo I, imperador Habsburgo da Áustria e Sacro-Imperador Romano Germânico. Essa posição, e a localização geográfica de sua capital, o colocavam como defensor do Papado e de Roma.

Realidade versus idealização
Isso explica o fato de que foi o Papa Inocêncio XI o principal financiador da resistência contra os exércitos otomanos. Independente de defesas da fé, o suprimento do “vil metal” foi de suma importância para as defesas europeias. O pagamento dos soldados poloneses, que só tinham obrigação de servir em defesa de seu território, é o exemplo mais famoso, já que seu rei, o Jan Sobieski III do retrato, não estava exatamente disposto ao custeio de um exército para salvar Viena e o imperador.

Outro exemplo, menos conhecido e tão importante quanto, é o do engenheiro Georg Rimpler, o responsável pela modernização das defesas austríacas. E que ocupava sua posição por ser, sem um julgamento de valor, um mercenário muito bem pago. Claro, o custeio de um exército ou de pessoas treinadas nas artes militares é algo sempre presente, e não seria apenas a existência de um pagamento que diminuiria um eventual caráter civilizacional da batalha.

Ainda assim, é um exercício interessante pensar se tais soldados teriam defendido Viena a troco apenas da fé ou de um eventual butim de guerra. O que torna superficial a visão romântica é o fato de que a suposta cristandade da batalha estava fragmentada. A Europa havia recém saído da Guerra dos Trinta Anos, motivada, dentre outras razões, pelo conflito entre católicos e protestantes; por séculos a Europa foi dividida de forma violenta e amarga por esse cisma do cristianismo.

Contra o católico Leopoldo I estavam os húngaros protestantes liderados por Imre Thököly, aliado do sultão. Seu desejo era a independência, rei de uma Hungria protestante em caso de vitória otomana. Juntando húngaros e valáquios, ao menos cinco mil cristãos protestantes estavam no exército otomano. Outros reinos protestantes europeus fariam poucas objeções ao fim do Sacro Império, mesmo que nas mãos de muçulmanos. Ainda assim, a protestante Saxônia enviou cerca de dez mil homens para a batalha.

Tal exército protestante se retirou imediatamente após o final da batalha. Tensões religiosas e divergências entre nobres impediram que os saxões participassem da pilhagem do rico butim otomano, e também não participaram da ofensiva contra as tropas turcas em retirada. Além disso, uma ausência é bastante significativa. A França recusou pedidos do Papa para enviar seus poderosos exércitos em “socorro da Cristandade”. A França, país onde, até 1789, a Igreja Católica tinha enorme poder social e político.

Essa recusa foi motivada por falta de cristianismo ou por apostasia? Não, apenas interesse nacional. Os franceses não achariam nem um pouco negativo que os austríacos sofressem em mãos otomanas, enfraquecendo seu maior rival europeu pelo controle do continente e pela influência no mundo católico. Dos séculos XV ao XIX, franceses e austríacos estiveram em lados opostos em mais de duas dezenas de guerras, incluindo a citada dos Trinta Anos. O estranho era a paz entre Paris e Viena.

Incluindo mais de um conflito em que franceses e otomanos foram secretamente aliados contra austríacos; o imortal pensamento de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. A questão aqui não é diminuir a batalha de Viena ou apontar que franceses foram traidores, nada disso. Apenas mostrar que é romântico pensar um bloco homogêneo da cristandade em batalha. Cada ator, mais que sua religião, também tinha seus interesses e objetivos políticos em jogo; no ano seguinte, a França se aproveita e anexa a Alsácia dos austríacos.

Contradições e civilizações
O mesmo vale para o outro lado. Não se tratava de um Islã monolítico, mas dos exércitos otomanos. Primeiro, os já citados protestantes que combatiam nas fileiras do sultão. Além disso, as lealdades das hostes cossacas e tártaras também variavam de acordo com o cenário político do período. Líderes cossacos cristãos ortodoxos se aliaram ao sultão contra os católicos poloneses, por exemplo. E, no caso de Viena, um componente essencial da cavalaria europeia era formado por tártaros. Muçulmanos.

Milhares de tártaros sunitas de Lipka combateram pelo exército do rei polonês, usando palhas em seus elmos, como uma forma de diferenciá-los dos seus primos tártaros da Crimeia, que combatiam ao lado do sultão. Posteriormente, a vida de Jan Sobieski III seria salva por um oficial tártaro muçulmano, Samuel Mirza Krzeczowski, promovido por seu feito. O rei polonês, inclusive, é lembrado como um dos mais tolerantes perante seus súditos e aliados muçulmanos, com a construção de mesquitas, por exemplo. 

Outra rachadura no pensamento de dois blocos homogêneos é que vários aliados otomanos eram forçados por laços de vassalagem ao combate, se juntando ao sultão contra sua vontade. E, por isso, não desempenhando suas funções militares da melhor maneira. Os tártaros da Crimeia, por exemplo, se recusaram em atacar os exércitos poloneses. A ideia de uma luta de civilizações, naquele momento, emanava apenas da crueldade do comandante otomano, Kara Mustafa Pasha, executado por sua incompetência.

No saldo final, a batalha de Viena foi, como todo o período moderno europeu, um enlace multicultural, complexo e, novamente, contraditório. Muçulmanos contra o califa, cristãos contra o imperador, tártaros muçulmanos contra tártaros muçulmanos. Nas décadas seguintes, os otomanos ainda governariam boa parte dos cristãos dos Bálcãs, enquanto os austríacos juntariam-se aos protestantes prussianos e os ortodoxos russos para retalhar a Polônia, que por cento e vinte anos deixou de existir como país soberano.

Romantismo e a alt-right
A visão romântica da batalha é cada vez mais resgatada pelo contexto contemporâneo, com atentados terroristas e questões migratórias na Europa. A ideia de que muçulmanos seriam invasores e que essa invasão foi inicialmente repulsa em 1683 por uma suposta cristandade unida. Grupos radicais e a chamada alt-right valorizam a batalha como marco de resistência do “Ocidente”. Exagero? É só olhar para a intensa referência ao confronto em dois atentados terroristas recentes.

Em 2011, na Noruega, 77 jovens do Partido Trabalhista foram assassinados pelo terrorista Anders Behring Breivik. Dentre seus motivos estavam o “marxismo cultural” e a resistência contra a “invasão muçulmana”, um cavaleiro pelos “valores ocidentais”. Tudo isso está em seu manifesto de mil e quinhentas páginas chamado 2083, uma referência aos 400 anos da batalha. O cerco de Viena também está em diversas referências do terrorista de Christchurch, na Nova Zelândia, que deixou 51 mortos em Março de 2019.

Que visões românticas e gloriosas de um passado militar seduzam extremistas e perfis da alt-right não seria novidade, ainda mais com um suposto inimigo em comum. E não se está chamando o chanceler de um representante da alt-right, mas é surpreendente ver um chanceler de um país com profunda tradição de formação de quadros diplomáticos ser seduzido por essa visão romântica, as ideias de um espírito cruzadístico movendo o Ocidente, em meio aos textos laudatórios do discurso de Varsóvia.

A própria batalha de Viena fornece exemplos contrários, de como os interesses nacionais e políticos sobressaiam os interesses ideológicos, religiões inclusas. Chamem de pragmatismo, realismo, ganhos concretos, do que for. Contra os rivais atenienses, Esparta se aliou aos persas, inimigos figadais de anos antes. Não foram apenas as divergências teológicas que sustentaram o movimento de Lutero, mas também a revolta contra o pagamento de vultosas contribuições para a construção da basílica de São Pedro. 

E quais os interesses do Estado brasileiro em uma viagem europeia de seu chanceler que negligencia alguns dos mais importantes parceiros comerciais e econômicos brasileiros no continente, como a Alemanha, a França e os Países Baixos? Ou então, pensando em laços históricos, a mesma Alemanha, assim como Portugal e Espanha. A Itália une os dois fatores, como grande parceiro comercial e origem de cerca de trinta milhões de cidadãos brasileiros.

Relações com a Polônia e a Hungria possuem grande espaço para crescimento, disso não há dúvidas, agora, nessa “política externa sem ideologia”, recortar uma viagem que passa apenas por esses países não faz sentido fora de um discurso ideológico. O discurso de valorizar uma “identidade ocidental” enquanto se desmonta a independência do judiciário e a imprensa livre, temperados por uma narrativa contra a União Europeia; claro, sem deixar de sorver nas polpudas verbas europeias.

Nos casos citados, Hungria é apenas nosso 90º destino de exportações, e 53º principal origem de importações, para uma relação comercial deficitária de 248 milhões de dólares. A Polônia não fica muito na frente, como 42º maior destino e maior origem, para um superávit de 203 milhões de dólares. Cifras que, colocadas em proporção, são uma parcela ínfima do comércio brasileiro. Em um cenário econômico difícil, o chanceler buscar parceiros e investidores deveria ser mais interessante do que cingir elmos para batalhas finais.


Academia.edu: estatisticas de acesso, maio de 2018 a abril de 2019 - Trabalhos P. R. Almeida

O Analytics da plataforma Academia.edu fornece as estatísticas de um ano de acesso a trabalhos disponíveis em minha página...


Academia.edu - Trabalhos de
Paulo Roberto de Almeida
Your Impact from May 01, 2018 to April 30, 2019

15,530: Unique Visitors
5,356 Downloads
29,831 Views
131 Countries

Country
12-Month Visitors
Brazil
12377
United States
756
Portugal
343
Mozambique
126
France
122
126 MORE

2,335 Cities
City
12-Month Visitors
Rio De Janeiro
1023
Sao Paulo
1010
Brasilia
720
São Paulo
580
Brasília
414
2330 MORE

743 Universities
University
12-Month Visitors
241
191
116
101
64
738 MORE

9,760 Research Fields
Research Field
12-Month Visitors
528
509
485
448
396
95 MORE

Top 0.1% By Views
Research Field
Top % By 12-Month Views
0.1%
0.1%
0.1%
0.1%
0.1%
40 MORE

269 Job Titles
Job Title
12-Month Visitors
Graduate Student
690
Undergraduate
452
Faculty Member
434
Department Member
292
Alumnus
270
264 MORE

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Historia economica e social do estado de S.Paulo - Francisco Vidal Luna e Herbert Klein (SP, 28/05)

Convite para o lançamento do livro “História Econômica e Social do Estado de São Paulo, 1850-1950”, de Francisco Vidal Luna e de Herbert Klein:

NOTÍCIA SOBRE O LIVRO “HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – 1850-1950”

Lançado recentemente pela Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo o livro de Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein – cuja versão original foi editada em inglês e traduzida por Laura T. Motta – representa uma contribuição relevante para a história socioeconômica de São Paulo pois nos oferece uma visão ampla de largo período tanto da época colonial como da primeira metade do século XX. Ao considerar as características da economia e do desenvolvimento estrutural de São Paulo os autores evidenciam como este estado superou sua condição de província ainda pouco desenvolvida para tornar-se a quarta maior área metropolitana mundial. O entendimento de tal processo evolutivo exigiu a exposição da estrutura administrativa e fiscal do estado, as transformações em larga escala nas áreas da educação, da saúde, o processo de urbanização em larga escala assim como as mudanças havidas na órbita demográfica. Embora não se trate de uma visão definitiva da história paulista, a obra, que se define como uma peça básica para professores e alunos, lança um desafio aos demais historiadores e economistas interessados em desenvolverem pesquisas sobre a mais avantajada região do Brasil.

Diplomacia bolsonarista: nunca antes vista no Brasil - Roberto G. Ferreira

A Desconstrução do Itamaraty

por Roberto G. Ferreira, especial para A Voz do Interior

O Itamaraty está vivendo um momento único e sem precedentes. Sob a batuta do chanceler Araújo, uma mudança de proporções bíblicas está sendo colocada em prática. Trata-se de uma ruptura em relação às linhas mestras da política externa, casada com uma nova diplomacia. Novos objetivos perseguidos por métodos nunca antes testados. Em uma palavra, vive-se uma desconstrução da forma e da substância da política externa.

Quem diz isso é o próprio chanceler. Em sua aula magna aos alunos do Instituto Rio Branco, declarou que a política externa brasileira teve três ciclos. O primeiro, que foi predominantemente positivo, vai da luta pela Independência até o período do Barão do Rio Branco à frente do Itamaraty. É o momento da consolidação do sentimento nacional e das fronteiras do país.

O segundo ciclo, bem mais longo, começa logo após a morte do Barão e se estende, pasmem, até a eleição do Bolsonaro, em 2018. Esse ciclo, na avaliação do chanceler, foi predominantemente negativo, com uma política externa que, em diversos momentos, deixou de contribuir para o desenvolvimento ou, pior, agravou a dependência de parceiros equivocados, gerando prejuízos aos interesses do país. Teríamos dado as costas aos Estados Unidos e adotado modelo econômico estatista e fechado, além de privilegiar relações com países distantes e com valores muito distintos. A isso no chanceler atribui as crises econômicas e o baixo crescimento no século XX e uma diminuição da influência do Brasil no mundo.

O terceiro ciclo, inaugurado com o governo Bolsonaro, pretende resgatar, com as devidas atualizações, os valores nacionais genuínos, que estiveram na base do sucesso do primeiro ciclo. Para isso, a promessa é alinhar o Brasil com seus próprios valores, rejeitar a imposição “globalista” de padrões de fora e apostar em relações com países afins, ou seja, aqueles com os quais a convergência de visão de mundo – derivada de nossa matriz cultural judaico-cristã – permitiria construir parcerias mais vantajosas.

O chanceler não esconde que a intenção é destruir o que vinha antes e colocar algo novo no lugar. Na prática, a parte da destruição tem predominado sobre a formulação da alternativa que se pretende colocar no lugar. Entusiasta das batalhas no que considera ser uma guerra para libertar o Brasil e o Itamaraty do marxismo cultural, o chanceler escreveu uma ode à polarização em seu blog pessoal.

As ideias lá vertidas explicam muito do que está acontecendo: a prioridade não é o debate plural de ideias, mas a libertação em relação às ideias equivocadas e perigosas. Vivíamos na caverna, mirando as sombras projetadas na parede. Agora, a luz nos libertará, teremos enfim acesso à verdade, superaremos a ideologia para mergulhar no mundo das ideias, a reais e não as ilusórias. Nessa guerra, a única alternativa é a vitória completa, por isso não pode haver composição, transação ou negociação. A polarização, dessa perspectiva, ajuda na identificação do inimigo: todo aquele que se verga diante do marxismo cultural e que, portanto, acaba se tornando um esquerdista. Ecos de Carl Schmitt e de sua visão da política como a distinção amigo/inimigo não parecem ser mera coincidência.

Daí considerar PT, PSDB ou MDB como partes de um mesmo esquema regido pelo marxismo cultural. E daí a necessidade de uma mudança mais radical, embalada pelo maniqueísmo da luta do bem contra o mal. Essa filosofia, como ressaltou o chanceler em diversas ocasiões, é a chave para entender a política externa atual: a aliança incondicional com os EUA (o que explica a mimetização da política externa norte-americana no tema da Venezuela); a aproximação de Israel realizada via abandono da tradicional defesa do direito internacional na questão palestina; o antagonismo aberto e agora mal disfarçado à China; a oposição ao Acordo de Paris, visto como instrumento do “climatismo”; o esboço de alinhamento com Israel e EUA no tema do Irã.

Em todas essas vertentes, não importa a consideração sobre eventuais prejuízos econômicos e comerciais, nem tampouco raciocínios tidos como “globalistas” a respeito da incapacidade do Brasil, por razões de poder e de preferência pelas soluções negociadas (inclusive por força do mandamento constitucional), de impor soluções acordes com seus interesses por meio de alianças apenas com parceiros considerados ocidentais. Mais grave, excluem-se a priori as avaliações, perfeitamente aceitáveis e necessárias em países normais, quanto aos riscos e potenciais prejuízos de tomar partido em conflitos que não são nossos. Mas para a atual gestão do Itamaraty, talvez eles sejam...

Isso fica evidente quando nosso chanceler faz périplo pela Itália, Hungria e Polônia e dá recados claros que indicam solidariedade ao discurso xenófobo da extrema-direita europeia. O que ganhamos com isso? O que ganhamos com o apoio, ainda que indireto, a políticas de retorno de refugiados, fechamento de portos e culpabilização de outras religiões pelos males das sociedades europeias? Em tempos normais, as relações com países europeus seriam regidas pela busca de oportunidades econômicas e comerciais ou parcerias em áreas que ajudem ao desenvolvimento, como educação e ciência e tecnologia. Os resultados nessas áreas, como não esconde o chanceler, estão hoje subordinados à filosofia que tudo orienta: o resgate do Ocidente de sua decadência, por meio da aliança com Trump e com os demais lideres que encarnam esse ideal.

O chanceler insiste também em bater na tecla de que a diplomacia é método, não se confundindo com política externa. Tem razão ele, ao menos em parte. De certo, a diplomacia é um instrumento para executar uma política externa, que pode variar de acordo com a orientação do governo e sofrer ajustes em resposta à conjuntura interna e internacional. No entanto, a noção ou o conceito diplomacia inclui seu corpo de funcionários profissionais, encarregados não apenas de executar a política externa consagrada nas urnas, mas também assessorar na tradução prática das orientações e postulados em geral fluidos que frequentam programas e discursos de candidatos no campo das relações exteriores.

No raciocínio enviesado de nosso chanceler, a maioria da população brasileira votou a favor de uma postura que beira a aventura na Venezuela, aprovou essa aproximação atabalhoada com Israel, assumindo o custo de eventual prejuízo para relações com países árabes, e endossou o alinhamento automático com os EUA, até mesmo em temas como terrorismo, mudança do clima e temas migratórios. Ora, sabemos bem que nenhum desses temas foi discutido nesse nível de profundidade na campanha e que os eleitores tiveram inúmeras outras razões, nem sempre tão claras, para votar em Bolsonaro.

Isso não significa que o governo não tenha direito de perseguir uma política externa diferente, mais conservadora e voltada para avançar a agenda de reformas econômicas liberalizantes. O problema é que a tradução dessas linhas gerais em política efetiva requer humildade, respeito à cultura institucional, debate constante e plural com a sociedade e, não menos importante, a incorporação no processo decisório da capacidade de análise e da experiência acumulada do próprio corpo diplomático. Infelizmente, isso requer uma humildade que os atuais donos da verdade não estão dispostos a demonstrar, o que tem acarretado a centralização e a imposição autoritária de cima para baixo do que deve ser feito e dos novos dogmas da política externa.

Apesar de seu anticomunismo, o chanceler parece ter adotado uma atitude que o aproxima perigosamente da ideia de desconstrução de autores marxistas como Derrida. O que está em curso é uma destruição deliberada de um patrimônio diplomático acumulado. Aí patrimônio diplomático significa a um só tempo política e método, substância e forma, objetivos do país e corpo de funcionários especializados, os nossos diplomatas. Hoje, prevalece o medo, a imposição autoritária de uma verdade única. Em um corpo de funcionários qualificados, como é o caso do Itamaraty, isso significa sufocar a criatividade, expulsar o dissenso, perseguir a divergência, desprezar a experiência.

É isso que tem acontecido, com a caça às bruxas de diplomatas considerado demasiado identificados com o ancien régime, mesmo quando não fizeram nada além de um trabalho profissional. A inversão da hierarquia, por sua vez, introduz outro elemento disruptivo, ao dar um sinal equívoco sobre a importância de que o mérito seja combinado com a experiência. Os menos experientes e ávidos por uma promoção, porém, são mais maleáveis e menos inclinados ao livre pensamento, até por amor à própria carreira. O clima de assédio moral vem para completar, é a cereja do bolo.

Prepostos do chanceler, afeitos a excentricidades são conhecidos na Casa de Rio Branco. Resultado: diplomatas e outros funcionários chorando e buscando atendimento médico, gente se recusando a ser lotado do gabinete do ministro, rotinas desumanas sendo instituídas e causando desmotivação geral, clima de medo e perseguição. É uma pena que se tenha chegado a esse ponto, mas esses episódios, que podem ser confirmados em conversas com diplomatas da ativa em Brasília, apenas confirmam a tese de que uma política externa autoritária, que se considera portadora da uma verdade quase transcendental, requer um controle do pensamento e do comportamento que exige do Itamaraty tornar-se não o Ministério do Tempo, como sugeriu o chanceler em seu discurso de posse em alusão a uma série espanhola, mas o Ministério da Verdade, tão bem retratado na distopia de Orwell.

Alhambras: o legado andalusi na América Latina: seminario e exposicao no CCBB, Brasília, 14/05 a 16/06

Realizou-se seminário com especialistas, e encontra-se disponível no museu do Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília, de 14 de maio a 16 de junho de 2019, excelente exposição sobre a influência e o legado andalus na América Latina.
Do seminário participou Carmen Lícia Palazzo, com uma palestra sobre a arte no universo andaluz.
Abaixo, o folheto da exposição.