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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

FakeNews na História - Café História

 Fake News na história: uma bibliografia comentada

Por Bruno Leal Pastor de Carvalho

Um antigo provérbio português diz que “a mentira corre mais que a verdade”. Na “Era do WhatsApp” é difícil duvidar dessa máxima popular. Hoje, a mentira parece ter fôlego de maratonista. As fake news, ou, em bom português, as notícias falsas, correm rápido nas tramas das redes sociais; aparecem na forma de vídeo, de texto e de áudio. Misturam-se ao fantasioso, ao fanatismo e principalmente às teorias conspiratórias. Apresentam-se como notícias propriamente ditas, alertas salvadores e até mesmo como história.

Uma pesquisa internacional realizada e divulgada em 2019 pelo Centro para a Inovação em Governança Internacional (CIGI), sediado no Canadá, revelou que 86% das pessoas admitiram ter acreditado em pelo menos uma notícia falsa. Foram ouvidas na pesquisa pessoas de 25 países, e em 82% dos casos essas fake news, segundo os respondentes, estavam em redes sociais como Facebook e Twitter. É bastante assustador.

Fake News na história: uma bibliografia comentada 1
Fake News: um dos maiores fenômenos sociais e políticos de nosso tempo. Foto: Pixaby.

Mas as notícias falsas não são uma novidade. É possível encontrá-las muito facilmente no passado, em suas múltiplas denominações e formatos. Muito antes do surgimento da imprensa moderna e de Donald Trump, elas já estão regulando e deformando as relações sociais, derrubando governos e destruindo reputações. São usadas para diversos fins: políticos, econômicos, sociais, pessoais e coletivos. As notícias falsas, como a mentira de uma forma geral, são constitutivas da experiência humana ao longo do tempo.

Nessa bibliografia comentada, escolhi 10 leituras, entre artigos e livros, em português e inglês, que podem ajudar o leitor a ter uma visão histórica das fake news. A ideia é mostrar como as notícias falsas sempre fizeram parte de nossas comunidades. Na verdade, as leituras aqui sugeridas falam não só das notícias falsas, mas de várias manifestações do falseamento: as meias-mentiras, os boatos, os plágios, os exageros, os impostores, os golpes, as fraudes, os livros apócrifos, a falsidade ideológica, o perjúrio e as campanhas difamatórias. 

Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa
Autor: Danilo Angrimani
Ano: 1995
Editora: Summus Editorial
Lançado em 1995, o livro de Danilo Sobrinho Angrimani é uma versão condensada da sua tese de doutorado, defendida em 1993 na Universidade de São Paulo. Como o título deixa claro, o autor faz uma análise da imprensa sensacionalista, desde o seu surgimento, na Europa do século XIX, até o final do século XX, quando os tabloides e outros forma-tos populares vão explorar perversões, fetiches e o voyeurismo para vender seus exempla-res. Angrimani examina vários produtos impressos do passado que se valem do inverídi-co e di insólito. Um desses produtos são as chamadas occasionnels, brochuras que circu-laram na França dos séculos XVII e XVIII. As occasionnels eram especializadas no rela-to dos fait divers (notícias insólitas e pitorescas do cotidiano) e se caracterizavam pelo “exagero, a falsidade ou inverossimilhança (…) imprecisões e inexatidões”.
História da mentira: prolegômenos
Autor: Jacques Derrida
Ano: 1996
Editora: Revista Estudos Avançados
A mentira conquistou a atenção do conhecido filósofo francês Jacques Derridá nos últi-mos anos de sua vida. Em 1996, Derridá publicou um ensaio, traduzido para o português, intitulado “História da mentira: prolegômenos”. Nesse texto ele defende, por exemplo, que a mentira é sempre um “ato intencional”. Suas próprias palavras: “mentir seria dirigir a outrem (pois não se mente senão ao outro, não se pode mentir a si mesmo, a não ser a si mesmo enquanto outro) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constati-vos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, te-mática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas; é preciso insistir desde já nessa pluralidade e complexidade, até mesmo heterogeneidade. Tais atos intenci-onais são destinados ao outro, a outro ou outros, a fim de enganá-los, de levá-los a crer (a noção de crença é aqui irredutível, mesmo que permaneça obscura) naquilo que é dito, numa situação em que o mentiroso, seja por compromisso explícito, por juramento ou promessa implícita, deu a entender que diz toda a verdade e somente a verdade”. O artigo poder ser baixado de graça aqui.
Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news
Autor: Matthew D’Ancona
Ano: 2018
Editora: Faro Editorial
Este livro é indicado para quem deseja compreender o fenômeno das fake news nos dias de hoje, das mídias digitais, bem como a sua relação com a pós-verdade (que, brevemente, pode ser explicada como uma época em que os aspectos emocionais da narrativa falam mais alto do que os fatos). D’Ancona é jornalista e escreve uma coluna semana no jornal The Guardian, da Inglaterra. O livro dele traz várias problematizações importantes para se pensar o tema. É um texto jornalístico. Então, não espere notas de rodapé e debates aca-dêmicos muito aprofundados, embora o material seja bem documentado e argumentado. O autor examina a retórica de Trump, discute a questão do “Bexit” e também o negacionismo do Holocausto. D’Ancona usa o termo “nova audiência política” para tentar compreender a forma como as pessoas consomem notícias na atualidade.
Renaissance impostors and proofs of identity
Autor: Miriam Eliav-Feldon
Ano: 2012
Editora: Springer
Livro interessantíssimo sobre uma antiga forma da mentira: o impostor. Nesta obra sobre impostores na renascença, a historiadora explica que é possível considerar a Europa Mo-derna como a “Era dos Impostores”. Em suas palavras, “homens e mulheres de todas as esferas da vida estavam inventando, fabricando e se disfarçando, mentindo sobre quem eram ou fingindo ser alguém que não eram”. E isso, diz a historiadora, incomodava as autoridades, tanto as religiosas quanto as seculares, que trabalhavam freneticamente a fim de desenvolver novos meios para auferir a identidade de uma pessoa. A autora, a propósi-to, tem um sólido e reconhecido trabalho sobre a “história da mentira”. Vale a pena conhecer o artigo Invented Identities: Credulity in the age of prophecy and exploration e o livro Dissimulation and Deceit in Early Modern Europe. Infelizmente, não há nenhum trabalho de Miriam Eliav-Feldon em português.
Regimes of posttruth, postpolitics, and attention economies
Autor: Jayson Harsin
Ano: 2015
Editora: Revista Communication, culture & critique
Esse é um texto bem importante para quem quer se aprofundar no debate sobre a chamada pós-verdade. Como você já deve ter percebido,o termo “pós-verdade” é muito corrente hoje na literatura que se debruça sobre as notícias falsas. Em 2015, o filósofo e especialista em comunicação digital Jayson Harsin cunhou uma variação dele: “regime de pós-verdade”. Mas ele não quer inventar a roda. O pesquisador estadunidense complexifica o tema ao situar a pós-verdade dentro de regimes de temporalidade e verdade. Apoiando-se na obra de Foucault, Harsin diz que cada tempo possui o seu próprio regime de verdade. O nosso engloba a proliferação daquilo que ele descreve como “mercado de verdade”. Não sabe inglês? Não tem problema. Você pode ler aqui, em português, uma entrevista que o autor deu a revista “Época” em abril de 2017.
Presidente Donald Trump em jornal. No lugar da boca, um rasgo.
O ex-presidente Donald Trump fez circular inúmeras notícias falsas durante o seu mandato. Foto: Charles Deluvio, Unplash.
Broadcast Hysteria: Orson Welles’s War of the Worlds and the Art of Fake News
Autor: Brad Schwartz
Ano: 2015
Editora: MacMillan
O historiador Brad Schwartz esquadrinha um caso clássico de fake news no século XX: a fatídica transmissão de “Guerra dos Mundos”, de Orson Welles, em 1938. Muita gente desavisada achou que o programa radiofônico de Welles fosse verdade, e que os Estados Unidos estavam sendo atacado por marcianos. Pois bem: Schwartz diz que a imprensa exagerou ao relatar as reações dos populares. A histeria foi menor do que a divulgada pelos jornais, embora tenha existido. O mais importante sobre esse caso, diz o autor, é que nós ainda não entendemos plenamente as suas lições. A persistente leitura exagerada do episódio, segundo ele explica, não só interpretaria mal o poder persuasivo da mídia e a forma como as notícias falsas realmente funcionam, como nos impediria de lidar asserti-vamente com o problema das fake news no presente. Para Schwartz, a pergunta-chave seria outra: por que “A Guerra dos Mundos” assustou algumas pessoas, mas outras não? Schwartz explica que em 1938 muitos estudiosos acreditavam que o rádio poderia sim-plesmente injetar ideias diretamente na mente das pessoas, convencendo-as de qualquer coisa. O historiador, assim, defende que a transmissão de Welles não teria simplesmente passado por cima do consciente das pessoas a fim de convencê-las de algo em que elas não acreditavam e nem acreditariam de qualquer outra forma; a grande questão em jogo aqui é que a transmissão de Welles mobilizou medos, atitudes e crenças que já existiam no imaginário de cada pessoa. Segundo resume o historiador, a mídia não consegue conven-cer o público de algo que vai contra suas atitudes ou ideias preexistentes, o que ela pode fazer – e o que ela faz, de fato – é reforçar aquilo em que as pessoas já acreditam.
The” Great Moon Hoax” of 1835
Autor: István Kornél Vida
Ano: 2012
Editora: Hungarian Journal of English and American Studies
A história da transmissão de Orson Welles em 1938 se tornou uma espécie de paradigma no campo da comunicação social, mas há uma outra história, igualmente incrível, e que também aconteceu também nos Estados Unidos, que merece a nossa atenção. Trata-se do “Grande embuste sobre a lua”. Essa história incrível é contada e examinada por István Kornél Vida nesse artigo, que pode ser lido gratuitamente aqui (caso você esteja usando a rede de uma universidade pública). Em 1835, o jornal The New York Sun precisava vencer a concorrência e decidiu apelar: inventou uma série de notícias sobre o relevo e – pasmem – as formas de vida na Lua, algumas muito parecidas com unicórnios. As vendas do jor-nal dispararam. Até mesmo gigantes do setor, como o The New York Times, deram crédito a narrativa falsa do jornal. De acordo com Vida, antes da mentira ser revelada, o que levou algumas semanas, muita gente encarou a “descoberta” como uma grande oportunidade: “Diversos grupos religiosos começaram a planear atividades missionárias entre os habi-tantes da Lua; um clérigo solicitou membros de sua congregação por fundos para comprar Bíblias para os extraterrestres. A sociedade filantropista em Londres organizou várias reuniões no Exeter Hall em Londres visando “suprir as necessidades dos povos da Lua, e, acima de tudo, abolir a escravidão caso ela existisse entre os habitantes de lá.”
O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício
Autor: Carlo Ginzburg
Ano: 2007
Editora: Editora Companhia das Letras
Carlos Ginzburg é um dos historiadores mais respeitados na atualidade. Ele e outros his-toriadores italianos desenvolveram, a partir da década de 1970, um método de análise e abordagem histórica chamada “micro-história”, que olha para pequenos aspectos do coti-diano (de uma localidade) a fim de explorar a sua relação com estruturas maiores. Em “O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício”, Ginzburg traz um pouco de sua micro-história para afalar sobre as relações entre fato e ficção. O livro combina muita erudição com deba-te teórico e estudos de caso. Não é um livro fácil para não-historiadores, mas a leitura é possível. Dentre os “causos” do livro, está o dos fatídicos “Protocolos dos Sábios de Si-ão”. Dividido em 24 capítulos, o livro apresenta-se como a cópia fiel das atas de supostas reuniões secretas envolvendo várias lideranças judaicas (“os sábios de Sião”) que tinham o intuito de dominar o mundo. Para isso, os judeus controlariam as finanças, o governo, a política e a educação. O livro, que é falso, surgiu na virada do século XIX para o XX. Mesmo tendo a farsa vindo à tona, ele continuou sendo publicado e traduzido, alimentan-do diferentes movimentos antissemitas ao redor do mundo. No livro, Ginzburg discute como essa narrativa surgiu e se tornou tão poderosa.
O abscôndito da mentira
Autor: Fernando Catroga
Ano: 2020
Editora: Revista Estudos Literários
Neste artigo acadêmico, que pode ser lido na íntegra aqui, gratuitamente, o famoso histori-ador português Fernando Catroga discute as transformações histórico-conceituais sofridas pelo conceito de “mentira”, bem como a sua relação com o de “verdade” e, sobretudo, com o de “veracidade”. Segundo Catroga, “A história da mentira não pode ser descrita como um desfile em que, paulatinamente, ela vai sendo derrotada; ela não é a parusia de uma Verdade absoluta que, definitivamente, acabará por construir a plena translucidez do mun-do. O seu percurso é traçado por uma luta sempre inconclusa, em que podem ser surpre-endidas as metamorfoses das formas, das motivações, das técnicas, das vias e dos efeitos que plasma as necessidades subjetivas e sociais do mentir. Histórica e sociologicamente falando, a mendacidade não é unívoca nos seus modos de expressão, e a pele que veste não é homogénea e inseparável dos campos e níveis em que se manifesta.”

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Fake News na história: uma bibliografia comentada. (Bibliografia Comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/fake-news-na-historia/. Publicado em: 21 dez. 2020. ISSN: 2674-5917.



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O STF padece de excesso de poderes, e isso não é bom: O excesso de poder do Supremo atrapalha o crescimento do país - José Jácomo Gimenes

 O Brasil perde 5%, ou mais, do PIB com a barafunda constitucional, que estrangula ou é criada pelo próprio STF.


O excesso de poder do Supremo atrapalha o crescimento do país

Somente uma reforma estrutural do sistema judicial, com uma redução drástica da competência do Supremo, poderá resolver o histórico de ineficiência, lentidão, insegurança e injustiça. Artigo do juiz federal e professor aposentado José Jácomo Gimenes, publicado pela Gazeta do Povo:


O Brasil tem um amplo controle de constitucionalidade de leis e normas. Combinou o modelo europeu, abstrato e concentrado, com o modelo americano, concreto e difuso. O controle de constitucionalidade abstrato é concentrado no Supremo Tribunal Federal, por meio de Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O controle concreto, sempre a partir de um conflito real judicializado, é feito de forma difusa, por todos os juízes de primeira instância (cerca de 18 mil) e todos os tribunais (91, sendo 61 federais e 30 estaduais), necessitando de confirmação do Supremo para ter validade nacionalmente.

Assentados estes pontos, duas perguntas essenciais pedem respostas: por que temos tanta demora processual e insegurança jurídica com um controle de constitucionalidade tão poderoso? Como se explica um estoque de 1.986 ações de constitucionalidade pendentes no Supremo, apesar do reconhecido esforço e trabalho dos 11 ministros da corte constitucional? Este modesto artigo tem por objetivo ensaiar respostas e incentivar debate responsável sobre o excesso de competência processual do Supremo e o estoque de processos esperando julgamento na nossa suprema corte. Vamos aos números.

O Supremo recebeu 90.039 processos em 2019, sendo 20.125 (22,4%) da competência originária (processos que começam no Supremo) e 69.914 (77,6%) da competência recursal (processos que vêm das instâncias inferiores). Dentro da competência originária, destacam-se a entrada de 349 novas ações de controle concentrado de constitucionalidade em 2019 e o julgamento de 271 (200 em 2018) dessa mesma espécie. Em 2019, o Supremo proferiu mais de 16,6 mil decisões colegiadas de um total de 110 mil, considerando também as decisões monocráticas e despachos. O estoque de processos na fila de julgamento do Supremo, mesmo festejado como menor, é estrondoso: 30.662 processos.

Os explosivos números acima evidenciam que há alguma coisa errada ou, no mínimo, mal estruturada. Na comparação com as demais cortes supremas das grandes democracias, os números do nosso Supremo pairam no patamar do inacreditável, da chacota. Basta lembrar dois exemplos: a Corte Suprema americana recebe por volta de 5 mil processos por ano, escolhe em média 120 para julgamento e arquiva os demais; a Corte Suprema da Alemanha produz uma média de 7 mil decisões por ano. Os espantosos números do nosso Supremo (mais de 110 mil decisões por ano, 16,6 mil colegiadas) indicam que a corte é quase juízo universal da nação: nada escapa, parecendo um insaciável resolvedor dos conflitos do país, assim perdendo o foco de sua função diretiva do sistema judicial.

Como se vê, o nosso Supremo está atolado em seus poderes processuais, muito além da capacidade de trabalho de seus 11 ministros e de sua natural função de corte constitucional. Em um país continental, com 210 milhões de habitantes, com uma Constituição extensa, regulando quase todos os aspectos da vida nacional, o Supremo não pode ter competência para decidir processos de casos subjetivos, só porque debatem questões constitucionais. O recebimento de 69 mil recursos e 20 mil ações originais em um ano é prova suficiente dessa conclusão. O caminho deve ser outro.

O Supremo recebe mais de 300 ações diretas de constitucionalidade de leis e normas por ano, processos sobre questões objetivas (controle concentrado e abstrato), trabalho (e responsabilidade) de importância fundamental e até prioritário para uma corte constitucional, pois podem resolver com rapidez questões constitucionais e evitar propagação de milhões de processos pelo país afora. Com o estoque atual de quase 2 mil ações constitucionais diretas, o Supremo levaria seis a sete anos para colocar a casa em ordem, sem contar a entrada de novas 300 ações a cada ano, que acumularia novo passivo igual ou maior no mesmo período. Só por esse ângulo já temos uma situação insustentável, que exige atitude de mudança.

O outro megaproblema dos 69 mil recursos de processos subjetivos e das 20 mil ações de competência originária tem de ser resolvido com mudança estrutural, com a transferência de poderes processuais para os importantes tribunais superiores nacionais (STJ, TST, TSE e STM) decidirem também as questões constitucionais de todos os processos subjetivos, concluindo a jurisdição dos processos subjetivos na terceira instância, acabando com o famoso Recurso Extraordinário e congêneres, que encaminham milhares de processos ao Supremo.

O necessário controle da constitucionalidade nesses milhares de casos decorrentes de conflitos reais deve ser feito por ações autônomas de constitucionalidade, similares às existentes, mas sobre a jurisprudência consolidada resultante nos tribunais superiores (normas de efeito concreto), reduzindo substancialmente o número de processos no Supremo, libertando a corte da monstruosa carga atual, impossível de ser vencida, permitindo que cumpra com eficiência e rapidez sua verdadeira e fundamental função constitucional.

As grandes democracias adotam um sistema de duas instâncias de julgamento para processos subjetivos ou, no máximo, três instâncias. O Brasil instituiu um sistema de até quatro instâncias, na jurisdição comum e até nos juizados especiais, levando ao Supremo milhares de processos subjetivos, casos particulares, especialmente na área criminal, inviabilizando a nossa suprema corte de bem cumprir a sua função essencial de corte constitucional. O excesso de instâncias e burocracia judicial é uma tragédia que está sendo escrita com a cumplicidade dos poderes constituídos, gerando malefícios para toda a sociedade.

É incompreensível manter um sistema que não funciona, que não atende razoavelmente seus objetivos de pacificação social. A sociedade tem o direito de mudar um sistema ineficiente. O Supremo tem obrigação histórica de colaborar efetivamente para esse aprimoramento, apresentando soluções e entregando poderes aos demais tribunais. Não se pode perder de vista que os poderes são concedidos pela sociedade aos órgãos estatais para atender bem sua função institucional. Se o poder está desmedido, atrapalhando o funcionamento eficiente do serviço estatal, deve ser repactuado. Além de reforma administrativa e tributária, o Brasil precisa desesperadamente de uma boa reforma judicial.

Quem ganha e quem perde com o atual sistema judicial de quatro instâncias, recheado de dezenas de recursos e ações paralelas, doentiamente dependente do Supremo em razão de sua exorbitante competência, demorado e altamente custoso (1,6% do PIB, maior índice do planeta)? Sem intenção de ofensa ou desconsideração de importantes categorias de trabalho, o quadro permite afirmar que ganham os que estão incluídos na colossal máquina judicial, numa zona de conforto protegida, com empregos garantidos, amplo espaço de poder e excelentes rendimentos. Perde a sociedade brasileira, que vê o crescimento do país atravancado por um sistema judicial altamente burocrático, caro e pouco funcional.

A doutrina jurídica tem debatido continua e sabiamente princípios, conceitos, institutos e formas possíveis de aplicação da lei. Entretanto, parece não haver a mesma preocupação com o monstruoso problema real que os números processuais e demoras decorrentes constituem. Não se pode esquecer que a legitimidade e respeitabilidade dos órgãos estatais e, por consequência, do próprio sistema judicial dependem essencialmente de procedimentos decisórios razoavelmente rápidos, eficientes e justos. Somente uma reforma estrutural do sistema judicial, com uma redução drástica da competência do Supremo, poderá resolver o histórico de ineficiência, lentidão, insegurança e injustiça, permitindo conclusão mais rápida dos processos, jurisprudência constitucional estabilizadora em tempo mais curto, segurança jurídica, pacificação social e progresso econômico.

José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.

Minha mensagem de final de ano a colegas diplomatas e acadêmicos: O Horror Diplomático - Paulo Roberto de Almeida

 O horror, o horror diplomático 

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoindignação com a letargia nas alturasfinalidadedespertar repulsa legítima]

  

Gostaria, em primeiro lugar, de me desculpar com meus colegas diplomatas por publicar, na véspera de Natal, uma mensagem de tons mais conradianos do que dickensianos. Mas, eu não seria fiel à minha própria trajetória na carreira, ao longo de mais de quatro décadas – durante as quais nunca hesitei em defender minhas próprias convicções e os argumentos que sempre corresponderam a um estudo sério das posturas que fundamentam nossa atividade profissional – se eu não transmitisse aos membros de minha corporação de Estado os sentimentos que me animam neste melancólico final de ano, por razões que todos devem deduzir facilmente, em função do que já escrevi nos últimos 24 meses.

 

Todos nós, diplomatas, com a possível exceção de dois ou três (que eu não hesito em retirar da categoria de “colegas”), estamos cumprindo dois anos de profunda decepção, de justificada frustração e de sincera repulsa por um quadro de verdadeiro horror na instituição que está próxima de seu bicentenário, talvez menos repugnante do que o relato conradiano sobre as violações de direitos humanos no âmbito do colonialismo, mas que não deixa de ser, para nós, uma ruptura fundamental com tudo o que se sabe da história do Itamaraty. 

Esse horror começou a ser revelado ainda antes das eleições, a partir de uma matéria de jornal, no final de setembro de 2018, que desvendou a identidade de um animador de blog bolsonarista atuando de forma militante em favor de seu candidato, e atacando de forma vil os adversários, inclusive a política externa da qual tinha sido protagonista durante cerca de três décadas. O autor de diatribes acerbas contra a política externa em curso, e contra toda e qualquer política pública existente, teve de, apressadamente, desculpar-se junto às chefias da Casa, junto às quais encontrou complacência para seguir adiante com seu blog, que por acaso levava o título de “Metapolítica 17: contra o globalismo”. Fez-se então a junção com o nome do autor do infeliz artigo “Trump e Ocidente”, que havia sido publicado na revista do IPRI, que eu dirigia, Cadernos de Política Exterior (n. 6, 2017). Não demorou muito para que o seu autor – provavelmente motivado por esse exato objetivo – fosse confirmado como o chanceler escolhido para conduzir uma “diplomacia sem ideologia”, o que, diga-se, destoava radicalmente de todo o conteúdo impressionista revelado naquele artigo.

No meu caso, foi um pouco mais de dois anos, pois, em meados de 2018, eu já tinha tido contato com quase toda a equipe econômica envolvida na campanha do candidato – que me recebeu como se eu fosse me juntar àquela tropa, o que nunca foi minha intenção –, de quem ouvi e captei intenções de política econômica externa (que foi o tema exclusivo de meu diálogo naquele encontro) que já considerei como incrivelmente ingênuas ou equivocadas, no confronto com o que sempre se soube do candidato em questão. Afastei-me definitivamente de todos eles quando, em meados de agosto seguinte, foi tornado público o programa de governo desse personagem singular na política brasileira, contendo cinco extraordinários parágrafos relativos à “futura política externa”, infelizmente reveladores da tremenda miséria intelectual e diplomática que se prenunciava. Imediatamente elaborei um memorando – reservado ao início, depois revelado em meu blog, criticando severamente aqueles propósitos aloprados e alinhando algumas diretrizes que eu julgava relevantes para orientar a futura diplomacia (aqueles interessados em ler minhas observações podem acessar esta postagem: “Um programa insuficiente de política externa: comentários pessoais”, Brasília, 15/08/2018, 5 p. Comentários à parte de política externa do programa do candidato Bolsonaro; blog Diplomatizzando, link:  https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/08/um-programa-insuficiente-de-politica.html). Na sequência, nunca mais tive contato com algum membro daquela equipe, a não ser para novamente recusar, peremptoriamente, qualquer associação minha com aquelas políticas, antes ou depois daquele único e solitário encontro. 

Depois disso, eu tinha certeza de que seria exonerado no primeiro dia do governo Bolsonaro, mas antes mesmo da posse e da inauguração do gabinete, já tínhamos tido, nós os diplomatas, os primeiros sinais do horror que logo se abateria, intencionalmente ou na prática, sobre a diplomacia e a política externa, e que eu resumo por alguns poucos exemplos: denúncia do Acordo de Paris e do Pacto Global das Migrações (este realizado); o afastamento das “nefastas” ideologias “climatistas” e “comercialistas” e das políticas ligadas à “ideologia de gênero”; o distanciamento da China e de qualquer outra manifestação de “comunismo”; a mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, considerada a legítima capital israelense; uma estreita aliança com os Estados Unidos e com o presidente Trump em especial; o combate ao “marxismo cultural”, supostamente entranhado num Itamaraty que se tinha promiscuído nos governos companheiros – como se o chanceler escolhido não tivesse servido fielmente a todas as administrações anteriores – e, cúmulo da ideologia, a retomada do espírito conservador e religioso do “povo brasileiro”, com o qual estaria estreitamente vinculada a “nova política externa”. 

Tudo isso foi ouvido e repetido em diversas ocasiões – novos artigos, entrevistas, e declarações públicas – em novembro e dezembro de 2018, e triunfantemente repetido, para estupefação geral do corpo diplomático, no dia 2 de janeiro de 2019, o que justificadamente legitimou o apelido de “Beato Salu”, com o qual foi agraciado o chanceler acidental. Minha exoneração demorou ainda um pouco, pois não tinham ainda quem me substituísse, mas ela finalmente ocorreu no Carnaval de 2019, com toques de humilhação: fui, na sequência, lotado na Divisão do Arquivo, sob a chefia de um primeiro secretário, que precisa “autorizar” toda e qualquer providência administrativa de que eu que possa necessitar (férias, ausências, etc.). Não me constrangi com a nova situação, minha velha conhecida desde os tempos – que agora julgo mais amenos – dos companheiros, quando passei anos e anos na Biblioteca, lendo muito, refletindo e escrevendo o que eu pensava sobre o Itamaraty e sobre relações exteriores e sobre nossa história diplomática (livros todos relacionados na minha página pessoal).

Desde então, a despeito de alguns contratempos funcionais, já conhecidos dos que me seguem neste espaço, tenho mantido invariavelmente a mesma rotina: acompanhamento atento de todas as fontes de informação fiáveis – algumas pouco confiáveis também –, a leitura sistemática de tudo aquilo que tenha a ver com a política internacional, as relações externas e a diplomacia do Brasil, os cenários político, econômico e cultural do Brasil e do mundo, e a produção de dezenas de artigos e vários livros sobre esses temas, vários deles, senão todos livremente disponíveis a partir de minhas ferramentas de comunicação social.

Independentemente do tom mais irônico ou mais sério dessas diversas produções, o que se pode ressaltar, tanto para mim como para a maioria (pelo menos imagino) dos meus colegas, é o HORROR a que somos confrontados desde aproximadamente dois anos de uma diplomacia e de uma política externa extraordinariamente em desacordo, nas antípodas de tudo aquilo a que assistimos nas últimas décadas, e talvez em toda a nossa história, de um exercício ponderado, não ideológico (muito pouco inclusive sob a ditadura militar) e quase nunca partidário da diplomacia profissional, quase sempre colada à governamental (para nosso alívio e satisfação intelectual). Quaisquer que tenham sido os matizes da diplomacia dos governos anteriores, desde o Império, ela sempre correspondeu grosso modo ao núcleo básico do interesse nacional – o desenvolvimento com autonomia decisória – e quase nunca nos colocou em confronto direto com nossos vizinhos e com o resto do mundo, a não ser em face de desafios à nossa própria dignidade (guerras do Prata e dois conflitos globais). 

O fato é que o atual governo se identifica com os estratos mais reacionários e mais repressivos de setores da ditadura militar e que, em nossa área, a atual diplomacia se vincula a concepções obscurantistas e conspiratórias do mundo, o que jamais tínhamos assistido na história bissecular do Brasil e do Itamaraty. Saudosistas dos momentos mais sombrios da ditadura militar e patéticos elementos anti-iluministas e fundamentalistas foram chamados a se exercerem em vários setores da administração, para imenso desconforto de tecnocratas racionais, de diplomatas normais e de militares identificados com sua missão essencial. O termo de horror conradiano se justifica amplamente, portanto, nesta mensagem de “Natal”, que poderia ter sido mais realisticamente dickensiana se outras fossem as circunstâncias.

 

Desculpando-me, junto a meus colegas, por um texto que não me deu nenhum prazer em redigir e ao divulgá-lo em momento provavelmente impróprio, gostaria, ainda assim, de desejar a todos um excelente 2021, com a retomada oportuna da sensatez política e de uma necessária racionalidade na concepção e na implementação de uma política externa mais conforme nossos padrões conhecidos de qualidade substantiva e excelência operacional. Só desejo um 2021 pior do que este ano que se encerra a quem vocês adivinham quem seja, mas isto nada mais é do que simples manifestação de sinceridade intelectual e de ousadia pessoal (o que sempre foi, como todos sabem, uma de minhas marcas no exercício da carreira e das atividades acadêmicas).

Com as minhas melhores saudações,

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3825, 22 de dezembro de 2020