Caridade com chapéu alheio no setor elétrico
Raul Velloso
O Globo, 10/11/2014
Pior resultado da série histórica iniciada em 2001, o déficit público primário, ou seja, o excesso de despesas sobre receitas não-financeiras, registrado em setembro, de R$ 25 bilhões, estava, obviamente, fora do radar. Registre-se que o resultado teria sido ainda pior se o governo viesse honrando todos os seus compromissos.
Nesse contexto, há um rombo oriundo do setor elétrico que já ultrapassa os dois bilhões de reais, que decorreu da obsessão governamental por modicidade tarifária, ou seja, a tentativa de reduzir as tarifas públicas ao menor valor imaginável, independentemente da evolução dos custos. Essa política gera um passivo que acaba estourando na sociedade.
Tudo começou em 2012 com a Medida Provisória 579, que tinha por trás o objetivo de reduzir a conta de luz em 20%. Entretanto, nem tudo saiu como o governo esperava, especialmente a não adesão das geradoras Cemig, Cesp e Copel aos termos propostos. Diante disso, a Lei 12.783, de 2013, na qual foi transformada a MP 579, bem como outros normativos que se seguiram, tiveram de desonerar da conta de luz diversos encargos que recaíam sobre o consumidor, de forma a garantir a prometida redução de 20% na tarifa.
Esses encargos representavam, majoritariamente, subsídios cruzados: o consumidor padrão de uma distribuidora financiava os subsídios auferidos por outros consumidores dessa mesma distribuidora. Os subsídios eram destinados para as atividades de aquicultura e irrigação; para os serviços de água e esgoto; para consumidores rurais e cooperativas de eletrificação rural, entre outros. Com a Lei 12.783, tais subsídios passariam a ser financiados pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). A CDE, por sua vez, era, até então, majoritariamente financiada pelos usuários de energia elétrica. Com a MP 579, a Conta passaria a receber recursos do Tesouro. Com isso, os encargos cobrados na tarifa de energia, que financiavam cerca de 70% da CDE, seriam reduzidos em 75%.
Ocorre que as coisas não saíram como previsto. Na Exposição de Motivos que capeou essa medida provisória, previa-se que a CDE necessitaria de aportes de R$ 3,3 bilhões em 2013 e R$ 3,6 bilhões em 2014. Ora, somente para financiar o acionamento das termoelétricas e a CVA (conta de compensação devida às distribuidoras por assumirem custos não gerenciáveis no período entre dois reajustes), a CDE destinaria R$ 9,5 bilhões em 2013 e R$ 1,6 bilhão em 2014. Registre-se que esses custos não devem ser atribuídos apenas a uma hidrologia ruim: o planejamento inadequado do setor levou à necessidade de uso contínuo de termoelétricas mais caras e à descontratação das distribuidoras.
Só que a delicada situação fiscal que se vive hoje vem impedindo o aumento de aportes na CDE. Por outro lado, a obsessão com modicidade tarifária — talvez arrefecida neste primeiro período pós-eleitoral — pressiona no sentido de moderar os reajustes na conta de luz. Até setembro de 2014, a conta “modicidade tarifária” da CDE, que inclui os subsídios enumerados acima, já ressarciu R$ 1,5 bilhão às distribuidoras. Entretanto, de acordo com a Abradee, o repasse não tem sido integral, e até o final de outubro o valor em atraso já somaria R$ 1,4 bilhão. Até o final do ano, os gastos adicionais das distribuidoras com subsídios devem superar a marca de R$ 2 bilhões.
Portanto, a modicidade tarifária está sendo em parte viabilizada pelas distribuidoras, que são obrigadas a fornecer energia subsidiada a alguns consumidores, sem receber por esse subsídio. Essa conta de R$ 2 bilhões por si só é bastante significativa, para um setor cuja margem de lucro é fortemente regulamentada. Para algumas distribuidoras, ter de financiar os subsídios pode chegar mesmo a inviabilizar financeiramente sua atividade. Além do impacto direto sobre a rentabilidade, esse novo calote do governo afeta negativamente a percepção de risco das empresas.
O que se critica aqui não é o governo assumir o financiamento dos subsídios, pois há argumentos para tal. O que se deve ponderar é se todos os subsídios deveriam realmente existir e, em caso afirmativo, se não seria mais justo e eficiente o corte de outros gastos, como os repasses para financiar o acionamento das térmicas. Repassar tal custo para as tarifas através das já instituídas bandeiras tarifárias, além de aliviar as contas públicas, permitiria que o preço da energia sinalizasse mais adequadamente a escassez relativa do produto. Além do mais, essa política de fazer cortesia com chapéu alheio tende a ter vida curta. As distribuidoras deverão conseguir, administrativa ou judicialmente, a compensação pelos gastos. A incerteza jurídica, contudo, desestimulará o investimento em infraestrutura no Brasil, o que tende a elevar o preço das futuras concessões e a piorar a qualidade do serviço oferecido.
Raul Velloso é economista
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