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domingo, 22 de outubro de 2017

Politica externa do governo Geisel: rupturas e continuidades - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2002, fui contatado por um grupo de alunos das Faculdades Casper Líbero que pretendiam fazer um "livro-reportagem" sobre temas de política internacional, e me pediram para que respondesse um conjunto de questões sobre a política externa do Governo Geisel. Nunca me deram retorno sobre o projeto, e é muito provável que, como muitos outros sonhos loucos de estudantes, ele nunca tenha sido levado a termo.
Mas, descubro agora, quando dou início a um novo exercício de avaliação do pensamento diplomático durante a era militar, que esse trabalho permaneceu inédito e não utilizado durante esses últimos 15 anos. Mesmo sem ler o texto, para saber o que exatamente eu escrevi, transcrevo-o agora, pois pode ter utilidade para alguém.
Sempre vale o registro de algo que nos custou tempo e trabalho durante pelo menos algumas noites...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017


Política externa do governo Geisel
breves considerações sobre rupturas e continuidades

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líber,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
(a ser publicado no final do ano de 2002)

Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.


Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA):

1.   Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?

PRA: Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar.
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measures na Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA).
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais.
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade.
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos.
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral.
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel).
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais.

2.   Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?

PRA: FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira.
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria.
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.

3.   No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?

PRA: O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro).

4.   Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país?

PRA: Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro.

5.   O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?

PRA: Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa.

6.   E a política externa do governo atual, tem este caráter?

PRA: Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais.

7.   Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina?

PRA: O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista.
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.

8.   A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?

PRA: Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos.

9.   Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições?

PRA: Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio  internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático.

10. De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?

PRA: Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos.

11. Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?

PRA: Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”).
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico.
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador.
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação).

12. Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?

PRA: Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo.
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil.

13. Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)

PRA: A participação do Brasil no comércio  internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem).
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais.
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.

Washington, 924: 11 de julho de 2002

Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas (LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico (Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain (Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.


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DOSSIÊ GEISEL
Celso Castro - Maria Celina D´Araujo (organizadores)
R$ 37,00 / 252 págs.

O LANÇAMENTO MAIS EXPLOSIVO DO ANO !
Uma Visão dos Bastidores do Governo Geisel
Arquivos Confidenciais Divulgados ao Público pela 1a.Vez !

Este livro examina importante acervo documental sobre a recente história do Brasil : o arquivo pessoal de Ernesto Geisel, doado por Amália Lucy Geisel , filha do ex-presidente , em 1998, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil ( CPDOC) da Fundação Getulio Vargas .
Os textos foram produzidos no período em Geisel ocupou a presidência da República, consistindo, basicamente nos despachos diretos dos ministros com o presidente , abordando as principais questões nacionais do período que dependiam de decisão do presidente.
Os autores fazem uma avaliação dos dossiês dos ministérios da Justiça, Fazenda, Relações Exteriores, Educação, Previdência, Trabalho, Comunicações além de relatórios do SNI.
Sumário :
- Introdução.( Celso Castro e Maria Celina D ´Araujo)
- Ministério da Justiça , o lado duro da transição.( Maria Celina D´Araujo)
- As apreciações do SNI.( Celso Castro)
- O Dossiê Ministério da Fazenda do Arquivo Ernesto Geisel: fontes sobre a gestão de Mario Henrique Simonsen.( Carlos Eduardo Sarmento e Verena Alberti)
- O pragmatismo responsável no arquivo do presidente Geisel.( Letícia Pinheiro)
- Educação e cultura no Arquivo Geisel.( Helena Bomeny)
- Abertura política e controle sindical: trabalho e trabalhadores no Arquivo Ernesto Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- O " Ministério da Revolução" de 1964: previdência e assistência sociais no Governo Geisel.( Angela de Castro Gomes).
- As telecomunicações no Brasil sob a  ótica do governo Geisel.( Alzira Alves de Abreu)
- O arquivo Geisel e os bastidores da fusão.(Marieta de Moraes Ferreira)
- Bibliografia.
- Sobre os autores.
- Anexos

Programa do PT para as eleicoes presidenciais de 2002 - comentarios PRA

Como em vários outros casos, não pude dar divulgação pública de minhas análises e comentários aos programas e plataformas eleitorais apresentados pelos diversos candidatos às eleições presidenciais de 2002, quando eu ocupava o cargo de ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Washington. Esses textos foram mais dirigidos aos programas e propostas do PT porque simplesmente se tratava do partido mais vocalmente dedicado à expressão pública de seus pontos de campanha, e também porque eu já pressentia que o partido iria ganhar as eleições.
Como nos aproximamos de novas eleições presidenciais, quando as mesmas propostas podem voltar a ser feitas, no mesmo tom demagógico e eleitoreiro, dou conhecimento de minhas críticas feitas 15 anos atrás. Quem sabe os candidatos melhoram suas propostas desta vez?
Paulo Roberto de Almeida


O Programa de Campanha do PT em 2002:
arredondando o quadrado ou ainda a quadratura do círculo?

Washington, 29/06/2002

Depois de muita discussão, alguma hesitação e certamente toneladas cúbicas de transpiração, o PT conseguiu finalizar e apresentar ao distinto público seu programa político para a campanha presidencial de 2002. A versão definitiva ainda está sendo trabalhada pelos líderes do Partido (que, espera-se, devem corrigir alguns erros de Português da versão resumida apresentada pelo jornal O Estado de São Paulo), mas o texto que foi transcrito no Estadão deste sábado 29 de junho já é suficiente para termos uma idéia do que vem pela frente em termos de propostas inovadoras e idéias criativas para tirar o Brasil do impasse e conduzi-lo a uma nova fase de crescimento com justiça social.
Se eu pudesse resumir o sentido geral do documento, ainda que correndo o risco de ser massacrado pelos meus amigos petistas, eu diria tão simplesmente: neoliberalismo envergonhado e compromisso retórico com o social. Senão vejamos.
A reportagem abre com uma síntese das boas intenções do PT: “O programa de governo do PT propõe crescimento econômico de 7% ao ano, garante que o partido não vai romper contratos nem revogar regras estabelecidas. Diz ainda que os compromissos internacionais serão respeitados e que as mudanças necessárias serão feitas “democraticamente, dentro dos marcos institucionais”.
Bem, se não há rompimento de contratos, nem revisão de regras e se as mudanças serão todas feitas dentro dos marcos institucionais, o que isto significa senão reformismo puro e simples? Algo de diferente ocorreria com o PSDB, com o PPS ou mesmo com o PFL? Provavelmente não, o que confirma a enorme evolução do PT desde as campanhas fracassadas de 1989, 1994 e 1998. Por outro lado, a “proposta” de crescer 7% não deve ser levada a sério, pois se trata… de simples proposta, sem garantia de concretização. Assim fica fácil montar programa, pois pode-se fazer um “caderno de desejos” e oferecer ao eleitor crédulo.
O objetivo é certamente nobre, pois como afirma o documento revelado pelo Estadão, o governo do PT “vai trabalhar dia e noite para que o País evolua da âncora fiscal para o motor de desenvolvimento”. Aqueles que apreciam raciocínios lógicos, isto é, um mínimo de correspondência conceitual entre os elementos de uma mesma equação, ficam se perguntando como é possível comparar “âncora fiscal” (um mero instrumento monetário e contábil) com “motor de desenvolvimento”, projeto grandioso que abarca praticamente todos os instrumentos de política econômica à disposição de um governo. Concedamos, porém, ao PT, o benefício da dúvida: ele quer colocar o desenvolvimento no centro das políticas econômicas, sem que ele diga exatamente como vai alcançar a taxa indicada (7%, indicada como “vocação histórica” do Brasil). Os economistas, como eu, sempre serão um pouco mais céticos em relação a essas metas pré-fixadas, mas vamos e venhamos: todos os economistas do Brasil não conformam sequer 1% da população, o que constitui, para todos os efeitos, um eleitorado insuficiente para definir qualquer tipo de votação (ainda que esse número seja suficiente para criar ou desfazer credibilidades). Primeira constatação, portanto: o PT já é um partido reformista, ainda que ele não se reconheça como tal.
Em segundo lugar, se diz que “A inflação será mantida sob controle, para que a poupança nacional seja orientada e estimulada, garante o PT.” Excelente, mas no mesmo dia em que aparece essa proposta inteligente, o “economista-chefe” do PT, professor Guido Mantega, deu entrevista ao mesmo jornal criticando o sistema de “metas de inflação” do governo e dizendo que um indice de “4% em 2003 ainda não é realista”. Depois de afirmar nominalmente que “A burrice gera inflação”, Mantega considerou que as metas de inflação num governo Lula serão mais realistas, dizendo o o seguinte: “Serão estabelecidas metas mais realistas, o que não significa frouxidão inflacionária. Não vou falar do próximo ano. Mas para este ano, 2002, eu diria que 5% ou 5,5% seria uma meta razoável.
Ora, um candidato ao cargo de ministro da Fazenda que já começa antecipando que a inflação está muito baixa e que ele se “contentaria” com um pouquinho mais, é porque pretende fazer o povo sofrer. Em primeiro lugar, nenhum ministro econômico são de espírito e nenhum presidente de Banco Central com os neurônios funcionando ficam expressando satisfação com um objetivo mais elevado para a inflação. Em segundo lugar, se esse desejo é tomado como “meta”, ele servirá certamente de piso para o novo patamar de crescimento de preços, o que atua seguramente em detrimento de todos aqueles que não têm condições de corrigir os seus “preços” de mercado (poupança, salários, rendimentos fixos etc.). Alguém já viu pobre ganhar da inflação? Segunda constatação, portanto: o PT gosta de fazer o povo sofrer.
Num terceiro conjunto de questões, conseguimos ficar mais perplexos do que o militante do PT que estava esperando uma ruptura com o capitalismo e com as políticas neoliberais. O partido confessa que não sabe o que colocar no lugar da “âncora fiscal”. O programa diz textualmente: “É preciso evitar que se consolide uma nova armadilha no País, aquela que estabiliza, mas impede o crescimento. Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas dores, mas sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é como superá-la sem atentar contra a estabilidade da economia”. Trata-se de verdade de um dilema hamletiano: como fazer o país expandir a economia sem disparar a sineta dos desequilíbrios nas contas públicas. Crescer ou não crescer, eis a questão! Seria bom que o PT pudesse oferecer uma alternativa credível em termos do mecanismo que pretende colocar no lugar do superávit ou da “âncora fiscal”. Terceira constatação, portanto: o PT tem muitas dúvidas e poucas respostas. Como aliás a maioria dos economistas. Bem vindo à realidade!
Um bom exemplo desse tipo de dilema aparece na questão do volume necessário do superávit primário. Segundo o programa, “O nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente em relação ao PIB e destrua a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos.” Mas se ele fizer apenas isso não vai conseguir baixar os juros. O que o PT deveria fazer, desde já, seria anunciar que pretende elevar o superávit para 5 ou 6% do PIB, pois isso significaria, de imediato, que o governo não precisará se abastecer no mercado, não vai concorrer com os particulares e portanto não vai pressionar os juros e, a rigor, terá recursos suficientes para recomprar uma parte dos títulos da dívida pública que ficam servindo de “prato feito” para esses verdadeiros gigolôs da despoupança estatal que são os banqueiros. Se o PT fizer apenas o necessário nessa área, seu governo vai continuar refém desses sanguessugas da economia nacional que são os banqueiros. Quarta constatação: o PT adora banqueiro (ainda que ele não desconfie disso).
No que se refere, por fim, à política externa ficamos avisados do seguinte: “A política externa será instrumento fundamental para que o governo implante um novo projeto de desenvolvimento nacional, diminuindo a vulnerabilidade do País frente à instabilidade dos mercados globais, agravada pelo crescente protecionismo e garantindo uma presença soberana do Brasil no mundo”.  Excelente como discurso grandiloquente, se não fosse pelo simples pormenor de que a intenção está completamente equivocada. Projeto de desenvolvimento nacional se define internamente, em função de instrumentos e políticas públicas de caráter interno, sendo a externa mera conseqüência daquela que se define no plano doméstico, não o contrário. O PT repete aqui o mesmo cacoete que parece ter atingido o presidente FHC quando este deblatera contra os “capitais voláteis” como fontes de instabilidade econômica e de crises financeiras.
Não parece passar pela cabeça desses senhores, FHC e Lula, que a instabilidade e os “ataques especulativos” não são seres alienígenas que resolvem um belo dia atacar algum país incauto, caindo sobre eles assim como um raio num céu azul de primavera. Não lhes vem à cachola que a instabilidade é um dado da realidade interna do País, não algo externo à ele, que o Brasil não é vulnerável porque os capitais americanos, europeus ou japoneses assim o decidiram, mas porque os fundamentos de sua economia não vão bem das pernas. Se isso não ficar claro, de uma vez por todas, o PT vai continuar disparando bobagens contra a “instabilidade dos mercados globais” e deixar de fazer o dever de casa, que é fortalecer a economia brasileira e torná-la assim menos suscetível de sucumbir aos ataques dos “capitais voláteis”. Os economistas do PT deveriam no entanto saber muito bem que não há capital volátil que resista a uma boa quarentena, ou a um imposto financeiro de 10 ou 15%, o que está inteiramente nas mãos do governo decidir.
Por que o governo brasileiro não o faz? Provavelmente porque não consegue se libertar da “drug addiction” do capital estrangeiro. E por que ele não consegue? Talvez porque tenha um desequilíbrio fundamental nas contas públicas, internas e externas. Essa equação vai ser resolvida externamente? Obviamente que não, daí a razão de porque o PT se equivoca completamente quando pretende atribuir à política externa uma missão que pertence inteiramente à política interna. Por outro lado, construir frases em torno do “crescente protecionismo” e pretender garantir “uma presença soberana do Brasil no mundo” não nos leva a lugar nenhum. Em primeiro lugar porque o protecionismo pode ser uma desculpa, ou no máximo uma explicação (parcial) para os nossos problemas, mas não uma solução. Em segundo lugar, porque soberania não se afirma, sobretudo de modo gratuito, sem definir seus instrumentos, mas ela se pratica, no dia a dia, determinando um IOF contra os “capitais especulativos”, por exemplo. Quinta constatação: o PT não sabe para que serve uma política externa ou quer fazê-la cumprir missões que pertencem ao terreno da política interna. Seu chanceler vai ter de passar por umas aulinhas no Instituto Rio Branco antes de poder se qualificar para o cargo…
Aprofundando no terreno da política externa, ficamos sabendo o que o PT pensa da Alca: “A implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos, e tendo em vista as recentes medidas protecionistas adotadas pelo governo daquele país pode representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente, especialmente do Brasil. Sem o abandono das recentes medidas protecionistas do governo norte-americano, a política de livre comércio fica inviabilizada”. Aqui podemos desde logo começar por uma sexta e importante constatação: o PT é a favor do livre comércio, o que é absolutamente surpreendente conhecendo-se sua trajetória anterior e sua retórica reincidente contra o livre-cambismo.
Mas, os economistas do PT não precisam ficar de modo algum envergonhados com essa afirmação “herética” do programa, pois um brilhante predecessor também era a favor do livre comércio: Karl Marx! Isso mesmo, o velho barbudo, inimigo visceral do capital e dos capitalistas. Quem conhece o seu discurso sobre o livre comércio, pronunciado em reunião da associação de trabalhadores de Bruxelas, em 1847, antes que ele redigisse com Engels o Manifesto do Partido Comunista, sabe do que estou falando. Quem não conhece (e suspeito que são maioria no PT), recomendo ler urgentemente esse “texto fundador”: ali pode-se encontrar argumentos edificantes sobre como conciliar a luta contra o capitalismo e a favor do livre comércio. Nenhum problema de angústia filosófica, portanto, ao promover ao mesmo tempo a construção da Alca e a derrubada do capitalismo no hemisfério. Duas citações de Marx curam o problema existencial.
Agora vejamos os equívocos do resto do programa “alcalino” do PT. Ele recusa a “implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos”, mas a menos que o PT pretenda negociar dentro do Senado americano, ele vai mesmo encontrar os burocratas de sempre, do USTR, dos departamentos do Comércio, de Estado ou da Agricultura, nas reuniões do processo negociador hemisférico. As negociações se fazem com base em documentos apresentados pelos países, de demandas de acesso a mercados, de concessão de ofertas de abertura de seus próprios mercados, de definição de normas relativas a políticas de concorrência, propriedade intelectual, fitossanitárias etc. Ou seja, nada está definido nos termos de nenhum país em particular, e será a barganha do “toma lá, dá cá” que permitira definir os “termos” do futuro (e ainda hipotético) acordo da Alca.
Por outro lado, achar que “medidas protecionistas adotadas pelo governo [dos EUA] podem representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente” representa simplesmente confundir medidas de apoio interno com os resultados de um processo negociador que visa, justamente, desmantelar essas medidas protecionistas e assegurar o acesso ao mercado interno. Sem esse acesso, ou seja, sem o desmantelamento progressivo de barreiras e de fatores distorcivos do comércio, não existe acordo comercial digno desse nome. Creio que isto está bem claro para o governo atual e sua diplomacia, e tem sido repetido à exaustão pelos principais negociadores brasileiros, a começar pelo próprio presidente FHC em Québec. Mas, enfim, tomamos nota de que o PT pretende viabilizar o livre comércio desmantelando as “medidas protecionistas do governo norte-americano”, o que sem dúvida se encaixa na perspectiva da atual política externa. Onde está a novidade nas relações internacionais do PT, então?
Por fim, em relação à reforma da Previdência, a constatação é mais uma vez bem-vinda: “Os poucos menos de 1 milhão de aposentados do setor público, que se retiraram da ativa com salários integrais impõem as cofres públicos um déficit em torno de R$ 40 bilhões.” Mas, o governo atual vinha dizendo isto desde 1995 pelo menos, e pretendia justamente acabar com a iniquidade da desigualdade previdenciária, no que não contou, para dizer o mínimo, com o espírito de colaboração do PT. Será que, com o PT no governo, o PSDB vai se vingar e recusar a aprovação dessa reforma? Cruel dilema…
Última constatação, portanto: o PT é bem vindo ao neoliberalismo econômico e à responsabilidade fiscal. Com um programa tão ortodoxo (corrigido dos poucos equívocos que aqui apontamos), ele está pronto para fazer um grande programa de administração social-democrática do processo de reformas de que necessita o Brasil. Enfim, nada de muito diferente do que vinha tentando fazer a administração FHC, mas essas são as ironias da história.

[Washington, 29/06/2002]

Carta ao Povo Brasileiro (Lula, 2002): comentarios PRA sobre temas de politica economica e externa

Como em diversos outros casos vinculados a temas de política externa e de relacões internacionais, eu, dada minha condição de diplomata, não podia ficar divulgando textos de análise e sobretudo de crítica. É o caso deste aqui, em que eu me permitir ironizar a ignorância econômica do redator – certamente não o Lula – da Carta ao Povo Brasileiro, altamente demagógica, mas suficiente para fazê-lo ganhar (por uma série de outros motivos.
Paulo Roberto de Almeida


Lula e as relações internacionais do Brasil

  Washington, 24 junho 2002

Destaco, da Carta ao Povo Brasileiro, emitida por Lula no último sábado (22 de junho de 2002) e transcrita em sua íntegra mais abaixo, os seguintes trechos que podem ser pertinentes para um debate sobre posições dos candidatos em temas de relações internacionais:

(Soberania comprometida):
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
Comentário: Seria preciso esclarecer em que a soberania está comprometida. Entendo que Lula se refira a nossa dependência financeira externa, que de fato é muito alta.

(Restaurar nossa presença no mundo):
a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo
Comentário: Não creio que nossa presença soberana ou respeitada tenha sido ameaçada, mas entendo que os candidatos sempre precisam dramatizar a situação para dizer que eles são capazes de resgatar isso ou aquilo.

(Erro de Português???):
A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
Comentário: Parece-me que os redatores do PT esqueceram algum verbo ou complemento verbal nesta frase, pois ela não tem uma finalização correta. Será que eles precisam voltar para o supletivo?

(Exportar mais e mercado interno):
O povo brasileiro quer mudar para valer. (...) Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas.
Comentário: Estou de acordo com exportar mais, ainda que eu me lembre que alguns meses atrás o Lula tinha dito que era preciso parar de exportar alimentos ou produtos agrícolas em geral até que todo brasileiro pudesse comer. Ora, o problema da fome no Brasil não tem nada, ABSOLUTAMENTE NADA, a ver com exportação de alimentos. Trata-se de um problema distributivo, de renda, não de produção. Por outro lado, a criação de um “amplo mercado interno de consumo de massas” em nenhum momento reduz ou aumenta a vulnerabilidade externa, que é determinada por fatores ligados a balanço de pagamentos, não pela dimensão do mercado interno. Será que os economistas do PT precisam voltar a ler os seus manuais de economia. Eu, na Faculdade, li todo o meu Samuelson, e aprendi certas coisas que hoje os economistas do PT parecem ignorar. Alguém pode me explicar a diferença entre mercado interno e mercado externo?

(Respeito as obrigações e compromissos externos):
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
Comentário: O PT reconhece que há uma instabilidade financeira, e se compromete a respeitar os contratos e obrigações externas do País. Trata-se de notável evolução em relação a campanha de 1989, por exemplo, quando Lula convidava os demais países em desenvolvimento a aplicar um calote na dívida externa. Vivendo e aprendendo...

(Duvidas na capacidade do Brasil de honrar seus compromissos):
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Comentário: Sem duvida, devemos reconhecer que o Brasil está fragilizado interna e externamente, por uma enorme dívida global, privada (maior na parte externa) e pública (essencialmente interna). Sua origem é conhecida: nossa imensa capacidade de viver acima dos nossos meios, de gastar mais do que arrecadamos (até que produzimos superávit primário, mas por outro lado continuamos a tomar dinheiro para rolar a dívida, pagando, e muito caro, nossos juros). Precisamos saber também, antes de fazer demagogia, qual a origem dessa situação. Além do desequilíbrio histórico do estado brasileiro (que o governo tentou corrigir fazendo reforma previdenciária, por exemplo, sempre oposta pelo PT, que defende suas corporações de funcionários públicos), não se pode deixar de lembrar todos os “esqueletos” que o governo atual absorveu, sobretudo sob a forma de renegociação das dividas estaduais e municipais. Ou seja, esse endividamento não foi feito apenas para contentar banqueiros, como parece acreditar o PT, mas por causas objetivas, que são muito difíceis de corrigir, a começar pela baixa taxa de poupança interna.

(Jogando a responsabilidade da instabilidade no Governo:)
Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Comentário: Vamos ser claros: a responsabilidade é totalmente compartilhada. Nasce de dificuldades objetivas, como as relatadas em meu comentário anterior, que são de responsabilidade, mas não exclusiva, do atual governo, mas também nasce, quer queira ou não o PT, do temor natural de que uma mudança no comando econômico, em favor de quem até agora prometia “mudar tudo”, possa representar quebra de contratos e calote na divida interna e externa.

 (Qual é mesmo o modelo alternativo?):
Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Comentário: Totalmente de acordo com o PT, mas se eles não apresentarem concretamente quais são esses caminhos alternativos, podemos considerar que se trata de demagogia barata. Ou o PT diz claramente o que pretende fazer ou então para de ficar fazendo crítica genérica.... Talvez eles queiram referir-se a Índia, China, Rússia. Esses países estão mesmo melhor do que o Brasil? Ou será que Lula vai apontar os exemplos dos EUA, da Inglaterra, da França, exemplos de democracias avançadas com grau razoável de bem estar para suas populações. Mas esses países são neoliberais, para dizer o mínimo. Como é mesmo que ficamos?

 (Populismo cambial):
Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Comentário: Parece que só o PT não sabia que o real estava sobrevalorizado até o começo de 1999, pois dezenas de economistas de oposição, da situação, de direita mesmo (como o Delfim Netto), não cansavam de dizer isso todo dia, pela imprensa. No plano internacional, o índice BigMac do The Economist dava uma sobrevalorização de 15 a 20 por cento para o real e de 35 por cento para o peso argentino. Ou seja, não havia novidade nenhuma nisso. Só um governo imbecil poderia sair por aí dizendo que o câmbio está defasado e que seria preciso ajustá-lo à realidade econômica. Ou seja, nenhum governo responsável faz isso com uma “mercadoria” tão sensível como o câmbio e se o PT estivesse no governo naquela ocasião teria feito a mesma coisa.
O que o PT se esquece de dizer é que esse real sobrevalorizado foi essencial para combater a inflação e que sem ele a relativa redistribuição de renda que ocorreu no começo do Plano Real nunca teria ocorrido ou pelo menos não na mesma proporção. Ou o PT é contra consumo das massas e barateamento da produção interna? Isso só ocorreu graças ao populismo cambial . Como dizem meus colegas economistas, tudo tem o seu “trade-off”, ou seja, nada vem de graça, sempre há um preço a pagar pelas medidas econômicas que se adota para resolver este ou aquele problema. Naquela conjuntura, a quebra da espinha dorsal da inflação era o mais importante, daí o “populismo cambial”.

 (Esqueceram, outra vez, o manual de economia?):
Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Comentário: Por que a âncora fiscal seria inerentemente frágil? Só porque o PT não gosta dela? Ele tem alguma outra ancora para propor, ou pretende dispensar qualquer âncora? Na verdade o que está sendo usado no lugar da ancora cambial é o sistema de “inflation targetting”, ou metas de inflação. Se o PT tem algo contra precisa dizer exatamente o que.
Agora achar que finanças públicas se resolve com “melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo” é de uma burrice tão atroz que dispensa comentários. Isso pode, se tanto, melhorar a situação das contas externas, mas nunca a das contas públicas, que dependem sim de algum tipo de equilíbrio fiscal. Parece que os economistas do PT precisam voltar a ler o Samuelson.... que esqueceram no caminho.

 (Inconsistências várias:)
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Comentário: O agronegócio já contribui para diminuir nossa dependência externa e não foi preciso esperar o PT para sabermos disso. A agricultura familiar se insere nesse contexto, quando está ligada a uma cadeia produtiva, como é o caso dos estados do sul e sudeste. No resto do Brasil, geralmente agricultura familiar está mais ligada aos mercados locais, quando não é função de um sistema de mera subsistência. Reforma tributária ninguém é contra, mas o PT precisa dizer exatamente qual o seu modelo preferido e como pretende implementá-la. Política alfandegária quer dizer o que: modernizar as aduanas? Isso geralmente da mais despesa do que receita. Só se o PT quer falar de politica comercial, mas fazer isso sem referência ao Mercosul seria impossível. O PT já ouviu falar de Tarifa Externa Comum? Pretende mudá-la?
De resto, é bem vinda sua intenção de canalizar recursos para atividades capazes de gerar divisas. Ele antes tinha uma obsessão pelo mercado interno e era contra o mercado externo, sem que se consiga saber por que diabos tinha essa atitude. Deve ser parte do preconceito de muito esquerdista ingênuo contra os “mercados internacionais”.

(O PT parou de ler jornal?):
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Comentário: Ou muito estou enganado, ou o Itamaraty já vem fazendo isso que o Lula recomenda. Ele teria algo de novo a propor? Acha que o Itamaraty só serve para entregar flores e dar jantares para visitantes ocasionais?

 (Taxa de juros depende da “despoupança” estatal:)
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Comentário: A taxa de juros depende basicamente das necessidades de financiamento do setor público, que se abastece prioritariamente no mercado interno. Se o PT quer reduzir a chamada “vulnerabilidade externa”, deveria começar propondo um superávit primário de 5 ou 6 por cento do PIB, o que significa que o governo não precisaria mais ficar tomando dinheiro no mercado e mandaria o banqueiro deixar de ser gigolô do Estado e fazer o que ele fazer: emprestar dinheiro para o setor privado. Os juros baixariam rapidamente se o Governo parasse de concorrer com industriais e agricultores. Será que o PT vai fazer isso?

(Defendendo a burguesia nacional?:)
Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Comentário: Politica industrial é o que os industriais mais gostam: subsídio farto e barato, taxas de juros subsidiadas, dezenas de isenções fiscais, que vida boa... Parece que o PT herdou a mania do antigo Partidão (PCB) de querer ajudar a burguesia nacional... São os mesmos que colocam dinheiro em Miami  e praticam evasão e fraude fiscal. Acho que o comprometimento principal do PT deveria ser com a classe operária não com a burguesia...

(Então estamos de acordo: queremos crescer:)
Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Comentário: Certo, certo: é o que todo mundo quer. O PT tem a receita mágica do equilíbrio fiscal e do crescimento? Se tem precisa dizer, pois estamos há anos atolados no desequilíbrio e no baixo crescimento. Onde estão os gênios econômicos do PT? Se escondendo até depois das eleições? Mas, assim fica difícil ganhar eleição: se eles guardam as suas receitas geniais para depois, correm o risco de não ganharem as eleições por inconsistências eleitoreiras e timidez programática...

(Ufa: demorou para dizer isso...):
A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
Comentário: Mas como é que passamos 7 ou 8 anos até o PT chegar a esta brilhante conclusão? Onde eles estavam este tempo todo? Brincando de esconde-esconde? Mas o governo vinha dizendo isso desde o começo, contra, aliás, a opinião do PT, que ainda há pouco dizia que um “pouquinho de inflação” era aceitável desde que aumentasse o crescimento... E a contestação da constitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal no STF? Como é que fica essa contradição pouco dialética?

 (Todo mundo de acordo?):
fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Comentário: Parece que todos os candidatos propõem o mesmo, ao mesmo tempo. O Itamaraty vai ficar chupando o dedo?

Em síntese: bem vindo à realidade colegas do PT. Nada mais realista do que um economista de oposição no poder.

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São Paulo, 22 de junho de 2002

Carta ao povo brasileiro

O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político.
Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo.
A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública.
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia par ao outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país.
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena.
O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias. Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram intranquilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas turvas.
Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranquilidade e compromisso com o Brasil.
Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro.
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.
Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.
Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos.
A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.
O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Exemplo maior foi o fracasso na construção e aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a exportação brasileira.
A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.
Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social.
O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis.
Luiz Inácio Lula da Silva