O Barão do Rio Branco e as estratégias do
Brasil: a grande e as pequenas
Paulo
Roberto de Almeida
Relação de Originais n.
2407; Relação de Publicados n. 1073.
Se,
por um desses acasos históricos, o Barão do Rio Branco, falecido exatamente cem
anos atrás, retornasse eventualmente entre nós, quais seriam suas grandes
preocupações diplomáticas? Esgotada a tarefa de remodelar a geografia dos
limites territoriais, por meio de negociações de fronteiras com todos os nossos
vizinhos, o Barão talvez se preocupasse com temas mais permanentes, ou mais
estruturais, sobretudo numa fase – como foi a sua – de transição nas relações
internacionais. De fato, cem anos atrás, o mundo assistia aos primeiros passos
da transposição hegemônica das velhas potências europeias para o novo poder
emergente, os Estados Unidos da América, país com o qual o Barão do Rio Branco
tentou estabelecer uma estratégia de coexistência de zonas de influência: os
EUA ao norte, o Brasil ao sul. Obviamente, o Barão tinha consciência dos meios
limitados do Brasil do início do século XX, mas ele se perguntaria, de igual
modo, o que o Brasil precisaria fazer, atualmente, para ocupar seu espaço no
chamado concerto das nações.
Talvez
ele começasse pela pergunta clássica dos estadistas: o Brasil possui uma
estratégia, grande ou pequena? Talvez, embora nem sempre se perceba. Os
militares talvez tenham pensado em alguma, e ela sempre envolve grandes meios,
para defender as grandes causas: a soberania, a integridade territorial, a
preservação da paz e da segurança no território nacional e no seu entorno
imediato. Enfim, todas aquelas coisas que motivam os militares. Os diplomatas,
também, talvez tenham escrito algo em torno disso, e ela sempre envolve o
desenvolvimento nacional num ambiente de paz e cooperação com os vizinhos e
parceiros da sociedade internacional, no pleno respeito dos compromissos
internacionais e da defesa dos princípios e valores constitucionais, que por
acaso se coadunam com a Carta da ONU. Mas eles também acham que está na hora de
“democratizar” o sistema internacional, que ainda preserva traços do imediato
pós-Segunda Guerra, ampliando o Conselho de Segurança da ONU, reformando as
principais organizações econômicas multilaterais e ampliando as possibilidades
de participação dos países em desenvolvimento nas instâncias decisórias
mundiais; enfim, todo aquele discurso que vocês conhecem bem.
Tudo
isso é sabido, e repassado a cada vez, nas conferências nacionais de estudos
estratégicos, em grandes encontros diplomáticos, nos discursos protocolares dos
líderes nacionais. Até parece que possuímos de fato uma grande estratégia,
embora nem sempre isso seja percebido por todos os atores que dela participam,
consciente ou inconscientemente. Aparentemente, ela seria feita dos seguintes
elementos: manutenção de um ambiente de paz e cooperação no continente
sul-americano e seu ambiente adjacente, num quadro de desenvolvimento econômico
e social com oportunidades equivalentes para todos os vizinhos, visando a
construção de um grande espaço econômico integrado, de coordenação e cooperação
política, num ambiente democrático, engajado coletivamente na defesa dos
direitos humanos e na promoção da prosperidade conjunta dos povos que ocupam
esse espaço.
O que seria uma grande
estratégia para o Brasil?
Muito
bem, mas esses são objetivos genéricos, até meritórios e desejáveis, que
precisam ser implementados de alguma forma, ou seja, promovidos por meio de
iniciativas e medidas ativas, o que envolve inclusive a remoção dos obstáculos
que se opõem à consecução desses grandes objetivos. É aqui que entra, de
verdade, a grande estratégia, quando se tem de adequar os meios aos objetivos,
não simplesmente na definição de metas genéricas. A estratégia é que permite se
dizer como, e sob quais condições, o povo do país e suas lideranças vão
mobilizar os recursos disponíveis, as ferramentas adequadas e os fatores
contingentes – dos quais, os mais importantes são os agentes humanos – por meio
dos quais será possível alcançar os grandes objetivos e afastar as ameaças que
se lhes antepõem. Uma verdadeira estratégia diz o que deve ser feito, na parte
ativa, e também, de maneira não simplesmente reativa, como devemos agir para
que forças contrárias não dificultem o atingimento das metas nacionais.
Nesse
sentido, se o grande objetivo brasileiro – que integra nesta concepção sua
“grande estratégia” – é a consolidação de um espaço econômico democrático e de
cooperação econômica no continente, devemos reconhecer que avançamos muito
pouco nos últimos anos. A despeito da retórica governamental, não se pode
dizer, atualmente, que a integração e a democracia progrediram tremendamente na
última década. Ao contrário, olhando objetivamente, esses dois componentes até
recuaram em várias partes, e não se sabe bem o que o Brasil fez para promovê-los
ativamente. O presidente anterior foi visto abraçado com vários ditadores ou
candidatos a tal, esqueceu-se de defender a liberdade de expressão, os valores
democráticos e os direitos humanos onde eles foram, e continuam sendo, mais
ameaçados, quando não vêm sendo extirpados ou já desapareceram por completo. A
integração que realmente conta, a econômica e comercial, cedeu espaço a uma
ilusória integração política e social que até pode ter rendido muitas viagens
de burocratas e políticos, mas não parece ter ampliado mercados e consolidado a
abertura econômica recíproca.
À falta de uma grande
estratégia, o Brasil possui pequenas estratégias?
Desse
ponto de vista, o Brasil parece ter falhado em sua grande estratégia, se é
verdade que ele realmente possui uma. Se não possui, está na hora de pensar em
elaborar a sua. Passada a retórica grandiloquente – contra-produtiva, aliás –
da liderança e da união exclusiva e excludente, contra supostas ameaças
imperiais, pode-se passar a trabalhar realisticamente na implementação da
grande estratégia delineada sumariamente linhas acima. A julgar pela experiência
recente, não parece que sequer começamos a retificar os equívocos mais
eloquentes do passado imediato, quando apoiamos ditadores e adotamos uma
concepção muito peculiar dos direitos humanos e dos valores democráticos. O que
diria o Barão, a esse respeito?
Talvez
ele devesse começar examinando as pequenas estratégias desenvolvidas nos
últimos anos. Na verdade, o Barão seria naturalmente levado a elaborar uma
grande estratégia, obviamente diversa daquela de sua época, e adaptada aos
requisitos do presente. Negligenciando o fato de que ele, quando vivo, já era
quase um santo protetor da diplomacia brasileira, uma personalidade incontrastável,
incontestável, o “dono” da política internacional do Brasil, além e acima de
qualquer presidente, pode-se imaginar que ele atuaria segundo as instruções do
presidente de turno, mas com certa latitude de ação, em vista de sua
reconhecida competência para certos temas.
Vamos
imaginar, contudo, que ele apenas atuaria como um chanceler qualquer, em face
dos mesmos desafios ou agendas, que se colocariam a um chanceler de nossos dias,
nas circunstâncias atuais do Brasil, país que deixou de ser simplesmente em
desenvolvimento, e um instável crônico na América Latina, para se tornar um
“emergente”, um país dotado de pretensões a ter uma influência regional e
global. É com base, exatamente, nessas premissas, que podemos, em primeiro
lugar, criticar as diversas estratégias que o Brasil seguiu nos últimos tempos,
e às quais poderíamos chamar de pequenas.
A
primeira estratégia pequena do Brasil, na verdade mesquinha, seria a de ter
exibido, durante os oito anos da doutrina do “nunca antes neste país”, uma
orientação de política externa não exatamente nacional, mas mais propriamente
partidária, para não dizer sectária. Quando o Barão foi convidado para ser
chanceler, cargo que ele ensaiou recusar, seja por motivos de saúde, de
dinheiro ou qualquer outro, a primeira coisa que ele adiantou era a de que não
vinha servir a qualquer partido, a qualquer causa política, mas ao Brasil, em
benefício da nação e de seu prestígio na região e no mundo.
Cem
anos depois, parece que tivemos não apenas uma diplomacia estreitamente partidária,
mas até um chanceler que, talvez insatisfeito por ser “apenas” diplomata,
resolveu se inscrever num partido, ou melhor, no partido do poder, o que
aparentemente nunca lhe foi exigido como chanceler ou como funcionário de
Estado. Mas, como defensor de um governo partidário, ele resolveu se filiar a
esse partido. Como todo militante desse partido, como naquelas agrupações
religiosas que exigem o dízimo, tem de contribuir com sua cota de boa vontade
financeira, o mesmo chanceler escolheu ser conselheiro de algumas coisas, para
arredondar o salário, já que o Brasil é hoje um país caro (talvez em função de
algumas políticas de pequena estratégia que o mesmo partido aplica). O Barão,
provavelmente, desprezaria gestos como esse.
A
segunda estratégia pequena que o Barão lamentaria, se hoje contemplasse a
diplomacia dos oito anos do “nunca antes”, seria justamente essa tal de
“diplomacia Sul-Sul”. O Barão nunca compreenderia, e nunca admitiria, como se
consegue ser tão reducionista, tão simplista, tão estreito geograficamente nas
escolhas de relacionamento internacional, ele que sempre se bateu para
equilibrar as relações do Brasil entre a velha Europa, os EUA emergentes, e a
América do Sul, todos tão presentes em nossas relações imediatas. A despeito dessa
“aliança não escrita” com os EUA, de que falam alguns acadêmicos, o Barão, na
verdade, nunca se deixou prender, ou enredar, numa relação exclusiva, ou
privilegiada, com qualquer sócio maior, mas procurava sempre manter
equidistância dos grandes centros de poder, das velhas potências coloniais –
mas ainda agressivamente imperialistas – e da nova potência que despontava no
hemisfério – e já agressivamente imperialista, precisamente. Menos ainda ele
compreenderia que o Brasil só tivesse olhos para o seu entorno imediato –
claro, porque a África não “existia”, dominada que era pela Europa, e que a
Ásia também se debatia na colonização direta e indireta das mesmas potências –
e descurasse por completo das relações com aqueles que eram nossos principais
mercados e fornecedores de capitais. Ele sorriria com certa complacência antes
essas propostas de “nova geografia comercial internacional”, sabedor que, em
matéria de comércio, toda e qualquer geografia é boa, desde que se consiga
realizar todos os intercâmbios, nos dois sentidos, que interessariam ao Brasil.
Justamente,
mesmo se ele tivesse de administrar uma “estratégia Sul-Sul” para o Brasil –
fatalidade lamentável que ele certamente se escusaria por completo de iniciar –
ele jamais se permitiria ser complacente, leniente, inconsequente ou descuidado
em relação aos direitos do Brasil. Ele jamais permitiria, por exemplo, que
tripudiassem injustamente sobre nossas exportações – como infelizmente ocorre
muito frequentemente com certo vizinho arrogante – ou que, ao arrepio de
tratados bilaterais e de contratos internacionais, outros vizinhos
inconsequentes invadissem nossas propriedades legítimas para esbulhar-nos de
nossos direitos, rasgando unilateralmente compromissos que tinham sido
solenemente contraídos anteriormente. Por muito menos ele fez deslocar tropas
para proteger nacionais ameaçados de maus tratos; ainda que não fosse o caso de
fazê-lo em todas as circunstâncias, o Barão certamente teria sido bem mais
vigoroso na reação a certos atos de expropriação ilegal.
Por
exemplo: ainda que confrontado a uma declaração inevitável de expropriação de
bens nacionais, ele JAMAIS assinaria uma nota na qual se reconhecia o direito
soberano de outro país de, sem a cortesia de sequer um alerta preliminar,
expropriar sem negociações ou consulta prévia propriedades nacionais, em total
desrespeito às normas do direito internacional e à letra de tratados que
constituíam obrigações para as duas partes. Ele certamente consideraria certas
atitudes registradas nesses tempos caóticos de diplomacia confusa não só como
marcas de uma pequena estratégia, mas como uma demonstração cabal de uma
estratégia vergonhosa.
A
mais forte razão, o Barão se guardaria escrupulosamente, e faria com que o seu
presidente também observasse esse tipo de recato, de jamais interferir nos
assuntos políticos internos de outros países, seja demonstrando apoios
eleitorais indevidos, seja adiantando preferências ideológicas ou ainda
rompendo normas e costumes de direito internacional e de relações diplomáticas.
A melhor forma de manter boas relações com quaisquer vizinhos – mesmo os mais
turbulentos – e com todo e qualquer país da comunidade internacional é manter
reserva total quanto aos assuntos internos desses outros países, mesmo quando
se possa, em privado, manter preferência por um outro personagem da vida
política que possa ter influência nas relações com o Brasil. Expressar
publicamente interesse nesse tipo de assunto é a mais pequena estratégia que o
Barão poderia conceber, e isso ele deixou registrado em vários escritos
públicos.
Finalmente,
o Barão tampouco consentiria em dividir o processo de tomada de decisão em
múltiplas cabeças, em fracionar o comando da diplomacia em diversos centros
independentes de formulação e de execução de uma política nacional, como deve
ser a política internacional de um país. Consciente, provavelmente, de que a
política externa é uma espécie de política interna por outros meios, e sabedor
de que a diplomacia, como a arte da guerra, exige unidade de formulação, de decisão
e de implementação das ações requeridas, ele obstaria por completo a qualquer
fragmentação da atuação diplomática do Brasil em unidades separadas de atuação.
Já ao assumir a chefia do Ministério, e confrontando-se com a provecta figura
de Cabo Frio, ele apressou-se em inaugurar um busto em homenagem a essa
magnífica figura do Império, como forma de afastá-lo dos assuntos correntes,
encaminhando-o a uma merecida aposentadoria que ainda tardou a acontecer.
Independentemente desses dissabores, ele jamais consentiria, por exemplo, que
dirigentes partidários, representantes de interesses especiais, neófitos
palacianos ou quaisquer outros aprendizes de diplomatas lhe viessem sugerir
esta ou aquela política em matérias que fossem de sua competência exclusiva. Como
“general” da diplomacia, ele sabia que comando não se divide: ou se assume, ou
se assiste a confusão predominar em temas que têm a ver com a segurança
nacional.
Enfim,
falamos das “pequenas estratégias” que o Barão não teria, e não poderia ter,
para as relações internacionais do Brasil, cem anos depois de sua morte, se por
acaso voltasse ao nosso convívio. Mas faltou falar, positivamente, de uma
grande estratégia que o Barão do Rio Branco poderia exibir na atualidade.
E
por que uma estratégia teria de ser “grande”? Não existe nenhum motivo especial
para isso: trata-se apenas de um adjetivo, talvez exagerado, que visa, de certo
modo, enfatizar o aspecto crucial para o país na determinação de suas políticas
mais essenciais; neste caso, grande pode ser considerado como algo diferente de
setorial (como poderia ser apenas defesa ou desenvolvimento). Grandes países,
com grande interface ou exposição internacional, ou, ainda, países capazes de
grande projeção internacional, costumam ter grandes estratégias. Talvez seja o
caso do Brasil.
O Brasil
é um ator relevante malgré lui, ou seja, possui massa e presença de
dimensões relevantes, embora não consiga determinar o curso dos eventos e dos
processos no subcontinente, mesmo mobilizando as armas de sua política – a
diplomacia – ou “ameaçando” (o que, aliás, seria difícil de concretizar)
recorrer à política das armas – para a qual lhe faltariam os requisitos de
base, justamente. Mesmo no terreno das proposições de política, não se pode
dizer que o Brasil tenha constituído um manancial de iniciativas
significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da
região no contexto mundial.
Quais
são, numa análise realista, os componentes dessa grande estratégia? A resposta
a esta questão implica necessariamente identificar os principais desafios
colocados ao Brasil na realização dos supremos interesses nacionais. Quais são
estes últimos, portanto? Em plena transparência de propósitos, não parece
restar dúvidas de que o objetivo supremo da nação – ademais daquelas questões
básicas de soberania, que já consideramos não prioritárias – é o atingimento de
uma etapa superior no seu processo de desenvolvimento, de maneira a garantir
bem estar e vida digna a todos os brasileiros, como condição da plena integração
do país ao sistema internacional num status de potência capaz e plenamente
dotada dos meios de ação para atuar positivamente nesses sistema, em
conformidade com os propósitos da Carta das Nações Unidas e dos demais
instrumentos da cooperação internacional.
Mas
isso discutiremos numa próxima ocasião.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília, 10 de Julho de 2012; revisão:
14/09/2012
"R2P After Lybia: Debating Protection and the Use of Force."
ResponderExcluirSeminário FGV/CPDOCSP
http://www.ustream.tv/recorded/24932201
Vale!