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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O ajudante do Inquisidor: o parafuso da engrenagem totalitária - Paulo Roberto de Almeida


O ajudante do Inquisidor: o parafuso da engrenagem totalitária

Paulo Roberto de Almeida

A figura e o ofício do Inquisidor já são por demais conhecidos, desde o final da Idade Média e o início da era Moderna, quando os tribunais da Contra Reforma foram desenvolvidos em vários países, sobretudo na península ibérica, a partir das instituições mais antigas de combate às heresias. Em contraposição, a figura e o ofício do ajudante do Inquisidor são bem menos conhecidos, em qualquer época, uma vez que ele existe para servir ao primeiro, não para se distinguir por si próprio, ou para entrar nos livros de história. Ele é apenas aquela figura que fica na sombra, atrás ou ao lado, mas sempre um passo atrás, seguindo o Inquisidor em todas as suas iniciativas, para assegurar que as vontades do Número 1 sejam sempre bem cumpridas, independentemente e a despeito de qualquer fundamento na doutrina ou de seu enquadramento legal: a palavra do grande  Inquisidor deve bastar para que o ajudante cumpra as tarefas que lhe foram atribuídas, sem contestação e sem hesitação. Sem o ajudante, o Inquisidor não poderia cumprir sequer a metade de sua missão, que é de assegurar a pureza e a sobrevivência da verdade do momento e, com isso, a fortaleza da Engrenagem.
Eu sempre me questionei, não sobre o que pensa o Inquisidor, mas sobre o que vai na cabeça do ajudante do Inquisidor, se é que é possível aproximar os meandros e as circunvoluções de terreno tão misterioso, de vida tão obscura. O ajudante de Inquisidor não é feito exatamente para pensar, mas para cumprir ordens, e para vigiar aqueles que por acaso entrem na linha de mira do Inquisidor, seja por antipatia pessoal, seja por que tais indivíduos podem eventualmente representar um grão de areia no funcionamento da Engrenagem. O ajudante pode até ser estúpido, intelectualmente falando, incapaz de determinar por si mesmo de onde podem vir essas ameaças, mas ele precisa estar atento e ser sempre um fiel cumpridor das ordens e vontades do Inquisidor. Ele pensa, claro, mas apenas em como melhor cumprir suas tarefas enquanto ajudante de personagem tão importante na manutenção e sobrevivência duradoura da Engrenagem. Ele pensa como se antecipar às intenções e ações futuras do grande Inquisidor, sendo prestativo, ao, por exemplo, oferecer indícios de algum novo violador das regras da Engrenagem.
Não tenho certeza de poder penetrar na cabeça do ajudante do Inquisidor, mas creio poder imaginar suas ações subterrâneas, sempre envoltas numa névoa de segredos e de expedientes escusos. Ele é aquele que recebe as ordens e instruções e trata de aplicá-las do modo mais diligente possível, sem questionar sobre o quê, sobre quem, sobre o por quê desta ou daquela iniciativa inquisitorial. Ele precisa apenas cumprir o que lhe foi ordenado, da maneira mais satisfatória possível, para bem atender às finalidades da Engrenagem. Ele não se questiona se as suas ações são boas ou más, ele está acima dessas meras questões morais, pois que toda a sua energia está devotada ao atingimento dos objetivos da Engrenagem, que é manter-se sempre preeminente, não contestada e não contestável.
E quais seriam as ações do ajudante do Inquisidor? Além de outras tarefas de natureza prática, ele cumpre essa função preventiva que é a de ser os olhos e os ouvidos do Inquisidor, quando este sequer ainda debruçou-se sobre um novo caso, quando o grande censor do Número 1 não teve ainda indicações concretas de quais perigos e ameaças se escondem nas palavras e nas ações de um dissidente potencial. Na maior parte do tempo, porém, suas tarefas são aborrecidamente burocráticas: ele precisa varrer continuamente os novos instrumentos de comunicação social para verificar se algum foco de resistência à Engrenagem não começou a se desenvolver em alguma parte desse vasto espaço virtual. Ele precisa ainda percorrer todas as folhas de opinião e os pasquins de ocasião, para desempenhar a mesma missão: detectar os casos de oposição deliberada às instruções do Número 1 e às determinações do grande Inquisidor. Ele tem, ademais, de verificar quem está escrevendo o quê, e se o que aparece publicado representa, ou não, um perigo imediato, ou apenas um germe de rebeldia que requer monitoramento.
De fato, o trabalho é aborrecido, e sobretudo desprezível, pois significa estar sempre no encalço de alguém, ou das ideias desse alguém, sem necessariamente poder desenvolver qualquer trabalho de “crítica literária”, ou de interpretação substantiva dessas ideias e argumentos que podem, ou não, opor-se aos objetivos do Número 1. É um trabalho de vigilância e de denúncia, como faziam os antigos “ouvidores do rei” e os servidores dos “cabinets noirs” dos soberanos. Os agentes não declarados do chefe da polícia republicana também desempenhavam as mesmas funções, assim como os informantes pagos de várias ditaduras e até de nações formalmente democráticas.
Os Estados totalitários, por sua vez, dispunham de todo um exército, um imenso contingente, literalmente, de funcionários especialmente treinados e todos dedicados exclusivamente ao desempenho dessas tarefas “especiais”; ao lado deles, existia um outro exército de informantes nas mais diversas instituições públicas e privadas, nas escolas e igrejas, nas associações de bairro, alguns mercenários, outros voluntários, em todo caso, todos engajados na eterna missão de serem os olhos e os ouvidos do grande Inquisidor. Alguns chegaram a extremos extraordinários, como os Comitês de Defesa da Revolução, por exemplo, que fazem uma estrita vigilância de cada quarteirão de cada cidade daquela ilha miserável, de onde todos gostariam de fugir, se fosse possível. Tem também a fabulosa rede de agentes formais e informais do mais vasto empreendimento jamais conhecido de escrutínio de todo um povo, dia e noite, sete dias por semana, e que ainda deixou – certamente por falta de tempo para destruir aqueles vastos arquivos – o mais formidável repositório de documentação extremamente detalhada e minuciosa, sobre as atividades mais íntimas de cada habitante daquele universo concentracionário; a Stasi foi realmente excelente no gênero, e deve ter dado várias lições de excepcional qualidade mesmo para os seus mestres soviéticos, e provavelmente para alguns alunos dedicados também, como deve ser o pessoal da DGI cubana. Chineses e norte-coreanos não devem estar muito longe da excelência de desempenho demonstrada pelos agentes da Stasi, que provavelmente tinham toda uma herança burocrática pronta para ser usada, depois de recuperada e revertida para a nova causa, que era a máquina de espionagem e de massacre de opositores do aparelho partidário nazista e do Estado hitlerista.
Os parafusos de uma outra Engrenagem, ainda em formação, estão longe de exibir a mesma produtividade no trabalho de vigilância e na preparação de relatórios tão perfeitos quanto eram os da Stasi, mas tudo é uma questão de aperfeiçoamento técnico e de dedicação à causa, e para alguns não faz falta sequer o entusiasmo com essa causa. O grande Inquisidor tem experiência nessa área, certamente aprendida com profissionais do ramo, e sabe como melhor servir à causa do Número 1. Aos ajudantes, aprendizes, talvez, cabe demonstrar o mesmo empenho já exibido por colegas de outros países e de outras situações, eventualmente desaparecidas ou condenadas à lata de lixo da história. Eles estão atentos, como já pude verificar em tempos recentes. Já vasculharam meus escritos e já devem ter feito até um dossiê especial sobre o meu caso irrecuperável. Estou na mira dos parafusos, e eles vão continuar monitorando meus passos, meus escritos, minhas ideias.
Fiquem à vontade, parafusos, eu posso até facilitar a tarefa: todas as minhas ações são friamente calculadas, como diria aquele outro personagem tão patético em sua sinceridade ingênua. Pois eu também sou ingênuo a esse ponto, talvez mais típico das almas cândidas de que falava Raymond Aron. Todos os meus trabalhos, os escritos, inéditos e publicados, estão meticulosamente repertoriados, vários até linkados, em minhas ferramentas de comunicação social. Podem dispor, mas vão precisar se armar de um pouco de paciência e de atenção para ler tudo e tomar nota do que lhes parecer interessante. Tem muitas coisas que são óbvias, em minha missão anti-totalitária, mas outros escritos são mais alusivos, apenas discretos numa gozação em regra dos novos companheiros das causas anacrônicas. Em todo caso, só escrevo o que penso, o que já é uma grande vantagem para quem precisa fazer direito o seu trabalho de ajudante do Inquisidor. E o que eu penso eu escrevo, e assino embaixo.
Sou daqueles que nunca deixaram o cérebro em casa ao partir para o trabalho; tampouco o depositava na portaria, ao adentrar nos labirintos da burocracia oficial. Isso nem sempre é recomendável, em carreiras competitivas e até oportunistas, mas é como sou e como fui, durante todo o itinerário profissional e acadêmico. Podem conferir: tem trabalhos mais antigos, ainda otimistas, e outros mais recentes, um pouco pessimistas quanto às chances do país reverter a estágios primitivos, ou avançar galhardamente em direção de uma decadência gloriosa, auto-assumida e auto-infligida. Todos eles são preocupantes para certos inquisidores e seus ajudantes, mesmo para os iniciantes de um serviço à la Stasi. Espero que não tenhamos de chegar nesse estágio, para depois não precisar fazer filmes em preto e branco, tão tristes como certas realidades passadas.
No que depender de mim, em todo caso, vai ser difícil caminhar nessa direção impunemente, e sem protestos. Eu sou uma areia nessa Engrenagem...

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de novembro de 2014.

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