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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Artigos de Roberto Campos sobre a CF-88: livro de Paulo Roberto de Almeida

Constituição de 1988: posição de Roberto Campos (27/11/2018) - Paulo Rob...

Nacionalismo, patriotismo e interesse nacional - Rubens Barbosa (OESP)

NACIONALISMO, PATRIOTISMO E INTERESSE NACIONAL
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 27/11/2018
As comemorações pelo centenário do fim da guerra 1914-18, em Paris, reforçaram minha convicção de que estamos vivendo tempos estranhos e um momento de grande complexidade e incerteza no cenário internacional com consequências para todos os países.
Foi curioso ver pequenos detalhes protocolares desencadearem reações políticas, como no caso da Servia, que se sentiu insultada pela baixa posição que seu presidente ocupou em relação ao Kosovo, colocado mais próximo ao presidente francês pelo cerimonial. Afinal, foi em Sarajevo que tudo começou. Notei a ausência do Brasil, convidado pela primeira vez em um encontro dessa magnitude e que seria uma oportunidade para mostrar que nosso pais existe, tem presidente, e foi parte das duas guerras (Quando estava como embaixador em Londres, participei com o presidente FHC das celebrações do dia da Vitoria da Segunda Grande Guerra (1945) com o Brasil sendo convidado pela primeira vez). 
Todos puderam assistir a deliciosa coreografia do poder entre Putin e Trump, que chegaram em limusines cercadas de seguranças, enquanto os outros 82 chefes de estado e de governo saíram juntos do Palácio Elysée em ônibus especiais. Os lideres norte-americano e russo esperaram, escondidos, que todos tomassem seus assentos para assumirem seus lugares ao lado do presidente Macron. Putin, mais experto, esperou para chegar por último...
O presidente Macron, em discurso na solenidade, ao invés de saudar a presença dos lideres mundiais, de ressaltar a paz e a superação da guerra fria entre EUA e Rússia, resolveu chamar a atenção para as ameaças atuais que colocam a estabilidade internacional de novo em perigo, põem em risco a democracia e dividem os países ocidentais. Observou que os pilares que sustentam os regimes democráticos são mais importantes que a unidade transatlântica e nesse contexto mencionou que o patriotismo é mais importante que o nacionalismo. Essa afirmação tinha endereço direto, não só aos grupos de direita radical na França como, de maneira pouco sutil, era uma critica direta aos que dizem colocar os interesses de seus países em primeiro lugar e que a consequência disso para os outros pouco importa. Ao qualificar o nacionalismo como traição ao patriotismo, exagerou, porque o termo na França é associado à extrema direita, enquanto em outros países a expressão se renova e tem conotação valorizada, como, por exemplo, na Irlanda e no Canada. 
 A tensão estava criada. Não era a primeira vez que Macron, depois de ter sido um amigo muito próximo, divergia publicamente do presidente dos EUA. As boas relações pessoais se deterioraram devido às decisões de Washington de abandonar o Acordo de Paris sobre clima e pelo término do programa nuclear com o Irã. E também por estimular o protecionismo (ameaça de guerra comercial com a China), criticar o multilateralismo e de tornar difícil a solução de dois Estados para o conflito Israel-Palestina.
Não foi surpresa a reação de Trump ao anfitrião, mas sim sua rapidez e virulência. Na tarde do dia 11, Macron organizou o Forum da Paz com o objetivo de defender o multilateralismo, um dos pilares da nova ordem internacional depois de 1945 com o surgimento da ONU e do GATT/OMC, que os EUA ajudaram poderosamente a criar e agora procuram solapar. Todos os Chefes de Estado compareceram com exceção de Trump, que preferiu visitar sozinho cemitério militar americano na França. Além disso, desde a véspera, havia iniciado uma troca de tweets virulentos com Macron, trazendo a público a crescente rivalidade entre os dois lideres em um momento de aumento das tensões Transatlânticas. Apoio de Trump aos movimentos populistas-nacionalistas na Europa, despesas militares na OTAN, criação de exército europeu, proposto por Macron-Merkel, e até ameaça velada à exportação de vinhos franceses para os EUA entraram na inusitada altercação presidencial. Ficou evidenciado o divórcio entre Trump e a Europa, em especial com as instituições supranacionais e multilaterais.
Cabem alguns comentários sobre o que se falou durante a cerimônia de Paris. A critica de Macron ao nacionalismo está associada à direita populista de Marie le Pen, que, sob o pretexto de defender a Nação, defende posições radicais contra o movimento de unidade europeia. Por outro lado, Trump não está preocupado com a unidade da Europa (agora ameaçada com a saída da Grã-Bretanha), mas sim com a China, e não quer continuar com os altos gastos militares na OTAN. Por outro lado, talvez Macron não soubesse, mas a palavra patriotismo é pouco usada nos EUA, talvez por razões históricas, além de ter alí um sentido algo pejorativo. Ao elogiar o patriotismo - com significado positivo nos países de língua latina - Macron fez Trump se lembrar de frase atribuída a Samuel Johnson, “o patriotismo é o ultimo refúgio do canalha”. A oposição às instituições supranacionais e multilaterais representam um viés característico da superpotência norte-americana, agora exacerbado por Trump.
Qualquer semelhança disso tudo com alguns aspectos da discussão hoje no Brasil, em especial depois da eleição e da escolha do futuro ministro do exterior não é mera coincidência.
A cerimônia parisiense mostra igualmente como é perigoso para qualquer pais, nos tempos incertos em que vivemos, declarar alinhamentos e afinidades definitivas baseados em laços pessoais. Como aprendi nos meus primeiros anos no Itamaraty, os países (e os líderes) não tem amigos, tem interesses. O realismo e o pragmatismo na ação diplomática e comercial deverão prevalecer sobre vagos anseios conceituais, como o anti- globalismo e a defesa do Ocidente, de inspiração trumpista, bem assim sobre atitudes ideológicas em relação a China. 
O interesse nacional, acima de países, grupos ou partidos, é a prioridade da politica externa.
Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Emb. Lindgren Alves: A década das Conferências (1990-99); 30/11, Sala C, 15hs

A década das Conferências (1990-99)
Palestra-debate: Emb. Lindgren Alves; dia 30/11, Sala C, 15hs


A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) têm o prazer de convidar para a palestra-debate da série “Diálogos Internacionais” do IPRI, com o embaixador José Augusto Lindgren Alves, “A década das Conferências (1990-99), diálogo por ocasião do lançamento da 2a edição do seu livro”. 
O evento será feito na sala C, passarela do Anexo II do Itamaraty, no dia 30 de novembro, às 15h00.
O livro encontra-se disponível na Biblioteca Digital da Funag: 

Winston Churchill: um estadista que faz falta - Paulo Roberto de Almeida

Winston Churchill: um estadista que faz falta 

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: entrevista áudio para o Instituto Millenium; finalidade: caráter didático]
  
Tendo recebido, depois de um pedido precedente do Instituto Millenium, no caso da líder britânica Margaret Thatcher, uma nova demanda para entrevista gravada, solicitei um roteiro de questões a serem tratadas. Recebi os interrogantes abaixo, que como sempre, de acordo com minha proverbial prolixidade, respondo amplamente, mas de forma livre, e sem maiores esforços de preparação sistemática. Aos interessados no exercício precedente, indico aqui o meu registro da primeira entrevista: 
3356. “O que Margaret Thatcher teria a ensinar ao Brasil?”, Brasília, 1 novembro 2018, 3 p. Notas para gravação de podcast a convite do Instituto Millenium. Divulgado no blog Diplomatizzando(link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/11/o-que-margaret-thatcher-teria-ensinar.html). Agregado texto resumo em 6/11/2018 e áudio disponível no site do IM (link: https://www.institutomillenium.org.br/destaque/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/). Transcrito na revista Exame(6/11/2018; link: https://exame.abril.com.br/blog/instituto-millenium/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/).

Desta vez, o personagem britânico escolhido foi ninguém menos que o grande Winston Churchill. Com base unicamente no que conheço de sua vida e sua obra, em livros próprios (Memórias da guerra, História dos povos de língua inglesa), biografias (existe uma excelente, mais recente, de Andrew Roberts), trabalhos de historiografia (recomendo John Lukacs, Five Days in London) e em filmes (muitos, entre eles o Darkest Hour), elaborei as seguintes respostas, sem uma preparação maior.

1) Podemos contextualizar quem foi Winston Churchill e qual foi sua trajetória até que chegasse ao cargo de primeiro ministro do Reino Unido? O que faz com que ele seja lembrado até hoje como um dos maiores líderes que já existiram na história mundial?
Paulo Roberto de Almeida (PRA): Winston Churchill foi, antes e acima de tudo, um defensor do Império britânico, um dos maiores empreendimentos coloniais – direto e indireto – da história mundial, um herdeiro de uma linhagem de aristocratas, políticos e líderes militares da Grã-Bretanha que construíram o mais vasto império jamais visto na história mundial. No momento de sua maior extensão, em 1913, ou seja, às vésperas da Grande Guerra, esse império estava espalhado por todos os continentes e regiões do mundo, com destaque para as unidades integrantes diretos da chamada comunidade britânica de nações: o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, ademais de Hong Kong e, com menor destaque, a África do Sul. Uma antiga dependência, as treze colônias da América do Norte, evoluiu para se constituir na nação mais avançada do mundo já no final do século XIX, ultrapassando até mesmo a antiga metrópole, em PIB per capita, em poderio industrial e tecnológico, e, em poucos anos mais, como um grande centro financeiro internacional, passando a substituir a libra esterlina, como moeda mundial, a partir da Segunda Guerra Mundial.
Winston Churchill foi um acirrado defensor desse grande império, que compreendia ainda territórios submetidos a uma administração direta ou indireta, nas Américas, em metade da África e sobretudo na Ásia do Sul, com destaque para a Índia, um mosaico de nações, de línguas e religiões, que em seu conjunto exibia uma economia superior à da própria potência colonial no momento da conquista, no século XVIII. Na verdade, a Índia foi conquistada primeiro pela Companhia das Índias Orientais Britânicas, e só em meados do século XIX passou a ser um vice-reino submetido diretamente a um ministério das colônias britânicas. A África do Sul, por sua vez, era uma antiga colônia holandesa, colocada sob a dependência da comunidade britânica depois de uma cruel guerra de conquista por tropas do Reino Unido, em 1900, após episódios militares dos quais Winston Churchill participou diretamente enquanto repórter incorporado às forças de conquista. Ele também se associou a outras aventuras militares no Sudão, no subcontinente indiano e, de forma geral, tinha imenso orgulho da vastidão do império britânico em sua fase de maior extensão.
Ambicioso no plano político, Winston Churchill tornou-se, precocemente, um ministro das colônias, depois Lord do Almirantado – ou seja, ministro da Marinha britânica, a poderosíssima Royal Navy –, quando presidiu à importante conversão dos navios da frota das caldeiras a vapor, alimentadas a carvão, para os motores a diesel, mantendo a preeminência em poder de fogo e de deslocamento, frente ao crescente e agressivo império alemão, que empreendia uma grande competição naval entre o final do século XIX e o inicio do XX. 
Sua experiência na Grande Guerra não foi das mais exitosas, sendo culpado, talvez por teimosia, pelo desastre de Galipoli, uma tentativa frustrada de neutralizar o Império Otomano, então aliado dos impérios centrais responsáveis pela guerra, para permitir a saída ao Mediterrâneo da frota da Rússia, uma das nações aliadas. Milhares de soldados pereceram na tentativa e Churchill teve de abandonar o seu cargo. Para compensar, foi ser comandante de batalhão nos campos do norte da França e da Bélgica, o que lhe permitiu recuperar parcialmente a sua reputação. Nunca se sentiu à vontade, seja com os Conservadores, seu partido de origem, seja com os Liberais, pois mantinha concepções próprias sobre as grandes questões politicas e estratégicas que deveriam guiar as ações do Império britânico; por isso oscilou algumas vezes no tocante às suas preferências políticas, sendo hostilizado em ambos os partidos, sem falar no Labour.
Teve uma percepção muito nítida, por exemplo, da ameaça que surgiria contra o Império britânico e toda a civilização ocidental – constituída pelas democracias de mercado – representada pelo novo regime bolchevique que emergiu na Rússia, em meio a uma terrível guerra civil ao final da Grande Guerra. Contra ele apoiou várias intervenções militares opostas ao nascente poder bolchevique, já que via no comunismo o grande contendor do Ocidente no plano das ideias e dos valores fundamentais que devem guiar o sistema econômico capitalista e o regime político liberal. Não logrou vencer esse poder em sua origem, mas não hesitou em aliar-se a ele, quando uma ameaça ainda mais terrível, a do nazi-fascismo passou, por sua vez, a contestar os fundamentos mesmos da sociedade aberta e das democracias de mercado nos momentos mais decisivos de meados do século XX. 
Winston Churchill teve uma outra fase infeliz quando assumiu o cargo de Lord of Treasury, ou seja, ministro das finanças, quando intentou fazer o Reino Unido voltar ao antigo padrão monetário vigente no século XIX até a Grande Guerra, ou seja, a libra esterlina baseada no lastro metálico em ouro. Em 1925, contra as recomendações do já famoso economista britânico John Maynard Keynes, ele tentou operar essa volta da libra ao padrão-ouro pré-1913, mas na mesma paridade que aquela que operou de 1816 até às vésperas da Grande Guerra, descurando completamente a grande inflação e os monumentais desequilíbrios econômicos trazidos pelo primeiro grande conflito global do século XX. Foi um desastre completo: Churchill permaneceu isolado por longo tempo depois disso, aproveitando seu tempo para escrever e recuperar um pouco do dinheiro empregado para manter um padrão de vida que ele já não podia suportar. 
Os anos 1930 foram de um relativo declínio em sua carreira política, até que o início da guerra deslanchada por Hitler viesse milagrosamente retirá-lo de uma semi-marginalidade, para levá-lo ao mais importante desafio lançado não só à sua carreira política, mas também à própria sobrevivência do império britânico.

2) A vida de Churchill foi marcada pelas grandes guerras. Podemos falar um pouco sobre essa relação e também destacar como a sua conduta ajudou a sustentar um clima político que levantou a nação durante as batalhas?
PRA: Winston Churchill foi, durante toda a sua vida, um estadista dotado de uma visão estratégica fundamentada basicamente no poderio militar, como garantia de manutenção do império britânico e de sobrevivência da Grã-Bretanha e seu sistema econômico e regime político. Anteviu a necessidade de modernizar e equipar a frota da Royal Navy, e agiu em consequência no confronto com o crescimento da armada do Império Alemão. Previu desde cedo a necessidade de uma estreita aliança entre o Império Britânico e os Estados Unidos, num momento em que este dispunha de uma armada razoável, mas quase nenhum exército, ou forças orientadas para atuação em cenários externos. Desde o início pressentiu os instintos expansionistas dos regimes totalitários do entre guerras, assim como o espírito belicoso e militarmente agressivo dos dois fascismos da Europa continental, ainda que tenha demorado um pouco mais para detectar os mesmos perigos advindos do militarismo japonês (que até o final dos anos 1920 era, praticamente, um aliado dos poderes ocidentais). 
Combateu acirradamente o ânimo pacifista dos líderes políticos ocidentais, em especial da França e dos seu próprio país, e não hesitou a denunciar como um enorme erro estratégico as inaceitáveis concessões feitas pela Grã-Bretanha e pela França às investidas de Hitler contra a Áustria e a República Tchecoslovaca, em 1938 e 1939. O Anchluss– a anexação da Áustria ao novo Reich alemão – e o esquartejamento de parte da República Tcheca e sua incorporação à soberania nazista confirmaram para Churchill que a guerra era inevitável, recomendando ele que as democracias ocidentais se preparassem imediatamente para o confronto militar. Atacou com justa razão o pacifismo inaceitável de seus líderes, dizendo que eles tinham feito uma opção irracionável pela paz com honra, mas que teriam como resultado a guerra com desonra.
Foi praticamente o único dos líderes políticos da Grã-Bretanha que recomendou a resistência a todo custo contra o imenso poderio hitlerista, quando as forças nazistas invadiram os Países Baixos, a Bélgica e derrotaram a França numa Blitzkrieg, uma guerra relâmpago, quanto os principais membros do gabinete britânico pretendiam entrar em negociações de paz com a Alemanha nazista, a vencedora da primeira fase da guerra europeia. Foi chamado pelo soberano do Reino Unido, George VI, para assumir a chefia do gabinete na hora mais sombria da Grã-Bretanha, quando numerosas forças britânicas se encontravam cercadas por tropas nazistas no bolsão de Dunquerque, no continente, e havia a ameaça real de invasão das ilhas britânicas pelas forças superiores da Alemanha hitlerista. No dia 10 de maio de 1940, se converte no primeiro ministro de um governo de coalizão, banindo a ideia de negociação e de submissão, e proclamando a vontade do povo britânico em prol da resistência a qualquer custo. Ele mobilizou a língua inglesa, que dominava como ninguém, e a enviou às frentes de batalha.
Pode-se dizer que ele não salvou apenas as ilhas britânicas e todo o Império, mas praticamente toda a civilização ocidental de uma bárbara dominação totalitária, que poderia condenar as democracias de mercado a um quase certo desaparecimento no continente europeu e, por extensão, em boa parte dos demais continentes e regiões colocados sob a influência ou dependência dos grandes impérios ocidentais. Churchill, pela sua obstinação, sua ousadia, sua coragem, determinação, pertinácia e grande visão estratégica sobre a condução da guerra, salvou o Ocidente e o mundo de uma descida humilhante aos horrores de um regime criminoso, dirigido por um psicopata. Churchill visou alto, consciente dos imensos sacrifícios que ele demandava ao seu povo, mas tinha absoluta certeza quanto à justeza de suas ideias, de seus princípios, em face da necessidade de salvar a democracia e as liberdades a qualquer custo. Foi um vencedor, e nunca hesitou, a despeito de enormes dificuldades, na defesa das liberdades, sabendo que qualquer preço era aceitável para preservar a soberania da Comunidade britânica.

3) Além de sua liderança, Winston Churchill também foi um grande administrador e deu exemplos sobre como comandar uma nação em tempos difíceis. Podemos citar algumas medidas importantes que ele tomou enquanto era Primeiro-Ministro?
PRA: Churchill tinha plena consciência de que não poderia enfrentar sozinho o terrível poderio da imensa máquina de guerra nazista, potencializada pelos recursos amealhados com a conquista de metade da Europa ocidental. A primeira aliança que buscou já estava em sua previsões desde muitos anos antes: com os Estados Unidos. Para seu alívio, encontrou um parceiro admirável na pessoa do presidente Franklin Delano Roosevelt, mas sem condição de ajudá-lo na fase inicial da guerra europeia, talvez a mais terrível e ameaçadora para a sobrevivência da Grã-Bretanha, uma vez que o líder americano se encontrava constrangido pelo isolacionismo do Congresso, e impedido de conceder ajuda militar direta. A solução encontrada foi a negociação dos famosos empréstimos de aluguel e arrendamento de equipamentos de todo tipo, a serem pagos, ou “devolvidos”, numa fase posterior.
Paralelamente, Churchill negociou com Roosevelt uma “Carta do Atlântico”, em agosto de 1941, base da constituição das Nações Unidas, com fundamentos nas quatro liberdades proclamadas pelo presidente americano em janeiro desse ano: a liberdade de expressão, a religiosa, a da penúria e a do medo. A Carta do Atlântico ia até mais além, ao proclamar um conjunto de princípios e de objetivos que deveriam guiar a ação das nações aliadas contra a ofensiva dos totalitarismos. Logo secundados por uma série de outros países democráticos – vários com governos no exílio, muitos em Londres –, os pontos principais da declaração cobriam as seguintes questões: ausência de ganhos territoriais, autodeterminação dos povos, ausência de barreiras comerciais ao livre intercâmbio, cooperação econômica entre os países em busca de bem-estar social, liberdades pessoais e de trânsito por todos os mares e o desarmamento das potências agressoras ao final do conflito.
Simultaneamente a essa aliança entre as duas principais nações ocidentais de base comum anglo-saxã, a União Soviética – vista como a grande inimiga do Ocidente por Churchill durante boa parte do primeiro pós-guerra – era invadida em junho de 1941 pela Alemanha nazista; desfazia-se, assim, o vergonhoso pacto de mútua conveniência estabelecido em agosto de 1939, que permitiu justamente o deslanchar da guerra pelas forças hitleristas contra a Polônia, país também atacado pela URSS em suas fronteiras orientais. Churchill não hesitou um só instante em vir em socorro imediato da União Soviética contra a invasão nazista, forjando-se então uma aliança entre dois antigos inimigos. No final de 1941, o ataque japonês contra a frota americana estacionada em Pearl Harbor, no Havaí, abriu uma nova frente no conflito até então europeu, que tornou-se, assim, verdadeiramente global, uma vez que a Alemanha também declarou guerra contra os Estados Unidos. Churchill conseguiu completar assim a arquitetura da contraofensiva para responder à ameaça do totalitarismo nazista, ainda que numa primeira fase, até 1943 praticamente, as perspectivas para as nações aliadas, tanto na frente europeia, quanto nos teatros da Ásia Pacífico, fossem as piores possíveis. As frentes de vitória foram sendo conquistadas pouco a pouco, no norte da África, no Mediterrâneo, na Itália, nos espaços marítimos do Pacífico, nas imensas estepes e planícies da Rússia soviética e, finalmente, na frente da Europa ocidental, a partir da Mancha, quando da invasão do Dia D – 4 de junho de 1944 – nas costas da Normandia. A partir daí a vitória estava assegurada, mas um ano ainda se passou antes que as potências militaristas fascistas fossem vencidas com enormes sacrifícios em homens e em material por parte das nações aliadas. O Brasil também participou desse esforço, enviando tropas ao teatro italiano, integradas ao V Exército americano. 

4) Também houve avanços na área econômica? Quais?
PRA: Os avanços não foram significativos do ponto de vista exclusivo do Reino Unido, que enfrentou uma gigantesca perda patrimonial e financeira, ao engajar todos os seus recursos humanos e materiais no esforço de guerra, mas eles foram relevantes do ponto de vista da construção de uma maior interdependência entre as democracias de mercado, e tremendamente importantes no plano na formulação e implementação de uma nova ordem econômica multilateral, a partir do final da guerra. Esse processo teve início ainda durante a guerra, com os acordos econômicos efetuados entre os EUA e o Reino Unido, a própria URSS e o Brasil, no momento oportuno. Funcionários britânicos e representantes americanos discutiam, desde 1941, o tipo de ordenamento econômico que deveria prevalecer no pós-guerra, sem o bilateralismo estrito vigente anteriormente, o protecionismo comercial, os regimes discriminatórios em matéria econômico, e a ausência completa de um sistema monetário e cambial, compatível com as novas regras e princípios multilateralistas que começavam a ser desenhados desde essa épocas. Uma primeira aproximação a essa nova arquitetura da ordem econômica internacional do pós-guerra foi discutida e aprovada em Bretton Woods, em junho de 1944, quando se adotam duas novas organizações interestatais, o FMI e o Banco Mundial, para regular as relações monetárias e financeiras entre os países. 
Muito do esforço feito nessa conjuntura consistia inclusive no desmantelamento do protecionismo comercial existente no Commonwealth britânico, atingia fortemente os interesses econômicos dos EUA, assim como no desenho de uma arquitetura monetária que não fosse automaticamente redistributiva – em detrimento dos países superavitários, como os EUA, e em favor dos deficitários, como o Reino Unido – ou excessivamente permissivo quanto a desequilíbrios fiscais e estabelecimento de paridades cambiais. Algum esforço se fez para acomodar as peculiaridades das economias socialistas – até Bretton Woods se tratava unicamente da URSS – mas ao final os soviéticos decidiram não aderir ao FMI ou ao Banco Mundial, a despeito de os EUA se oferecerem para ajudar na integralização das cotas de contribuição original. O Brasil aderiu relutantemente aos novos princípios, mesmo sem ter conseguido obter satisfação no tocante a seus interesses prioritários, que eram a estabilização dos preços dos produtos primários de exportação (basicamente o café, nessa altura). 
Em todo caso, com as adaptações requeridas após sucessivos choques ocorridos desde o início dos anos 1970 – fim das paridades fixas de câmbio, alta dos preços do petróleo, volatilidade nos mercados de capitais e nas taxas de juros, dívidas excessivas e déficits orçamentários –, o sistema de Bretton Woods prevaleceu amplamente, logrando inclusive a adesão das potências socialistas, antes mesmo do abandono parcial ou completo das deformações antimercado nos anos 90 do século XX. Mas Churchill não esteve associado a nenhum desses processos, a não ser na fase inicial dos arranjos bilaterais entre o Reino Unido e os EUA, e na tentativa de preservação do antigo poderio do Império britânico, que começou a soçobrar no imediato pós-guerra, com a independência da Índia, em 1947. 

5) Ele também nos ensinou muito sobre como gerir recursos escassos durante grandes crises? 
PRA: Winston Churchill sempre soube administrar muito bem recursos extremamente escassos, que são as qualidades do estadista em face de grandes desafios e de graves crises, que, no caso da Grã-Bretanha, chegaram inclusive a ameaçar a sua sobrevivência enquanto nação independente, enquanto país livre, enquanto domínio das liberdades democráticas. Ela era um patrimônio dos mais altos valores dos direitos humanos e da dignidade de uma pátria livre de todo despotismo, praticamente desde a Magna Carta de 1215. Esses recursos podem ser representados, pela ordem, pelas seguintes qualidades: a capacidade de ter uma visão clara sobre o que é essencial, o que é estratégico no plano das liberdades democráticas e da ordem política liberal que deve presidir à organização do Estado num regime de mercados livres; em segundo lugar, uma coragem inflexível para arrostar qualquer dificuldade, enfrentar qualquer desafio, qualquer ameaça a esse regime de liberdade e dignidade; igualmente uma confiança inabalável na capacidade do povo em suportar todas as durezas de uma grave crise, quando orientado por um líder dotado de visão estratégica e comprometido com a felicidade e o bem-estar de seu povo. A sinceridade na expressão dos problemas a serem enfrentados, o oferecimento de uma via de solução aos problemas existentes, sem qualquer demagogia política ou populismo econômico, a transparência na condução dos negócios do Estado, o respeito absoluto aos valores e princípios democráticos e aos direitos humanos, são recursos escassos na maior parte dos casos e das experiências nacionais ao longo da história. 
Esses recursos se encontraram numa feliz conjunção de grande educação política, vivência militar, amplo conhecimento da geopolítica mundial e visão realista das capacidades do seu povo e do seu país na figura excepcional que foi esse homem nascido no auge do Império britânico e que assistiu ao seu lento declínio ao longo do século XX. Winston Churchill foi, sem qualquer dúvida, um indivíduo absolutamente excepcional para o seu próprio povo, mas também para todo o mundo, sendo, muito provavelmente, o maior estadista do século XX e, talvez, uma das mais importantes personalidades da história mundial, de todos os tempos. Se não fosse por sua obstinada resistência à avassaladora máquina de guerra nazista, talvez todo o continente europeu, possivelmente toda a Eurásia, e boa parte de outros continentes, permanecesse subjugado pelo totalitarismo nazifascista durante vários anos, em circunstâncias dificilmente previsíveis de superação da dominação e de pleno restabelecimento das liberdades democráticas. A Europa e o mundo lhe devem muito, e não só na guerra.
Não podemos tampouco esquecer que, uma vez vencido o projeto totalitário da direita, e já não mais como primeiro-ministro, Winston Churchill liderou uma nova resistência contra o totalitarismo de esquerda, representado pela União Soviética, no imediato pós-Segunda Guerra. Suas palavras foram, uma vez mais, impactantes, mobilizando as democracias ocidentais contra uma nova e terrível ameaça totalitária. 
Sua famosa frase sobre uma “cortina de ferro”, separando a Europa ocidental da centro-oriental, indo de norte a sul, exerceram um efeito concreto sobre a disposição de grandes líderes ocidentais em unir esforços na construção de estruturas de cooperação e de integração, capazes de fortalecer as então frágeis democracias de mercado. Desde a instituição do Plano Marshall, um generoso programa de ajuda desinteressada aos países europeus destruídos pela guerra, a criação da OECE – depois transformada em OCDE –, passando pela fundação da OTAN, o pacto de segurança coletiva do Atlântico Norte, os primeiros exercícios de integração europeia – Benelux, Acordo de Paris criando a CECA, os acordos de Roma instituindo o mercado comum europeu e uma comunidade atômica –, até a cobertura militar oferecida pelos EUA a europeus e asiáticos, tudo isso garantiu uma estreita cooperação na defesa e no reforço das democracias. Todos esses processos receberam o apoio entusiástico de Winston Churchill, um promotor precoce, desde os anos 1920, de projetos de união e de cooperação entre as nações da Europa ocidental. Quando ele faleceu, em 1965, depois de novas funções governamentais nos anos 1950, pode-se dizer que sua visão de mundo tinha triunfado e seus projetos de solidariedade entre as democracias de mercado estavam amplamente assegurados na Europa ocidental e em outras regiões bafejadas pelo mesmo espírito humanista. 

6) Para finalizarmos, na sua opinião, quais são as principais lições de Churchill que podemos adotar aqui no Brasil neste novo momento que se inicia no país a partir de janeiro?
PRA: Difícil traçar lições que possam ser extraídas a partir da rica vida de um grande estadista de uma das mais antigas e estáveis democracias parlamentares do mundo ocidental para aplicar a um país relativamente excêntrico, de democracia ainda precária e insuficientemente desenvolvido como o Brasil. Não só pelas características “ambientais” da velha Inglaterra, mas também pelas qualidades próprias de Winston Churchill – um esplêndido escritor, mestre da língua inglesa, um estudioso e praticante de virtudes militares, membro do parlamento por muitas décadas, ministro em diversas ocasiões, primeiro-ministro na hora mais dramática do seu país na era moderna –, essa figura excepcional pode destacar-se como nenhum outro na história contemporânea, de sua nação e para o mundo. Parece difícil, portanto, estender suas eventuais lições às condições do Brasil atual, na ausência de condições “ambientais” favoráveis – isto é, políticas e socioeconômicas –, assim como na difícil “oferta” de líderes com status de estadistas para enfrentar desafios que não são tão dramáticos quanto o foram, no caso do Reino Unido, os desafios colocados pelos grandes totalitarismos do século XX, a era das grandes ideologias e dos regimes antiliberais da contemporaneidade. 
O Brasil enfrenta enormes desafios, certamente não tão extremos quanto aqueles com os quais se confrontou o Reino Unido, mas que provavelmente requerem, de igual forma, estadistas de certo porte, para indicar as soluções requeridas e implementar as medidas necessárias. Vou resumir ao essencial os desafios básicos que o Brasil enfrenta, e que precisam ser encaminhados de maneira adequada, para que o país possa retomar um ritmo sustentado de crescimento, capaz de apoiar um processo de desenvolvimento econômico e social, com mudanças estruturais, produzindo retornos satisfatórios em termos de renda e de bem-estar social. Esses desafios são três, sem uma ordem precisa de prioridades, mas já dando atenção urgente à maior ameaça de curto prazo: 
(1)o desequilíbrio fiscal, traduzido num grave déficit orçamentário e num aumento preocupante da dívida doméstica; 
(2) a lacuna de investimentos produtivos, tanto em razão da carência de poupança interna, quanto em função da volatilidade de políticas econômicas, macro e setoriais, ou seja, regulatórias, que inibem um fluxo contínuo e crescente de investimentos diretos estrangeiros; 
(3)a questão absolutamente dramática da baixa produtividade, problema que só encontra solução no longo prazo, mas cujas soluções precisam ser lançadas desde já, em especial no plano da educação de massa, na formação técnica especializada, no provimento de uma infraestrutura adequada, na boa governança (que assegura custos de transação reduzidos), e num ambiente verdadeiramente favorável aos negócios, o que significa amplas liberdades econômicas em nível geral.
Quais lições Winston Churchill poderia dar a um candidato a estadista que, no Brasil, decidisse empreender essas tarefas, não tanto de salvamento, como foi o seu caso em 1940, mas de recuperação, depois da Grande Destruição lulopetista da economia, acoplada ao maior caso de corrupção política de toda a história brasileira, um esquema gigantesco de assalto aos recursos do Estado e da população que não encontra paralelo em nenhum outro país do hemisfério ocidental, e quiçá do mundo? Vejamos quais lições poderiam ser sugeridas, se não as de Churchill, os seus equivalentes funcionais.
Em primeiro lugar, uma boa experiência de vida – no caso de Churchill na vida militar, mas que pode ser na vida empresarial também –, agregada, de preferência a uma boa experiência governamental. Churchill foi parlamentar por várias décadas, ministro por diversas vezes e duas vezes primeiro ministro, uma delas em condições extremas de desafios externos, no limite supremo da capacidade de resistência, sua pessoalmente, e do país, enquanto comunidade unidade num propósito convergente de defesa e de sobrevivência do próprio Estado. No caso do Brasil, tal grau de perigo não está em absoluto colocado, pois nossos inimigos são essencialmente todos internos, todos eles situados no próprio Estado ou pululando em volta dele, rentistas e oportunistas. 
Em todo caso, a primeira condição para a superação dos nossos problemas está em assegurar uma visão clara dos problemas a serem resolvidos, como já expostos: um problema de curto prazo de natureza fiscal, um de médio prazo relativo a investimentos produtivos, um terceiro de longo prazo tocando ao crescimento da produtividade do trabalhador nacional, mas que deve ser imediatamente enfrentado a partir de um diagnóstico correto quanto às suas fontes e causas específicas. Pessoalmente, considero os problemas fiscais e de investimentos de mais fácil resolução, pois medidas técnicas podem oferecer as soluções adequadas, ainda que elas sejam difíceis: redução radical dos gastos públicos, diminuição do peso do Estado na vida econômica, privatização ampla das estatais ainda existentes (de preferência todas elas), reforma tributária no sentido da redução da carga fiscal, limitação do extremo corporativismo existente no coração do próprio Estado e diminuição impiedosa dos inaceitáveis privilégios dos mandarins estatais, a começar pela aristocracia do Judiciário, nosso equivalente do Ancien Régime. Agregaria ainda a eliminação da burocracia e da regulação dispensável, do protecionismo exagerado, com imediata abertura econômica e uma liberalização comercial unilateral, seguida de atração irrestrita e indiscriminada de capitais diretos estrangeiros, em todos os setores abertos à produção de bens e serviços de consumo corrente, para atender à população, e mesmo o Estado, e sobretudo o comércio exterior. 
Por outro lado, sou bem mais pessimista quanto à solução do grande problema da produtividade, pois ele depende de uma revolução no sistema educacional, que não vejo como facilmente ou rapidamente implementável, dada a estreiteza mental dos nossos pedagogos e acadêmicos em geral. O Brasil teria de deixar de lado suas imensas deformações nos três níveis de ensino, em especial a baixa produtividade dos mestres e professores, fruto de uma formação deficiente e de um sindicalismo de baixa extração, isonomista e anti-meritocrático, o que torna impossível trabalhar com o material humano existente. O Estado precisa fazer um enorme esforço em direção dos primeiros níveis, ou seja, uma escola pública de boa qualidade para os ciclos fundamental, médio e técnico-profissional, e conceder ampla liberdade às instituições do terceiro ciclo, com atribuição de uma dotação básica para o seu funcionamento, e total autonomia de gestão para resolver seus outros problemas de financiamento em bases de mercado.
Para empreender tudo isso se requer um estadista que consiga explicar de modo claro seus objetivos à população e ao parlamento, colocando a barra de realizações bem alta, para mobilizar a sociedade e o corpo representativo. O objetivo seria, nada mais, nada menos, o de converter o Brasil em país desenvolvido no espaço de uma geração, o que é extremamente desafiador. Para isso, ademais de uma visão clara quanto aos objetivos e metas, a palavra de ordem, única e exclusiva, só pode ser um: trabalho duro. Um esforço incessante, sem esmorecer, mas em comunicação contínua com o povo. Nunca deixar que as dificuldades se interponham ante o objetivo máximo estipulado em cada uma das reformas: as frustrações ocasionais ou temporárias não podem ser motivo para se desviar da rota traçada. Nunca atribuir a outros o insucesso parcial de algum objetivo específico, mas buscar sempre as melhores vias, eventualmente alternativas, para o atingimento dos objetivos fixados. Estas talvez fossem sugestões de Churchill.
Estar satisfeito com o que se faz, ter respeito pelas opiniões diversas, discutir abertamente com auxiliares e adversários, sempre responder aos questionamentos, nunca eludir as questões interpostas com objetivos divergentes, também são atitudes que Churchill provavelmente recomendaria a qualquer homem de bom senso, sem que este seja necessariamente um estadista. Grande abertura de espírito, disposição para sempre estudar, sempre aprender, revisar seus conceitos e opiniões, se informar sempre, questionar, examinar, pedir os custos (não só os nominais, mas também o custo-oportunidade) de cada ação empreendida, estas constituem outras possíveis lições, as quais convém considerar com atenção, churchillianas ou não. Por fim, nunca se pode esquecer o lado moral de cada ação humana, aspecto indissociável das democracias.
Se ouso agregar uma atitude pessoal, eu teria uma única recomendação: ser um contrarianista, não no sentido negativo, mas no sentido do questionamento de todos os problemas e soluções inscritas na agenda de mudanças e de reformas. Eu me guio por uma atitude básica: ceticismo sadio, ou seja, nunca tomo uma proposta pelo seu valor de face; examino o outro lado, vejo os antecedentes e consequências e, uma vez certificado que estou bom caminho, sigo em frente. 
Resolução e propósito na ação são duas boas atitudes a observar, e acredito que Churchill concordaria com essa postura. Por fim, caberia preservar uma característica que considero ser o valor máximo num estadista, ou em todo e qualquer trabalhador acadêmico: a honestidade intelectual...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de novembro de 2018

Grande estrategia e idiossincrasias corporativas: George Kennan - Paulo Roberto de Almeida

uma reflexão a partir da experiência de George Kennan

Paulo Roberto de Almeida

Lendo a biografia de John Lewis Gaddis, sobre o grande diplomata e historiador americano, que dominou a segunda metade do século XX, George F. Kennan: An American Life (New York: The Penguin Press, 2011), deparo-me com um trecho, relativo ao ano de 1943, quando Kennan era encarregado de negócios na legação dos Estados Unidos em Lisboa; negociações eram conduzidas na capital portuguesa para assegurar o uso, por forças americanas, dos Açores, como plataforma absolutamente indispensável para conduzir as operações europeias da Segunda Guerra Mundial em sua vertente norte-atlântica:
“[George Kennan] began to develop... a new sense of responsibility within the duties assigned to him: at several points over the next few years Kennan took risks that jeopardized his own Foreign Service career because he thought that the nationalinterest demanded that he do so. Obliged to operate for the first time at the level of grand strategy, he found the rules oh his profession falling short. He chose, successfully but dangerously, to violate them.” [Loc 3387 of 18204 Kindle edition, Amazon].
Gaddis informa ainda, na sequência dessa passagem, as circunstâncias em que Kennan decidiu assumir vários riscos em sua carreira, violando deliberadamente várias regras do jogo, tal como definidas por instituições excessivamente burocráticas ou muito conservadoras, quanto o Departamento de Estado ou o comando das Forças Armadas, como se pode depreender desta transcrição adicional:
During the Azores base negotiations [com o próprio Primeiro-Ministro português Antonio de Oliveira Salazar], Kennan violated at least four rules, any one of which could have him sacked from the Foreign Service. He exceeded his instructions in a conversation with a foreign head of government. He refused to carry out a presidential order. He lied, to another government, about the position of his own. And he went over the heads of his superiors in the State Department – as well as the secretary of war and the Joint Chiefs of Staff – to make direct appeal to the White House.” (Loc 3436 of 18204 Kindle edition, Amazon).

Estas passagens chamaram-me obviamente a atenção, ou “struck a cord on me”, como diria o próprio Gaddis, provavelmente o maior historiador vivo da Guerra Fria e o único biógrafo autorizado de George Kennan. Explico por que, já que isso tem a ver com a mesma sensação de barreiras burocráticas e conservadoras, em assuntos que demandariam uma visão mais larga dos processos diplomáticos, que eu já enfrentei na carreira. Não querendo me comparar a George Kennan, possivelmente o maior especialista diplomático americano em assuntos russos que jamais existiu nos anais daquele serviço diplomático, mas eu também adquiri, ainda antes de ingressar no serviço diplomático, uma percepção histórica e estrutural de muitos dos temas que compõem, burocraticamente, a agenda diplomática corrente. 
Tendo começado a estudar os assuntos brasileiros desde muito cedo – compulsando uma bibliografia de nível universitário, ou de pesquisa especializada, ainda quando estava em meio aos estudos do ciclo médio – desenvolvi provavelmente de maneira muito precoce um cuidado com a análise do contexto, dos precedentes históricos, e dos impactos estruturais ou implicações políticas de cada um dos problemas com que me deparava em minhas leituras ou pela leitura dos jornais de maior qualidade em suas edições dominicais (invariavelmente o velho jornal conservador O Estado de São Paulo, ainda quando discordasse profundamente de seus editoriais, que julgava representativos das opiniões da “classe dominante”). Foram anos, em meados da década de 1960, em que eu lia os grandes mestres da teoria social brasileira, entre eles os representantes da “escola paulista de Sociologia” – que pouco depois se tornaria minha alma mater, ao ter ingressado no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – e através dos quais eu filtrava minhas reações aos editoriais “reacionários” do Estadão, combinando todas essas leituras para refletir sobre os caminhos do desenvolvimento econômico e político brasileiro, no quadro das crises contínuas que agitavam o período que se tinha iniciado com o golpe de 1964, e que eu imaginava combater pela via do socialismo e de um governo comprometido com a “ditadura do proletariado”. 
Independentemente dessas ilusões e descaminhos ideológicos – que foram sendo corrigidos tão pronto eu deixei o país, no final de 1970, para conhecer o triste cenário do socialismo real do leste europeu e as nuances dos capitalismos realmente existentes na Europa, durante quase sete anos – eu adquiri, a partir desses hábitos juvenis de leitura, um sentido de abrangência analítica e de inserção contextual que me acompanharia pelo resto da vida, sobretudo no domínio profissional, quando ingressei na carreira diplomática, poucos meses depois de voltar da Europa em 1977. Mas o que isso quer dizer, no quadro desta seleção de trechos da biografia de Kennan por Lewis Gaddis? Explico-me agora mais detalhadamente. 
Ingressei no Itamaraty ainda na era militar, quando ainda pensava em derrubar o regime, embora não mais pela via das armas e sim pela via da pressão democrática. Tampouco pretendia converter o Brasil em uma nova Cuba ou uma nova China, como talvez fosse a intenção em meados dos anos 1960; mas o modelo ainda seria algo bem próximo do socialismo democrático europeu, que eu julgava bem mais propenso a empreender a correção das tremendas injustiças sociais em vigor no Brasil, desde sempre, do que, alternativamente, a visão mais pró-mercado que não tenho hesitação em defender atualmente. Nessa época, eu ainda era obrigado a escrever artigos com algum nom de plume, já que minhas “convicções radicais” provavelmente chocariam meus colegas e superiores diplomáticos – que eu considerava todos alinhados ao regime – e chamariam a atenção dos órgãos de segurança, especialmente ativos naquela conjuntura, quando a repressão física tinha amainado, mas o controle de inteligência continuava atento a todas as manobras da oposição ao governo militar.
Tendo iniciado minha carreira no Itamaraty por uma divisão secundária, a do Leste Europeu (então todo ele dominado pela União Soviética), pude distinguir-me rapidamente em alguns trabalhos analíticos, inclusive porque, ademais dos boletins da Radio Free Europe e da Radio Liberty – ambas financiadas pela CIA, obviamente – que líamos na DE-II, eu possuía um conhecimento interno, se ouso dizer, sobre o funcionamento desses regimes autoritários, já que tinha militado na esquerda marxista durante tempo suficiente para aprender – e apreender – todos os trejeitos vocabulares e as muitas peculiaridades políticas do mundo comunista. Recordo-me, em todo caso, de uma informação que preparei sobre o quadro político no leste europeu, em especial sobre a situação da Polônia, no imediato seguimento, em 1978, da surpreendente eleição do cardeal Karol Wojtila como o novo papa, de nome João Paulo II. Ao que parece, minha análise abrangente das implicações dessa escolha para todo o leste europeu e para o poder comunista foi devidamente apreciada pelos meus superiores, para ascender ao conhecimento do Gabinete do ministro, o que constitui, no Itamaraty, uma marca de distinção a dividir os assuntos que permanecem na “senzala”—como sempre foram depreciativamente chamados os serviços setoriais das divisões, no Anexo – e os que ascendem ao conhecimento da Casa Grande, como se designavam, respeitosamente, os dois gabinetes do Palácio. 
Não exatamente por esse episódio específico, mas talvez mais pelo meu jeito histórico-intelectual de interpretar cada iniciativa ou resposta do serviço diplomático brasileiro, em função de um contexto mais vasto, no tratamento dos assuntos da agenda corrente, fui sendo considerado um diplomata especial, ou diferente, talvez bizarro, em todo caso colocado num clube à parte, não necessariamente melhor, dessa tribo de elite dos servidores do Estado. De um lado, nunca tive que mendigar postos ou posições no curso da carreira, já que em geral recebia convites para servir em tal posto ou tal unidade da Secretaria de Estado; de outro lado, jamais me dediquei a “pescar” votos de colegas ou implorar apoio de chefes para ser promovido na escala funcional, o que ofenderia meus princípios pessoais, ou minha maneira de ser, mas que pode ter irritado muita gente da corporação. 
Tampouco pedia permissão para escrever à minha maneira – e não naquele burocratês diplomático que tanto desprezo – ou sequer me desculpava por pensar de forma muito diferente da maior parte dos colegas ou mesmo dos superiores, e mais de uma vez ousei contestar opiniões de chefes em reuniões de coordenação, quando os fundamentos de minha posição me pareciam suficientemente sólidos para levantar o dedo e exclamar – algumas vezes na estupefação dos colegas e alguns superiores – uma frase do tipo: “Não é bem assim [Fulano]!” Acho que isso talvez não tenha ajudado no curso ulterior, ou superior, da carreira. Já ao ingressar na carreira, revoltei-me contra a exigência, que sempre julguei absurda – e anticonstitucional, em todo caso violadora dos direitos individuais, que invariavelmente coloco acima dos interesses do Estado –, de ter de pedir permissão às autoridades pertinentes para contrair matrimônio com minha esposa: um abuso e uma indignidade, a que meu espírito anarquista jamais consentiu por princípio. Numa etapa intermediária, cansado do ritual de ter de pedir permissão para publicar que fosse uma simples resenha de livro sobre temas da diplomacia, deixei de submeter textos à apreciação superior, e passei a publicar o que julgava apropriado e conveniente (ainda que exercendo algum grau de autocensura no que era cabível dizer de público sobre tão augusta Casa e tão distinguido Serviço Exterior). 
De fato, se ouso julgar, agora, as características do serviço em prol do qual exerci meus talentos nas últimas três décadas e meia, eu diria que o Itamaraty tem uma cultura muito especial, em todo caso diferente das demais corporações a serviço do Estado. Confessadamente, eu nunca fui muito adepto das manias e trejeitos dos meus colegas diplomatas: trata-se de uma carreira ultra competitiva, com altas doses de autocontenção, marcada por dogmas de disciplina e hierarquia que nunca se encaixaram bem ao meu natural libertário, exigindo ainda certo enquadramento nos rituais internos para que essa competição seja bem sucedida no plano individual, ou seja, para que ela se reflita na progressão funcional, na atribuição de postos e outras distinções. Visivelmente, eu nunca pretendi me enquadrar no estilo de rigor. Sempre mantive meus hábitos de trabalho, em parte isolado, estudando e escrevendo, de outra parte falando com sinceridade aquilo que me parecia negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental dos objetivos diplomáticos. Ainda que tal tipo de atitude possa suscitar admiração em certas áreas, acredito que essas não são as qualidades requeridas para se triunfar numa Casa que faz da obediência estrita aos superiores a pedra de toque para a inserção no inner circledos premiados oficiais.
Tomando como base o que acima vai descrito, não tenho qualquer restrição mental em confessar que, em diversas ocasiões, dissenti das opiniões oficiais da Casa – ou seja, aprovadas em alguma instância superior – no tratamento de temas específicos ou na condução de algumas negociações para as quais eu me julgava especialmente preparado, em função, justamente, dos estudos que eu conduzia paralelamente à carreira, para aprofundar-me nos assuntos que me eram atribuídos. Uma atitude desse tipo não é fácil de ser assumida, quando se trata, não das preliminares para a formulação de uma posição negociadora, mas de instruções formais, consubstanciadas em telegrama da série, com base na qual a resposta invariável do diplomata obediente deve ser: “Cumpri instruções”, e o chefe do posto passa a relatar como ele se ateve fielmente às ordens emanadas da Santa Casa.
Pessoalmente, já passei por esse tipo de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado multilateral. Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que poderiam ser mobilizados em favor de teses diferentes ou alternativas, por mais racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.
Não tive medo de fazê-lo, naquele momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo, com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. Numa casa “feudal”, como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.
Mas o assunto supera as atitudes individuais de um diplomata, para adentrar no terreno mais complicado das questões macro-políticas, ou se quisermos, no eterno debate sobre como interpretar o chamado “interesse nacional”, um conceito altamente difuso para permitir qualquer tipo de argumento não fundamentado ou especioso. Não vou tratar das bases epistemológicas do que, exatamente, constituiria o interesse nacional nos limites desta reflexão, mas vou tratar da questão no contexto da própria formação e educação dos diplomatas. Acredito, com base numa avaliação puramente subjetiva, que poucos diplomatas têm uma cultura econômica verdadeira, ou seja, o instrumental analítico de cunho histórico e econômico que poderia levá-los a analisar uma questão qualquer de política externa do ponto de vista daquilo que os economistas chamam de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiência paretiana dos meios e fins, que não se restringe ao melhor emprego dos recursos, ou a um cálculo sobre o retorno dos investimentos, mas envolve todos os “fatores de produção” de um determinado assunto diplomático. Tudo, ou quase tudo, na diplomacia, é feito de forma muito politizada e, por vezes, de forma irracional, já que levando em conta circunstâncias imediatas e as preferências políticas de quem manda, não necessariamente os interesses de mais longo prazo da nação.
Teríamos inúmeros exemplos de decisões claramente absurdas, no contexto mais vasto das tradições diplomáticas brasileiras, tomadas em certo período, e que no entanto foram tomadas, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa ou mesmo política; eximo-me, por razões diversas, mas claramente compreensivas, de discorrer sobre elas neste momento. O fato é que, em momentos como esses, o ator em questão tem várias escolhas, todas elas difíceis: submeter-se passivamente a instruções que ele pode julgar prejudiciais ao país ou ao serviço, no contexto dos interesses de mais longo prazo; negar cumprimento e argumentar alternativamente ao que julga contrário a suas convicções ou avaliação do tema em apreço; afastar-se do processo, com prejuízo pessoal ou fricção funcional. 
Minhas próprias atitudes sempre foram pautadas em função de minha trajetória habitual de estudos e de busca de coerência lógica no processo decisório, esforçando-me por manter minha indispensável integridade intelectual, em face de eventuais adversidades momentâneas, que sempre julgo devam ser afrontadas com serenidade e com a dignidade funcional que devem guiar o comportamento de membros de uma corporação como esta à qual pertenço. Em tempos difíceis de submissão a vocações autoritárias essas atitudes cobram um preço por vezes difícil em termos pessoais, mas a coerência e a honestidade na defesa de certos princípios, que reputamos mais elevados do que a acomodação servil, e a consciência de se estar defendendo causas mais altas do que as escolhas sectárias do momento constituem os prêmios mais gratificantes que se possa ter num itinerário de vida. 
Vale persistir, como aliás demonstrou o próprio George Kennan, ao abandonar a carreira diplomática, para ingressar numa categoria à parte da história intelectual de seu país, como um grande pensador das relações internacionais dos Estados Unidos. Sem aspirar a tanto, e sem renunciar a uma carreira que me trouxe tantos benefícios intelectuais e pessoais, vou persistir na defesa da coerência com o livre pensamento mesmo nos tempos sombrios e tristes de um outro regime autoritário.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2409: 14 de julho de 2012.
Postado novamente no Diplomatizzando em 4/01/2016 (link: http://www.diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/01/george-kennan-era-um-contrarianista.html).


A arte de escrever para si mesmo - Paulo Roberto de Almeida


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de julho de 2012.

No decorrer da maior parte da minha vida, talvez quatro quintos de uma existência dedicada à constante leitura de livros, à reflexão solitária e à redação regular de textos de diversos tipos, o que mais fiz, de fato, foi escrever para mim mesmo. 
Salvo no período mais recente, quando tenho aceito (talvez muito facilmente, e em excesso) compromissos de colaborar com revistas ou livros coletivos, a maior parte de meu tempo livre, durante os últimos quarenta anos, tem sido ocupada pela redação de textos que só tinham um único destinatário: eu mesmo. 
Não por outra razão, minha lista de originais é três vezes mais volumosa do que a correspondente aos trabalhos publicados. Na verdade, minha lista de originais cobre apenas uma parte modesta de meus escritos, aquela de trabalhos efetivamente terminados, com um ponto final, assinados, datados e localizados, e finalmente numerados na ordem sequencial de seu término, não importando quando e onde iniciados.
Os trabalhos apenas esquematizados, iniciados, mas não concluídos, comporiam uma lista ainda mais longa, se por acaso tal lista existisse. Eles estão dispersos, perdidos numa infinidade de pastas, guardadas por sua vez em outras pastas, sem muita ordem ou método, quase sem títulos evocativos, a não ser os de alguma inspiração momentânea. Em todo caso, essas centenas, talvez mais de um ou dois milhares, de working filescompõem uma formidável armada – ou exército, como se queira – de reserva, aguardando retomada oportuna em algum tempo livre (que, sabemos todos, nunca virá). Só sei dizer que esses working files, escritos unicamente para mim, nunca entraram na pasta “PRAworks”, organizada em listas anuais (como para a lista de Publicados). Eles ficam simplesmente dispersos, por vezes sob títulos enigmáticos, em pastas dotadas de rótulos anódinos, o que dificulta sobremaneira sua recuperação ulterior para finalização. Muitos estão até esquecidos, coitadinhos, relegados a um limbo do qual até a intenção ou propósito iniciais também há muito se perderam. Esta é mais uma prova, além da quantidade enorme de inéditos, de que eu realmente escrevo para mim mesmo. 
Mas mesmo naqueles escritos “encomendados”, eu jamais aceitei qualquer sugestão de linhas “condutoras”, estilo discursivo ou orientação argumentativa, tanto porque sou eu mesmo quem decido como e com quais objetivos desenvolverei minha linha de raciocínio. Nisso sou absolutamente libertário, inclusive já o era mesmo nos textos oficiais, nos quais sempre escapei do diplomatês insosso no qual se deleitam tantos colegas de carreira. 
Estas são, finalmente, as características da arte de escrever para si mesmo: livre inspiração, total controle do estilo e do método de abordagem, independência de pensamento e plena autonomia argumentativa, decisão solitária sobre como e onde divulgar ( o que não é o mesmo que publicar, já que isto depende de algum editor de revistas ou livros).
Em todo caso, com uma dezena e meia de livros publicados em autoria solitária, meia dúzia de títulos editados por mim e várias dezenas de capítulos em livros coletivos, não posso dizer que eu esteja carente de editores. Recebi, é verdade, convites de editores para compor, ou seja, escrever eu mesmo, tal ou qual livro, mas declaro imediatamente que, a despeito de ter considerado certas sugestões, nunca levei adiante qualquer uma dessas demandas; tampouco ofereci projetos de livros a editores: faço apenas o que me dá vontade. Recém aceitei fazer um “sob encomenda”, sobre a integração regional, mas apenas porque eu teria total controle sobre o que e como escrever. 
Repito, e finalizo: eu escrevo para mim mesmo, leitores são apenas um detalhe do processo (com perdão dos próprios). Como não vivo do que escrevo – pelo menos ainda não – não preciso agradar qualquer público quanto à forma ou o conteúdo daquilo que produzo, em total autonomia. Se, ao cabo de alguns laboriosos exercícios de escrita, chego ao que considero a forma final de algum trabalho, e aprovei o que eu mesmo escrevi, coloco um ponto final, acrescento o local e a data (eventualmente consignando algumas etapas precedentes), registro, finalmente, na lista numérica dos originais e me dou por satisfeito. Quanto ao julgamento dos eventuais (e poucos) leitores, creio que eles devem dispor de tanta liberdade de avaliação quanto a que eu tive na concepção e redação desses meus textos. 
Ponto final, a mais um! Vale!
Brasília, 15 de julho de 2012.

domingo, 25 de novembro de 2018

Minha critica 'a tese das "assimetrias estruturais" e ao Focem do Mercosul - Paulo Roberto de Almeida

O trabalho abaixo, retirado e revisto por mim a partir de um ensaio bem mais volumoso, de 2013, sobre os processos de integração, constitui uma análise de uma das maiores estupidezes  – foram muitas, entre elas o tal de Sul Global – perpetradas pelos companheiros CONTRA o processo de integração do Mercosul, consistindo na criação de um Fundo (alimentado a 70% pelo Brasil, pelo menos enquanto existiu dinheiro) que visava corrigir supostas "assimetrias estruturais" no bloco do Cone Sul.
Não só não corrigiu essas assimetrias como conseguiu desviar o Mercosul de seus objetivos básicos: o livre comércio e a integração à economia mundial.
Aceito contestações às minhas "teses", embora eu não tenha teses, apenas argumentos racionais. Quem tem "teses absurdas" são os companheiros aloprados, que conseguiram não apenas destruir a economia brasileira, como atrasar o Mercosul. 
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de novembro de 2018

As assimetrias estruturais e seu papel no processo de integração

Paulo Roberto de Almeida

Existe uma crença, não necessariamente destituída de fundamentos materiais – mas que são construídos de forma a parecerem impedimentos graves – e que é partilhada por economistas e decisores políticos, segundo a qual um fenômeno absolutamente corriqueiro na trajetória humana sobre a terra, as assim chamadas “assimetrias”, é apresentado como constituindo um obstáculo absoluto ou relativo à construção de um espaço econômico integrado, com base em acordos formais. Essa crença, que alguns pretendem transformar em tese, afirma que diferenças muito grandes entre os parceiros de um determinado bloco provocariam uma distribuição desigual dos benefícios da integração, necessitando, portanto, assim como outras externalidades negativas ou fatores de desequilíbrio de capacidades, a correção dessas diferenças, ditas assimetrias, por políticas dos governos, de maneira a propiciar um desenvolvimento harmônico e equilibrado entre esses parceiros.
Os fundamentos da “tese” parecem reais: existem diferenças efetivas entre os países, e elas podem ser de enorme monta, como as que separam, por exemplo, o gigante americano do norte, os EUA, dos seus vizinhos do Caribe e da América Central, ou ainda, a Alemanha do pequeno Luxemburgo ou da Dinamarca, tanto em termos de tamanho físico de território e população, como em virtude da magnitude do PIB ou recursos financeiros, tecnológicos e militares. Essas são, por assim dizer, diferenças visíveis, ou dadas por indicadores primários, mas que não levam em conta, por exemplo, o fato de que o PIB per capita do Luxemburgo é, aproximadamente, o dobro do da Alemanha, ou de que outros indicadores de natureza qualitativa possam indicar “assimetrias” ainda maiores em favor do pequeno grão-ducado.
Existem, grosso modo, três tipos de assimetrias que costumam caracterizar os países membros de um mesmo processo de integração: (a) as físicas, ou estruturais, de fato, ou seja, visíveis e expressas em dados objetivos (território, população, recursos, PIB, forças armadas, etc.); (b) as conjunturais, ou seja, derivadas de ritmos e ciclos econômicos ou vinculadas à agenda interna ou externa de atuação dos governos respectivos (crescimento, dívida, déficits, situação cambial e de balanço de pagamentos, desemprego, etc.); (c) as políticas, ou governamentais, quais sejam, as orientações de políticas macroeconômicas, microeconômicas e setoriais, que podem influenciar decisivamente o processo de integração (estruturas fiscais, políticas monetária e cambial, políticas comercial e industrial, mercado de capitais e instituições de financiamento, dinâmica da inovação tecnológica, etc.). Essas assimetrias, que podem afetar negativamente um processo de integração, são, a rigor, características próprias a todos os países, em quaisquer situações possíveis de relacionamento entre eles, sobretudo no plano comercial, o mais visível, corriqueiro e frequente vínculo entre economias e sociedades em todo o globo. 
Para sermos mais claros: o mundo todo é “assimétrico”, uma vez que não existem dois países que tenham as mesmas dotações, capacidades e políticas econômicas, e tanto a história quanto a política sancionaram essa realidade, ao fracionarem a comunidade global em quase 200 Estados soberanos e algumas dezenas de organizações intergovernamentais que tratam, precisamente, das diferenças e dos vínculos entre essas nações independentes. O mundo sempre foi assimétrico, sempre será assimétrico, e é em função dessas assimetrias que existiram e existem guerras – atualmente, felizmente, mais raras – e que se fazem os mais diferentes vínculos entre esses países, a começar pelo mais poderoso dentre eles: o comércio. Para quem acha que as assimetrias podem ser um impedimento à integração – que sempre é integração de mercados – pode-se simplesmente responder que se os países fossem homogêneos, ou similarmente dotados, não haveria comércio entre eles. 
O comércio internacional só existe – e é justamente mais intenso – porque existem assimetrias, porque os países são desigualmente dotados e porque apresentam as mais diferentes assimetrias entre si: estruturais, conjunturais, políticas, sociais, culturais e, sobretudo, em termos de capital humano. São as assimetrias que fundamentam as chamadas vantagens comparativas relativas, que, antes de serem, simplesmente, uma construção teórica de David Ricardo, estão na base do comércio exterior dos países; estes, pelo ato de comerciar, estão confrontando suas vantagens comparativas, ou seja, colocando em relevo suas assimetrias de todos os tipos. Assim, antes de serem vistas pelo seu lado negativo, as assimetrias devem ser consideradas um elemento positivo do relacionamento entre povos, nações, sociedades, economias.
Ocorre, com as assimetrias econômicas, supostas ou reais, existentes entre os países ou entre blocos, o mesmo fenômeno que é registrado a propósito dos mercados: eles seriam perfeitos se não fossem as suas falhas, também supostas ou reais. Dessa constatação decorre a proposta demiúrgica segundo a qual “falhas de mercado”, assim como “assimetrias”, precisam ser corrigidas pela mão visível dos governos, uma vez que a mão invisível dos mercados, ou a ação livre destes últimos não seriam capazes, por si sós, de corrigir essas falhas e desequilíbrios. Nascem assim as propostas de regulação estatal e de convergência de capacidades produtivas, como se elas fossem o remédio indispensável ao que é percebido como distorção do terreno de jogo pelo grande diferencial entre os atores e suas respectivas dotações de fatores. 
O assunto é obviamente bem mais complexo do que o permitido para exposição e debate no quadro de um simples ensaio, mas talvez alguns exemplos práticos possam ajudar. Eles constituem estudos de caso, cujo exame caberia aprofundar num trabalho comparativo entre processos de integração e entre modelos de desenvolvimento. Vejamos os casos da Irlanda, da África e do Mercosul.
No momento de sua incorporação à então Comunidade Econômica Europeia, ao mesmo tempo em que o Reino Unido e a Dinamarca, em 1972, a Irlanda estava, junto com os “periféricos” da Europa meridional e mediterrânea, entre as economias mais atrasadas do continente. Sua renda per capita era inferior à metade da média da comunidade, o que a habilitava a fundos compensatórios comunitários, atribuídos pela Comissão de Bruxelas, o que de fato ocorreu, num primeiro momento. As lideranças irlandesas decidiram que não poderiam reproduzir as mesmas políticas e práticas da maior parte dos países membros, baseadas numa forte tributação individual e corporativa, em ativismo estatal de cunho social-democrático, adotando, então, políticas de redução fiscal, abertura econômica, liberalização comercial, atração de investimentos estrangeiros e forte ênfase na qualificação do capital humano. Em menos de duas décadas de crescimento rápido, a Irlanda alinhou-se entre os países mais ricos da Europa, passando a exportar manufaturas de alto valor agregado, com base em suas políticas liberais e na baixa carga fiscal sobre lucros e salários. Em poucas palavras: a Irlanda reduziu supostas assimetrias em relação às economias mais ricas do continente, numa dinâmica de crescimento essencialmente caracterizada pela atuação livre e desimpedida das forças de mercado; o que houve de regulação estatal, via zonas francas e isenções fiscais, dedicou-se, justamente a explorar a abertura dos mercados europeus mediante vantagens comparativas criadas deliberadamente. 
A África ao sul do Saara, por sua vez, apresenta alguns dos países mais pobres do planeta, todos numa situação que poderia ser chamada de assimetria absoluta com respeito aos demais parceiros mais avançados do próprio continente e os de outras regiões. Durante décadas esses países foram beneficiados por transferências maciças de recursos, em nome da redução da pobreza e das assimetrias estruturais. Qualquer observador isento pode facilmente concluir que a situação socioeconômica da África não melhorou sensivelmente ao longo dessas décadas de “ajuda ao desenvolvimento”. O que os africanos menos tiveram, na verdade, foram políticas de inserção nos mercados mundiais com base em suas vantagens comparativas; eram e são justamente essas “assimetrias”, baseadas numa abundância de recursos naturais e de mão-de-obra tão barata quanto a de outros países em desenvolvimento (mas, possivelmente, não tão bem treinada quanto a chinesa), que poderiam e deverão sustentar a inserção dos países africanos na economia mundial. O comércio livre e desimpedido, o acesso aos mercados desenvolvidos, a atração de investimentos diretos constituem, precisamente, as condições para que as “assimetrias” africanas possam ser corrigidas no futuro.
O Mercosul, finalmente, cujos princípios de funcionamento compreendiam, originalmente, a plena reciprocidade de direitos e obrigações, assistiu, a partir de 2003, a uma mudança significativa nas suas principais orientações, com a diminuição da ênfase na abertura econômica e na liberalização comercial, e um aprofundamento – não explicitamente previsto no tratado constitutivo – do conteúdo político e social do processo de integração. Ademais da criação de um parlamento (sem funções efetivas, já que não dispondo de poderes decisórios) e de um instituto social (uma burocracia que provavelmente será incapaz de criar empregos na economia real), foi iniciado um programa, o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul, expressamente dedicado à redução de supostas assimetrias existentes entre os países, tendo o Brasil assumido a responsabilidade pela maior parte dos desembolsos previstos no orçamento do Focem, que na verdade representa algo em torno de 1% do PIB do bloco, tão somente.
Examinando-se os dados estruturais, conjunturais e políticos do Mercosul, é fácil de constatar que o Brasil representa, de fato, o maior parceiro do bloco, com quase 70% do seu território, população, PIB e comércio exterior; mas os indicadores individuais são, por sua vez, bem mais negativos para o Brasil do que para os demais parceiros, com a possível exceção do Paraguai até uma data recente; em todo caso, o sócio de tamanho médio, a Argentina, e o menor deles, o Uruguai, exibem indicadores socioeconômicos mais favoráveis em quase todas as vertentes contempladas nas estatísticas do Mercosul. Mas não são essas diferenças de escala que representam obstáculos absolutos ao avanço da integração. 
Antes que o Mercosul fosse criado, as diferenças já existiam, mas o bloco do Cone Sul não deixava de apresentar a maior densidade de comércio recíproco de todo o continente, com base obviamente nas vantagens comparativas naturais e adquiridas dos países. Independentemente, portanto, do tamanho de cada parceiro, os fluxos de comércio simplesmente denotavam a importância das forças de mercado para a aproximação e a interdependência de suas economias. Quando o Mercosul foi criado, a liberalização ampliada passou a confrontar empresas que antes trabalhavam em mercados reduzidos, e empresas dotadas de economia de escala, dada a magnitude do mercado interno brasileiro; se isso é certo, é também verdade que os outros três parceiros passaram a dispor de um mercado ampliado, o do Brasil, aberto a seus produtores nacionais.
Os outros três sócios do Mercosul consideraram, no entanto, e o governo brasileiro aceitou essa condição, que por ser o país o mais avançado industrialmente, e também o maior em volume absoluto e relativo – maior massa territorial, maiores mercados em vista da população, maior volume de comércio interno e externo ao Mercosul, capacitação tecnológica etc. –, o Brasil deveria conceder maiores vantagens aos demais, sem exigir reciprocidade; tampouco se procedeu a um exame isento sobre a natureza precisa das verdadeiras assimetrias que poderiam dificultar o sucesso do processo de integração. Pode-se até imaginar que o Brasil, em vista de sua boa dotação em fatores primários, possa, efetivamente, fazer o maior esforço para concretizar a integração, mas esta é uma suposição política, não uma conclusão derivada dos dados da realidade. 
De todos os membros, os indicadores sociais do Brasil só conseguem ser melhores mas não em todos – que os do Paraguai, sendo que no plano de suas assimetrias internas – desigualdades sociais e desequilíbrios regionais –, o Brasil é certamente o campeão. Mas o fato é que o Mercosul, sob a liderança de populistas na Argentina e sobretudo no Brasil – governo Lula –, foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras experiências integracionistas, no caso a europeia, como se ele devesse, sem dispor dos mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios, dar início a um programa completo de correção de supostas “assimetrias estruturais”, à custa da transferência de recursos de alguns países (ou de um, no caso o Brasil) aos demais. 
Consultando-se o orçamento do Focem, bem como sua carteira de projetos, pode-se constatar que não existe hipótese de os parcos investimentos e aplicações a fundo perdido do Focem contribuírem para reduzir as supostas assimetrias do bloco, tanto pela sua dimensão modesta, quanto pela deficiente qualidade técnica dos projetos selecionados por burocratas governamentais dos quatro países. Mais importante, porém, do que a magnitude relativa dos aportes financeiros do Focem, é o equívoco fundamental da política adotada de “correção” das supostas assimetrias. 
As chamadas “assimetrias estruturais” decorrem de fatores muito poderosos, que atuam em nível de mercado, não sendo necessariamente corrigidas por iniciativas governamentais que atuam na superfície dos problemas. A experiência histórica indica que problemas econômicos estruturais são mais facilmente corrigidos quando se atua em sentido coincidente com os mercados, do que tentando corrigir supostas “falhas de mercado” que expressam competitividades derivadas de especializações adquiridas ao longo do tempo, muito difíceis de serem alteradas por pequenos programas de financiamentos governamentais. Com efeito, não há muito a fazer com respeito às diferenças estruturais entre os países: nem a enorme dimensão do Brasil, por um lado, ou as modestas configurações do Uruguai, de outro lado, constituem, em si, vantagens absolutas ou desvantagens relativas numa relação de integração que atua com base em seus desempenhos relativos no campo da produtividade e da competividade, sempre proporcionais à dotação de fatores de cada parceiro. 
Bem mais relevantes do que os dados brutos da realidade material de cada parceiro do bloco, são as condições conjunturais de cada um deles, que são, por sua vez, influenciadas fortemente pelas políticas mobilizadas em cada caso para qualificar sua participação correspondente no processo de integração. As assimetrias mais importantes que explicam o relativo fracasso do Mercosul em completar os objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção se referem, na verdade, às diferenças entre as políticas econômicas nacionais, em geral contraditórias com os, e contrárias aos requerimentos originais do processo de integração, quando não objetivamente opostas às finalidades pretendidas (supostamente um mercado comum, ou pelo menos uma união aduaneira acabada). Os países incidem em políticas equivocadas se pensam eliminar supostas assimetrias atuando com base no ativismo estatal para contemplar modestos investimentos em infraestrutura material, quando são os efeitos negativos de suas políticas econômicas os mais importantes fatores da baixa performance do bloco no plano de sua integração efetiva. 
Os fatores que, na verdade, dividem os países do Mercosul e que representam obstáculos ou dificuldades à consecução dos objetivos integracionistas desse bloco não são exatamente as “assimetrias estruturais” normalmente apontadas, que são as diferenças absolutas entre os países membros. Elas são constituídas, primordialmente, pelas diferenças entre as políticas econômicas, em diversos setores, como por exemplo: políticas cambiais descoordenadas, com regimes de livre flutuação de um lado, rigidez de outro, ou manipulações governamentais em qualquer sentido; proteção comercial indevida, mecanismos defensivos e salvaguardas arbitrárias, quando não ilegais, no comércio entre os países do bloco; subsídios, isenções de impostos setoriais, financiamentos generosos, compras governamentais discriminatórias e regimes fiscais especiais, em benefício de produtores nacionais; adoção de normas exclusivas, sistemas de proteção ao consumidor divergentes, regras de competição não transparentes ou ausência de legislação apropriada em matéria de concorrência; sistema tributário pouco propenso à harmonização legal e uma infinidade de outras medidas setoriais ou nacionais que não permitem a coordenação com e entre os sócios. Estas são as verdadeiras assimetrias que se interpõem ao bom desempenho e à evolução positiva da integração.
A tentativa de superar supostas assimetrias, derivadas de causas estruturais, com base em políticas que tentam corrigir outras supostas falhas de mercado, está fadada ao fracasso, e não contribuirá, de fato, para o aprofundamento do processo de integração. Este só será estimulado se e quando as assimetrias de políticas econômicas forem superadas, em favor de políticas naturalmente tendentes a perseguir os objetivos originais do esquema constitutivo, quais sejam, as medidas favoráveis à abertura econômica não discriminatória e à liberalização recíproca no plano dos intercâmbios comerciais de bens, serviços e outras facilidades no contexto de um ambiente de negócios saudável e dotado de regras estáveis. Muito frequentemente, a volatilidade das políticas macroeconômicas e setoriais tem sido o principal fator de retraimento do processo de integração; o protecionismo e o nacionalismo exacerbado são dois outros elementos que, para todos os efeitos práticos, também o sabotam.
Não existe, na teoria e na história do comércio internacional, doutrinas que enfatizem a necessidade de eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em dotações naturais ou adquiridas; tampouco a prática dos intercâmbios reais entre os países exigem que todos eles se encontrem no mesmo patamar de desenvolvimento para que as trocas se estabeleçam entre eles. Ao contrário, as vantagens ricardianas sempre funcionaram magnificamente bem, em quaisquer latitudes e longitudes, e constituem fonte de ganhos líquidos para todas as partes. 
Verdades simples como esta podem servir para avaliar os programas de “correção” de assimetrias, cujos efeitos podem ser mais danosos do que benéficos. Reconversão produtiva, que vai de par com qualquer processo de integração significa adaptação aos novos requerimentos dos mercados ampliados, não equalização de condições. De resto, todos os fatores produtivos estão, teoricamente, unificados num mesmo mercado, o que deve representar um elemento positivo em termos de economias de escala e ampliação da base competitiva. Em resumo, não são os fatores próprios ao perfil dos países que dificultam a integração, e sim as assimetrias de políticas econômicas.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2013,  revisto em 2018.