O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Aventuras da diplomacia olavo-bolsonarista: a "derrocada" do ditador da Venezuela

O falcão recentemente demitido da diplomacia trumpista, desastrado como sempre foi, tinha vindo ao Brasil em dezembro, para se encontrar com o presidente eleito e seu chanceler acidental. Aproveitou um café com leite condensado para convencer o presidente eleito e seu chanceler secundário (ou terciário) de que bastaria um pequeno gesto para derrubar o ditador chavista-bolivariano.
O novo chanceler se atirou com tal entusiasmo ao projeto que, além de aprovar uma base americana no Brasil, logo no dia 1o. de janeiro, diretamente para o Secretário de Estado presente na posse (o que foi prontamente, imediatamente rechaçado pelos militares do governo), também seguiu imediatamente o anúncio, pelo mesmo Secretário de Estado, de reconhecimento do "presidente paralelo" da Venezuela, 50 minutos depois, ainda em Davos. 
Depois, um mês mais tarde,  tentou aprovar o ingresso de militares e equipamentos americanos no Brasil, para forçar a ajuda humanitária na fronteira brasileira de Roraima, e mais uma vez foi barrado pelos militares sensatos. O vice-presidente chegou a liderar a segunda reunião do Grupo de Lima, para barrar esse aventureirismo trumpista em nossa política externa, rechaçando claramente qualquer aventura militar ou golpista na Venezuela.
Mas teve vários outros episódios, sempre vinculados à agenda do falcão americano, que ainda serão esclarecidos por uma pesquisa mais cuidadosa.
O homem se foi, e ficaram seus sócios no Brasil sem mestres em Washington. Estão tristes?
Paulo Roberto de Almeida


John Bolton Tried to Unseat a Dictator. He Failed.
Nicolás Maduro remains in power despite U.S. sanctions and attempts to oust him. There’s no more room for improvisation.
Jorge G. Castañeda
The New York Times – 9.11.2019

During John Bolton’s recently ended tenure as national security adviser, he convinced President Trump that the Venezuelan leader Nicolás Maduro was on the verge of losing power. Mr. Bolton is reported to have been the architect of the several failed attempts to unseat President Maduro, a frequent target of Mr. Trump’s bluster.
We now know that Mr. Maduro’s fall was not imminent. Instead, Mr. Bolton bluffed on the high-ranking military officials who were about to betray Mr. Maduro; he bluffed on the number of people who would take to the streets in April to try to overthrow the Maduro regime; and he also seemed to believe that sanctions would work very quickly. Most important, though, his biggest mistake was to proceed along those lines without any Plan B in case this Plan A did not work. In the end, he has succeeded only in making Mr. Maduro stronger.
The best proof of this foreign policy debacle is that last week, for the first time since January, Mr. Maduro traveled abroad, choosing Moscow, logically enough, as his destination. He also achieved his first diplomatic victory in years last week at the United Nations Human Rights Council in Geneva, persuading enough countries, including China, Cuba, Egypt, Iran and Mexico, to vote for a resolution to promote a peaceful solution the Venezuelan crisis without foreign interference, which should be taken with a grain of salt coming from Mr. Maduro. He was, however, forced to accept the creation of a fact-finding mission to investigate the most egregious human rights abuses in Venezuela. This setback will come back to haunt him.
Mr. Maduro also pulled out of talks with the opposition in Barbados without serious consequences, another sign of his resilience. Washington’s lack of a Plan B has allowed the Venezuelan dictator to outlast his foreign and domestic opponents. This is almost reminiscent of the Bay of Pigs.
Today, Mr. Maduro appears to be further from being ousted than he was a year ago. Despite the steady flow of refugees out of the country — which has already topped four million — and a crumbling economy, the Venezuelan dictatorship persists. The question now is if a new way forward can finally be forged by the so-called Lima Group of Latin American democracies opposed to Mr. Maduro, the European Union, Washington and the United Nations human rights system.
The diplomatic approach toward Venezuela should be thoughtful, systematic and patient. Plan B would consist in staying the course, continue mounting pressure and refraining from generating false expectations because of impatience or bureaucratic infighting. No more shooting from the hip or improvisation.
The sanctions regime imposed by the United States, mainly on oil-related transactions, financial or otherwise, needs to be strengthened if they are to be effective. The European Union must also do its share on sanctions, and the union’s new foreign policy chief, Josep Borrell, should not waver. It is one thing for Norway to sponsor talks between the opposition and Mr. Maduro’s regime; it is another for the Europeans to get cold feet and accept Mr. Maduro’s grip on power despite the widespread human rights violations by and clear illegality of his government.
The investigation of those violations, in Geneva and at the Organization of American States, must conducted with vigor. A devastating report by the United Nations human rights commissioner, Michelle Bachelet, found more than 6,000 extrajudicial executions in the past five years in Venezuela; the fact-finding mission should do its job as expeditiously as possible, in spite of Mr. Maduro’s reluctance. There need to be more specific case studies, more precise denunciations and more individualized responsibilities for human rights violations.
In September, 16 of the 19 nations that are signatories of the Rio Treaty, a regional security compact, voted to impose additional economic sanctions on Mr. Maduro and his associates. Colombia, which led the initiative, has to present a better case for its claims that Mr. Maduro is protecting armed groups within its territory, than outdated or uncredited photographs taken in Colombia.
Venezuela poses a real threat to regional peace and security, and further sanctions should be applied as a result of the vote. The Rio Treaty was never a great idea, but it can be used to enforce more sanctions short of a military action.
Lastly, if serious economic difficulties are once again besieging Cuba, a country on which Mr. Maduro’s survival depends entirely, for security and intelligence reasons, Havana should be enticed or pressured into understanding that he has to go. It probably will never accept some type of quid pro quo, but nothing is lost in trying. Mr. Bolton forgot this “minor” detail: Without a carrot and stick approach for Cuba, there is no reason for Havana to be helpful. Raúl Castro, who is still first secretary of the Communist Party of Cuba and the island strongman, knows Mr. Maduro will not last forever; the question is when he is willing to jump from a melting iceberg to another.
Several Latin American presidents recently urged Moscow and Beijing to cooperate with their efforts and stop supporting the Venezuelan regime with money and vetoes at the United Nations Security Council. They could perhaps be most useful in convincing the Cubans that though the jig is up, there could still be something in it for them if they contribute to Mr. Maduro’s departure and the scheduling of prompt, free and internationally supervised elections.
Mr. Trump knows all about quid pro quos, even if Mr. Bolton did not. For all the wrong reasons, the American president has gained leverage over Havana by rolling back almost all of Barack Obama’s normalization. Now he should use it.

Jorge G. Castañeda, Mexico’s foreign minister from 2000 to 2003, is a professor at New York University and a contributing opinion writer.

PS.: Grato Pedro Luiz Rodrigues pela transcrição e envio da matéria.

Novas definições de fronteiras: chamada de trabalhos

CHAMADA DE TRABALHOS 
(RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS: DESENVOLVIMENTO, SEGURANÇA E INTEGRAÇÃO 
Organizadores: 
Fernando José Ludwig 
Luciano Stremel Barros  
Ao longo deste projeto, que teve início em 2017, verificou-se a crescente necessidade de se incluir o debate das fronteiras no âmbito das Ciência Política e Relações Internacionais. Indubitavelmente que o entendimento as fronteiras têm se tornado fulcral para a compreensão das relações internacionais contemporâneas, seja no que se refere a atuação dos EUA, no caso da Venezuela, ou mesmo relativamente ao processo de saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit). Entretanto, há uma lacuna na literatura que trabalha as fronteiras enquanto área central, normalmente está subordinada a outras áreas de estudo: direito, segurança, soberania, geografia, defesa, integração regional, entre várias outras. Uma certeza tornou-se presente nas edições anteriores: devemos resgatar as fronteiras da marginalidade acadêmica, política, social e mesmo ideológica. Com a intenção contínua de trazer diferentes percepções sobre as fronteiras, esta chamada tem como escopo não somente a visão prática, nem mesmo a exclusividade acadêmica, mas sim trazer esta constante que permeia o objetivo ontológico desta edição: a constante adequação das conceitual, prática, acadêmica, política, social, ideologia. Levando em conta a particularidade multidimensional, busca-se nesta edição trabalhos relacionados ao desenvolvimento econômico, político e social das fronteiras, que englobem questões de segurança e defesa, bem como discuta os desafios e as relações das fronteiras e dos processos de integração regional ao redor do globo. 
Caso haja interesse, por favor enviar as seguintes informações individuais, a fim de informar a editora IDESF:
·     Nome Completo
·     Título do Capítulo (provisório)
·     Filiação
·     Curriculum Vitae resumido (máximo 10 linhas)
Diretrizes gerais para a submissão dos FINAL trabalhos:
·     Curriculum Vitae resumido (5 linhas)
·     Resumo de 200-300 palavras 
·     5 palavras chave 
·     Tamanho: entre 3.500 e 5.000 palavras
·     Normas: ABNT (Associação Brasileira de Normas e Técnicas) 
·     Fonte: Times New Roman, 12
·     Espaçamento: 1,5
·     Prazo de submissão: 15 de Novembro de 2019
Edições anteriores: 
Qualquer dúvida, não hesitem em me contatar,
 Atenciosamente, 
Fernando Jose Ludwig
fernandoludwig@uft.edu.br
--
Fernando Jose Ludwig
Doutor em Política Internacional e Resolução de Conflitos (Universidade de Coimbra) 
Professor Adjunto do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

"Política externa para o povo": os resultados práticos - Paulo Roberto de Almeida

No último domingo, 6/10, eu havia feito a postagem seguinte:

domingo, 6 de outubro de 2019


Política externa: os desastres em série

E ainda não acabou:

Resultados práticos da “política externa para o povo” do olavo-bolsonarismo diplomático dos últimos 9 meses:
1) reforçaram o chavismo-madurismo na Venezuela;
2) trouxeram de volta o peronismo argentino;
3) converteram o Brasil em pária internacional, e não só no meio ambiente;
4) iniciaram uma luta insana contra a “ideologia de gênero” nos foros internacionais;
5) aliaram o Brasil aos mais execráveis líderes da extrema-direita mundial.

Tem muito mais a apresentar...
Até quando irá a destruição da política externa e da diplomacia brasileira sob a direção dos aloprados que subordinaram o Brasil aos desejos de Trump?
Paulo Roberto de Almeida
Pirenópolis, 6/09/2019
Nesta sexta-feira, podemos atualizar a lista dos desastres:

1) Bye-bye OCDE (pelo futuro previsível);
2) Bye-bye aprovação de Bolsokid para Washington;
3) Bye-bye aliança pessoal com Trump? (ainda não é certo, mas já está enfraquecido);
4) Bye-bye aliados argentinos (sem visita bilateral em vista?);
5) Bye-bye Conselho de Direitos Humanos? (em breve);
6) Bye-bye coordenação com EUA na questão da Venezuela;
7) Bye-bye acordo Mercosul-UE?;
8) Adeus credibilidade da diplomacia brasileira;
9) Adeus a velhos amigos na Itália (onde mais?);
10) Adeus às últimas ilusões de que os aloprados pudessem se corrigir...

A lista ainda terá muitos outros acréscimos. Aguardem.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11/10/2019


Ingresso frustrado do Brasil na OCDE: isso pouco importa - Paulo Roberto de Almeida

Ingresso frustrado do Brasil na OCDE
(pelo menos por enquanto).
Paulo Roberto de Almeida

Sabem o que eu acho da matéria abaixo transcrita?

Nada! Ou melhor: não dou a menor importância.
Apoio dos EUA, dos países europeus, ingresso na OCDE, selo de qualidade internacional, tudo isso não tem a menor importância, e talvez seja até melhor.
Não entrando agora, e talvez nem mesmo mais adiante, vai nos poupar alguns milhões de dólares – custos da adesão e das anualidades, que não são baratas –, que podem ser melhor empregados em educação das crianças, aqui no Brasil, para ver se melhoramos nos indicadores do PISA, que por enquanto são uma vergonha para o Brasil.
O Brasil NÃO PRECISA entrar para a OCDE, para FAZER TUDO o que teríamos de fazer entrando e mesmo um pouco mais.
Eu proporia que o Brasil não apenas siga todos os requerimentos, exigências, adesão a normas e protocolos, tudo o que a OCDE nos pediria, e que ele vá mesmo um pouco mais além.
Aproveitar esse período de espera – e talvez até mude de ideia no meio do caminho – para AVANÇAR todas as reformas que está aguardando décadas para fazer, sem que ninguém lhe cobre nada por isso, et pour cause.
Eu acho que deveríamos ir MUITO ALÉM do que está na pauta da OCDE e se tornar um país avançado, com liberdade ecobömica, com liberalização comercial, adepto das normas mais elevadas de qualidade ambiental, social, laboral, respeitador dos direitos humanos, das liberdades políticas e democráticas, com PLENA INSERÇÃO na economia mundial.
Esse é o meu programa: reformas da OCDE SEM OCDE, por nossa própria conta e risco.
Eu, aliás, tinha proposto isso mesmo, em minha tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, em 1996, que se chamava justamente "Brasil-OCDE: uma interação necessária" (disponível como abaixo indico). Não propunha a adesão do Brasil, mas propunha que o Brasil seguisse todos os padrões de alta qualidade em suas políticas macroeconômicas e setoriais, sem precisar necessariamente se reportar à OCDE.
Minha tese está disponível no seguinte link:

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 de outubro de 2019

EUA recusam apoio ao Brasil no ingresso à OCDE; governo admite frustração
O Globo, 10/10/2019

Apesar de promessas públicas do presidente Donald Trump, os Estados Unidos não formalizaram apoio ao ingresso do Brasil na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O país foi preterido por Argentina e Romênia, que ganharam endosso do governo americano.
Repercussão: a negativa foi recebida com frustração pelo governo brasileiro. Publicamente, no entanto, autoridades dizem que o apoio americano está mantido, mas Argentina e Romênia têm prioridade. O assessor internacional do presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins, disse que há “histeria” na repercussão sobre a recusa. A embaixada dos EUA em Brasília afirmou, em texto, que o país continua a favor da proposta brasileira.
Por que isso importa: o apoio formal à entrada na OCDE era uma das contrapartidas acertada no encontro entre Trump e Bolsonaro ao pacote de concessões feitos pelo Brasil, como o fim da exigência de visto para turistas americanos, o acesso dos EUA à base de Alcântara (MA) e a decisão brasileira de abrir mão de status especial na Organização Mundial do Comércio.
Opinião: apesar de o governo minimizar, a decisão dos EUA é uma ampla derrota para a administração Jair Bolsonaro, afirma Míriam Leitão.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Essa Gente: o novo romance de Chico Buarque (Companhia das Letras)

Um escritor decadente passa por um deserto criativo e emocional enquanto o Rio de Janeiro colapsa ao seu redor. Em seu sexto romance, Chico Buarque constrói uma engenhosa trama em cujas entrelinhas se revelam as contradições do Brasil de agora.
Nas livrarias a partir de 14 de novembro.
Há pontos de contato entre Chico Buarque e o protagonista de Essa gente. Além de ser escritor, Manuel Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e gosta de bater perna atrás de inspiração nos arredores do Leblon, onde voltou a morar após o fim de seu último casamento. Embora seja quase inevitável buscar alusões autobiográficas no novo romance de Chico — o primeiro após a consagração do prêmio Camões —, o leitor não demorará a descobrir que tal linha de pensamento conduz a um beco sem saída. Na melhor das hipóteses, lhe dá a posse de uma chave que pode abrir uma ou outra porta, mas não todas. Essa não será a única pista falsa antes do ponto-final.
Essa gente é, entre os romances de Chico, o mais áspero e possivelmente o mais enigmático. A história contada em forma de pequenos capítulos de diário, quase todos datados de um passado tão recente que se pode chamar de atualidade, é mais um de seus quebra-cabeças narrativos com fumaças de literatura policial. No entanto, a reflexão sobre a linguagem que é uma dimensão estruturante das ficções buarquianas se ancora desta vez no estilo mais imediato de todos: o do apontamento rápido, feito para auxiliar a memória do próprio apontador no futuro, quando houver distância e lucidez para transformar o tumulto do presente numa história redonda. Sim, estamos no nebuloso país do agora. A parte da brincadeira que cabe ao leitor é mais decisiva do que nunca.
Autor de diversos livros, entre eles um best-seller já entrado em anos chamado O Eunuco do Paço Real, Duarte é um escritor decadente às voltas com uma pindaíba total, tanto financeira quanto afetiva. Tem um filho pré-adolescente com quem é incapaz de trocar uma única palavra. Está sempre em busca de um modo de descolar dinheiro — seja arrancando mais um adiantamento de seu editor paulista, seja apelando à generosidade arisca de um amigo bem-sucedido. Com uma mistura de hiperatividade e inação, ricocheteia entre suas duas ex-mulheres, uma tradutora intelectual e uma decoradora perua, e um número não especificado de putas. Enquanto isso, à sua volta, o Rio de Janeiro sangra e estrebucha sob o flagelo de feridas sociais finalmente supuradas, exibidas por muitos com uma espécie doentia de orgulho.
O distanciamento emocional vagamente camusiano com que Duarte fala dessas ruínas, tanto a pessoal quanto a coletiva, eximindo-se de juízos históricos ou mesmo de indignação, dá ao livro um tom de farsa — não ligeira mas grave, encharcada de humor negro. Logo de saída, a comédia sombria se escancara na subtrama dos castrati: um pastor neopentecostal e um maestro italiano estão castrando jovens pobres dos morros cariocas, com a anuência de suas famílias, a fim de abastecer o mercado do canto lírico internacional.
Será que estamos diante de uma alegoria poderosa da emasculação de um povo? Pode ser, mas talvez isso só exista na ficção que Duarte tenta escrever, alegoria de alegoria, retomando um tema presente em O Eunuco do Paço Real. Essa e outras fronteiras entre vida, imaginação, sonho e delírio vão sendo borradas pelo autor — e aqui falamos de Chico Buarque — com um sorriso que quase se deixa entrever nas páginas.
A montagem do quebra-cabeça se complica mais um pouco quando outros narradores se apresentam, das ex-mulheres de Duarte a uma vizinha enxerida que lhe é uma completa estranha, sem falar de uma voz que narra em terceira pessoa. Vai ficando claro que o “diário” é um estratagema literário de Duarte, o próprio livro que ele tenta escrever, embora também essa chave encontre seu limite quando, nas últimas páginas, o formato se prolonga além de toda verossimilhança para dar o toque final numa charada que o autor capricha em deixar sem solução. Uma informação jogada então com sugestiva ausência de ênfase, a de que o computador do protagonista estava vazio de textos, chega a acenar com a não existência do próprio livro que se acabou de ler.
Romance urgente, colado corajosamente na opacidade do agora, Essa gente é, numa primeira leitura, uma comédia de costumes tão divertida quanto cruel. É também um engenho narrativo feito para empurrar até o futuro possível — algum momento após o fim da leitura — o caimento da ficha derradeira: a compreensão de que, enquanto Duarte nos conduzia pelas tortuosas vielas literárias de sua história mundana, alegórica, metalinguística, o mais importante ocorria ao seu redor. O foco se desloca então da “literatura” para a paisagem, a chapa quente carioca compartilhada pela classe média alta do Leblon e pela mistura de classe média baixa, pobreza e miséria da vizinha favela do Vidigal. Terminada a leitura, o livro nos intima a virá-lo do avesso, transformando fundo em forma e desviando os olhos da história para a História.
Nessa nova perspectiva, os personagens principais se tornam com clareza dolorosa a violência letal da polícia contra “essa gente”, a humilhação dos porteiros, o espancamento gratuito do mendigo pelo sócio do Country Club, o bullying sofrido na escola pelo filho de esquerdistas, o alagamento apocalíptico das ruas em dias de chuva, as pedras que ameaçam deletar o morro, a falência material e moral de uma cidade que já foi símbolo de uma nação — talvez ainda seja. Que a única redenção possível venha do olhar de uma ruiva gringa apaixonada pela fantasia do Orfeu do Carnaval é parte do humor dilacerante da primeira obra literária de vulto a encarar o tema do Brasil bolsonarista. Pensando bem, essa gente somos todos nós.
 
Sérgio Rodrigues
Ouça um trecho do livro, com narração de Marília Garcia
SOBRE O AUTOR
Francisco Buarque de Hollandanasceu no Rio de Janeiro, em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, publicou, além das peças Roda viva(1968), Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra (1973), Gota d’água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do malandro (1979), a novela Fazenda modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e O irmão alemão (2014).
OBRAS DE CHICO BUARQUE PUBLICADAS PELA COMPANHIA DAS LETRAS

Churchill & Orwell: unidos da defesa da liberdade

Churchill & Orwell


Zahar Editora

A fascinante história de dois homens com posições políticas diferentes, aliados pelo mesmo princípio: a defesa da liberdade individual

Figuras essenciais na luta contra as ameaças do autoritarismo de esquerda e de direita em um momento crítico do século XX, Churchill e Orwell surgem aqui como fonte de inspiração e exemplo para os dias de hoje. Filho de aristocratas, Winston Churchill (1874-1965) era um liberal conservador alinhado ao governo colonialista britânico. George Orwell (1903-1950), que vinha da classe média baixa, era militante socialista e anti-imperialista. 
Escrita pelo vencedor do Prêmio Pulitzer Thomas E. Ricks, essa atualíssima biografia dupla se concentra no período crucial da vida de Churchill e de Orwell: os anos 1930 e 1940, da ascensão dos nazistas até o rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Hoje, impressiona testemunhar quão solitária era a posição de Churchill e de Orwell num momento em que a Europa parecia destinada à ditadura, fosse nazifascista ou comunista.
Apresentados como um par complementar, o político marginalizado em busca de redenção e o grande escritor ainda em formação trabalharam pelo mesmo objetivo, embora nunca tenham se encontrado.

"Leitura agradável e compulsiva, Churchill & Orwell impressiona pelo compromisso feroz que ambos tinham com o pensamento crítico." The New York Times Book Review
"Os dois nunca se encontraram, mas suas vidas e suas visões sobre como deveria funcionar a sociedade, noções de liberdade individual e limitações da política convergiam - pensamentos extraordinariamente harmoniosos em lugares diferentes. Realmente muito impressionante."John Le Carré