Em meados de 2002, fui contatado por um grupo de alunos das Faculdades Casper Líbero que pretendiam fazer um "livro-reportagem" sobre temas de política internacional, e me pediram para que respondesse um conjunto de questões sobre a política externa do Governo Geisel. Nunca me deram retorno sobre o projeto, e é muito provável que, como muitos outros sonhos loucos de estudantes, ele nunca tenha sido levado a termo.
Mas, descubro agora, quando dou início a um novo exercício de avaliação do pensamento diplomático durante a era militar, que esse trabalho permaneceu inédito e não utilizado durante esses últimos 15 anos. Mesmo sem ler o texto, para saber o que exatamente eu escrevi, transcrevo-o agora, pois pode ter utilidade para alguém.
Sempre vale o registro de algo que nos custou tempo e trabalho durante pelo menos algumas noites...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de outubro de 2017
Política externa do governo Geisel
breves considerações sobre
rupturas e continuidades
Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de
Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade
Casper Líber,
na qualidade de colaborador
intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas
e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do
governo Geisel (1974-1979)”
(a ser publicado no final do
ano de 2002)
Temática geral da
obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto
Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.
Perguntas
formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA):
1. Podemos
fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel
(diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial
para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras
características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais
realizada hoje com o atual governo?
PRA: Existe uma certa
convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política
externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante
as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois
universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos
objetivos finais.
Comecemos
pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia
presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na
construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de
qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no
horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum
de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos,
igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático,
tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas
plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar
na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA,
Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na
busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a
elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar.
No
plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As
condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais
foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram
sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no
cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda,
sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e
seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger,
tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos
acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das
negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas
nos planos multilateral e regional (confidence-building measures na
Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva
no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear
(mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a
diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento
(África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação
da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países
de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da
Tchecoslováquia, Polônia, RDA).
No
plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de
repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas
fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento
ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava
ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países
comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita
soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar”
relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China
comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes
tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do
Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O
chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de
uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter
assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de
cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da
UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência
econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu
início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado
“Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem
econômica internacional nos foros multilaterais.
O
próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova
diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre
os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e
tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande
potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo
encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação
nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta
o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente
energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente
e a custos altíssimos para a sociedade.
O
cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias
de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do
primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão
inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do
petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano
regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento
dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o
Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas
proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se
temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado
pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a
aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos.
Na era
FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da
bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina
e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em
relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da
diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico,
aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos
eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento
econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de
empréstimo e ao financiamento externo de modo geral.
Também
se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas
neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos
nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao
passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações
e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera
econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter
caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país
“injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração
Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram
ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o
processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas
descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel).
Em
todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas
fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante
diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no
que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida
no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do
exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente,
enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da
globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização
(conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de
construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida
(ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais.
2. Poderíamos
dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias
e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou
o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de
“alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando
Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC
tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia
brasileira?
PRA: FHC praticou uma
diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os
constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc)
e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de
Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era
FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda
que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA
tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a
uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa
e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só
existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por
uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do
novo regime e sua situação econômico-financeira.
Não se
pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na
gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as
relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e
missilística, das patentes, da política comercial, do alegado
“terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de
dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações
comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações”
diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma
modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a
redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial
reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear
independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou
tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar
às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição)
e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa
matéria.
De
toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou
secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi
fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que
poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.
3. No
que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto
nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum
momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por
não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma
política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela
traz para o país?
PRA: O “projeto
nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base
econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica
nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de
importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que
teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia
internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não
menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no
cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo
de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um
tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena
autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo
que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita
e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de
“dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas
fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica
nacional (embora por métodos distintos).
Os
benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena
valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter
estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a
Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania”
brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da
Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo
para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da
autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como
deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de
Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então
vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como
a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como
pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente
tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na
integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração
econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não
contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado).
Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do
Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De
todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos
dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis.
Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da
Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa
continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan
(como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar),
ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente
embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações
intrínsecas em termos de poder financeiro).
4. Dentro
de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma
diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país?
PRA: Certamente que
sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para
atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma
diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da
palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses
econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no
financeiro.
5. O
governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do
país quando atribui a política externa um caráter econômico?
PRA: Nisso ele não
inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já
vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto
(este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a
forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê
de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda
externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo
presidencial no plano da política externa.
6. E
a política externa do governo atual, tem este caráter?
PRA: Provavelmente
sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos
parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em
cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC
não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque
ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor
militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para
o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo,
envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos
problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira,
nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no
desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com
a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho
de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar.
Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno
nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução
nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a
mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua
a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais.
7. Apesar
do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo
um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo
do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina?
PRA: O Mercosul NÃO
foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração
Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que
Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e
acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado
comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de
Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que
diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham
preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma
integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais
derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar,
voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente,
medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais
da própria arquitetura integracionista.
O
Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos
integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e
economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio
exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do
edifício integracionista.
8. A
cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e,
consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e
o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?
PRA: Não há esquemas
excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem
ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da
interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes
de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o
subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas
atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de
liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito
multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que
devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses
blocos.
9. Quais
são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as
próximas eleições?
PRA: Basicamente as
mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso
(Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais
ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio internacional e, de forma inédita talvez,
diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa
basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo,
de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço
de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da
capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica,
não pelo setor diplomático.
10. De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo
influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?
PRA: Foi de uma enorme
“utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos
constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação,
corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se
entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com
fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando
pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio
Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos
com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de
pagamentos.
11. Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o
Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos
americanos?
PRA: Não sou
“embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em
Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena
fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança),
acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a
região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores
diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista,
por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população
ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são
profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é
um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles
entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza
luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido
como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia,
Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente
disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves,
o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao
americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre
o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”).
Em
relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria:
políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos,
economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais,
industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor),
e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por
perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam
desse imenso bloco liberalizador hemisférico.
De
modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças
percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os
nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na
área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos
brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia
(inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca,
os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em
seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade,
de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os
países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades
reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo
negociador.
Mas, a
Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses
fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa
para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o
País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para
o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto
de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser
delongado, pois tudo depende de negociação).
12. Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela
diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?
PRA: Não temos
propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas
“instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as
frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para
viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas,
ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências
governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a
certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com
um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com
o mundo.
Creio
pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às
interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e
externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações
internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela
existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais
vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa
abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil.
13. Para finalizar, o que explica o Brasil que é
considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única,
estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação
tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)
PRA: A participação do
Brasil no comércio internacional gira
efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é
efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB
no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica
externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de
fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados:
fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme
grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de
desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais
de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização
comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por
baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por
exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em
contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de
investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais
de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio
das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar
essa defasagem).
Existem
portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio
internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas
aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir
ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa,
provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou
não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco
o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em
termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente
nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados
industriais.
O
Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir
mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele
certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.
Washington, 924:
11 de julho de 2002
Paulo Roberto de Almeida é doutor em
Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira
desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e
perspectivas (LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do
Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o
multilateralismo econômico (Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un
marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação
da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império (Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as
relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002); Une Histoire
du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain (Paris: L’Harmattan,
2002). Website: www.pralmeida.org.
==============
DOSSIÊ GEISEL
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(organizadores)
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Uma Visão dos Bastidores do Governo
Geisel
Arquivos Confidenciais Divulgados ao
Público pela 1a.Vez !
Este livro examina importante acervo
documental sobre a recente história do Brasil : o arquivo pessoal de Ernesto
Geisel, doado por Amália Lucy Geisel , filha do ex-presidente , em 1998, ao
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil ( CPDOC)
da Fundação Getulio Vargas .
Os textos foram produzidos no período
em Geisel ocupou a presidência da República, consistindo, basicamente nos
despachos diretos dos ministros com o presidente , abordando as principais
questões nacionais do período que dependiam de decisão do presidente.
Os autores fazem uma avaliação dos
dossiês dos ministérios da Justiça, Fazenda, Relações Exteriores, Educação,
Previdência, Trabalho, Comunicações além de relatórios do SNI.
Sumário :
- Introdução.( Celso Castro e Maria
Celina D ´Araujo)
- Ministério da Justiça , o lado duro
da transição.( Maria Celina D´Araujo)
- As apreciações do SNI.( Celso
Castro)
- O Dossiê Ministério da Fazenda do
Arquivo Ernesto Geisel: fontes sobre a gestão de Mario Henrique Simonsen.(
Carlos Eduardo Sarmento e Verena Alberti)
- O pragmatismo responsável no arquivo
do presidente Geisel.( Letícia Pinheiro)
- Educação e cultura no Arquivo
Geisel.( Helena Bomeny)
- Abertura política e controle
sindical: trabalho e trabalhadores no Arquivo Ernesto Geisel.( Angela de Castro
Gomes).
- O " Ministério da
Revolução" de 1964: previdência e assistência sociais no Governo Geisel.(
Angela de Castro Gomes).
- As telecomunicações no Brasil sob
a ótica do governo Geisel.( Alzira Alves
de Abreu)
- O arquivo Geisel e os bastidores da
fusão.(Marieta de Moraes Ferreira)
- Bibliografia.
- Sobre os autores.
- Anexos