Golpe? É hora do “contragolpe” nas universidades brasileiras
Querem falar sobre impeachment, sobre liberdade ou ciência? Ótimo, é mesmo preciso. Que não seja, entretanto, sob a égide da foice e do martelo balançando sobre nossas cabeças
Dennys Garcia Xavier
Gazeta do Povo, 20/06/2018
Há vida inteligente dentro da Universidade brasileira e ela está farta de se submeter. Nossa história acadêmica não é muito diversa daquela verificada em outras instâncias dependentes da “arquitetônica do jeitinho”, própria da Zumbilândia chamada Brasil.
Nos esportes, por exemplo, acontece de modo quase idêntico: não produzimos boa qualidade em série ou de forma sistemática – sequer em quantidade risível – e, então, na maioria das vezes, dependemos de talentos individuais/abnegados que surgem, aqui e ali, também como exceções que confirmam a regra da nossa reconhecida incompetência.
No mundo das Instituições de Ensino Superior, o tal “curso sobre o golpe”, multiplicado pelas Universidades tupiniquins na velocidade que só a sua mediocridade permitiria, não poderia ficar sem resposta. Resolvemos agir (e não apenas neste caso).
“Oras, mas não se pode oferecer livremente um curso sobre o tal ‘golpe’, mesmo com clara intenção ideológico-partidária, dentro de uma Universidade?”, alguém poderia justamente perguntar. Claro que pode, responderia eu, mas talvez não deva, especialmente diante de um quadro geral que coloca nosso sistema de ensino entre os piores do mundo, acompanhado de países miseráveis, alguns dos quais em guerra civil declarada.
É preciso superar a fase do medo de reputações manchadas pelo submundo universitário, das ameaças patrocinadas por colegas, da perseguição sorrateira no interior dos Departamentos e Faculdades. É preciso avançar, mesmo com o inevitável sacrifício pessoal naturalmente derivado do combate a práticas políticas que nos arrastam progressivamente para a periferia da produção científica no mundo. Somos uma pátria de analfabetos/analfabetos funcionais. E a Universidade tem enorme parcela de culpa nesta história. É preciso mudar com máximo senso de urgência.
A UniLivres, organização de alunos e professores que tem como principal objetivo exatamente a luta pela liberdade dentro das Instituições de Ensino Superior do país, oferece alternativa. Querem falar sobre impeachment, sobre liberdade ou ciência? Ótimo, é mesmo preciso. Que não seja, entretanto, sob a égide da foice e do martelo balançando sobre nossas cabeças.
Eis aqui proposta concreta: curso de extensão “Democracia e Liberdade em tempos de crise - impeachment e ciência na Universidade brasileira”. Conteúdo ministrado gratuitamente, via WEB, por cinco professores universitários distantes do universo das utopias coletivistas, obtusas e castradoras que nos levaram a fracasso inequívoco.
Estamos falando de atividade suprapartidária, de abordagem técnica, com bibliografia que não inclui, por exemplo, blogs patrocinados por vassalos de correntes políticas comprometidos com valores dificilmente confessáveis, mas sobremaneira explícitos nas trincheiras sindicais ideologicamente aparelhadas. São cinco módulos de formação, com, em média, uma hora cada, sobre Educação (Profa. Anamaria Camargo), Literatura (Profa. Fernanda Sylvestre), Filosofia (com o autor deste texto), Economia (Prof. Ubiratan Jorge Iorio) e Direito (Profa. Janaína Paschoal).
A importância de tais iniciativas? Bem, os fatos falam por si com eloquência.
Há tempos a Universidade brasileira virou as costas para a sociedade que a mantém. Há uma série de fatores que explicam o fenômeno, sem, entretanto, justificá-lo minimamente.
Em primeiro lugar, a estrutura pensada para as Instituições Públicas de Ensino Superior é o que poderíamos denominar “entrópica”. Com isso quero dizer que passam mais tempo a consumir energia para se manter em operação do que a fornecer, como contrapartida pensada para a sua existência, efetivo aperfeiçoamento na vida das pessoas comuns, coagidas a bancá-las por força de imposição estatal.
Insisto para evitar mal-entendidos: não desconsidero as contribuições pontuais e louváveis que a custo conseguimos divisar no interior das IPES. No entanto, não é esse o seu arcabouço procedimental de sustentação. Os exemplos de desprezo pelo espírito republicano e pelo real interesse da nação se multiplicam quase que ao infinito: Universidades e cursos abertos sem critério objetivo de retorno, bolsas e benefícios distribuídos segundo regras pouco claras – muitas vezes contaminadas por jogos internos de poder político –, concursos e processos seletivos pensados “ad hoc” para contemplar interesses subjetivos e pouco nobres entre outros. Em texto que contou com grande repercussão nacional, o Prof. Paulo Roberto de Almeida esclarece o que aqui alego:
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Não é segredo para ninguém que as IPES funcionam em bases razoavelmente “privadas” – isto é, são reservadas essencialmente para uma clientela relativamente rica (classes A, B+, BB, e um pouco B-, com alguns merecedores representantes da classe C), que se apropria dos impostos daqueles que nunca terão seus filhos nesses templos da benemerência pública. Na verdade, essa clientela é a parte menos importante do grande show da universidade pública, que vive basicamente para si mesma, numa confirmação plena do velho adágio da “torre de marfim”. Não se trata exatamente de marfim, e sim de uma redoma auto e retroalimentada pela sua própria transpiração, com alguma inspiração (mas não exatamente nas humanidades e ciências sociais). A Capes e o CNPq, ademais do próprio MEC, asseguram uma confortável manutenção dos aparelhos que mantém esse corpo quase inerme em respiração assistida, ainda que com falhas de assistência técnica, por carência eventual de soro financeiro.
Nessa estrutura relativamente autista, a definição das matérias, disciplinas e linhas de pesquisa a serem oferecidas a essa distinta clientela não depende do que essa clientela pensa ou deseja, e sim da vontade unilateral dos próprios guardiães do templo, ou seja, os professores, inamovíveis desde o concurso inicial, independentemente da produção subsequente. A UNE, os diretórios estudantis, os avaliadores do Estado, os financiadores intermediários (planejamento, Congresso, órgãos de controle) e últimos de toda essa arquitetura educacional (isto é, toda a sociedade) e, sobretudo os alunos, não possuem nenhum poder na definição da grade curricular, no estabelecimento dos horários, na determinação dos conteúdos, na escolha da bibliografia, no seguimento do curso, enfim, no desenvolvimento do aprendizado, na empregabilidade futura da “clientela”, que fica entregue à sua própria sorte. Sucessos e fracasso são mero detalhe nesse itinerário autocentrado, que não cabe aos professores, às IPES, ao MEC responder pelos resultados obtidos (ou não), que de resto são, também, uma parte relativamente desimportante de todo o processo .
Jamais questione, portanto, pelos motivos expostos, os tantos “gênios” produzidos e alimentados pela academia brasileira. No geral, pensam ser nada mais do que uma obviedade ter alguém para sustentar suas aventuras autoproclamadas científicas, os seus exercícios retóricos de subsistência e seu esforço em fazer parecer importante aquilo que, de fato, especialmente em um país pobre e desvalido, não tem qualquer importância (e me refiro com ênfase distintiva aos profissionais das áreas de Humanidades). Tem razão, portanto, Raymond Aron quando diz:
Quando se trata de seus interesses profissionais, os sindicatos de médicos, professores ou escritores não reivindicam em estilo muito diferente do dos sindicatos operários. Os quadros defendem a hierarquia, os diretores executivos da indústria frequentemente se opõem aos capitalistas e aos banqueiros. Os intelectuais que trabalham no setor público consideram excessivos os recursos dados a outras categorias sociais. Empregados do Estado, com salários prefixados, eles tendem a condenar a ambição do lucro .
Estamos evidentemente diante do renascimento do acadêmico egghead ou “cabeça de ovo”, segundo roupagem brasileira, naturalmente. Indivíduo com equivocadas pretensões intelectuais, frequentemente professor ou protegido de um professor, marcado por indisfarçável superficialidade. Arrogante e afetado, cheio de vaidade e de desprezo pela experiência daqueles mais sensatos e mais capazes, essencialmente confuso na sua maneira de pensar, mergulhado em uma mistura de sentimentalismo e evangelismo violento. O quadro, realmente, não é dos mais animadores.
Depois, vale ressaltar outro elemento que configura o desprezo do mundo das IPES pela sociedade. A promiscuidade das relações de poder que se formam dentro dela, sem critério de competência, eficiência ou inteligência, o que a tornam problema a ser resolvido, em vez de elemento de resolução de problemas. Talvez esse seja um dos mais graves entraves a ser enfrentado no âmbito da educação brasileira de nível superior: seu compromisso ideológico com o erro, com o que evidentemente não funciona, com uma cegueira volitiva autoimposta que a impede de enxergar o fundamento de tudo o que é: a realidade, concreta, dura, muitas vezes injusta, mas...a realidade. Trata-se de uma máquina que se retroalimenta com sua própria falência e que, por isso mesmo, atingiu estágio no qual pensar a si mesma, se reinventar, é quase um exercício criativo de ficção.
Certo, não podemos abrir mão de ciência de alto nível, de vanguarda, de um olhar ousado para o futuro. Isso seria reduzir a Universidade a uma existência “utilitária” no pior sentido do termo: e não é disso que estou falando nesta sede.
Digo mais simplesmente que é passado o momento de darmos resposta a anseios legítimos da população, à necessidade de instruirmos com ferramentas sérias e comprometidas uma massa humana completamente alijada de conteúdos muitas vezes basilares, elementares, que permeiam a sua existência.
O momento, não obstante complexo, é propício. Parte da Universidade brasileira parece querer acordar do “sono dogmático” que a deixou inerte diante do diferente nas últimas décadas. Seria mesmo inevitável.
Contexto atual
Vivemos período histórico particularmente afetado pelo bullshit. E, na condição de estudiosos, nos cabe mínima compreensão articulada do fenômeno de proporções evidentemente brutais. É a época da “pós-verdade” (post-truth). O termo foi escolhido em 2016 pelo Departamento Oxford Dictionaries daquela Universidade como a palavra do ano, em referência a substantivo que relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião geral do que apelos à emoção e a crenças pessoais.
Segundo a Oxford Dictionaries, o termo “post-truth” foi usado com aquela inflexão semântica pela primeira vez em 1992, pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich. Apesar de uso razoavelmente corrente desde sua criação, a palavra registrou um pico de uso em tempos recentes, algo em torno dos 2.000% de aumento em 2016.
A informação dá bem a medida do drama que enfrentamos atualmente. Para aquele Departamento, pós-verdade deixou de ser termo periférico para se tornar central no comentário político, agora frequentemente usado por grandes publicações sem ulterior necessidade de esclarecimento ou definição: um fenômeno que por certo não se verifica apenas em âmbito de macroesfera, mas também em microesfera, vale dizer, em relações pessoais e profissionais subjetivas e de menor visibilidade, igualmente importantes na composição geral do fenômeno bullshit no mundo de hoje.
Eis que as consequências dessa nova forma de ideologismo se mostram nefastas enquanto transformam praticamente todas as expressões do espírito humano em formas diversas de ideologias, quase sempre contaminadas pelo desprezo da busca pela verdade, ao menos enquanto pode ser alcançada/desejada pelo homem, e, então, pelas causas que subjazem as coisas e os fenômenos. A esse propósito, diz Edgar Morin:
As ideologias têm uma expectativa de vida superior à dos homens. Elas são mais biodegradáveis do que os deuses, mas algumas podem viver até por vários séculos. As que se definem “científicas” e garantem que sabem realizar na Terra sua promessa de Salvação (...) mostram-se em toda a sua fragilidade após a vitória, que assinala, ao mesmo tempo, sua falência .
Se os fatos são obstinados, as ideias os esmagam com mais frequência do que o contrário. Estamos diante de uma forma de fé latente, abraçada por alguns como reflexo inequívoco da verdade e apresentada por outros (pelos ideólogos) como aquilo que se deve aceitar como verdadeiro, acreditem eles ou não no que convidam a conhecer.
Essa é uma lição da qual simplesmente não devemos nos esquecer. A realidade não é um bloco monolítico, cujos problemas podem ser resolvidos com receita ingênua e engessada. A velha estrutura argumentativa “aut... aut...” (”ou isso... ou aquilo...”) – cuja gênese remonta à lógica aristotélica, mas que foi erroneamente aplicada a quase tudo no mundo da ciência pós-cartesiano – deve ser substituída por aquela “et... et...” (“e isso... e aquilo...”), mais rica, não redutiva e nada ingênua se bem aplicada.
Não nos enganemos: aquela estrutura é sedutora também porque detentora de forte tom messiânico. Mesmo homens inteligentes foram seduzidos por ela e a abraçaram sem qualquer restrição.
O adversário – e mesmo alguns dos nossos colegas associados à causa, seduzidos por inebriante convicção – se considera portador de verdade absoluta e há poucas coisas mais complexas do que tentar diálogo com portadores de dogmas inquestionáveis.
Deixemos o sebastianismo a quem com ele se sente confortável e dele depende: na Universidade, até o fim, falaremos de realidade e de ciência, tudo calibrado por ceticismo e pragmatismo.
Dennys Garcia Xavier é professor Associado de Filosofia Antiga, Política e Ética da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Storia della Filosofia pela Università degli Studi di Macerata. Tem Pós-doutorado pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-doutorado pela Universidade de Coimbra.