Uma tese, que eu já conhecia quando de sua apresentação no âmbito do Curso de Altos Estudos do Itamaraty, agora transformada em livro e publicada pela Funag, e que recomendo:
Luis Cláudio Villafañe Gomes Santos:
A América do Sul no Discurso Diplomático Brasileiro
(Brasíla: FUNAG, 2014; 248 p. – Coleção CAE; ISBN: 978-85-7631-525-4)
Disponível no site da Funag:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=589
Em A
América do Sul no Discurso Diplomático Brasileiro o diplomata e historiador
Luís Cláudio Villafañe G. Santos discute, com grande rigor analítico e solidez
conceitual, a vertente sul-americana da identidade internacional do Brasil, um
tema central da política externa brasileira do século XXI. A partir de uma
densa discussão teórica, o autor resgata a história da ideia de América do Sul
e discute sua ausência ou presença, e em que termos, no discurso diplomático
brasileiro, desde o século XIX. Uma ênfase especial fica por conta da
apropriação desse conceito nos governos dos Presidentes Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Nas palavras do Embaixador Gelson Fonseca
Jr., “a conclusão inevitável é a de que, hoje, conhecer a o obra de Luís
Cláudio é fundamental para o estudioso da diplomacia brasileira”.
Sumário:
Prefácio
Introdução.
1. Geografia
e Identidade: América, América Latina, Terceiro Mundo, Ocidente ou América do
Sul?
1.1
Identidades internacionais, identidades americanas
1.2 Os
conceitos e sua história
1.3 América
Latina como contraconceito assimétrico
2.
Identidades Cambiantes: uma revisão histórica
2.1 O
Império brasileiro e o “outro” hispanoamericano
2.2 A
República e a opção pelo americanismo
2.3 O Barão,
o ABC e a América do Sul
2.4 A
Primeira Guerra Mundial e o alinhamento aos Estados Unidos
2.5 O Brasil
e a Liga das Nações
2.6 A Era
Vargas
2.7 Americanismo
e Guerra Fria
2.8 A Operação
PanAmericana
2.9 A
Política Externa Independente e a identidade internacional do Brasil
2.10
Governos Militares: dos círculos concêntricos ao pragmatismo responsável
2.11 A Nova
República e a integração latinoamericana.109
3. As
Reuniões de Presidentes da América do Sul
3.1 Um novo
cenário internacional
3.2 O
Presidente Itamar Franco e a proposta de Alcsa
3.3 O
Presidente Fernando Henrique Cardoso e o conceito de América do Sul
3.4 As
Reuniões de Presidentes da América do Sul
4. Governo
Luiz Inácio Lula da Silva e a Prioridade Sul‐Americana
4.1 Uma nova
política externa
4.2
Identidade americana, latinoamericana e sulamericana
4.3 Um
balanço provisório ao fim dos dois primeiros anos do governo Lula
Conclusões
Referências
APRESENTAÇÃO
GELSON FONSECA JÚNIOR
Apesar de ter sido escrito em 2005 e
com o objetivo específico de preencher um requisito para a promoção na carreira
diplomática, o livro A América do Sul no Discurso Diplomático Brasileiro,
ganhou interesse e atualidade. O passar do tempo mostrou o acerto de Luís
Cláudio Villafañe Gomes Santos na escolha do tema que se tornou, como ele já
vislumbrava, primeira prioridade na estratégia diplomática brasileira. O livro,
ao mostrar as raízes de uma opção diplomática, permite compreendê-la melhor e
ter instrumentos para avaliá-la. Os muitos méritos do livro e, portanto, as
razões para lê-lo não surpreendem. Aliás, só confirmam, mais uma vez, o lugar
de Luís Cláudio entre os mais rigorosos e criativos estudiosos da história da
diplomacia brasileira.
Para quem examina a obra de Luís
Cláudio Villafañe, um dos traços que primeiro chama atenção é sua inteligência
na escolha de seus “objetos de pesquisa”. Devemos a ele, em um dos seus
primeiros trabalhos, a tese de mestrado, publicada em 2002, O Império e as Repúblicas do Pacífico: as
relações do Brasil com o Chile, Bolívia, Peru e Equador e Colômbia (1822-1889),
uma renovação dos estudos sobre a diplomacia brasileira no século XIX, quando
“redescobre” uma área esquecida. De fato, a tradição historiográfica se
centrava, naturalmente, no Prata, mas, ao mostrar o outro lado da presença
latino-americana do Brasil, Luís Cláudio trouxe uma contribuição única e
inédita para a reflexão sobre o Brasil no continente. O estudo da diplomacia
brasileira no século XIX se completa com outro texto notável, O Brasil entre a América e a Europa, que
lida, entre outros, com o tema da rejeição brasileira às tentativas, promovidas
pelos vizinhos, de reuniões multilaterais, no plano regional. Para entender a
posterior aceitação brasileira do multilateralismo, já sob a égide do
pan-americanismo, o texto de Luís Cláudio é indispensável. Esses livros e
textos articulam as sólidas bases para a reflexão de Villafañe sobre a
diplomacia brasileira nas Américas.
Em dois livros mais recentes, o mesmo
sentido inovador se exprime com a madura reflexão que faz Luís Cláudio
Villafañe para interpretar o papel da inserção internacional na configuração de
uma identidade brasileira: O Dia em que
adiaram o Carnaval: política externa e a construção do Brasil e O Evangelho do Barão. Não por acaso,
Matias Spektor, sobre o último, disse, com razão, que o Evangelho “é um sopro
de lucidez” e que corresponde, diante das biografias “tradicionais”, a um
“corretivo necessário, põe em perspectiva o que houve de incoerente, inseguro e
pretensioso na trajetória do Barão, sem reduzir a genialidade do homem e de seu
projeto político”. Assim, ao lembrar esses textos, a conclusão inevitável é a
de que, hoje, conhecer a obra de Luís Cláudio é fundamental para o estudioso da
diplomacia brasileira.
Neste livro, que agora apresento, os
estudiosos em relações internacionais e, além deles, os que se interessam sobre
a construção da identidade brasileira, têm muito a ganhar. A escolha do tema
amplia e renova as formas tradicionais de pensar o Brasil nas Américas. Luís
Cláudio Villafañe mostra, com clareza e competência, como se constrói um espaço
de atuação diplomática. A geografia é um dado, fixo; assim, a questão é
narrativa que dela se extrai. Neste sentido, mostra, como passo preliminar do
seu estudo, como se desenvolve, no plano conceitual, a começar ainda no século
XIX; a criação de uma determinada ideia de América Latina e como o conceito
ganha autonomia. É notável a precisão e a concisão com que revê as origens e a
formação do conceito: lembra Torres Caicedo, Sarmiento, Marti, Rodó, sublinha
as diferenças entre as perspectivas autonomistas, que buscavam um espaço
próprio para as nações latino-americanas, e as ocidentalistas, que incluíam a
América Latina no espaço americano, com o referencial necessário dos Estados
Unidos, lembrando que “dentro do espaço criado por elas, ocorreram os grandes
debates sobre a construção de uma identidade latino-americana a partir da
própria América Latina” (p. 40). Mostra que só se pode falar na consolidação do
conceito de América Latina após a Segunda Guerra Mundial, em especial com a
fundação da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e
indica que a consolidação define a América Latina como um “contraconceito
assimétrico à leitura que os Estados Unidos fazem de sua própria sociedade”.
Chegando ao presente, e voltando-se para o quadro das relações internacionais,
mostra que a incorporação da América do Sul como eixo do discurso (e ação) da
diplomacia brasileira nasce em parte como contraponto às propostas americanas
de uma área de livre-comércio para o continente, a Alca. Aliás, as reuniões
pan-americanas foram paradoxalmente uma plataforma para que a América Latina
identificasse interesses próprios, como a própria defesa da norma da não
intervenção, que, ao longo de “nossa história diplomática, a referência à nossa
condição de nação americana e suas variações (latino-americana, sul-americana)
sempre foi um dos elementos centrais da identidade internacional” do país, são
circunstâncias históricas que explicam o resgate do conceito e a busca de meios
para operacionalizá-lo.
Como diz, em sua esclarecedora
introdução teórica, “As identidades, em qualquer nível, são contingentes e
históricas – produzidas por um sistema de relações sociais e não de condições
naturais (biológicas, geográficas ou de qualquer outra natureza). As
identidades (sejam elas pessoais, de grupos ou de nações) são construídas
dentro desse espaço de relações e diferenças, sendo sua definição o resultado
de um jogo entre as distintas identidades que configuram um determinado sistema
social. Seus conteúdos e suas funções sociais têm um caráter essencialmente
histórico, o que nos remete à tarefa de estudá-las desde uma perspectiva mais
abrangente” (p. 48). Os fundamentos teóricos do trabalho de Luís Cláudio vão
naturalmente além disto. Aliás, merecem uma leitura atenta as observações que
faz sobre os modos de construção conceitual dos discriminados, dos que não têm
poder, dos que estão, no caso da diplomacia, à margem das relações de poder. Na
realidade, o livro é impecável metodologicamente. O objeto está bem delimitado,
o discurso diplomático, as fontes, primárias e secundárias, são utilizadas com
habilidade e sempre de forma a revelar e enriquecer o objeto.
Assim, a vizinhança sul-americana é a
circunstância necessária da atuação do Brasil. Mas, é o interesse político que
cria a “identidade sul-americana” e consequentemente define o espaço para a
atuação diplomática “positiva”. A diferença de perspectivas entre a atitude do
Império de distância dos vizinhos, marcada por contrapontos, e a da República é
notável e movida, afinal, por fatores políticos, especialmente nos momentos
iniciais da República, e, depois, paulatinamente, por objetivos mais complexos,
especialmente de ordem econômica. Na primeira reunião de Presidentes sul-americanos,
em 2000, convocada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, a dimensão de
integração física era nítida e ampliava o percurso iniciado com o Mercosul.
Vale notar, ainda, se viermos para os
tempos recentes, a partir da aceitação da América do Sul como espaço
privilegiado de atuação, as formas de atuar podem ser substancialmente
diferentes, como Luís Cláudio Villafañe mostra quando compara a diplomacia dos
Presidentes Fernando Henrique e Lula.
História conceitual corre ao lado da
história diplomática, não a explica totalmente, mas é indispensável para
entender as opções, alternativas e variantes dos atores, a começar pelos
presidentes e chanceleres. Como o autor diz com razão, “A identidade
internacional do Brasil, ainda que tenha fortes elementos de permanência, está
continuamente sendo reconstruída e reinventada” (p. 179). Assim, ao leitor, se
revela, com clareza, a maneira como surge, se desenvolve a ideia de América do
Sul e as possibilidades de seu emprego político. Circunstâncias modelam a
criação da ideia que, uma vez introduzida no discurso diplomático, passa a ser
uma circunstância que passa a delimitar a própria atividade diplomática. Se
somos sul-americanos, a que nos obriga essa condição? O que nos beneficia? Luís
Cláudio Villafañe não responde a essas perguntas, que exigiriam ir além do que
se propôs, mas, com a clara base em que formula a identidade sul-americana, as
respostas ganham um apoio consistente.
O trabalho de Luís Cláudio Villafañe
traz interpretação, sempre criativa e segura, das fontes, virtude essencial
para a consistência do estudo historiográfico. Chama atenção a maneira como
recupera e revê fontes conhecidas. Os relatórios anuais da Secretaria de
Negócios Estrangeiros e, depois, do Ministério das Relações Exteriores, sempre
constituíram uma base necessária para quem estuda a diplomacia brasileira. Mas,
Luís Cláudio Villafañe retoma os relatórios do século XIX e, depois de uma
leitura minuciosa, encontra formulações claras e reveladoras sobre a atitude
distante em relação aos vizinhos, o que constituía uma barreira difícil de
transpor para incorporar a América Latina ou a América no espaço de formulação
diplomática brasileira. Na mesma linha, retoma os discursos do Brasil nas
Nações Unidas, na importante coleção organizada e comentada por Luiz Felipe de
Seixas Corrêa. As fontes são conhecidas, quase familiares, mas a forma como
interpreta o seu alcance e, sobretudo, as relaciona, tornam em novidade o
conhecido. São valiosas também as entrevistas que faz o autor com diplomatas,
como o Embaixador Luiz Filipe de Macedo Soares e com o Embaixador Eduardo
Santos.
Outra qualidade do livro é
constituir-se em texto íntegro. As partes, da teoria à interpretação dos
desdobramentos do conceito de América do Sul, encaixam-se com perfeita
coerência interna. Cada capítulo enriquece o anterior. Ainda assim, creio que,
em alguns momentos, a abordagem mostra-se especialmente útil e valiosa para
interpretar momentos da história diplomática. Assim se revela a análise das
posições brasileiras diante da revolução cubana. Como lidar com a atitude
norte-americana, e de alguns outros vizinhos, que defendiam que a “identidade
continental americana” teria, como pilar o anticomunismo? (p. 100). Se
aceitamos que a opção marxista-comunista de Fidel era incompatível, nas
palavras de San Tiago Dantas, então Chanceler, com os “princípios democráticos,
em que se baseia o sistema interamericano” (p. 102), uma segunda dimensão da
condição americana repudiava formas de intervenção e de sanção para corrigir a
incompatibilidade e, por isto, votamos contra a suspensão do regime na Reunião
de Consulta, convocada para Punta del Este em 1962. De uma certa forma, a
atitude brasileira, proclamando o princípio da não intervenção ecoava a longa
história de defesa daquele princípio no âmbito do sistema interamericano, só
aceito pelos americanos em 1933, depois de várias tentativas que começam
praticamente com a inauguração das reuniões dos Estados Americanos. Lembre-se
que o Brasil que, a princípio esteve perto dos EUA, transforma depois a não
intervenção em um dos pilares de sua atitude diplomática. Porém, como sabemos,
com o movimento de 1964, a política externa reforça o eixo ocidentalista, de
que o anticomunismo é peça fundamental, e as relações com Cuba são cortadas.
Há ainda dois aspectos do livro que
chamam a atenção. O primeiro é a análise que faz do movimento que leva à adoção
da América do Sul no repertório da diplomacia brasileira nos governos Fernando
Henrique e Lula. Depois de lembrar a noção de Lafer de que a América do Sul
corresponde a uma “força profunda de longa duração que vem norteando a ação
diplomática brasileira” (p. 142), revê, com pertinência, o lançamento das
reuniões de Presidentes sul-americanos, acompanha o seu desenvolvimento, e
procura mostrar o reforço da ênfase sul-americana nos dois primeiros anos do
mandato de Lula. O segundo aspecto que merece leitura cuidadosa são as
conclusões. Luís Cláudio Villafañe não faz propostas de policies, mas, dentro
do marco conceitual que discute, levanta questões absolutamente necessárias e
que, ainda hoje, estão abertas. Uma das primeiras é mostrar que o conceito de
América do Sul ainda está em construção e, pela abrangência do que propõe,
enfrenta desafios maiores do que o de América Latina que tinha a vantagem de
uma longa história e, a rigor, se fundar em “uma noção de similaridade antes de
tudo cultural” (p. 189). Menciona a necessidade de superar os “muitos dos mitos
de origem da nacionalidade de cada um dos países sul-americanos (que) incluem a
ideia de usurpações e agravos históricos, reais ou imaginários, por parte de
seus vizinhos”. E, sobriamente, acrescenta, “A superação desses mitos e
ressentimentos é perfeitamente possível – como demonstra a integração europeia
–, mas, representa um salto em direção ao futuro, que exigirá liderança,
internamente em cada um dos doze países, e uma ação diplomática e firme” (p.
190).
Para isto, lembra Luís Cláudio
Villafañe a importância das trocas culturais, do aprofundamento dos estudos da
história regional, que sustentariam, no longo prazo, as formas de aproximação
política e econômica. Luís Cláudio lembra também que, “ao afirmar a vertente
sul-americana da identidade brasileira não se está excluindo completamente as
dimensões latino-americanas e continental” (p. 190). Os avanços institucionais
da “comunidade sul-americana” são evidentes, com a criação da Unasul.
Porém, mais América do Sul significa
maior capacidade de vinculação com a América Latina e com os Estados Unidos e
Canadá? Ou menos? E, voltamos aqui, a ligar a história do conceito aos desafios
das melhores opções diplomáticas. Que regionalismo queremos? A América do Sul
está incorporada ao discurso e é parcela fundamental da ação diplomática. Mas,
qual o limite do discurso? Incorpora um projeto? É agregador dos vizinhos? É
plataforma para uma abertura para o mundo? Luís Cláudio Villafañe não pretende
oferecer respostas, mas, se não refletirmos, como sociedade, sobre as
indagações que faz, as respostas diplomáticas correm o risco de serem
incompletas.
Gelson Fonseca Jr.
Livro disponível no site da Funag:
http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=589
http://funag.gov.br/loja/download/1099-a-america-do-sul-no-discurso-dimplomatico-brasileiro.pdf
=========
Complemento:
Um artigo de atualidade:
DOMINGUES, R..
Uma Potência Regional em Construção? O Brasil na América do Sul durante os anos Lula (2003 - 2010).
Revista Política Hoje, América do Norte, 22,
nov. 2014. Disponível em:
http://www.revista.ufpe.br/politicahoje/index.php/politica/article/view/274/154. Acesso em: 24 Nov. 2014.
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