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domingo, 6 de junho de 2021

José Guilherme Merquior, o esgrimista liberal - Mano Ferreira (FSP)

Celebrar os 80 anos de Merquior é uma aposta contra o reacionarismo

'Esgrimista liberal', intelectual esboçou projeto de Brasil cuja atualidade permanece impressionante

Folha de S. Paulo, 5.jun.2021 

Mano Ferreira

Jornalista, é cofundador e diretor de Comunicação do Livres

[RESUMO] Resgate da obra de José Guilherme Merquior, que teria completado 80 anos em abril, é um passo fundamental para colocar a reflexão liberal à altura dos desafios sociais do Brasil e uma aposta na razão contra o obscurantismo diante da marcha de insensatez que o país vive.

“Se um gênio de um nada faz um tudo, certamente você tem um gênio.” Assim começa a carta enviada em 22 de janeiro de 1969 por Claude Lévi-Strauss, um dos mais importantes antropólogos do século 20, ao brasileiro José Guilherme Merquior.

A correspondência entre ambos havia começado com reflexões de Merquior sobre a obra do francês, de quem foi aluno no Collège de France. As ideias ali referidas seriam a base do livro “A Estética de Lévi-Strauss”, publicado em 1975.

Não foi um elogio isolado. Ralf Dahrendorf, então presidente da London School of Economics, dizia não saber por que Merquior cursava o doutorado em sociologia na instituição, “pois tem mais a ensinar do que a aprender”. Raymond Aron o chamava de “o garoto que leu tudo”. E, para Nelson Rodrigues, ele teria 900 anos, porque só assim seria possível ter lido tanto.

José Guilherme Merquior em Paris, em 1976 - Acervo pessoal

Da crítica literária ao debate político, Merquior colocou seu vasto repertório a serviço do conhecimento, não do diletantismo, e guiou sua produção pela busca da excelência —até ter sua história precocemente interrompida, aos 49 anos, por um câncer.

Apesar de ter obtido em vida repercussão nacional e reconhecimento internacional como poucos intelectuais brasileiros, os 80 anos de nascimento do crítico cultural, diplomata e sociólogo José Guilherme Merquior, completados em 22 de abril, teriam passado inteiramente despercebidos não fosse uma bela homenagem organizada pelo Livres, com liderança acadêmica de Elena Landau, reunindo depoimentos de Celso Lafer, ex-chanceler e professor emérito da USP, Persio Arida, ex-presidente do Banco Central e formulador do Plano Real, Marcílio Marques Moreira e Rubens Ricupero, embaixadores e ex-ministros da Fazenda, além do cientista político Bolívar Lamounier e dos embaixadores Gelson Fonseca, Marcos Azambuja e Paulo Roberto de Almeida.

O quase esquecimento do maior pensador liberal brasileiro do final do século 20, em meio a um governo que já teve a pretensão de se reivindicar como liberal, é um sintoma contundente. Revela não apenas a farsa bolsonarista, mas a dificuldade da sociedade civil de valorizar obras que elevam nossa racionalidade e cultura, tarefa ainda mais relevante diante da marcha de insensatez que vivemos.

Quais seriam as razões desse quase silêncio? Na opinião de Kaio Felipe, doutor em sociologia pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) com tese sobre o pensador, há pelo menos três: 1) um veto ideológico, por suas críticas ao marxismo predominante em nossas humanidades; 2) um veto político, pela autoria do discurso de posse do presidente Collor, mesmo sem papel orgânico no governo; 3) a falta de discípulos.

Sem medo de polêmicas, José Guilherme não abria mão de rigor e honestidade intelectual. Reconhecia virtudes do interlocutor sem economizar na denúncia dos equívocos. Na imagem do mexicano Enrique Krauze, Merquior era um esgrimista liberal. Seu duelo intelectual buscava o ponto preciso a ser tocado. Com essa postura, examinou o formalismo, o estruturalismo, o marxismo, a psicanálise, o pensamento de Foucault e o próprio liberalismo. Uma lucidez que faz falta.

Por outro lado, os embates com nomes influentes na academia certamente não ajudaram a recepção de sua obra. O caso mais emblemático envolveu a filósofa Marilena Chaui. Merquior localizou citações não atribuídas do francês Claude Lefort no livro “Cultura e Democracia”. Chauí não negou, nem poderia —Merquior tinha razão. A professora respondeu que compartilhava com Lefort muito mais que ideias e até seus pensamentos seriam formulados em conjunto. Como reação, boa parte da USP aderiu a um abaixo-assinado condenando a atitude de... José Guilherme.

Retrato de José Guilherme Merquior - Paulo Cerciari/Folhapress

Era um esgrimista lutando contra um exército, praticamente a sós sob bombardeio. Faltava um ecossistema intelectual minimamente maduro em torno dos valores que orientavam seu pensamento —a família dos liberalismos.

Nesse sentido, somos um país curioso. Produzimos grandes liberais, como Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Afonso Arinos. Implementamos, ao menos em parte, algumas agendas liberais, a exemplo do Plano Real, das privatizações e da focalização da assistência social. Não fomos capazes, contudo, de articular vozes políticas consistentes em defesa desse legado. Se nem políticas públicas de sucesso foram devidamente defendidas, imagine então o legado de um erudito.

Esse cenário começa a mudar com uma geração que descobriu autores liberais na internet e se conectou por afinidade intelectual pelas redes sociais. Assim, multiplicaram-se grupos de estudo e logo cresceram os interessados em defender essas ideias no debate público, em sua maioria jovens, sem herança ou oligarquias, liberais por inteiro, com preocupações não restritas à economia.

Nesse contexto, o resgate de Merquior surge como exigência de aprofundamento. Precisamos de uma reflexão liberal à altura dos desafios sociais do Brasil, ainda mais agravados pela pandemia.

A propósito, o que dizer da vulgaridade dos que proclamam uma noção de liberdade tão abstrata e irreal do suposto “direito a contaminar”, contra a vacinação e o uso de máscaras? Lembram certos tipos que, no século 19, defendiam a escravidão como um direito de propriedade. Falta-lhes a lição básica de Joaquim Nabuco: o “amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do destino”.

Longe da caricatura, Merquior defende um liberalismo que, “se entendido apropriadamente, resiste a qualquer vilificação”. Para favorecer a melhor compreensão, seu livro “O Liberalismo: Antigo e Moderno” reconstrói o percurso da tradição liberal. Valorizando a necessária pluralidade contra as tentações dogmáticas, a obra destaca a amplitude temática do liberalismo contra as recorrentes tentativas de redução de sua complexidade ao liberismo, expressão de Benedetto Croce para designar seus aspectos puramente econômicos.

Aproveitando o melhor da tradição liberal, José Guilherme esboçou um projeto de Brasil cuja atualidade permanece impressionante. Um país em que cada pessoa seja livre para escolher, onde a autonomia fale mais alto que as determinações da loteria do destino. Um ideal de liberdade individual democratizada, que nem ignore os graves problemas sociais nem romantize os velhos vícios estatais.

Nessa construção, combater o estatismo patrimonialista não significa recair em “estadofobia”, mas defender uma refuncionalização do Estado. Ele deve deixar de ser produtor —tarefa em que o mercado é imbatível— para se concentrar na condição de promotor de oportunidades e “protetor das imensas camadas da população brasileira ainda sem teto, sem alimentação apropriada, sem escola e sem acesso à justiça”.

Além de reconhecer sua contribuição intelectual, celebrar os 80 anos de José Guilherme Merquior é uma inspiração para o futuro e também uma aposta na razão contra o obscurantismo, na modernidade contra o reacionarismo, na excelência contra a mediocridade —uma aposta no Brasil, em busca da nossa melhor versão.

USP promove ciclo sobre Merquior

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP vai realizar uma série de debates online em homenagem a José Guilherme Merquior. Os eventos acontecem nos dias 17/6, às 15h30 e 18h30, e 18/6, às 15h e 18h30. Participarão pesquisadores que investigam a obra de Merquior, como João Cezar de Castro Rocha, Kaio Felipe, Ricardo Musse e Andrea Almeida Campos. Os debates serão transmitidos ao vivo pelo canal da FFLCH no YouTube.


Militares se dobram a Bolsonaro - Daniel Carvalho, Ricardo Della Coletta (FSP)

 Sob Bolsonaro, militares vão de moderadores a controlados por presidente

Depois da demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa, ingerência de mandatário sobre Forças Armadas ficou mais evidente

Daniel CarvalhoRicardo Della ColettaFolha de S. Paulo, 5/06/2021
BRASÍLIA

Se no início do governo Jair Bolsonaro os militares espalhados pelo primeiro escalão serviam como um anteparo para conter o radicalismo gestado no gabinete do ódio e nos braços ideológicos da gestão federal, a situação mudou dois anos depois.

Há quem perdeu a força ou até mesmo o cargo, enquanto outros militares se aproximaram do bolsonarismo e do jogo político conduzido pelo presidente. Tanto que alguns ganharam de colegas de farda um apelido: "generais do centrão".

O movimento permitiu que as Forças Armadas passassem a sofrer uma interferência política cada vez maior —evidenciando que quem manda é Bolsonaro— a despeito da hierarquia e das regras tão caras aos militares.

O principal sinal de enfraquecimento militar até então havia sido, no fim de março, a demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa. A troca na pasta resultou na saída dos comandantes das três Forças, coroando a maior crise militar desde 1977.

Nos últimos dias, porém, a ingerência de Bolsonaro sobre os militares foi além.

Na quinta-feira (3), o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, aceitou a pressão do mandatário ao decidir livrar o general da ativa Eduardo Pazuello de qualquer punição por ter participado de um ato político ao lado do presidente.

Além disso, Pazuello ainda ganhou o cargo de secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos, vinculada à Presidência da República. Ao levá-lo para um posto no Planalto, Bolsonaro deixou ainda mais claro que não aceitaria castigo para o ex-ministro.

Diante do desfecho produzido pelo presidente, muitos integrantes da cúpula das Forças Armadas que defendiam uma punição para Pazuello protagonizaram um contorcionismo retóricopara não se opor à decisão forçada por Bolsonaro —ou evitaram se manifestar em condição de anonimato, ao contrário do que fizeram nos últimos dias.

Defensor da punição, o vice-presidente Hamilton Mourão foi passar o feriado no Rio de Janeiro e, questionado pela Folha, não comentou o caso.

general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido cargo de ministro da Secretaria de Governo em junho de 2019, disse em uma rede social que não estava falando com jornalistas por vergonha.

"É uma desmoralização para todos nós. Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do presidente da República e com seu projeto pessoal de poder. A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições", afirmou.

General Santos Cruz
na sexta

VERGONHA!

Ontem, 3 de junho de 2021, fui surpreendido com telefonemas e mensagens de dezenas de jornalistas sobre o encerramento do caso Pazuello. Em atenção ao trabalho que fazem, sempre respondo, mesmo que seja para informar que nada tenho a dizer. Mas ontem eu não disse nada. Por vergonha.

Por formação, me nego a fazer qualquer consideração sobre a decisão.

Sobre o conjunto dos fatos, é uma desmoralização para todos nós. 
Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do Presidente da República e com seu projeto pessoal de poder. A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições. 

Falta de respeito pessoal, funcional e institucional. Desrespeito ao Exército, ao povo e ao Brasil. Frequentemente, com sua conduta pessoal, ele procura desrespeitar, desmoralizar pessoas e enfraquecer instituições.

Não se pode aceitar a SUBVERSÃO da ordem, da hierarquia e da disciplina no Exército, instituição que construiu seu prestígio ao longo da história com trabalho e dedicação de muitos.
Péssimo exemplo para todos. Péssimo para o Brasil. 
À irresponsabilidade e à demagogia de dizer que esse é o "meu exército", eu só posso dizer que o "seu exército" NÃO É O EXÉRCITO BRASILEIRO. Este é de todos os brasileiros. É da nação brasileira.

A politização das Forças Armadas para interesses pessoais e de grupos precisa ser combatida. É um mal que precisa ser cortado pela raiz. 

Independente de qualquer consideração, a UNIÃO de todos os militares com seus comandantes continua sendo a grande arma para não deixar a política partidária, a politicagem e o populismo entrarem nos quartéis.

Carlos Alberto dos Santos Cruz”


Entre congressistas, o ato do comandante do Exército foi visto como mais uma mancha na imagem da instituição e elevou o temor de que ele abra as portas para possibilidade de anarquia nos quartéis.

O cenário atual em que os militares deixaram de ser uma força moderadora e passaram a ser controlados por Bolsonaro, que já usou diversas vezes a expressão "meu Exército", contrasta com episódios registrados no início do governo ou mesmo na campanha.

​​Quando Bolsonaro ainda era candidato, no Rio de Janeiro, o general da reserva Augusto Heleno(atual ministro da Segurança Institucional) já era conhecido como uma das mentes por trás da campanha.

Na transição em Brasília, o militar também tinha papel de destaque, quando atuava para conter os influenciadores ideológicos mais radicais do presidente, como o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

O papel também era atribuído a outros fardados que se juntaram a Bolsonaro no governo, como Santos Cruz, Azevedo e Hamilton Mourão.

Depois, ingressaram no grupo os generais Luiz Eduardo Ramos, que foi para a reserva somente quando já era ministro da Secretaria de Governo —hoje ele está na Casa Civil— e Walter Braga Netto, que migrou da Casa Civil para a Defesa quando da demissão de Azevedo.

O núcleo militar do governo, como os fardados eram conhecidos, vivia em constante cabo de guerra com o grupo apelidado de ala ideológica, formada por seguidores do escritor Olavo de Carvalho.

Em alguns episódios, os militares fizeram valer sua vontade.

Ainda em fevereiro de 2019, em meio ao aumento de tensão entre com o ditador Nicolás Maduro, os conselheiros militares conseguiram convencer Bolsonaro a escalar Mourão como chefe de uma delegação que participou de uma conferência sobre a crise venezuelana em Bogotá.

À época, Maduro havia recém-fechado a fronteira da Venezuela com o Brasil, em retaliação à autorização dada pelo governo brasileiro para que opositores venezuelanos usassem Roraima como base para envio de ajuda humanitária. A escalação de Mourão foi vista como uma tentativa de reduzir as tensões.

Em outra vitória do grupo militar, ainda no início da gestão Bolsonaro, o então ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo, conseguiu articular a demissão de dois aliados do chanceler Ernesto Araújo da diretoria da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos).

A agência vinha passando por uma série de crises desde o início do governo.

O êxito de Santos Cruz, no entanto, foi breve. Cerca de um mês depois, ele foi demitido por Bolsonaro da pasta que ocupava, após atritos com o vereador filho do presidente.

Mourão, por sua vez, foi acionado em outra ocasião para tentar servir como força moderadora e pragmática frente à agenda bolsonarista.

Diante do aumento da pressão internacional contra a agenda ambiental do governo, Bolsonaro indicou seu vice para coordenar o Conselho da Amazônia. Mourão comanda uma estrutura cada vez mais esvaziada, e Bolsonaro tem respaldado o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) em conflitos recentes com o vice.

Nas demais questões, Mourão nem sequer é consultado e já sabe que não integrará a chapa de Bolsonaro pela reeleição. Ambientado na política, pretende disputar uma cadeira no Senado pelo Rio Grande do Sul em 2022.

Outros generais do primeiro escalão, por sua vez, se aproximaram do ambiente político.

Com bem menos influência, Heleno chegou a dizer que mudou a opinião que tinha sobre o centrão. O grupo era rejeitado por Bolsonaro na campanha e hoje dá sustentação ao governo no Congresso.

Ramos aumentou sua proximidade com a política no período em que esteve à frente da Secretaria de Governo. Muito próximo a Bolsonaro, promoveu rearranjos e hoje é uma das principais vozes que defendem as ingerências de Bolsonaro nos assuntos militares.

Em fevereiro do ano passado, garantiu a saída de Onyx Lorenzoni da Casa Civil e trouxe para a posição seu amigo Braga Netto. Em março, coordenou a dança das cadeiras que trocou os titulares de seis pastas.

Já Braga Netto, ao assumir a Defesa, deixou de lado o perfil discreto que tinha e passou a discursar a militantes do presidente e a acompanhar o mandatário em passeios de moto em agendas extraoficiais.​