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domingo, 20 de agosto de 2017

Relacoes Internacionais: profissionalizacao e atividade (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2003, estando eu em Washington, fui solicitado por estudantes de RI de MG a responder um questionário para ajudá-los em trabalho de grupo.
Se estou postando somente agora, é porque acredito que minhas respostas possam ter ainda alguma validade 14 anos depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017


Relações Internacionais: profissionalização e atividades

Paulo Roberto de Almeida

1) Quais seriam as vantagens e desvantagens da grade curricular multidiciplinar do bacharelado em Relações Internacionais?

            PRA: Como vantagem principal se coloca obviamente o fato de que o profissional em relações internacionais – chamemo-los de internacionalistas – é naturalmente chamado a tratar de matérias as mais diversas possíveis, atinentes aos terrenos econômico, político, jurídico, ou mesmo cultural e tecnológico, daí a ncessidade de uma formação abrangente de maneira a cobrir esses diversos campos. A própria disciplina de relações internacionais retira métodos e substância de várias áreas curriculares, notadamente história, ciência política, economia, direito, sociologia ou mesmo antropologia. Todas essas disciplinas, e possivelmente mais algumas outras (como línguas, metodologia científica, psicologia social, estatística ou sociografia), podem e devem figurar numa grade curricular de um curso desse tipo.
            Eventuais desvantagens não estão propriamente vinculadas à estrutura curricular, mas à natureza do curso em si, que não conduz a uma especialização muito bem delimitada no padrão atual (tradicional) de classificação profissional, uma vez que o egresso desse tipo de curso não está exatamente habilitado para se desempenhar numa carreira de economista, de historiador, de cientista político ou ligado à área jurídica, por lhe faltar talvez alguns instrumentos e perícia em determinadas matérias técnicas ligadas a cada uma dessas especialidades individuais. Daí a preferência de alguns especialistas em fazer com o que o curso de relações internacionais seja na verdade uma pós-graduação, ou especialização estrito senso, e não como ocorre de maneira cada vez mais generalizada no Brasil, um curso de graduação.

2) O mercado se encontra mais receptivo a profissionais não especializados, como o bacharel em Relações Internacionais, ou àqueles preparados em cursos com habilidades específicas, como o caso do bacharel em Direito?

            PRA: Tem havido uma boa recepção do profissional em relações internacionais, mas isso talvez se deva a uma espécie de “novidade do momento”, a uma percepção (talvez incorreta) de que os desafios dos processos de regionalização e de globalização possam ser melhor enfrentados pelos internacionalistas ou mesmo a uma demanda específica que ainda não foi “saturada” nesse nicho. Creio, contudo, que nas condições atuais do Brasil – país ainda insuficientemente “globalizado” e dotado, de todo modo, de poucas empresas verdadeiramente internacionais – o “excesso” de oferta que vem sendo verificado nessa vertente possa não se sustentar no futuro, daí minha preferência por uma abordagem ainda relativamente conservadora da profissionalização nessa área. Ou seja, seria preferível que os profissionais de graduação tivessem habilidades específicas (direito, economia, história etc.), para só a partir daí, então, encaminhar-se para a especialização em relações internacionais.
            O mercado sempre estará preparado, por muito tempo ainda, para os profissinais tradicionais e muito pouco para o internacionalista, que precisará esforçar-se para encontrar seus nichos de trabalho no quadro de demanda ainda organizada segundo os padrões disciplinares e profissionais clássicos.

3) Sabemos que a boa relação com os países que nos cercam pode nos auxiliar em problemas internos. Qual seria o maior exemplo para comprovar tal situação?

            PRA: Os países enfrentam ciclos econômicos ascendente e descendentes em suas atividades produtivas, tanto em função de problemas propriamente internos – esgotamento de determinados recursos naturais, por exemplo – como devido à própria dinâmica econômica internacional, daí a necessidade de determinadas válvulas de escape para dificuldades temporárias. Um exemplo óbvio é o da crise em determinados setores da economia ou em determinadas regiões, o que “obriga”, de certa forma, à “exportação” de “excedentes demográficos”. O Brasil, tradicional país recipiendários de imigrantes ao longo de toda a sua história, tornou-se moderadamente “exportador” de mão-de-obra (geralmente não especializada) para outros países, da própria região ou em outros continentes. A mobilidade profissional deve ser vista, aliás, como algo normal e mesmo desejável, diferentemente, talvez, da simples “expulsão econômica” de desempregados em momentos de crise. Boas relações gerais com vizinhos, e mesmo países distantes, ajuda, nesse sentido, a conduzir de maneira adequada esses movimentos de entrada e saída de pessoas ao longo de alguns anos.
            Da mesma forma, a ocorrência de surtos epidêmicos na população humana ou animal impõe, necessariamente, a cooperação transfronteiriça, assim como problemas ambientais de uma certa dimensão, que não respeitam fronteiras políticas e limites geopolíticos. Cooperação em matéria de segurança – terrorismo, nacrotráfico – também são bons exemplos de que resultados efetivos são melhor alcançados quando as relações políticas entre Estados vizinhos são satisfatórias.

4) Como o senhor avalia o surgimento de inúmeros cursos de Relações Internacionais nos últimos anos? Esse fato traz desvantagens para os jovens recém-formados na profissão?

            PRA: Difícil dizer, neste momento, pois se trata de um fenômeno que tem menos de dez anos, sendo resultado dos progressos da globalização e da regionalização nos anos 1990. As instituições privadas de ensino têm respondido de maneira dinâmica a essa demanda percebida, seguidas de longe por algumas insituições públicas, mas seria preciso esperar um processo natural de “decantação” nessa área para uma avaliação mais precisa. Não creio que se trata de desvantagem, pois do ponto de vista do mercado pode ser até uma vantagem, na medida em que a oferta ampliada provocará uma saudável concorrência entre as instituições, um “barateamento” das tarifas e uma progressiva melhoria de qualidade nos cursos mais competitivos.
            Creio, todavia, que uma certa especialização nas orientações se torna de certo modo inevitável. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, apela naturalmente uma formação centrada nas disciplinas clássicas ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional). Já métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria) requerem formações voltadas para “global business”, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, talvez, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os demais parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul e à Aladi), questões fitossanitárias e diretamente o domínio da língua espanhola. Como se vê, as especializações se farão, inevitavelmente, nas diversas instituições de ensino situadas nessas regiões, quase que de forma natural.

5) Quais seriam, basicamente, suas funções como Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington?

            Sou o “segundo” do Embaixador, e portanto o representante alterno, o que em linguagem diplomática costuma se chamar “Encarregado de Negócios” (na ausência do Embaixador titular). Ademais de supervisionar o trabalho de uma chancelaria, de modo geral, sou encarregado da assinatura de determinados papéis, de visar preliminarmente grande parte dos telegramas diários (antes de serem despachados pelo chefe do posto), de representá-lo eventualmente em determinadas cerimônias, reuniões de trabalho e na recepção a uma determinada categoria de visitantes na Embaixada, assim como ficar a disposição do Embaixador e da própria Secretaria de Estado para qualquer tarefa que se imponha fora da rotina normal de trabalho. Normalmente, numa grande embaixada como a de Washington, existe mais de um ministro-conselheiro, o que também implica uma certa especialização entre eles. Como somos três, fico encarregado dos temas econômicos e financeiros, havendo outro para os temas políticos e um terceiro para questões administrativas e consulares.

6) O avanço da globalização tem aumentado a importância do diplomata no cenário internacional. Que peculiaridades podem ser destacadas na carreira diplomática?

            A carreira continua similar ao que sempre foi, constituída basicamente pelas tarefas de: informação, representação, negociação. A globalização impõe talvez uma certa redefinição da primeira função, pois não mais se considera necessário informar sobre o cotidiano ou o corriqueiro do país, como talvez fosse o caso na era dos ofícios a bico de pena. A informação deve ser seletiva, limitado aos temas que interessam diretamente ao serviço diplomático ou às relações com o país de origem.
            Por outro lado, a intensificação dos contatos humanos, dos intercâmbios comerciais e tecnológicos determinam que se procure aproveitar as novas oportunidades oferecidas pela cooperação internacional, em novas áreas ou de formas inéditas até então. Permanece, no entanto, a peculiaridade do contato direto com representantes do governo junto ao qual se está acreditado, o bom conhecimento das características locais e um certo sentido de oportunidade na construção de laços mais duradouros do que os simples contatos burocráticos de trabalho. Uma boa relação pessoal entre chefes de estado ou de governo é por vezes importante no acompanhamento e solução de determinados problemas internacionais – uma crise financeira, por exemplo – e quem deve preparar o terreno é o diplomata. Nisso, sua função ainda é insubstituível, pois ele não pode ser “representado” por nenhum sistema informático ou tecnologia high tech. O chamado “fator humano” ainda é uma alavanca indispensável nos assuntos sociais e, por extensão, internacionais.

7) O senhor ingressou muito cedo no mercado de trabalho, mesmo que de forma informal. Que experiências foram importantes nesta etapa de sua vida e em que isso colaborou para que o senhor alcançasse a realização profissional?

            O sentido do esforço individual, o desejo de aprender por mim mesmo, um certo auto-didatismo e, de modo geral, a persistência nos esforços pessoais, como forma de alcançar objetivos relevantes ou metas desejáveis. Aprendi a valorizar a conquista de aspirações significativas, em lugar de esperar que me fossem oferecidos oportunidades ou favores. De certa forma, posso dizer, hoje em dia, que, vindo de família modesta e desprovido quase que completamente de mecanismos sociais ou familiares de sustentação, pude ascender profissionalmente e socialmente graças a meu próprio esforço, um pouco como os “self-made men”, com a diferença de que no meu caso não estava aspirando poder ou riqueza, mas tão simplesmente bem desempenhar minhas tarefas profissionais e lograr manter, ao mesmo tempo ou paralelamente, atividades acadêmicas que são demonstradas, atualmente, nos muitos livros publicados por mim.

8) Que conselho o senhor daria aos jovens que desejam ingressar em um curso superior de Relações Internacionais?

            Apenas um: não dependam do curso para sua própria formação, não considerem suficiente ou adequado o que for “aprendido” nas salas de aula, mas construam vocês mesmos o “seu” curso, pela leitura e estudo intensos, pelo questionamento constante do “saber adquirido” e pelo exercício regular e sadio da “inquirição” bem orientada. Não se contentem com os jornais diários, nem com as revistas, procurem livros, manuais, enciclopédias, sistemas de informação online, não esperem que o professor “transmita” a vocês aquilo que pensam dever aprender no curso, mas façam dele um orientador de novas leituras, um conselheiro de métodos, mais do que um simples “educador” (o que ele de certa forma nunca será, pois professores em geral apenas transmitem técnicas, que educa é a própria vontade individual de aprender cada vez mais).
            Em uma palavra: entrem no curso como se já estivessem preparados para dele sair para o exercício de alguma atividade profissional, ou seja, com um certo propósito-guia, que os vai orientar durante todo o curso, e que os fará buscar sempre mais, além das simples obrigações acadêmicas do dever de casa e das leituras obrigatórias. Construam o seu próprio saber.

9) O que pode se afirmar das relações exteriores do Brasil hoje, em relação aos demais países e ao passado do próprio país?

            As relações exteriores do Brasil, stricto sensu, não são diferentes das de outros países em desenvolvimento, ou seja um esforço constante de inserção nos circuitos mais dinâmicos da economia internacional, a busca do rompimento com certas fragilidades e dependências – financeira, tecnológica, educacional e científica – que sempre marcaram o país e a intensificação da participação nos negócios internacionais, num sentido positivo, ou seja, da promoção da paz, da cooperação internacional e o progressos dos direitos humanos e da democracia nos planos global e regional.
            No que se refere especificamente à sua diplomacia, caberia registrar, sem qualquer falsa modéstia, as qualidades excelentes de profissionalismo, preparação e dedicação, fruto de praticamente dois séculos de exercício constante das relações diplomáticas a partir do próprio país. Nossa diplomacia é certamente mais eficiente do que a de muitos outros países emergentes e mesmo do que a de vários países ditos avançados.

10) Quais são, na sua visão, os momentos históricos mais marcantes nos quais a diplomacia entre os povos foi decisiva?

            Nos momentos de crise internacional, ela se torna relevante. As guerras são de certo modo o fracasso da diplomacia, mas não são sempre evitáveis, em face de algum ditador expansionista, como Hitler, por exemplo. Em outros momentos, se conseguiu evitar a guerra, como na crise dos foguetes em Cuba (1962), quando o mundo viveu praticamente a situação limite de um conflito nuclear, nunca ocorrido na história da humanidade. O próprio Brasil contribuiu para alguns episódios de pacificação entre países vizinhos, como na Guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai (1936) ou nos conflitos fronteiriços entre Peru e Equador (1942 e novamente em 1997).
            Mas, a diplomacia não precisa atuar apenas nos momentos de crise. Ela deve exercer-se de modo constante, em qualquer época e lugar, contribuindo para a expansão do direito internacional e a promoção dos direitos humanos. Considere-se, por exemplo, a noção de soberania estatal: ela não pode ser absoluta, a ponto de se permitir que um ditador coloque em risco a vida de seu próprio povo, ou que cometa atentados pesistentes contra a dignidade da pessoa humana ou os direitos civis e religiosos das minorias. A próxima etapa do direito internacional talvez se situe na regulação do chamado “direito de intervenção” (muito vinculado ao direito humanitário), de maneira a evitar aspectos bastante constrangedores, como os vividos recentemente pela intervenção unilateral dos Estados Unidos no Iraque.

11) Quais os desgastes, nas relações exteriores, causados por medidas protecionistas adotadas por determinados países, como a imposta recentemente pelos EUA que reduziam as exportações de aço brasileiro para tal país?

            Uma visível diminuição na confiança bilateral, na medida em que se tem, de modo claro, consciência da ilegalidade das medidas (como determinado pela OMC em relação às salvaguardas aplicadas pelos EUA ao arrepio das normas internacionais). Ocorre também um sentimento de frustração pelas perdas econômicas ocasionadas e uma desconfiança de que eventuais acordos de liberalização comercial serão efetivamente cumpridos, na letra e no espírito das regras acordas bilateralmente ou multilateralmente. Por isso mesmo, o Brasil vem insistindo para que, ao lado das medidas de acesso a mercado (redução de barreiras tarifárias), sejam contemplados também nos futuros acordos da Alca ou da OMC regras claras no que ser refere a medidas de defesa comercial (antidumping e salvaguardas), ademais da redução de todas as demais barreiras protecionistas existentes (como podem ser os subsídios à produção interna, notadamente em agricultura, e as subvenções às exportações).

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 de julho de 2003

Uma entrevista sobre a carreira de internacionalista e temas de diplomacia (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo tal qual, sem nada mudar, sem sequer reler, uma entrevista que concedi, em janeiro de 2002, a estudantes de RI de SC, e que pode ter interesse, ainda hoje, por minhas posições contrárias à "profissionalização" de uma carreira de "internacionalista" -- o que ainda mantenho, por ser contra qualquer corporativismo e reservas de mercado -- e pelo que possa apresentar de valor histórico dada a abordagem de alguns temas conjunturais de política externa da época.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de agosto de 2017

Alunos do Centro Acadêmico de Relações Internacionais da UNISUL entrevistaram Paulo Roberto de Almeida, diplomata, sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

Os estudantes Thiago Domingues e Luis Fernando Coelho, da 7ª fase de Relações Internacionais, e Pablo Sebastian, da 8ª fase, realizaram a entrevista, que abordou assuntos relativos ao meio acadêmico, como regulamentação da profissão de bacharel em Relações Internacionais, e assuntos como a crise na Argentina e a reunião da OMC.

PRA: Gostaria, antes de mais nada, de apresentar meus cumprimentos aos responsáveis pelo Centro Acadêmico e pelo Boletim, pela iniciativa tomada de entrevistar um “praticante” da carreira diplomática, com vistas a disseminar um pouco da experiência e conhecimento de um servidor diplomático para jovens aspirantes à carreira. As questões são variadas e foram muito bem formuladas, cobrindo questões de atualidade, temas acadêmicos, de formação didática e de preparação para o exercício profissional, ademais de questionar a opinião pessoal do autor destas linhas sobre alguns temas de interesse corrente.

INTERNEWS - Na enquete promovida pelo grupo "RI Brasil" (ribrasil@grupos.com.br) sobre a regulamentação da profissão de bacharel em Relações Internacionais, o Sr. votou contra. Por quê?
PRA: Em princípio, sou contra regulamentações excessivas ou desnecessárias e sobretudo contra determinadas “reservas de mercado” profissionais. Por exemplo, a profissão de jornalista, que em essência poderia ser exercida por qualquer pessoa competente em qualquer área profissional, está restrita aos detentores de diplomas de jornalismo ou egressos de escolas de comunicações. Tal disposição legal constitui para mim um abuso corporatista e uma irracionalidade intrínseca, pois parece evidente a qualquer um que um grande veículo de comunicações estaria muito mais bem servido com profissionais competentes em economia, em ciências, em engenharia, artes ou mesmo literatura, do que por um generalista que passou por uma escola não necessariamente dotada de qualidades intrínsecas, mas simplesmente explorando um nicho de mercado criado em virtude de uma reserva tão irracional quanto danosa para a sociedade. A regulamentação profissional apenas deveria existir para aqueles setores que necessitam exibir, efetivamente, uma competência técnica específica, adquirida apenas mediante estudos especializados, em áreas nas quais a incompetência profissional pode colocar em risco a segurança ou mesmo a vida de terceiros, como parecem ser, por exemplo, as profissões geralmente associadas às áreas médicas, de engenharia, segurança de instalações elétricas e outras do mesmo gênero. Ora, um jornalista incompetente não coloca a vida de ninguém em perigo, apenas o sucesso de mercado do próprio veículo que o emprega. Ele apenas deve enfrentar o julgamento dos consumidores, que se desviarão daquele “produto” se sua qualidade não for a melhor possível ou mesmo a esperada. Quantos de nós já deixamos de comprar determinados jornais ou revistas, ou de assistir determinados programas de televisão ou ouvir certos programas de rádio, com base em nosso julgamento desfavorável da qualidade geral desses programas ou na competência de quem os dirige ou apresenta? Pois assim deveria ocorrer com a maior parte das profissões: as empresas se “abastecem” de profissionais no mercado e devem ter liberdade para contratar os melhores ou os mais adequados aos encargos que se lhes pensa cometer. Em certos casos, não será um jornalista, estrito senso, mas um cientista, um economista ou um crítico de arte. Uma das melhores coisas que existe no acesso à carreira diplomática brasileira é que ela não está restrita a nenhum perfil profissional específico, mas aberta a qualquer formado em curso superior, independentemente de seu diploma ou histórico profissional. Com isso se pode recutar os melhores profissionais em todas as áreas de conhecimento e de experiência técnica. Não há nenhum motivo para que o formando em relações internacionais tenha sua “profissão” regulamentada e sua “reserva de mercado” constituída, pois não se trata na verdade de uma profissão, mas de uma competência técnica e de uma capacitação não especializada que pode ser exercida nos mais diferentes setores da atividade humana. Em termos simples, o especialista em relações internacionais não coloca a vida de ninguém em perigo, logo sua profissão não deve ser regulamentada. As empresas contratarão ou não um egresso de um curso de relações internacionais não em função de seu diploma, mas em função de sua competência (ou da imagem de mercado daquela escola ou faculdade), e elas deveriam ser livres também, como de fato o são, para contratar um diplomado em direito com especialização em direito internacional, por exemplo, se tal competência é a que melhor se ajusta às suas necessidades. Se a profissão de relações internacionais fosse regulamentada, o próximo passo corporatista certamente seria uma pressão para que a legislação seja mudada no sentido de reservar a carreira diplomática apenas a esses profissionais, o que seria uma perda inestimável para a carreira e para o Brasil.

INTERNEWS - De 1995 até hoje, o Brasil presenciou uma “explosão” de cursos de RI, com a criação de mais de 25 cursos de graduação. Como o Sr. enxerga este processo?
PRA: De forma saudável. É muito bom que isso ocorra, que cursos se expandam e se diversifiquem, pois isto corresponde aos processos enfrentados pelo Brasil atualmente: globalização e regionalização. A concorrência e a oferta ampliada de cursos nessa área apenas pode beneficiar os interessados e a própria sociedade, pois significa que a captação de alunos, primeiro, e de profissionais, depois, se fará com base nas melhores competências e qualidades oferecidas no mercado. Aos poderes públicos caberia velar pela qualidade da “mercadoria”, como se faz aliás com o código de defesa do consumidor. As empresas educacionais, por sua vez, não podem sair vendendo “gato por lebre”, isto é, oferecendo um curso que não tenha requisitos mínimos de funcionamento e de qualidade.

INTERNEWS - Há uma grande variedade entre os currículos de RI espalhados pelo Brasil. O Sr. defende a criação de uma diretriz básica curricular?
PRA: Sim, mas com ampla latitude de “especializações” regionais ou temáticas que melhor possam atender à demanda do mercado. Ou seja, nem todo mundo quer fazer um curso de relações internacionais para fazer pesquisa ou perseguir uma carreira acadêmica, e de modo geral não é isso o que as empresas procuram. Elas precisam de profissionais competentes que possam resolver seus problemas de inserção internacional, questões que raramente têm a ver com a teoria neorealista de relações internacionais ou com o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU, mas é mais suscetível de comportar um conhecimento especializado sobre normas e regulamentos do comércio internacional, por exemplo. As diretrizes curriculares devem portanto comportar um núcleo comum de matérias que assegura uma competência genérica em questões internacionais, mas depois permitir uma certa flexibilidade, pois os cursos devem ser modelados em função das necessidades de mercado daquele segmento profissional ou região específica. Os próprios cursos devem comportar matérias opcionais que vão orientando o candidato para o direito, para a economia e comércio, para propriedade intelectual, para pesquisa acadêmica, para problemas do Mercosul e da Aladi, e assim por diante.

INTERNEWS - Devido à grande variedade de currículos, fica difícil avaliar o qualidade dos cursos de RI através de testes como o Provão. Qual maneira o Sr. considera ideal para avaliar a qualidade desses cursos?
PRA: Não conheço nenhuma avaliação específica dos cursos em relações internacionais, nem tenho certeza de que esses cursos já tenham sido avaliados no âmbito do chamado Provão. Mas, as diretrizes de avaliação não deverão e não serão muito diferentes, em sua essencia, de um curso tradicional de ciências humanas, ou ciências sociais aplicadas, como direito, economia, etc. A qualidade será dada aliás pelas exigências dos próprios alunos, o que talvez seja um processo custoso, demorado e incerto, mas a qualidade de determinados cursos tradicionais em universidades públicas e particulares existentes no Brasil foi construída ao longo de décadas de “avaliações de mercado”, muito antes que qualquer Provão viesse formalizar esse processo.

INTERNEWS - Na sua opinião, qual a melhor alternativa para a Argentina sair da crise?
PRA: Nada além de bom senso e da boa aplicação de determinadas regras e princípios econômicos já suficientemente testados na prática ao longo de décadas de experiências com políticas públicas, o que aliás é válido para os indivíduos e famílias também. Ninguém consegue aguentar muito tempo consumido mais do que produz, ou gastando mais do que dispõe como renda. Você pode eventualmente tomar dinheiro emprestado para fazer um investimento, ou mesmo ter uma tia rica que lhe pague a conta do cartão de crédito, mas na maior parte das vezes somos obrigados a viver com os nossos próprios meios e disponibilidades. Com a Argentina ocorreu algo terrível neste século, que o Brasil também conheceu em determinadas épocas e de forma recorrente: a aplicação de políticas irrealistas, e mesmo erradas, que causaram inflação, estagnação, cartelização, monopolização ou outros efeitos nefastos do ponto de vista da produtividade do sistema econômico, da poupança dos indivíduos ou do equilíbrio das contas públicas, internas e externas. Numa determinada fase, seria preciso introduzir correções, o que sempre é difícil, pois que grupos de interesse particulares capturam o aparelho de Estado para implementar suas próprias políticas, num comportamento que os economistas conhecem como sendo de “rent-seeking”. Conosco ocorreu o mesmo na fase de valorização do real: foi importante para combater a inflação, mas deveríamos ter introduzido igualmente medidas de ajuste fiscal que nos libertassem da despoupança do Estado e dos índices insatisfatórios de produtividade e de competitividade. Tinhamos a ilusão de ser ricos, pois um real valia mais do que um dólar, esquecendo que o valor da moeda é determinado em última instância pela capacidade econômica de um País e pela confiança que os indivíduos podem atribuir a um determinado meio de pagamento. Finalmente, tivemos de reconher que éramos mais pobres do que gostariamos de ser, e acordamos, em janeiro de 1999, descobrindo que o PIB não era de 800 bilhões de dólares, mas de apenas 450 bilhões. Os argentinos também estão acordando para essa triste realidade, e vão precisar agora trabalhar um pouco mais duro, pois que durante muito tempo viveram de dinheiro emprestado. Assim ocorre, com as pessoas e os países: um dia a sua tia rica pode morrer ou lhe deserdar, toca então passar a trabalhar. O neoliberalismo e “políticas impostas pelo FMI” não têm nada a ver com a crise argentina. O FMI, finalmente, depois da derrocada do sistema de Bretton Woods em 1973, considera a flutuação cambial como o sistema normal para as moedas, e uma de suas primeiras recomendações em caso de programas de ajuste é justamente a desvalorização cambial. Por outro lado, não há nada mais profundamente antiliberal do que um câmbio fixo, ou rígido. O neoliberalismo requer justamente realismo cambial e aplicação dos princípios de mercado, o que significa também viver com seus próprios recursos. Não nos iludamos, pois que o Brasil também vive numa dependência indesejável de capitais estrangeiros, com nossa preocupante fragilidade financeira externa.

INTERNEWS - O Sr. acha que na última reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) realizada em Doha, no Catar, houve avanços na luta pela redução das barreiras não-tarifárias impostas pelos países ricos aos países em desenvolvimento, como foi noticiado em diversos jornais?
PRA: Não, até agora não houve nenhum avanço, apenas ocorreu um acordo para debater ou negociar determinadas questões que poderão, eventualmente, redundar na redução ou eliminação de algumas dessas barreiras. O que assistimos, aliás, foram cenas de protecionismo explícito, com diversos países desenvolvidos, entre eles os da União Européia e em particular a França, tentando garantir a todo custo um tratamento de exceção para a agricultura, onde se encontram o grosso das iniquidades do comércio internacional que atingem mais duramente os países em desenvolvimento ou países competitivos nessa área como o Brasil. Por outro lado, o essencial das barreiras ainda existentes no comércio internacional não se situa no plano tarifário e sim no terreno das normas, onde as práticas abusivas dos países ricos (como em antidumping ou normas fitossanitárias) podem nos atingir ainda mais duramente.

INTERNEWS - O Sr. escreveu à Revista Veja (07 de novembro) queixando-se não ter dito "Ricos e Arrogantes", título de sua entrevista na edição de 24 de outubro. O que houve?
PRA: Nesse tipo de entrevista, sempre ocorre o que os jornalistas chamam de “editing”, isto é, a transformação do tom coloquial da entrevista em linguagem mais adequada aos fins da publicação escrita, mas também algumas distorções de linguagem que não correspondem efetivamente ao que disse o entrevistado, mas ao que pensa o próprio editor do veículo. Nesse caso, em nenhum momento eu me referi aos países ricos mediante o conceito de arrogantes, pois pareceria que eu estaria considerando o problema do comércio internacional como decorrente simplesmente de uma questão de arrogância, quando não é isso que está em causa, e sim determinadas práticas, algumas tradicionais, outras criadas extemporaneamente, que prejudicam os países em desenvolvimento, ou simplesmente os competidores leais. Se eu tivesse de dar um título à entrevista, ele seria algo no gênero: “Precisamos de mais, não de menos, globalização”. E o subtítulo seria algo como: “Especialista em relações internacionais defende plena inserção do Brasil no sistema mundial e condena protecionismo agrícola europeu e subsídios americanos.”

PRA: Longa, lenta e séria preparação e sobretudo não conte apenas com os cursos de relações internacionais ou qualquer outro curso tradicionalmente acadêmico. Seja basicamente um auto-didata, e comece cedo a ler, anotar, estudar, se preparar, em todos os terrenos importantes para os exames de ingresso. Sobretudo tenha certeza de que é isso mesmo que pretende, e que não está alimentando nenhum sonho romântico de entrar numa carreira que supostamente apresenta “glamour” ou “viagens fáceis”. Trata-se simplesmente de uma das mais exigentes profissões da burocracia governamental e certamente a mais intelectualizada das carreiras de Estado, requerendo portanto uma educação sofisticada e diversificada. Comece cedo, portanto, não perca tempo com digressões inúteis, mas vá direto aos temas que apresentam “vantagens comparativas” para uma boa prova de ingresso: português, outras línguas (mas sobretudo o inglês), história e ciências humanas e sociais de maneira geral, literatura, economia, relações internacionais enfim. Na faculdade, não compactue com o pacto de mediocridade e de preguiça entre professores e alunos, mas exija aulas, leituras, seja sério e competente na preparação de seus deveres e trabalhos e sobretudo cobre responsabilidade de quem está ganhando dinheiro para ensiná-lo (e eventualmente não o faz). Na vida diária, acostume-se a passar os fins de semana lendo e navegando pela Internet, faça cadernos de notas (com fichas de livros, por exemplo), mantenha seus arquivos de computador organizados e atualizados (acostume-se a guardar documentos disponíveis de reuniões internacionais, discursos e posições de países), faça assinatura de algum jornal econômico de boa qualidade (os jornais tradicionais trazem muita fofoca política e colunismo impressionista, que fazem você perder tempo com besteirol) e de alguma revista internacional de qualidade (recomendaria a The Economist, que tem tudo o que você precisa saber para aspirar a um bom exame de ingresso e depois a uma carreira bem sucedida). Sobretudo, não pense que a carreira diplomática seja o nec plus ultra da vida profissional ou acadêmica. Você primeiro precisa ser um profissional competente em sua própria área, para depois aspirar a ser um diplomata competente. Em outros termos, não dependa da carreira, como o único horizonte disponível em sua vida profissional, mas seja capacitado em qualquer outra profissão, para poder abandonar a carreira diplomática quando bem lhe aprouver, ou para poder dedicar-se a um hobby ou atividade de apoio (artística ou acadêmica, por exemplo) que seja diferente e atraente em seus méritos próprios, não em função de uma dependência indesejada a uma única atividade. Por fim, não sonhe, mas sim faça uma previsão realista de suas capacidades e possibilidades. A carreira diplomática seleciona um entre muitas dezenas de candidatos, o que significa que a maioria dos que tentarem ficarão de fora durante um certo tempo ou mesmo indefinidamente. Que isso não seja motivo de frustração pessoal ou profissional. Tenha os pés no chão, não idealize a carreira, seja esforçado, em todas as etapas, pois você vai precisar de muita seriedade e dedicação para enfrentar todos os desafios de uma carreira enriquecedora e exigente.
Por fim, gostaria de remeter os leitores desta entrevista a dois trabalhos meus, disponíveis em minha página pessoal: www.pralmeida.org Trata-se dos textos: 800. “Dez Regras Modernas de Diplomacia”, Chicago, 22 julho; São Paulo-Miami-Washington 12 agosto 2001, 6 p; série “Cousas Diplomáticas” (nº 1). Ensaio breve sobre novas regras da diplomacia, com inspiração dada a partir do livro de Frederico Francisco de la Figanière: Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Para desenvolvimento posterior em formato de longo ensaio. Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 4, Setembro de 2001 - ISSN: 1519.6186, www.espacoacademico.com.br/04almeida.htm; Seção “Cousas Diplomáticas”) e na revista eletrônica Relnet: site brasileiro de referência em relações internacionais (Brasília: Coluna “Além do Quadro-Negro” < a href="http://www.relnet.com.br/pgn/colunaquadro.lasso" target="blank">clique aqui. Revisto em 2.11.01. Relação de Publicados nº 277.

691. “Profissionalização em relações internacionais: uma discussão inicial”, Brasília, 12 junho 1999, 5 pp. Texto sobre formação e perspectivas profissionais do formando em relações internacionais. Publicado no periódico do curso de relações internacionais da PUC-SP, Observatório de Relações internacionais (São Paulo: PUC-SP, nº 1, outubro/dezembro 1999, pp. 10-13). Revisto em 2001 e integrado como “leitura complementar” ao livro Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. Relação de Publicados nº 248. 

Boa sorte e votos de sucesso aos futuros colegas. 
 
Paulo Roberto de Almeida
Orlando, 11 de janeiro de 2002 (848)

Profissionalizacao em relacoes internacionais: exigencias e possibilidades (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Um dos textos preparados para atender demandas de estudantes em RI e candidatos à carreira, e que permaneceu relativa ou totalmente inédito desde então (2002), postado agora por seu valor unicamente histórico, e residualmente atual.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de agosto de 2017


Profissionalização em relações internacionais: exigências e possibilidades

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.
Trecho retirado das “Leituras complementares”, do capítulo 11:
“A diplomacia econômica brasileira no século XX: grandes linhas evolutivas”
do livro do autor:
Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248

(…)
O estudo e a profissionalização em relações internacionais no Brasil têm avançado muito no período recente, em grande medida em função dos processos de globalização e de regionalização – tanto via Mercosul, como mediante as discussões em torno da ALCA – experimentados pelo país de forma mais intensa desde o início dos anos 1990. Pretendo abordar rapidamente alguns aspectos desta questão, utilizando-me do recurso a algumas perguntas que muitos estudantes nessa área também devem se fazer a si mesmos.

1) Quem é o profissional de relações internacionais no Brasil?
Trata-se não apenas do graduado em relações internacionais, uma vez que são ainda relativamente poucos os egressos dos parcos cursos existentes nesse nível no Brasil, muito embora a oferta tenha crescido exponencialmente nos últimos anos, em especial no setor universitário privado e em faculdades isoladas. Esse profissional, típico destes tempos de “globalização”, é mais suscetível de ter cursado uma vertente mais tradicional de estudos — ciências sociais, direito, economia e áreas afins —, dirigindo-se em seguida aos, estes sim inúmeros, cursos de pós-graduação ou mais geralmente de especialização (pós-graduação lato sensu, mestrado profissionalizante) que multiplicaram-se no Brasil no período recente. [1] Não há uma identificação formal desse profissional, uma vez que não há, nem se afigura provável haver no futuro previsível, uma regulamentação dessa carreira (já seria uma profissão?), a exemplo de outras tantas existentes no cenário trabalhista brasileiro. Considero particularmente desnecessária e mesmo indesejada tal regulação profissional, uma vez que seria uma maneira de manter a adequada flexibilidade do mercado laboral e propiciar uma demanda adaptada a um maior espectro de capacidades intelectuais e acadêmicas.

2) Como se faz a formação do profissional em relações internacionais?
Em função da já citada “precocidade” da profissão, ela é, compreensivelmente, a mais variada possível e não há, propriamente, homogeneidade didática nos cursos oferecidos, sendo portanto “normal” a qualidade muito diferenciada dos egressos desses cursos. Os resultados também variam em função da orientação e do conteúdo substantivo dos cursos disponíveis, cabendo notar uma orientação mais tradicionalmente acadêmica nas faculdades públicas e preocupações mais pragmáticas nas particulares. Com efeito, uma observação perfunctória revela uma maior ênfase em aspectos conceituais e teóricos nos cursos mantidos pelas instituições tradicionais (universidades públicas e católicas) e um cuidado bem mais acentuado com o lado prático da profissão naqueles oferecidos pelas privadas (comércio exterior e administração de negócios internacionais, por exemplo).
Essa dicotomia aparente, ainda largamente empírica nesta fase de sedimentação dos cursos especializados, não apenas é saudável do ponto de vista disciplinar, como desejável do ponto de vista das necessidades do “mercado”, mas ela deveria ser bem mais evidente na formulação e apresentação ao público interessado nesses cursos. A evolução institucional conduzirá provavelmente a um núcleo comum de requisitos disciplinares básicos, mas a diversidade programática e a “divisão do trabalho” entre “especializações mercadológicas” devem continuar manifestando-se, de maneira a assegurar a necessária flexibilidade na formação dos muitos profissionais que devem continuar a sair dessas instituições.

3) Para que serve um profissional de relações internacionais?
Ele pode ocupar-se de uma uma série crescente de atividades públicas e privadas, todas elas situadas num “nicho” cada vez mais amplo da vida da Nação: a interface entre o contexto interno e o cenário externo, seja no plano dos negócios, seja no âmbito da administração pública, seja ainda nas lides acadêmicas. Essa ponte entre o lado doméstico e as vertentes regional e internacional exige um profissional que saiba não apenas uma ou várias línguas estrangeiras, mas também comércio exterior, direito e economia internacionais e o próprio funcionamento das muitas organizações multilaterais e regionais de integração e de cooperação que permeiam a vida contemporânea das nações.
Esse profissional é antes de mais nada um “técnico especializado” a serviço de uma larga burocracia hierarquizada, se trabalhar numa empresa privada ou na administração pública, ou será uma espécie de “livre atirador” da globalização, se estiver lotado numa instituição universitária, onde a liberdade de escolha temática e a maior latitude na utilização do tempo são proverbiais. Em qualquer desses casos e mesmo nas especializações menos bem delimitadas, esse profissional serve, antes de mais nada, para processar informações, ou seja, para digerir massas de insumos “externos” e produzir volumes de “soluções” possíveis aos problemas que são colocadas às suas instituições respectivas de afiliação laboral. A qualidade do “produto final” será tanto mais relevante quanto mais pertinente ao objeto de trabalho e ao desafio colocado à instituição a que pertence esse profissional.

4) Quais são os setores preferenciais de atividades desse profissional?
As possibilidades são praticamente infinitas com a intensificação do processo de globalização, indo desde uma empresa de turismo a um clube de futebol. Podemos, contudo, destacar três grandes áreas ou setores de atuação para os especialistas em relações internacionais: (1) governo, ou setor público de modo geral, no qual se destaca em primeiro lugar a diplomacia, cujos requisitos de ingresso são (a)normalmente elevados (ver o site do Itamaraty: www.mre.gov.br/irbr), mas todos os demais ministérios (com destaque para a nova profissão de “analista de comércio exterior”, do atual MDIC) e agências públicas, bem como os governos estaduais e municipais vêm fazendo crescente apelo a tais profissionais em suas respectivas “assessorias internacionais”; (2) academia, onde as possibilidades efetivas são reconhecidamente mais limitadas, uma vez que as vagas no corpo docente não se renovam todos os dias e tendo em vista o fato de que nem todos os egressandos possuem qualidades ou vocação para a pesquisa e o ensino; (3) setor privado, no qual as chances de trabalho se multiplicam todos os dias, levando-se em conta a necessidade crescente de interagir com o cenário externo.
Nesta última área, as exigências de qualificação são bem mais “prosaicas”, mas ao mesmo tempo mais rigorosas. Uma empresa privada, normalmente, não necessita de longos textos sobre as virtudes e méritos respectivos do neorealismo ou do institucionalismo na política mundial ou sobre como funciona o Conselho de Segurança na ONU, mas, sim, precisa conhecer muito bem as regras do GATT, o perfil aduaneiro da Comunidade Andina e os acordos já feitos com o Mercosul, as obrigações contraídas internacionalmente pelo Brasil em matéria de proteção ambiental ou a evolução da padronização de regulamentos técnicos e da fixação de normas industriais “voluntárias”. Os desafios para as instituições de ensino tornam-se, portanto, muito grandes, uma vez que os professores deverão passar a conhecer não apenas Morgenthau ou Kehoane, mas também, e principalmente, a OMC, a ISO, a UIT e todas as demais organizações multilaterais e suas múltiplas convenções internacionais, sem mencionar as características técnicas precisas do processo de integração regional no Mercosul e suas dezenas de decisões e resoluções já adotadas desde 1991.

5) Que tipo de trabalho desempenha esse profissional?
As tarefas específicas dependem obviamente do entorno e do contexto laborais, mas em todas as áreas a atividade é geralmetne dominada pelo processamento da informação. Não só o diplomata, mas também o “middle manager” corporativo e o “técnico” de uma empresa globalizada têm de processar informações (inputs) que chegam todos os dias, de maneira a transformar essa “matéria bruta” externa em vantagens adaptativas para suas respectivas instituições que “competem” no ambiente internacional (seja por um produto ou serviço, seja por uma determinada disposição ou decisão em organização internacional). O diplomata, ademais, representa seu país no exterior (em embaixadas e missões) e negocia em caráter permanente ou de forma mais irregular acordos bilaterais e convenções multilaterais. Os assessores internacionais alertam para a interface e as limitações externas em suas esferas respectivas de atuação, instituições públicas ou privadas.
Todos eles, diplomatas, empresários, assessores participam, cada um a seu modo ou com distintos graus de independência (com subsídios ou mesmo determinações) do processo decisório em suas instituições de afiliação, contribuindo assim para o sucesso relativo do produto ou serviço. Sublinhei o termo independência uma vez que o diplomata obedece ao seu chanceler e este, em última instância, a um mandatário eleito, ao passo que o funcionário corporativo deve prestar contas a seu gerente imediato e este ao Conselho de Administração ou pelo menos ao CEO da empresa. O acadêmico é bem mais independente e desinvolto em suas atividades, sendo sua principal função — para o que ele é pago — a de transmitir conhecimentos ou a de realizar uma pesquisa, mas deve-se reconhecer que ele participa bem menos de processos decisórios, menos relevantes nas instituições de ensino. Ele o fará, eventualmente, e de forma indireta, se participar como consultor de um determinado projeto contratado externamente, mas para isso precisa apresentar qualificação numa determinada área especializada.
À exceção daquelas profissões regulamentadas e reservadas a um círculo profissional de especialistas registrados — advogados ou mesmo aquelas áreas indevidamente fechadas, como a de jornalista, por exemplo —, a maior parte das demais atividades que podem ser desempenhadas por um formando em ciências sociais, economia, história, comunicações ou ainda em áreas “técnicas” como operador cambial ou no mercado de futuros também podem ser ocupadas por um profissional em relações internacionais, sobretudo se ele combinar essa “especialização” a uma graduação nas vertentes mais tradicionais dos cursos universitários.

6) Quais os requisitos que se espera de um profissional de relações internacionais?
Uma trading, por exemplo, ou seja, uma empresa de comércio exterior não se dispõe a contratar um profissional apenas em virtude de um brilhante currículo acadêmico, mesmo se ele for egresso de uma conceituada faculdade pública. Ela é bem mais propensa a valorizar o conhecimento prático da nomenclatura aduaneira, da regulamentação de comércio exterior, das normas técnicas em vigor nos mercados estrangeiros. Muito embora uma boa cultura geral possa ser, igualmente, um surplus na avaliação do currículo do candidato, a experiência em matéria de regulações e normas aplicadas ao comércio internacional se afigura indispensável, assim como conhecimentos elementares de economia e de estatística. Na outra ponta, uma boa cultura humanista contribui em muito para uma boa performance do candidato nos concursos do Instituo Rio Branco, o que não dispensa contudo um contato íntimo com a atualidade mais imediata sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil, que se adquire com a leitura diária dos principais jornais e periódicos de circulação nacional e de algumas revistas especializadas em política internacional (ver, por exemplo, a Revista Brasileira de Política Internacional, disponível em www.ibri-rbpi.org.br).
Em outros termos, as exigências feitas a um profissional de relações internacionais são tão variadas quanto são as possibilidades diversificadas de emprego hoje existentes num Brasil definitivamente inserido nos circuitos da globalização produtiva e financeira. O campo oferece, sem dúvida alguma, oportunidades crescentes aos egressandos dos cursos de graduação e de especialização, mas parece inevitável que um processo de “diluição” das e de “divisão do trabalho” entre as diferentes instituições brasileiras dedicadas à formação e à complementação educacionais desses profissionais deverá necessariamente ocorrer nos próximos anos, como forma de adequar perfis pedagógicos aos requisitos de mercado. O “profissional da globalização” é um ser multifacético, ao mesmo tempo um generalista e um perito em aspectos específicos da crescente interdependência mundial. Longa vida ao profissional em relações internacionais.

© Paulo Roberto de Almeida, 2001
Favor citar a fonte:
Paulo Roberto de Almeida:
Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas
(São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 244-248


(Outros textos de relações internacionais e de política externa do Brasil disponíveis na webpage do autor: www.pralmeida.org).



[1] Ver, a propósito, a identificação dos cursos existentes que procedi em capítulo de meu livro O estudo das relações internacionais do Brasil (São Paulo: Editora Unimarco, 1999).

Um duelo (diplomatico) a distancia com Mangabeira Unger (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um desses "inéditos redescobertos". 
Em fevereiro de 2002, em fase de pré-campanha presidencial, o professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger, conselheiro político, e supostamente diplomático, do então (e eterno) candidato Ciro Gomes, publicava um artigo vitriólico contra a política externa e a diplomacia brasileira, que transcrevo abaixo imediatamente.
Eu comentei também imediatamente, e mandei o texto para o próprio, em seu endereço de Harvard. Nunca recebi resposta, sequer uma nota acusando recepção. Tampouco publiquei ou divulguei este texto que segue após o artigo original.
Transcrevo agora pois talvez alguns dos debates de 2002 ainda tenham algum significado nos dias que correm. Provavelmente, pois durante os 13 anos da gestão companheira não avançamos em praticamente nada, nem em diplomacia, nem em qualquer outro terreno, a não ser na corrupção.
Acho que o Brasil está rigorosamente atrasado mais de duas décadas, em suas políticas públicas e até em sua diplomacia. Mas este é outro debate.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de agosto de 2017

Artigo original de Roberto Mangabeira Unger:




Por que o Brasil não tem política exterior?



Roberto Mangabeira Unger


Folha de São Paulo, 12/03/2002



              O Brasil não tem política exterior. Em vez dela, tem uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais. Mas o Brasil precisa ter política exterior. Estão se reunindo as condições para criá-la.

              Os defensores da redução da política exterior a negociações comerciais afundaram num pragmatismo antipragmático. Prometeram resultados e entregaram frustrações. A única iniciativa forte da diplomacia brasileira, o Mercosul, agoniza e só ressurgirá se for reconstruída radicalmente.

A razão básica pela qual não temos política externa é que não temos projeto interno, a não ser um projeto que resultou no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia. Mas o descalabro tem outras causas também.

Satisfeitas em ter um presidente apresentável em salões e seminários, as elites brasileiras esqueceram que política exterior é um ramo da política, não da indústria de entretenimento. Encobertos pelo nevoeiro retórico da "diplomacia presidencial" e sem balizamento numa discussão nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política externa. Não souberam, porém, o que fazer, a não ser regatear, sem rumo nem força, um pouco mais de vantagem comercial aqui e acolá. Ficaram paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos.

A perversão das práticas convergiu com o desvio das idéias. Rio Branco fundou a tradição da nossa política exterior sobre certos princípios elementares: que a política predomina sobre a economia; que a defesa da nossa soberania tem por objetivo criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria; que essa defesa se consubstancia tanto no resguardo de um espaço sul-americano quanto na construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias; que o Brasil precisa reconhecer na sua política exterior sua personalidade moral e que nosso engrandecimento é inseparável da nossa generosidade. Esses compromissos foram sacrificados a um realismo que se revelou falso e contraproducente.

Quatro tarefas (a discutir) devem nortear uma nova política exterior que encarne hoje esses princípios. A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano. E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento. É obra que exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos. Nenhum país está mais bem posicionado do que o Brasil para liderar iniciativas nesse sentido. A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas. E ampliar nossa margem de manobra por meio da multiplicação dos vínculos em vez de nos refugiarmos no isolamento. A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul. A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.

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A diplomacia que temos e a que não queremos



Paulo Roberto de Almeida





Em provocador artigo sob o título “Por que o Brasil não tem política exterior?” (Folha de São Paulo, 12.02.02; site: http://www.idj.org.br/art0001.asp?SelectID=45), o coordenador do Instituto Desenvolvimento com Justiça, Roberto Mangabeira Unger, tece considerações sobre uma suposta diplomacia brasileira corrente em relação à qual eu, como diplomata com mais de 23 anos de carreira, tenho dificuldades em conectá-la à realidade de nossas relações exteriores ou de nossa prática diplomática. Certamente mais inspirado em seu papel de conselheiro intelectual do candidato presidencial Ciro Gomes, do que em sua função de intelectual público e respeitado acadêmico de Harvard, Mangabeira traça um retrato de uma (falta de) política exterior do Brasil da qual parece complicado reconhecer a existência, ainda mais em concordar com a maior parte de suas afirmações levianas.

Ainda que descontando-se o fato de que ele possa estar atuando motivado mais pelo impulso eleitoral do que pela necessidade legítima de estimular um debate que tem estado ausente das campanhas presidenciais no Brasil, deve-se reconhecer que os argumentos adiantados por Mangabeira não condizem com sua reconhecida capacidade analítica e com a presumida honestidade intelectual de que goza o conselheiro do candidato do PPS.

Mangabeira começa peremptoriamente por afirmar que o Brasil “não tem política exterior”, mas tão simplesmente “uma prática minúscula e malograda de negociações comerciais”. Quaisquer observadores isentos de nossa tradição diplomática, entre eles vários outros serviços diplomáticos de países vizinhos ou mesmo de países desenvolvidos, sabem que se trata aqui de uma simplificação grosseira da realidade. Também soam como exagerados seus argumentos segundo os quais nosso “pragmatismo antipragmático” apenas entregou “frustrações” e que o Mercosul, descrito como “agonizante”, apenas poderá ressurgir “se for reconstruíd[o] radicalmente”. Nenhuma linha segue, porém, sobre as condições em que tal reconstrução poderia ser operada, nesta ou em outras frentes de trabalho diplomático. Na verdade, o artigo de Mangabeira apresenta poucas propostas concretas ou suscetíveis de implementação prática. Senão vejamos.

Concordo com Mangabeira quando ele vincula a política externa à existência de um “projeto interno”, mas torna-se singularmente difícil ver nos últimos anos de estabilização macroeconômica um processo que teria resultado, unicamente, “no enfraquecimento progressivo da nossa afirmação nacional e que inibiu o dinamismo extraordinário da nossa economia”. O que é descrito como “descalabro” não corresponde à realidade de uma diplomacia que tem colocado o Brasil como interlocutor incontornável de processos negociadores nos mais diversos foros formais e informais das relações internacionais contemporâneas. Algo desse sucesso pode ser certamente creditado ao que vem jocosamente caracterizado por Mangabeira como sendo o “nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’”, mas o bom desempenho também pode ser creditado ao trabalho sistemático e paciente de nossas representações no exterior e de nossa Secretaria de Estado na defesa constante dos interesses do Brasil nos mais diversos foros abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Acusar esses diplomatas de terem ficado “paralisados e confundidos pelo medo dos Estados Unidos” é no mínimo criar uma figura de estilo para justificar uma crítica que não guarda a menor relação com a realidade, e que apenas ofende quem está na linha de frente de negociações por certo duras e sensíveis, mas que em nenhum momento foram caracterizadas por temor ou vacilação.

Não se consegue perceber onde estaria ocorrendo uma imaginária “perversão das práticas” como resultado de um suposto “desvio das idéias” do mítico chanceler Rio Branco (a ele são creditados os “fundamentos” da nossa política exterior). Que a política predomine sobre a economia, não deixa de ser verdade hoje como nos tempos do Barão; que “a defesa da nossa soberania” tenha como objetivo principal “criar condições para o desenvolvimento de uma experiência nacional própria” é tão válido hoje como há exatos cem anos atrás, quando Rio Branco assumia por dez longos anos o comando de nossa diplomacia; que essa defesa passe pelo estabelecimento de um espaço sul-americano não representa nada mais do que o que vem sendo pacientemente articulado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 90, pelo menos; que essa visão possa ser materializada pela “construção mundial de um pluralismo que se contraponha a hegemonias”, como quer Mangabeira, corresponde exatamente aos discursos brasileiros nas assembéias gerais da ONU desde muito tempo, como poderia ser facilmente verificado por Mangabeira. Enfim, as críticas de Mangabeira, aos conhecedores, soam como um déjà vu, all over again.

Ele elenca, em seguida, quatro tarefas que deveriam “nortear uma nova política exterior”. Suas propostas são simples e diretas e merecem citação explícita, seguidas de comentários.


1) “A primeira tarefa é trabalhar pela construção de instituições que definam uma ordem política e econômica multilateral capaz de lidar com o fato do poderio americano.”


De acordo, mas a proposta não contradiz o que já vem sendo dito e feito pelo Brasil.


Corolário: “E que abram caminho para uma diversidade de trajetórias de desenvolvimento.”


Não poderia ser de outra forma. O irracional seria tentar perseguir a todo custo uma ilusória uniformização de posições em matéria de políticas econômicas e de modelos de desenvolvimento, o que apenas violentaria as condições próprias e o contexto exclusivo em que se dão nosso próprio processo de desenvolvimento e nossa inserção internacional. Não se compreenderia aliás uma política externa que tentasse encaixar o Brasil em moldes pré-fabricados.


Corolário: Essa tarefa, segundo Mangabeira, “exige entendimentos arrojados com alguns dos outros grandes países continentais, sobretudo a China e a Índia, com a União Européia e com nossos aliados potenciais dentro dos Estados Unidos”.


Não se percebe bem o ineditismo de tais propostas, uma vez que a diplomacia do Brasil vem atuando precisamente nessa linha, de diversificar parcerias externas e lograr uma intensificação do relacionamento com grandes países emergentes, como podem ser a China, a Índia e a Rússia. A relação com a UE é tradicional e muito intensa, atuando como contrapeso aos Estados Unidos pelo menos desde o Império e começo da República. Seria, por outro lado, muito útil que fossem identificados esses “aliados potenciais” dentro dos Estados Unidos que não estão muito claros quem sejam exatamente. Se forem os anti-globalizadores do movimento sindical e ecológico ou, ainda, protecionistas enrustidos ou declarados à la Ralph Nader, o Brasil teria muito pouco a ganhar com eles, já que eles atuam, justamente, para dificultar o acesso de nossos produtos (sobretudo agrícolas) ao mercado dos EUA.


2) “A segunda tarefa é aproveitar as contradições da economia global, buscando acordos e parcerias não só com Estados e blocos regionais mas também com empresas.”


De acordo novamente, mas é preciso obter um mapeamento preciso, a ser fornecido por Mangabeira, dessas contradições existentes na economia global, a partir das quais seria possível traçar o quadro de alianças preferenciais que a diplomacia brasileira buscaria. Do que pode ser observado atualmente, trata-se exatamente do que vem sendo feito pela atual diplomacia, que está longe de refugiar-se no “isolamento”, como quer nosso articulista.


3) “A terceira tarefa é começar a refazer nossa situação na América do Sul através dos empreendimentos comuns e das instituições comuns que faltaram ao Mercosul.”


Perfeito: mais uma vez aguarda-se o detalhamento desses empreendimentos e instituições comuns “que faltaram ao Mercosul”, pois fica parecendo que a crise deste último deve-se à falta dessas instituições, não à existência de condições econômicas objetivas em cada um dos países membros.


4) “A quarta tarefa é cumprir nossa obrigação sagrada para com a África sofredora, ajudando o Brasil, desse modo, a reconciliar-se consigo mesmo e a ganhar a energia dos magnânimos.”


Esta parte entra num terreno que pertence mais à obrigação moral do que ao cálculo racional. Se temos alguma obrigação sagrada para com a “África sofredora”, que justifique sacarmos nosso talão de cheques para atender necessidades daqueles povos, seria o caso de discutir com o Congresso como empregar esse dinheiro, pois vários parlamentares podem argumentar que temos sofredores de sobra, aqui mesmo no Brasil, com os quais temos deveres igualmente, ou mais, sagrados.


Em síntese, o Brasil dispõe de uma diplomacia que pode e deve sofrer diversos aperfeiçoamentos de forma e de conteúdo. Tal tarefa será empreendida com a colaboração de todos aqueles interessados num debate sério sobre a questão. A condição primeira para que tal debate seja feito seria evitar as simplificações e as meias-verdades, evitando caracterizar os dados da realidade pelo seu travestimento indevido numa série de conceitos que relevam mais da acusação gratuíta do que da análise serena.




875: Washington, 12/03/2002