Recebo, hoje, 2 hs atrás, um comentário sintético, que reproduzo abaixo, a propósito de um texto meu de alguns anos atrás:
Ou vc é desinformado, ou é mal intencionado.
O mito da Revolução Cubana Ordem Livre, em 01 de Junho, 2009. Autor Paulo Roberto de Almeida
Como eu corro o risco de ser realmente um desinformado, vou transcrever novamente o artigo aqui, para solicitar o concurso de novos leitores, quanto ao meu grau de desinformação.
Cada um pode se pronunciar, concordando com meu crítico, acima, ou fazendo novos reparos ao texto em questão, que segue aqui, novamente.
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Roberto de Almeida
Sumário:
1.
O mito fundador: a revolução que se transformou em reação
2.
A especificidade cubana: uma ilha que é quase uma fazenda pessoal
3.
Os mitos entretidos pelo regime e por seus admiradores
4.
O mito do socialismo
5.
O mito das conquistas sociais
6.
O mito do imperialismo como ameaça
7.
À guisa de conclusão: um manifesto a favor do povo cubano
1.
O mito fundador: a revolução que se transformou em reação
Poucos mitos, na América Latina,
especialmente entre os acadêmicos, são tão poderosos quanto o da Revolução
Cubana, usualmente identificada com as figuras de Fidel Castro e de Ché Guevara – ele próprio um mito à
parte, icônico em suas manifestações mais apelativas, sem esquecer o merchandising – tanto quanto pelo
tremendo valor simbólico da “resistência ao imperialismo”, especialmente
relevante para todos aqueles que acreditam em outro mito da mesma família: a de
que esse mesmo imperialismo é responsável pela miséria e subdesenvolvimento da
América Latina, cujas veias abertas estariam sendo constantemente drenadas por
esse monstro capitalista (trataremos, em outro artigo da série, dessa outra
falácia acadêmica).
O
próprio conceito de Revolução Cubana constitui um mito inaugural: não existe mais revolução cubana, e isto há
muito tempo. Tudo o que restou das transformações políticas na ilha, feitas entre 1959 e 1965 aproximadamente, foi um
regime autocrático, de inspiração supostamente socialista (mais exatamente ao
estilo soviético), incapaz de garantir um abastecimento adequado ao seu próprio
povo (como, aliás, ocorria com todos os socialismos realmente existentes, sem
exceção). Sublinho deliberadamente transformações políticas, posto que em matéria de transformações econômicas, o que ocorreu, mais
exatamente, foi uma tremenda involução, um retrocesso absoluto, que resultou em
que o ex-principal exportador de açúcar da região é obrigado, atualmente, a
importar o produto para o consumo do seu próprio povo; sem falar da
inexistência quase completa de indústrias de consumo dignas desse nome. Mas
voltemos, em primeiro lugar, ao mito da revolução.
Como sabem todos aqueles que estudam
sociologicamente o fenômeno revolucionário, nenhum processo desse quilate,
absolutamente nenhum, dura cinqüenta anos, ainda mais com a promessa –
constantemente refeita pelos dirigentes ‘revolucionários’, na verdade,
reduzidos hoje a uma nomenklatura
geriátrica – de que a revolução é um movimento vivo, que deve se renovar e
continuar para sempre. Um processo insurrecional e de ativa preparação para a
tomada do poder político pode até durar muitos anos, como foi o caso, por
exemplo, da revolução chinesa, que depois conheceu várias etapas no processo de
construção do totalitarismo maoísta: a aliança de classes e as cem flores nos anos
1950; o grande salto para frente e sua desastrosa falência entre 1959 e 1962; a
revolução cultural de 1965 a 1969; a grande luta entre as cliques dirigentes
depois disso; e, finalmente, o que não tinha nada mais de revolucionário, a
reforma gradual do socialismo chinês em direção de formas de mercado que não
excluem (e até promovem) o capitalismo mais selvagem que se conhece desde Marx
e Engels.
As
revoluções constituem processos extremamente concentrados no tempo, ainda mais
concentrados na utilização da violência política, que costumam substituir uma
classe dirigente por outra, alterando completamente o sistema político e, até
mesmo, as bases econômicas de funcionamento de uma determinada sociedade.
Revoluções duram somente o tempo de substituição dos dirigentes no comando do
Estado. A partir daí o que se tem são processos mais ou menos lentos de
alteração das relações sociais, o que pode ser feito com doses extras de
violência – como no caso chinês ou soviético, sob Mao e Stalin – ou, mais
freqüentemente, por meio das burocracias que emergem com o novo poder. Enfim,
uma revolução que dura 50 anos, na mais perfeita normalidade do comando
‘revolucionário’, é uma contradição nos termos. Todas as revoluções, a partir
de um certo tempo se ‘estabilizam’ e a nova classe dirigente passa a cuidar de
sua própria conservação, ou seja, a revolução se transforma em reação, quando
não em algo profundamente reacionário.
No
caso da Revolução Cubana, pode-se traçar, perfeitamente, uma cronologia para o
processo revolucionário: a fase insurrecional durou poucos anos, a rigor desde
Moncada (1953) até a tomada do poder, em janeiro de 1959, com a etapa
guerrilheira se estendendo durante pouco mais de dois anos, tão somente. Ou
seja, o processo de luta contra a ditadura de Batista foi algo extremamente
rápido, em termos estritamente temporais, e absolutamente exitoso nos planos
político-social e estratégico-militar, inclusive com a colaboração involuntária
do próprio regime, que consentiu em anistiar o jovem advogado condenado por
sedição após poucos meses de prisão (aqui entra um outro mito, o da “História
me absolverá”, mas que pode ser deixado ao cuidado dos historiadores, por falta
de espaço neste ensaio).
A
partir daí se abre o processo revolucionário propriamente dito: uma fase
nacionalista em 1959, logo alterada por escolhas mais radicais nos planos
político e econômico – inclusive as decisões de não realizar eleições livres e
de expropriar grandes latifúndios para fins de reforma agrária – seguida,
finalmente, da opção propriamente socialista, entre 1961 e 1962. A partir daí,
a ‘revolução’ socialista se aprofunda, com a completa estatização dos meios de
produção e a ‘sovietização’ do estilo de poder e das formas de dominação,
processo que culmina, basicamente, em 1965, quando começam os primeiros
expurgos e o regime perde sua aura romântica que ele tinha mantido até então.
Muitos intelectuais e o próprio Ché
Guevara abandonam a ilha, cada qual com suas opções intelectuais e políticas
intactas: os primeiros por não concordarem com essa orientação do regime
cubano; o segundo para tentar fazer a revolução em outros países.
Esta
é a Revolução Cubana, nada mais do que isso: a tomada do poder em nome da luta
contra a ditadura, pela democracia e pela justiça social, com promessas de
reforma agrária (que aliás estavam sendo impulsionadas em quase toda a América
Latina pelo próprio imperialismo, insatisfeito com o estilo oligárquico
atrasado de quase todos os seus aliados na região). O que veio depois de 1965
foi a administração de um socialismo que não escapou às mesmas fatalidades de
seus congêneres em outras partes: ineficiência econômica, irracionalidades
produtivas, falta de inovação pela ausência de estímulos apropriados e,
sobretudo, repressão política, falta de liberdade completa no plano partidário,
de imprensa e intelectual, e as pequenas e grandes misérias morais de todo e
qualquer regime socialista.
Pior
do que isso, talvez, pois outros regimes atrasados na própria América Latina
também exibiam ineficiência econômica, baixíssimos índices de produtividade
econômica e, tanto à direita quanto à esquerda, repressão política e falta de
liberdades elementares: no caso de Cuba, tudo isso se viu agregado do velho
estilo soviético (stalinista, quero dizer) de dominação e de monopólio político
absoluto pelo partido monocrático e todo poderoso (algo que nem as ditaduras
direitistas mais extremas na região jamais produziram). Quem achar que estou
errado, deveria, supostamente, poder provar-me que a ilha caribenha dispõe de:
eficiência econômica, vibrante sistema produtivo, tecnologia avançada no plano
internacional, liberdade política, imprensa livre e ausência de dissidentes
encarcerados por divergência de opinião. O teste é muito simples e pode começar
pela existência de balseros (boat-people), algo que só as ditaduras
mais extremas conseguem produzir: a existência de pessoas desesperadas,
dispostas a enfrentar os riscos terríveis de uma aventura no mar, para escapar
ao desespero das misérias cotidianas (que geralmente são mais econômicas do que
propriamente políticas). Apenas a existência contínua desses candidatos a
náufragos do regime já provaria o tremendo fracasso da ‘revolução’ cubana.
2. A especificidade cubana:
uma ilha que é quase uma fazenda pessoal
O
que teve, e talvez ainda tenha, a Revolução Cubana de diferente, em relação aos
modelos do gênero, é o tremendo carisma de dois de seus dirigentes (um deles
efêmero, é verdade, mas aparentemente eterno): Fidel Castro e Ché Guevara. Desaparecido precocemente
este último, restou o velho líder revolucionário, que empolgou muita gente, na
ilha e fora dela, e permanece como o símbolo do processo revolucionário. Quanto
ao Ché, é um fenômeno planetário: trata-se, possivelmente, depois da
Coca-Cola, da imagem mais conhecida e valorizada do mundo, presente em dez de
cada nove manifestações organizadas por movimentos de esquerda, sobretudo
conquistando os jovens, que compram avidamente pôsteres e camisetas para indicar
sua preferência romântica, alimentando com isto um dos mais pujantes mercados
capitalistas de que se tem notícia na história do merchandising mundial.
Do
Ché ficou a imagem do guerrilheiro
heróico, seja em Cuba, seja na Bolívia, onde fracassou na tentativa de criar um
outro Vietnã no coração da América Latina. Pouco se fala de seu período à
frente de La Cabaña, uma caserna do ancien
régime cubano convertida rapidamente num dos mais ativos centros de
fuzilamentos logo depois da vitória da revolução, muitos dos quais após
sumaríssimos julgamentos, outros sem sequer essa formalidade ‘burguesa’. Se
fala ainda menos de suas rápidas e catastróficas passagens pela presidência do
Banco Central cubano e pelo Ministério da Indústria, cujas conseqüências mais
notáveis, aliás, foram as de apressar a subordinação da ilha aos interesses da
União Soviética e o início de um longo período de dependência dos subsídios
russos durante praticamente toda a existência residual da URSS. Seus planos de
industrialização – sem falar na tentativa de criação de um ‘homem novo’, cuja
realização perfeita seria um trabalhador sem qualquer tipo de exigência
material, funcionando apenas à base de ‘emulação socialista’ – foram tão
desastrosos que, já em 1965, Cuba escolhia voltar para a monocultura açucareira
(atenção, quem diz isso não sou eu, e sim Celso Furtado, no último capítulo de
seu livro, aliás deficiente, sobre a Formação
Econômica da América Latina, de 1967).
Com
a morte precoce de Camilo Cienfuegos, com o afastamento de Ché Guevara e o desaparecimento ou eliminação de outros possíveis
concorrentes da fase insurrecional, a revolução cubana acabou sendo dominada
pela figura ímpar, sem dúvida excepcional historicamente, de Fidel Castro, que
passou a administrar a ilha como se fosse uma fazenda pessoal. Foram muitas as
suas tentativas improvisadas de mudar a economia da sua fazenda – como o
estímulo à plantação de café, na base do empirismo puro, sem qualquer
viabilidade agronômica – com resultados catastróficos a cada vez. Mas a figura
de Fidel Castro há muito tempo já passou por esse fenômeno que Max Weber
identificou como a ‘rotinização do carisma’, sendo improvável que esse carisma
sobreviva ao desaparecimento físico do titular. O mais provável é que a
‘revolução’ – que de fato já não existe mais – se estiole numa dominação
puramente autocrática-oligárquica, até sua completa erosão numa futura
redemocratização e normalização da ilha, segundo modalidades ainda não
detectáveis neste momento.
Enfim,
este é o primeiro mito ligado a Cuba, que cabe, portanto, descartar no plano
histórico e mais exatamente sociológico. Vejamos, agora, quais seriam as outras
falácias que podem ser associadas ao mesmo mito, entretido com tamanho desvelo
em certos círculos acadêmicos, que eu chego a receber de um desses
representantes da espécie mensagens eletrônicas que são finalizadas por um
desses orgulhos ingênuos de certos companheiros de viagem do socialismo cubano:
“Esta noite, 200
milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma é cubana.” Incrível como acadêmicos
aparentemente bem informados conseguem se deixar mistificar pela propaganda de
um regime incapaz de assegurar a essas mesmas crianças um futuro decente, em
termos de conforto material, emprego e, sobretudo, liberdade política para se
expressar normalmente pela internet, como mesmo crianças de favelas brasileiras
conseguem fazer em centros comunitários que existem, justamente, para
conectá-las ao mundo. Atribuo esse tipo de equívoco à ‘inconsciência
revolucionária’.
O
Brasil é certamente um país com muitos indigentes, alguns até com problemas de
desnutrição ou de moradias precárias, falta de cuidados médicos e, sobretudo,
de educação e de capacitação técnica ou profissional para o mercado de
trabalho; daí a baixa produtividade, os precaríssimos rendimentos e a
insuficiência geral no consumo e, portanto, a baixa qualidade de vida, segundo
os índices do PNUD. Não são esses indigentes, contudo, os principais candidatos
à emigração econômica, característica associada à paisagem social brasileira nas
últimas duas ou três décadas, aliás coincidentes com as crises econômicas, o
baixo crescimento, a falta de oportunidades de emprego decente e o desalento
geral com a violência, a extorsão estatal e outros traços menos agradáveis de
nossa situação presente. Geralmente são pessoas próximas dos estratos
intermediários inferiores, ou até da classe média, que escolhem sair do Brasil,
por acaso os mesmos tipos de candidatos a partir de Cuba, com uma diferença
fundamental, porém: nenhum deles é boat-people,
pela simples razão de que ninguém é impedido de sair do país. No caso de Cuba,
é desnecessário precisar, os mesmos candidatos frustrados se sentem como que
obrigados a deixar a ilha, pelo simples fato de que não vislumbram nenhuma
possibilidade de mudança em sua situação econômica no futuro previsível.
Poucos, ou praticamente nenhum, dos boat-people
são verdadeiramente dissidentes ou opositores do regime: na quase totalidade
dos casos, se trata apenas de pessoas desejosas de escapar das misérias
cotidianas da ilha, aspirando viver normalmente num país normal, não numa ilha
que vive, ou sobrevive, à base de cartões de racionamento.
3. Os mitos entretidos pelo
regime e por seus admiradores
Todo
e qualquer Estado normalmente constituído na história humana, ou seja, uma
organização política capaz de garantir o funcionamento regular de instituições
de comando e um sistema econômico capaz de se auto-sustentar –
independentemente de suas características mais estatais ou mais privadas, de
mercado, portanto – deveria, minimamente, poder assegurar algumas condições
básicas para sua manutenção, preservação e continuidade. Aqueles que não
conseguem, costumam desaparecer nas dobras da história, como demonstrou em
relação a alguns casos exemplares o cientista americano Jared Diamond em seu
livro Colapso. Esse Estado deveria,
em princípio:
1)
funcionar em bases políticas razoavelmente legítimas, suscitando o consenso em
torno dos mecanismos de dominação, ou despertando muito pouca oposição ou
dissidência em relação ao comando do Estado; quando houver dissensão, ela
deveria poder ser canalizada por meios políticos não violentos, justamente;
2)
garantir requisitos mínimos de satisfação material à população, sem o que
aquela legitimidade logo se esvai, sobretudo se os cidadãos (ou súditos) se
sentem espoliados em seus direitos elementares à segurança alimentar,
patrimonial ou até pessoal; essa satisfação requer, portanto, um funcionamento
razoável dos sistemas de produção e de distribuição, com alguma possibilidade
de acumulação privada ou familiar, geralmente no que se refere à habitação, mas
também a outros bens físicos;
3)
assegurar um mínimo de direitos quanto à segurança pessoal dos cidadãos (ou
súditos), na sua disposição de residência, livre escolha de uma ocupação, de
culto ou de expressão pública de suas preferências políticas e culturais, sem o
que o país em questão poderia viver em estado de tensão social permanente;
4)
alguma legitimidade ou reconhecimento no plano externo, de maneira a se ter um
relacionamento normal no plano internacional, sem ameaças externas ou conflitos
destrutivos; ainda que o ambiente externo possa ser uma variável independente –
e o fenômeno do imperialismo e do colonialismo independem da configuração
política e econômica que possa adotar um Estado independente qualquer – um
Estado normal deve ser capaz de assegurar um mínimo de tranqüilidade para os
seus cidadãos (ou súditos), sem aquela sensação de serem constantemente
ameaçados por algum poder externo.
Pois
bem, com base nesses critérios aparentemente anódinos e perfeitamente
burocráticos no plano da análise sociológica, podemos analisar os mitos da
Revolução Cubana, por meio de elementos o mais possível objetivos, para
verificar, justamente, as falácias que têm sido apregoadas em torno desse fenômeno.
São muitas as falácias que vem sendo apregoadas em torno da “Revolução” Cubana,
mas algumas têm mais consistência do que outras.
Vejamos,
por exemplo, o que se lê em recente matéria em homenagem aos 50 anos dessa
“revolução” no site do único movimento político brasileiro que, aparentemente,
ainda defende resolutamente o que é chamado de conquistas da “Revolução”
Cubana, o Partido Socialismo e Liberdade:
Os
companheiros desse partido “não podem duvidar em afirmar que a revolução cubana
foi o acontecimento mais importante acontecido em nossa ‘Pátria Grande’
latino-americana. Talvez possamos divergir sobre apreciações de seu regime
político, da política internacional seguida pelo Fidel em certos períodos. Mas
o concreto é que foi um movimento tão poderoso e tão genuíno para que hoje Cuba
seja o único país do chamado “socialismo real” que existe e do qual não só
podemos reivindicar sua história como também seu presente; Cuba mantém suas
conquistas sociais e seu orgulho de ser independente do imperialismo a menos de
cem milhas de suas costas.”
(4.01.2009; http://www.socialismo.org.br/portal/socialismo/197-artigo/709-cuba-festeja-meio-seculo-de-revolucao)
O
que se reivindica, portanto, são três coisas: (a) ser o único país do “socialismo real”; (b) conquistas sociais; (c)
independência do imperialismo. A bem da verdade, esses três elementos resumem, efetivamente, o que se apregoa
como positivo em torno da “Revolução”
Cubana e são eles que devem motivar uma reflexão sobre se esses mitos são
justificados. Não devo esconder desde já meu argumento de que esses três mitos
constituem, justamente, as três grande falácias em torno da “Revolução” Cubana.
Vejamos cada um deles sistematicamente.
4. O mito do socialismo
Não
é verdade que Cuba seja o único representante do chamado “socialismo real”: o comentarista do PSol esquece a
República Popular Democrática da Coréia e... vejamos, talvez o Vietnã, ou, quem
sabe ainda, a China? Não é seguro que estes dois últimos sejam ainda
socialistas, estilo “real”, mesmo que suas equipes dirigentes possam fazer
apelo ao conceito para definir seus regimes políticos e seus sistemas sociais.
Em todo caso, sobra a RPDC, ou Coréia do Norte, na companhia de Cuba, a
defender, contra ventos e marés, o sistema que perdura em ambos os países desde
mais de meio século. O que isto significa no plano das falácias acadêmicas?
O
conceito original de ‘socialismo científico, segundo os demiurgos originais,
seria o de um regime baseado na apropriação coletiva – não necessariamente
estatal – dos meios de produção e na organização social da produção e da
distribuição segundo a fórmula clássica enunciada na Critica ao Programa de Gotha: “de cada um segundo suas capacidades,
a cada um segundo suas necessidades”. Independentemente do fato de que essa
frase de efeito não quer dizer rigorosamente nada, a verdade é que, tanto para
Marx, como para Engels, o Estado deveria simplesmente desaparecer assim que os
trabalhadores conseguissem colocar em marcha o programa da revolução socialista
– basicamente os dez pontos do Manifesto
de 1848 – com a sociedade de produtores organizados funcionando em ‘piloto
automático’ e o Estado se encaminhando gentilmente para o museu das
antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (segundo Engels,
em A Origem da Família, da Propriedade...,
etc.).
Não
é preciso dizer que, já a partir de Lênin, não foi exatamente isso que
aconteceu, mas o seu contrário, com o Estado mais fortalecido do que nunca, e
os trabalhadores organizados em batalhões de produtores compulsórios, mais
próximos do regime fordista – ou taylorista – do que daquela imagem romântica
dos Cadernos Econômico-Filosóficos,
segundo a qual o homem socialista seria um trabalhador pela manhã, um pescador
de tarde e um filósofo pela noite. O fato é que o Estado leninista serviu de
padrão para a dominação mussoliniana na Itália, logo em seguida, e mais adiante
para o regime de partido único e de Estado totalitário da experiência
hitlerista.
Qualquer
que seja a opinião de acadêmicos anticapitalistas sobre as excelências dos
regimes socialistas – a igualdade social, a segurança do trabalho e da moradia,
o ‘futuro brilhante’ de realizações materiais do ‘socialismo real’ – a
realidade legada por esse tipo de regime e de sistema de engenharia social é
uma só, quase uniforme em sua materialização concreta nos diversos continentes
em que ele existiu (ou onde ele ainda sobrevive, como nos casos cubano e norte-coreano):
ditadura política, polícias secretas, delação de vizinhos, crimes políticos no
caso da simples expressão de um pensamento dissidente, controle estrito das
populações, misérias econômicas, catástrofes ecológicas, quando não Gulag ou
extermínio dos ‘inimigos do povo’. Sequer preciso mencionar aqui a fome
organizada por Stálin no caso da coletivização forçada da agricultura no início
dos anos 1930 - que não apenas resultou
na eliminação física de milhares de kulaks,
mas sobretudo na privação absoluta de populações inteiras, sobretudo na Ucrânia
– ou no ‘grande salto para trás’, organizado pelo presidente Mao, entre 1959 e
1962, que pode ter resultado na morte de algumas dezenas de milhões de
camponeses, com cenas de canibalismo jamais vistas desde tempos míticos...
Gostaria
de frisar, em direção dos acadêmicos true
believers nas ‘reais’ possibilidades do socialismo, e que poderiam
desconsiderar algumas das asserções acima, como sendo apenas ‘acidentes
circunstanciais’ numa trajetória feita de boas intenções potenciais desse
sistema, que, mesmo retirando os ‘acidentes’ (com alguns milhões de mortos, é
bom lembrar), as demais características não dependem da opinião ou posição
política do observador: são fatos
materiais indiscutíveis e associados genericamente à história do socialismo no
século 20 e, ainda hoje, ao socialismo cubano em particular: ditadura política,
monopólio do partido, regime policial, repressão aos dissidentes, encerramento
de toda uma população numa ilha-prisão. O acadêmico que for capaz, ainda assim,
de defender esse regime, certamente não merece esse título, podendo apenas ser
classificado como sustentáculo voluntário de uma ditadura, o que é propriamente
indigno de quem se pretenda acadêmico.
Em
uma palavra, o socialismo do século 20 representou apenas e simplesmente isto:
totalitarismo, uma herança certamente pesada para que seus supostos herdeiros
ainda possam reivindicar, hoje, qualquer tipo de filiação intelectual. Que
acadêmicos ou militantes brasileiros ainda defendam o socialismo como idéia, e
a ‘revolução’ cubana em especial, apenas constitui um testemunho eloqüente
sobre mais uma ‘inconsciência revolucionária’, que também poderia ser traduzida
por duas singelas expressões: suprema ingenuidade política ou brutal ignorância
informativa, em ambos os casos exemplos de estupidez acadêmica. Que alguns
desses personagens tenham ódio à democracia parlamentar – que eles equiparam a uma ‘ditadura da burguesia’ – e à economia de
mercado – para eles indistintamente capitalista, sem sequer saber que estão
transformando deste sistema produtivo, ainda bastante limitado na história
econômica mundial, em um superlativo conceitual – apenas confirma como
preconceitos políticos podem obstar uma apreensão historicamente adequada das
realidades políticas do século 20. Ou seja, além de estupidez acadêmica,
cegueira intelectual.
Se o
socialismo, enquanto conceito e enquanto realidade social, não é uma falácia
completa, seus defensores deveriam ser capazes de provar que ele pode
funcionar, de fato, segundo os quatro requisitos formais de um Estado normal,
tal como enunciados acima, quais sejam: legitimidade política interna,
funcionalidade produtiva ou material, liberdades elementares e relacionamento
externo com base numa garantia de reconhecimento da representatividade do
Estado em face de sua população (o que implica na admissibilidade, por exemplo,
de livre acesso de órgãos multilaterais em setores específicos: livre
organização de trabalhadores, segundo as convenções da OIT; respeito aos
direitos humanos, segundo tratados internacionais monitorados pelo Conselho de
Direitos Humanos; transparência dos procedimentos legais e judiciais, como
estabelecido na Carta da ONU; liberdades fundamentais, como acordado na
Declaração Universal de 1948, etc.). Trata-se, obviamente, de um teste muito
simples, que qualquer acadêmico minimamente bem informado seria capaz de
atender, sem alimentar qualquer falácia conceitual ou prática.
5. O mito das conquistas
sociais
Mesmo
reconhecendo alguns ‘problemas políticos’ – geralmente justificados pelo
‘assédio imperialista’ – os acadêmicos simpáticos a Cuba costumam argumentar
com a excelência dos serviços cubanos de saúde e com a alta qualidade de sua
educação, constituindo esses dois elementos as grandes justificativas em face das
demais ‘deficiências’ do regime, uma espécie de compensação social pela falta
de liberdades políticas e por todas as misérias da vida econômica. Estas
‘bondades da Revolução’ estão sempre na primeira linha da defesa das conquistas
do socialismo cubano, constituindo, no entanto, mais um dos grandes mitos que
cercam a ilha. Elas estão identificadas com as supostas conquistas sociais da
‘revolução’, como se a ilha, antes de Fidel Castro, fosse um inferno de
misérias humanas e um deserto de avanços sociais. Um pouco de objetividade
factual pode ajudar a avaliar essa questão.
Em
1958, Cuba ostentava bons indicadores sociais em diversos quesitos,
situando-se, geralmente, nos três primeiros lugares do ranking
latino-americano, junto com a Argentina e o Uruguai. Obviamente, muitos
indicadores, baseados em médias nacionais, não refletiam exatamente a
distribuição de serviços públicos pelo conjunto da população cubana. Mas se os
dados nacionais refletem uma metodologia uniforme para todos os países da
amostra, eles devem poder significar realidades objetivas quanto aos serviços
disponíveis. De modo geral, Cuba se situava entre as sociedades mais avançadas
da América Latina, com um perfil social bem mais próximo da Europa mediterrânea
do que dos demais países latino-americanos.
De
um conjunto de 122 países analisados, Cuba ocupava, em 1958, o 22º. lugar em
matéria sanitária, com 128,6 médicos e dentistas por 100.000 habitantes, à
frente de países como França, Reino Unido e Bélgica. Sua taxa de mortalidade já
era uma das mais reduzidas do mundo (5,8 anuais por 1.000 habitantes; Estados
Unidos 9,5) e o nível de alfabetização da ilha era de 80%, semelhante ao do
Chile e da Costa Rica e superior ao de Portugal na mesma época. Ou seja,
resulta equivocado pensar que Cuba fosse uma ilha habitada por miseráveis antes
da revolução. O regime socialista cubano invoca a baixa mortalidade infantil
para destacar a excelência dos cuidados de saúde disponíveis para a população,
mas o fato é que esse indicador já apresentava uma taxa muito baixa desde os
anos 1950: em 1958, o índice cubano registrava 40 mortes infantis para cada mil
nascidos vivos, uma taxa melhor do que os índices da França (41,9), do Japão
(48,9) e da Itália (52,8). Não obstante essa boa situação de partida, Cuba foi
ficando para trás, pois que, em 2007, o indicador cubano registrava 5,3 óbitos,
contra 4,2 para a França, 3,2 para o Japão e 5,0 para a Itália.
Mesmo
a situação relativamente favorável de Cuba, no confronto com outros países
latino-americanos, deve ser considerada em termos de dotação de recursos para
gastos de saúde: durante muito tempo, o regime cubano foi de fato subvencionado
pela União Soviética, de uma forma como nenhum outro pais latino-americano foi
ajudado pelo império americano. Essas subvenções, embutidas nos pagamentos pelo
açúcar acima dos preços dos mercados mundiais e no financiamento direto das
aventuras militares cubanas em outros continentes, sustentaram os investimentos
cubanos na área social durante muito tempo. Uma vez interrompidas as
transferências diretas e indiretas, a situação cubana começou a se deteriorar
seriamente.
O
sistema educacional cubano é, de fato, abrangente no mais alto grau, ainda que
a suposta excelência não se traduza em uma pujante produção científica ou na transferência
desse saber para o sistema produtivo, no qual patentes são quase desconhecidas.
Pena também que, com o analfabetismo virtualmente inexistente, os cubanos não
disponham para sua leitura diária que de jornais controlados pelo Partido
Comunista e que seu acesso à internet só é comparável com a situação na Síria e
na Birmânia. Apenas alguns poucos países exóticos mantêm, hoje, uma repressão à
liberdade de informação tão ampla – com perdão pelo paradoxo involuntário –
quanto a existente em Cuba. Uma população tão educada mereceria mais,
certamente.
Outra
das alegações freqüentes do regime se refere à suposta igualdade dos cubanos
quanto à distribuição de renda. Não existem dados oficiais a esse respeito, mas
estimativas de especialistas indicam que essa distribuição se deteriorou muito
desde a crise do socialismo, sendo que o coeficiente de Gini passou de um
índice 0,22 em 1986 para 0,407 em 1999. Em especial, no tocante à distribuição
entre as classes de renda, a situação cubana conheceu uma evolução bem mais
negativa do que o resto da América Latina: a razão entre o quintil mais rico e
o quintil mais pobre de renda cresceu de 3,8 a 13,5 na ilha, entre 1989 e 1999,
ao passo que, nesse mesmo período, a razão entre o quintil mais rico e o
quintil mais pobre cresceu de 11,90 a 19,91 para a região como um todo: ou
seja, em Cuba o aumento foi 3,85 vezes, enquanto o aumento na América Latina
foi de apenas 1,67 vezes.
Se
formos examinar a disponibilidade de habitações, a deterioração também foi
sensível, com uma diminuição do número de moradias em função da baixa taxa de
natalidade e da emigração. No plano mais geral do crescimento econômico a longo
prazo, a trajetória cubana é também reveladora da incapacidade do sistema em
produzir bem-estar. Como revelado na tabela abaixo, a posição relativa de renda
por habitante de sete países selecionados, colocava Cuba em terceiro lugar em
1957, à frente da Espanha e de Portugal, tendo a ilha caído para o último lugar
em 2007.
Classificação
de países segundo o PIB per capita
|
Posição
|
1957
|
2007
|
1
|
Venezuela
|
Espanha
|
2
|
Argentina
|
Portugal
|
3
|
Cuba
|
Chile
|
4
|
Espanha
|
Venezuela
|
5
|
Portugal
|
México
|
6
|
México
|
Argentina
|
7
|
Chile
|
Cuba
|
Fonte: United Nations Statistics
Division
|
Na
verdade, o sistema socialista cubano é incapaz de alimentar o seu próprio povo
atualmente, tendo a ilha de importar volumes significativos de alimentos,
inclusive dos EUA, um dos principais parceiros comerciais. Incapaz de produzir
bens exportáveis, Cuba tem uma balança comercial altamente deficitária, o que
se reflete na dívida externa cubana e nas insolvências bilaterais com vários
países europeus, com o México, com o Chile, com o Brasil e com o Japão. No
total, a dívida externa cubana deve superar 38 bilhões de dólares, o que
equivale a 3.410 dólares por habitante, três vezes a média latino-americana, de
1.173 dólares por habitante.
Um
estudo recente sobre a situação do abastecimento alimentar em Cuba revelou
dados assustadores: “Ao menos 13% da população é clinicamente subnutrida, na
medida em que o estado do racionamento alimentar provê, agora, apenas entre uma
semana e dez dias das necessidades alimentares básicas” (Antonio E. Morales-Pita,
“Possible Scenarios in the Cuban Transition to a Market Economy”, Proceedings da Association for the Study
of the Cuban Economy: Cuba in Transition
2007, p. 330). Um outro estudo confirma que “A economia cubana tem
sobrevivido em larga medida graças aos investimentos, comércio, créditos e
ajuda da Venezuela e, em menor medida, da China, assim como de investimento estrangeiro
em setores estratégicos, como petróleo e gás, níquel e turismo, o que permitiu
a Fidel lançar um processo de recentralização da tomada de decisão em
2003-2006, que reverteu a maior parte dos progressos feitos pelas modestas
reformas orientadas para o mercado implementadas em 1993-1996, operando uma
rígida transição de poder para Raúl” (Carmela Mesa-Lago, “The Cuban Economy in
2006-2007”, ASCE: Cuba in Transition 2007,
p. 15).
Esse
mesmo estudo citado imediatamente acima traz estatísticas arrasadoras sobre o
declínio da produção cubana entre 1989 e 2006, em quase todos os setores da
economia, sobretudo alimentares, como revelado na tabela abaixo.
Cuba:
indicadores da produção física, 1989 e 2006 e variação 2006-1989 (%)
(milhares de toneladas métricas, ou unidades
especificadas)
|
Setores, produtos
|
1989
|
2006
|
2006-1989 %
|
Petróleo
|
718
|
2.900
|
303
|
Gás
Natural (milhões metros cúbicos)
|
34
|
1.085
|
3.091
|
Níquel
|
47
|
73
|
55
|
Açúcar
|
8.121
|
1.474
|
-82
|
Aço
|
314
|
257
|
-18
|
Cimento
|
3.759
|
1.705
|
-55
|
Eletricidade
(bilhões kW/h)
|
16
|
16
|
0
|
Têxteis
(milhões de m2)
|
220
|
27
|
-88
|
Fertilizantes
|
898
|
41
|
-95
|
Charutos
(unidades)
|
308
|
418
|
35
|
Sapatos
(milhões de pares)
|
12
|
3
|
-75
|
Sabão
(lavanderia)
|
37
|
14
|
-62
|
Cítricos
|
1.016
|
373
|
-63
|
Arroz
|
532
|
434
|
-18
|
Ovos
(milhões de unidades)
|
2.673
|
2.341
|
-12
|
Leite
(vaca)
|
1.131
|
415
|
-63
|
Fumo
|
42
|
29
|
-31
|
Gado
(milhares de cabeças)
|
4.920
|
3.737
|
-24
|
Peixes e
frutos do mar
|
192
|
55
|
-71
|
Fonte: Carmela Mesa-Lago, “The
Cuban Economy in 2006-2007”, op. cit., p. 4.
|
De
fato, a situação econômica é deveras preocupante, daí as tentativas do novo
governo pós-Fidel de introduzir algumas reformas pró-mercado para paliar essas
dificuldades, como já tinha ocorrido com diversos outros países socialistas no
período anterior à implosão final. Não é preciso alinhar muitos dados sobre
essa deterioração constante, bastando mencionar o aumento da prostituição, do
mercado negro e das transações ilegais, bastante visíveis para qualquer turista
que tenha visitado a ilha nos últimos anos. Por uma dessas ironias da história,
uma das principais alegações para o exacerbado nacionalismo e anti-americanismo
cubano do período imediatamente posterior à revolução foi, justamente, a
eliminação da designação infame da ilha como sendo o ‘bordel do imperialismo’.
Aparentemente, os velhos tempos estão de volta...
6. O mito do imperialismo como
ameaça
Finalmente,
a escusa principal do regime para tentar explicar as dificuldades da vida
econômica em Cuba sempre foi, historicamente, o ‘embargo americano’,
aparentemente responsável por todos os problemas da ilha. Trata-se,
provavelmente, do maior mito entretido pelo regime durante o último meio
século, posto que esse embargo é amplamente contornado pelo comércio de Cuba
com todos os demais países do mundo, sendo as únicas exceções as empresas
americanas instaladas nesses países. Na verdade, como explicitado acima, os EUA
converteram-se atualmente no principal fornecedor de alimentos para Cuba, sendo
que muitos outros produtos americanos ingressam na ilha por terceiros países. A
alegação é falsa, portanto.
Pode-se
mencionar, também, as remessas dos cubanos emigrados a seus familiares na ilha,
um aporte tão ou mais substancial do que aquele representado pelas
transferências de trabalhadores mexicanos nos EUA para seu país natal. Cabe
registrar que são essas divisas, ademais das gorjetas que médicos ou
engenheiros ganham como taxistas clandestinos ou guias turísticos, que permitem
paliar, um pouco, a situação de penúria absoluta da maior parte das famílias,
aliás incontornável para todos aqueles que não dispõem de uma fonte de renda em
moedas fortes.
De
fato, o imperialismo tentou derrubar o regime cubano em 1961, numa desastrada
operação da CIA que tinha sido montada ainda antes da administração Kennedy,
assim como a CIA tentou assassinar Fidel Castro várias vezes, sem sucesso
nenhum, em vista da excepcional qualidade da inteligência cubana, muito bem
treinada por soviéticos e alemães orientais. Mas, as tentativas para minar o
regime terminaram logo depois da crise dos mísseis de 1962, assim como o Congresso
americano impôs um veto, desde os anos 1970, aos atentados contra a vida do
líder cubano. O que restou de tudo isso foi o estúpido embargo americano, mais
determinado pelo Congresso do que pelo Executivo, em função das expropriações
de propriedades americanas não indenizadas no período de radicalização da
revolução. Se o embargo tivesse sido suspenso – o que é difícil em vista do
lobby cubano da Flórida – o regime não teria praticamente nenhuma desculpa para
os níveis baixíssimos de padrão de vida para a maioria da população cubana.
Para
ser mais preciso, é verdade que o governo socialista cubano abandonou o FMI e o
Banco Mundial, consideradas entidades subordinadas a Washington; mas Cuba nunca
deixou de fazer parte do GATT – atualmente da OMC – e pode, assim, transacionar
com todos os demais membros do sistema multilateral de comércio. Portanto,
ainda que exista animosidade do governo americano em relação ao regime
socialista, na prática a ilha está absolutamente livre para intercambiar
produtos com a quase totalidade do planeta, não o fazendo apenas por falta de
competitividade de sua economia e da ausência de oferta exportável, inclusive
de produtos tradicionais. O imperialismo, como diriam os maoístas, é um tigre
de papel, hoje sobretudo interessado na normalização de relações, com o
afastamento dos falcões do ex-governo Bush. Cuba já é membro da Aladi e foi
admitida no Grupo do Rio, inclusive com o ativo apoio do Brasil,
relacionando-se normalmente com todos os países do hemisfério, à exceção,
ridiculamente, do império.
7. À guisa de conclusão: um
manifesto a favor do povo cubano
Para
não dizer que todos os acadêmicos ou intelectuais alimentam falácias sobre Cuba
e sua situação econômica e política, permito-me transcrever aqui um manifesto
de apoio ao povo cubano escrito por intelectuais argentinos. Assim diz o texto,
no original, com cortes mínimos por conter informações desnecessárias:
“Ante la situación política de Cuba, un grupo de
intelectuales argentinos dio a conocer una declaración, en la que expresa su
apoyo moral al pueblo de ese país en su lucha para restablecer el imperio de la
libertad y la justicia en la tierra de Martí. La declaración dice así:
“Los escritores y artistas argentinos que subscriben
(...) expresan su solidaridad con quienes, en otros pueblos de América, luchan
por la liberación de sus respectivos países, sometidos a regímenes de fuerza.
Desean manifestar especialmente su apoyo moral al pueblo cubano, que,
tremendamente agraviado y despojado de las garantías elementales de la civilización
política, sufre persecución, vejamen y tortura, y lucha con admirable decisión
y valentía para abatir la dictadura y restablecer, en la tierra de Martí, el
imperio de la libertad y la justicia, cimentados en la soberanía del pueblo y
la vigencia del derecho.”
Firmaram
esse documento dezenas de nomes de intelectuais conhecidos na história
artística e literária argentina, entre eles Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis
Borges. Pois bem, como ambos escritores, como se sabe, já não estão mais entre
nós desde algum tempo, cabe fazer um esclarecimento a respeito e agregar um
comentário pessoal sobre esse tipo de exercício, se eventualmente conduzido
atualmente.
O
texto, na verdade, não é atual, tendo sido publicado no diário El Mundo, de Buenos Aires, em 2 de março
de 1958, e se referia, portanto, à luta dos democratas e revolucionários
cubanos contra a ditadura de Fulgencio Batista, justamente. Os argentinos,
então, saiam de uma outra ditadura, ainda que alguns a classificassem
simplesmente de regime populista: o governo peronista, que tinha durando dez
anos, desde o imediato pós-segunda guerra. Os intelectuais argentinos se
orgulhavam, assim, de ter deixado para trás um triste período de sua história e
se dispunham a ajudar outros povos da América Latina que também lutavam contra
a ditadura em seus respectivos países, antecipando um pouco o que seria a
chamada “doutrina Betancourt”, formulada depois de superada uma outra ditadura
na Venezuela nesse mesmo ano de 1958 (e que levou inclusive o governo venezuelano
a suspender relações diplomáticas com o Brasil, quando instalada aqui a
ditadura militar de 1964).
Se
me permito, agora, fazer um comentário atual, na verdade uma triste
constatação, seria esta. Não creio que, atualmente, intelectuais brasileiros ou
argentinos, ou de qualquer outro país latino-americano, se dispusessem a
assinar um manifesto do mesmo teor – que poderia ter, inclusive, exatamente o
mesmo texto – em favor do povo cubano, em luta pelo restabelecimento da
democracia e do império da liberdade, da justiça e do direito naquela ilha,
desde cinqüenta anos dominada por um regime que prometeu acabar com uma
ditadura opressiva.
Pode
ser patético fazer tal tipo de constatação “regressiva”, mas ela nos revela o
quanto recuaram os intelectuais latino-americanos na defesa da democracia e da
liberdade em nossos países. Em nome de não se sabe qual ‘soberania popular’ e
de não se sabe qual ameaça de ‘dominação imperialista’, intelectuais dos países
latino-americanos se mostram muito mais dispostos, na verdade, a assinar, de
forma totalmente servil e incompreensível, manifestos em favor da continuidade
da ditadura na ilha caribenha. Se pretendesse citar nomes, eu poderia alinhar
alguns acadêmicos brasileiros que cometeram a indignidade de apoiar o regime
cubano quando este condenou à morte alguns balseros
(boat-people) que tentavam fugir da
ilha, em 2003. Triste constatação, sem dúvida, que talvez merecesse adjetivos
mais fortes.
Esta
última constatação não constitui, obviamente, uma falácia acadêmica, no sentido
aqui analisado. Trata-se, mais propriamente, de uma renúncia à inteligência e à
dignidade intelectual, e de um abandono de valores normalmente exibidos por
membros da academia, como os dos direitos humanos, do princípio democrático, da
liberdade de opinião e de expressão e, sobretudo, da liberdade de ir e vir,
valores pelos quais muitos desses acadêmicos se bateram durante a ditadura
militar brasileira. O fato de não termos, em direção do povo cubano, a mesma
defesa enfática de princípios e objetivos que animaram, no passado, a
comunidade acadêmica brasileira, só pode revelar uma deterioração tremenda de
seu senso moral ou mesmo da simples coerência com valores filosóficos que
deveriam ser universais. Mas, parece que não...
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
1o. de março de 2009
Nota 1: Retirei o texto
transcrito em espanhol, acima, do seguinte capítulo neste livro: “Expresan su
adhesión al pueblo de Cuba intelectuales argentinos”. In: Jorge Luis Borges, Textos Recobrados (1956-1986). Buenos
Aires, Emecé Editores, 2007, p. 323-324.
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