O
ajudante do Inquisidor: o parafuso da engrenagem totalitária
Paulo Roberto de Almeida
A figura e o ofício do Inquisidor já
são por demais conhecidos, desde o final da Idade Média e o início da era
Moderna, quando os tribunais da Contra Reforma foram desenvolvidos em vários
países, sobretudo na península ibérica, a partir das instituições mais antigas
de combate às heresias. Em contraposição, a figura e o ofício do ajudante do
Inquisidor são bem menos conhecidos, em qualquer época, uma vez que ele existe
para servir ao primeiro, não para se distinguir por si próprio, ou para entrar
nos livros de história. Ele é apenas aquela figura que fica na sombra, atrás ou
ao lado, mas sempre um passo atrás, seguindo o Inquisidor em todas as suas
iniciativas, para assegurar que as vontades do Número 1 sejam sempre bem
cumpridas, independentemente e a despeito de qualquer fundamento na doutrina ou
de seu enquadramento legal: a palavra do grande
Inquisidor deve bastar para que o ajudante cumpra as tarefas que lhe
foram atribuídas, sem contestação e sem hesitação. Sem o ajudante, o Inquisidor
não poderia cumprir sequer a metade de sua missão, que é de assegurar a pureza
e a sobrevivência da verdade do momento e, com isso, a fortaleza da Engrenagem.
Eu sempre me questionei, não sobre o
que pensa o Inquisidor, mas sobre o que vai na cabeça do ajudante do Inquisidor,
se é que é possível aproximar os meandros e as circunvoluções de terreno tão
misterioso, de vida tão obscura. O ajudante de Inquisidor não é feito
exatamente para pensar, mas para cumprir ordens, e para vigiar aqueles que por
acaso entrem na linha de mira do Inquisidor, seja por antipatia pessoal, seja
por que tais indivíduos podem eventualmente representar um grão de areia no
funcionamento da Engrenagem. O ajudante pode até ser estúpido, intelectualmente
falando, incapaz de determinar por si mesmo de onde podem vir essas ameaças, mas
ele precisa estar atento e ser sempre um fiel cumpridor das ordens e vontades
do Inquisidor. Ele pensa, claro, mas apenas em como melhor cumprir suas tarefas
enquanto ajudante de personagem tão importante na manutenção e sobrevivência
duradoura da Engrenagem. Ele pensa como se antecipar às intenções e ações
futuras do grande Inquisidor, sendo prestativo, ao, por exemplo, oferecer indícios
de algum novo violador das regras da Engrenagem.
Não tenho certeza de poder penetrar
na cabeça do ajudante do Inquisidor, mas creio poder imaginar suas ações
subterrâneas, sempre envoltas numa névoa de segredos e de expedientes escusos.
Ele é aquele que recebe as ordens e instruções e trata de aplicá-las do modo
mais diligente possível, sem questionar sobre o quê, sobre quem, sobre o por
quê desta ou daquela iniciativa inquisitorial. Ele precisa apenas cumprir o que
lhe foi ordenado, da maneira mais satisfatória possível, para bem atender às
finalidades da Engrenagem. Ele não se questiona se as suas ações são boas ou
más, ele está acima dessas meras questões morais, pois que toda a sua energia
está devotada ao atingimento dos objetivos da Engrenagem, que é manter-se
sempre preeminente, não contestada e não contestável.
E quais seriam as ações do ajudante
do Inquisidor? Além de outras tarefas de natureza prática, ele cumpre essa
função preventiva que é a de ser os olhos e os ouvidos do Inquisidor, quando
este sequer ainda debruçou-se sobre um novo caso, quando o grande censor do
Número 1 não teve ainda indicações concretas de quais perigos e ameaças se
escondem nas palavras e nas ações de um dissidente potencial. Na maior parte do
tempo, porém, suas tarefas são aborrecidamente burocráticas: ele precisa varrer
continuamente os novos instrumentos de comunicação social para verificar se
algum foco de resistência à Engrenagem não começou a se desenvolver em alguma
parte desse vasto espaço virtual. Ele precisa ainda percorrer todas as folhas
de opinião e os pasquins de ocasião, para desempenhar a mesma missão: detectar
os casos de oposição deliberada às instruções do Número 1 e às determinações do
grande Inquisidor. Ele tem, ademais, de verificar quem está escrevendo o quê, e
se o que aparece publicado representa, ou não, um perigo imediato, ou apenas um
germe de rebeldia que requer monitoramento.
De fato, o trabalho é aborrecido, e
sobretudo desprezível, pois significa estar sempre no encalço de alguém, ou das
ideias desse alguém, sem necessariamente poder desenvolver qualquer trabalho de
“crítica literária”, ou de interpretação substantiva dessas ideias e argumentos
que podem, ou não, opor-se aos objetivos do Número 1. É um trabalho de
vigilância e de denúncia, como faziam os antigos “ouvidores do rei” e os
servidores dos “cabinets noirs” dos soberanos. Os agentes não declarados do
chefe da polícia republicana também desempenhavam as mesmas funções, assim como
os informantes pagos de várias ditaduras e até de nações formalmente
democráticas.
Os Estados totalitários, por sua
vez, dispunham de todo um exército, um imenso contingente, literalmente, de
funcionários especialmente treinados e todos dedicados exclusivamente ao
desempenho dessas tarefas “especiais”; ao lado deles, existia um outro exército
de informantes nas mais diversas instituições públicas e privadas, nas escolas
e igrejas, nas associações de bairro, alguns mercenários, outros voluntários,
em todo caso, todos engajados na eterna missão de serem os olhos e os ouvidos
do grande Inquisidor. Alguns chegaram a extremos extraordinários, como os
Comitês de Defesa da Revolução, por exemplo, que fazem uma estrita vigilância
de cada quarteirão de cada cidade daquela ilha miserável, de onde todos
gostariam de fugir, se fosse possível. Tem também a fabulosa rede de agentes
formais e informais do mais vasto empreendimento jamais conhecido de escrutínio
de todo um povo, dia e noite, sete dias por semana, e que ainda deixou –
certamente por falta de tempo para destruir aqueles vastos arquivos – o mais
formidável repositório de documentação extremamente detalhada e minuciosa,
sobre as atividades mais íntimas de cada habitante daquele universo
concentracionário; a Stasi foi realmente excelente no gênero, e deve ter dado várias
lições de excepcional qualidade mesmo para os seus mestres soviéticos, e
provavelmente para alguns alunos dedicados também, como deve ser o pessoal da
DGI cubana. Chineses e norte-coreanos não devem estar muito longe da excelência
de desempenho demonstrada pelos agentes da Stasi, que provavelmente tinham toda
uma herança burocrática pronta para ser usada, depois de recuperada e revertida
para a nova causa, que era a máquina de espionagem e de massacre de opositores
do aparelho partidário nazista e do Estado hitlerista.
Os parafusos de uma outra
Engrenagem, ainda em formação, estão longe de exibir a mesma produtividade no
trabalho de vigilância e na preparação de relatórios tão perfeitos quanto eram
os da Stasi, mas tudo é uma questão de aperfeiçoamento técnico e de dedicação à
causa, e para alguns não faz falta sequer o entusiasmo com essa causa. O grande
Inquisidor tem experiência nessa área, certamente aprendida com profissionais
do ramo, e sabe como melhor servir à causa do Número 1. Aos ajudantes,
aprendizes, talvez, cabe demonstrar o mesmo empenho já exibido por colegas de
outros países e de outras situações, eventualmente desaparecidas ou condenadas
à lata de lixo da história. Eles estão atentos, como já pude verificar em
tempos recentes. Já vasculharam meus escritos e já devem ter feito até um
dossiê especial sobre o meu caso irrecuperável. Estou na mira dos parafusos, e
eles vão continuar monitorando meus passos, meus escritos, minhas ideias.
Fiquem à vontade, parafusos, eu
posso até facilitar a tarefa: todas as minhas ações são friamente calculadas,
como diria aquele outro personagem tão patético em sua sinceridade ingênua.
Pois eu também sou ingênuo a esse ponto, talvez mais típico das almas cândidas
de que falava Raymond Aron. Todos os meus trabalhos, os escritos, inéditos e
publicados, estão meticulosamente repertoriados, vários até linkados, em minhas
ferramentas de comunicação social. Podem dispor, mas vão precisar se armar de
um pouco de paciência e de atenção para ler tudo e tomar nota do que lhes
parecer interessante. Tem muitas coisas que são óbvias, em minha missão anti-totalitária,
mas outros escritos são mais alusivos, apenas discretos numa gozação em regra
dos novos companheiros das causas anacrônicas. Em todo caso, só escrevo o que
penso, o que já é uma grande vantagem para quem precisa fazer direito o seu
trabalho de ajudante do Inquisidor. E o que eu penso eu escrevo, e assino
embaixo.
Sou daqueles que nunca deixaram o cérebro
em casa ao partir para o trabalho; tampouco o depositava na portaria, ao
adentrar nos labirintos da burocracia oficial. Isso nem sempre é recomendável,
em carreiras competitivas e até oportunistas, mas é como sou e como fui,
durante todo o itinerário profissional e acadêmico. Podem conferir: tem
trabalhos mais antigos, ainda otimistas, e outros mais recentes, um pouco
pessimistas quanto às chances do país reverter a estágios primitivos, ou
avançar galhardamente em direção de uma decadência gloriosa, auto-assumida e
auto-infligida. Todos eles são preocupantes para certos inquisidores e seus
ajudantes, mesmo para os iniciantes de um serviço à la Stasi. Espero que não
tenhamos de chegar nesse estágio, para depois não precisar fazer filmes em
preto e branco, tão tristes como certas realidades passadas.
No que depender de mim, em todo
caso, vai ser difícil caminhar nessa direção impunemente, e sem protestos. Eu
sou uma areia nessa Engrenagem...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de novembro de 2014.