Uma longa história, em flash backs, para ler com atenção, portanto, reparando nas idas e vindas dessa novela que ainda não terminou...
Paulo Roberto de Almeida
Novela boliviana
por CLAUDIA
ANTUNES
Revista PIAUI, julho 2014
Como o caso do senador Roger
Pinto expôs a crise entre Dilma e o Itamaraty
No início
de agosto de 2013, Marcel Biato, o embaixador do Brasil em La Paz, convocou
seus dois auxiliares mais graduados, Eduardo Saboia e Manuel Montenegro, e os
três adidos militares. Pediu-lhes que considerassem algumas estratégias para
retirar da embaixada o senador Roger Pinto Molina em situação de emergência
médica. O político, dirigente da direita local, desafeto do presidente Evo
Morales, estava instalado havia quase quinze meses numa sala da missão, que
ocupa os primeiros dois andares de um prédio comercial da capital boliviana.
Seu pedido de asilo diplomático havia sido aceito pela presidente Dilma
Rousseff, mas o governo da Bolívia se negava a conceder o salvo-conduto para
que ele pudesse sair do país.
Na época,
não podia ser pior o clima entre o comando da embaixada e a cúpula do
Itamaraty. Os dois lados se engalfinhavam em torno da situação de Roger Pinto
desde que, cinco meses antes, Biato fora alijado das negociações com o governo
boliviano sobre o destino do senador opositor. A embaixada relatava que o
hóspede estava apático, descuidado com a aparência, e tinha deixado de se
exercitar com os pesos e a bicicleta ergométrica postos à sua disposição.
Os
diplomatas e os militares discutiram três cenários. O primeiro era proporcionar
mais conforto ao senador transferindo-o para a “casa dos fuzileiros” – uma
construção nos fundos da residência do embaixador que os fuzileiros navais
responsáveis pela segurança da missão usam para fazer churrascos, trocar de
roupa e tirar um cochilo. A segunda possibilidade era levar Roger Pinto para um
hospital da cidade, correndo o risco de que ele não pudesse voltar à embaixada.
Por fim, foi considerada sua vinda para o Brasil pela rota que liga La Paz a
Corumbá, em Mato Grosso do Sul, um percurso de 1 550 quilômetros. As
alternativas foram expostas ao Itamaraty, que não fez comentários.
No dia 17
de agosto, um sábado, cerca de duas semanas depois desse brainstorm,
o embaixador viajou para Brasília numa saída periódica de dez dias – benefício
de que os diplomatas desfrutam, de três em três meses, nos postos considerados
difíceis. O ministro Saboia ficou como encarregado de negócios. Na
segunda-feira, dia 19, ele escreveu ao Itamaraty dizendo que o asilado estava
perto de um colapso psicológico. Queria instruções sobre três possibilidades: a
entrada de médicos na embaixada, a transferência do senador para uma clínica
boliviana e sua remoção para o Brasil. O Itamaraty pediu uma avaliação médica
do político, mas não se pronunciou sobre as demais opções.
No dia
22, Saboia enviou a Brasília um laudo médico assinado pelo clínico geral do
Senado da Bolívia. O laudo, que lhe foi entregue por Luis Vásquez, o advogado
de Roger Pinto, diagnosticava uma depressão profunda. Na manhã de sexta-feira,
23 de agosto, quando se completavam 453 dias da permanência do senador na
embaixada, Vásquez visitou seu cliente e, segundo contou na sindicância que
investiga o caso, foi ter com Saboia em seguida. Disse-lhe que o asilado
ameaçava se matar e que, se isso ocorresse, a embaixada seria responsabilizada.
Às
sextas-feiras, o expediente da embaixada em La Paz atravessa a hora do almoço e
termina mais cedo. No dia seguinte, haveria uma cerimônia antecipada do Dia do
Soldado em Cochabamba, onde há uma presença antiga de instrutores militares
brasileiros. Saboia, que seria condecorado com a Ordem do Mérito Militar, já
havia avisado que ficaria com Roger Pinto. Os adidos militares partiram para
Cochabamba, a seis horas da capital. Uma camionete Nissan Patrol estava pronta
para levar Manuel Montenegro para a comemoração.
No início
da tarde, Saboia avisou o chefe de segurança da embaixada, um sargento da
Marinha, que iria remover o asilado, pondo em prática uma das opções discutidas
no início do mês. Pediu um carro e um fuzileiro para acompanhá-lo. O sargento
chamou Montenegro e lhe sugeriu que convencesse Saboia a viajar em dois
veículos. Combinaram que o carro de Montenegro o deixaria em Cochabamba; o
motorista e o fuzileiro que o acompanhavam seguiriam viagem com o encarregado
de negócios, fazendo as vezes de batedores da insólita comitiva.
“Chegou a
hora”, anunciou Saboia ao senador – um homem de menos de 1,60 metro, com
um rosto meio maroto de criança, cuja fala baixa e mansa, somada a um
temperamento emotivo, dá poucas pistas de sua larga trajetória política. Roger
Pinto não ficou surpreendido porque sabia dos planos de fuga havia alguns dias.
“Eu não sabia a hora nem o dia, mas já tinham me informado da possibilidade”,
contou. Ele avisara a filha Denise, a única pessoa do seu núcleo familiar que
permanecia na Bolívia, de que ela deveria se reunir à mãe em Brasileia, no
Acre. Só o Itamaraty não percebeu a tempestade que vinha, apesar da sucessão de
recados.
Marcel
Biato é filho de embaixador, como muitos de seus pares, e entrou no Itamaraty
há 33 anos. Moreno, com traços largos e uma calva que lhe acentua a testa, é
dono de uma verve ao mesmo tempo polida e irônica, em nada afetada pela língua
ligeiramente presa. Cinco anos antes da fuga de Roger Pinto, ele teve que
trabalhar até tarde em seu escritório no 3º andar do Palácio do Planalto. Era o
governo Lula, e Biato ocupava o segundo posto da assessoria internacional da
Presidência da República, comandada pelo professor Marco Aurélio Garcia.
A tarefa
de Biato na noite de 27 de agosto de 2008 foi ajudar a providenciar o resgate
de Evo Morales. O presidente de origem uru-aimará, que ascendera na política
como dirigente dos plantadores de folha de coca e líder do Movimento ao
Socialismo, MAS, viajava de helicóptero e havia sido impedido de
aterrissar para reabastecer nos aeroportos do estado de Beni. As pistas estavam
ocupadas por seguidores do governador local, que lhe fazia oposição. O
helicóptero presidencial fez um pouso de emergência perto da fronteira com o
Brasil. Morales então atravessou o rio Mamoré até Guajará-Mirim, em Rondônia,
onde um avião da Força Aérea boliviana iria buscá-lo. Como a pista local não
tem iluminação noturna, foi preciso clareá-la com faróis de caminhões, e o
presidente finalmente pôde voltar a La Paz.
Duas
semanas antes desse incidente, Morales havia conquistado o apoio de 67% dos
eleitores num referendo em que os bolivianos deveriam decidir se mantinham ou
não nos cargos o presidente e os governadores. Na votação, oposicionistas
também foram confirmados no governo dos quatro estados da chamada “Meia-Lua”, a
região fronteiriça ao Brasil que concentra a produção agrícola e de gás e tem
uma rivalidade histórica com o altiplano de maioria indígena.
Apesar do
veredicto salomônico das urnas, a oposição dobrou a aposta na queda de Morales.
Queria barrar outro referendo, desta vez para ratificar a Constituição aprovada
no ano anterior por uma Assembleia Constituinte de maioria governista. Os
governadores oposicionistas – apoiados por seguidores conhecidos como
“cívicos”, em geral funcionários públicos e empresários – tomaram agências de
órgãos federais, convocaram greves gerais e fecharam estradas para La Paz.
No dia 5
de setembro de 2008, partidários do governador Leopoldo Fernández, aliado de
Roger Pinto, saquearam um avião militar carregado com armas e bombas de gás
lacrimogêneo que aterrissara no aeroporto de Cobija, capital do estado de
Pando. No dia 11, agricultores pró-Morales iniciaram uma marcha para retomar a
sede em Pando do Instituto Nacional de Reforma Agrária, que havia sido ocupada
pelos cívicos. Houve confronto com os aliados de Fernández, que cavaram
trincheiras nas estradas para impedir a chegada dos manifestantes. O dia
terminou com o massacre de ao menos onze partidários de Morales. Parte deles
foi alvejada quando tentava atravessar o rio Tahuamanu para escapar do vilarejo
de Porvenir.
O
episódio desgastou a oposição e representou uma virada no conflito interno. Os
opositores, pressionados pelos países da Unasul, a União de Nações
Sul-Americanas, aceitaram um acordo com Morales para a ratificação da nova
Carta. No final de 2009, o presidente foi reeleito, obtendo maioria absoluta na
Câmara e no Senado. Roger Pinto ganhou o segundo mandato de senador. Advogado,
dono de uma fazenda de gado, ele havia sido governador biônico de Pando – os governadores
na Bolívia só passaram a ser eleitos em 2005 –, deputado e diretor da Igreja
Batista.
Depois da
reeleição de Morales, as principais figuras da oposição viraram alvo de ações
judiciais, parte delas baseada numa lei anticorrupção aprovada em 2010. A lei
mereceu reparos do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
por restringir o direito de defesa dos acusados e prever sua aplicação
retroativa – isto é, pessoas poderiam ser processadas por atividades que, na
época em que aconteceram, não eram consideradas crimes. Ministros também
processaram opositores por desacato, uma figura legal semelhante à calúnia
criada na ditadura de Hugo Banzer, nos anos 70. Muitos dos acusados conseguiram
refúgio como perseguidos políticos no Paraguai, na Espanha e no Brasil.
Biato e
Saboia assumiram uma posição cada vez mais crítica ao governo Morales,
distanciando-se da política de “paciência estratégica” que o Planalto mantinha
em relação ao vizinho. Os dois diplomatas ficaram impressionados com um vídeo
de propaganda da oposição, Sumamente Pando, segundo o qual não
teria havido um massacre em Porvenir, mas somente uma confrontação tramada por
Juan Ramón Quintana – um sociólogo e ex-militar que hoje é ministro da
Presidência e uma espécie de nêmesis da oposição boliviana – para pôr a
culpa na direita. O episódio, porém, foi reconstituído com mais fidelidade no documentário Morir
en Pando, do argentino Cesar Brie. O filme mostra que alguns participantes
da marcha pró-Morales haviam recebido armas de um aliado local de Quintana, mas
também reconstitui detalhadamente o massacre ocorrido numa emboscada armada
pelos opositores do presidente, que perseguiram os feridos dentro dos
hospitais.
Foi
nessas circunstâncias que Roger Pinto Molina bateu às portas da Embaixada do
Brasil no dia 28 de maio de 2012.
Havia
meses corriam em La Paz rumores de que o senador buscaria abrigo numa
embaixada, como forma de expor o governo Morales. A missão dos Estados Unidos
orientou seus funcionários a desencorajar qualquer abordagem do político. Roger
Pinto era um interlocutor frequente dos americanos na Bolívia, como mostram os
telegramas divulgados pelo WikiLeaks, mas eles consideravam que o opositor não
era muito confiável e tendia a fazer denúncias graves que não podia provar.
Além
disso, os interesses diretos dos Estados Unidos na Bolívia vinham diminuindo em
proporção inversa ao envolvimento brasileiro no país. Primeiro, os americanos
tinham atraído a ira popular ao patrocinar a erradicação forçada das plantações
de coca nos anos 80 e 90, justamente quando a queda do preço do estanho e da
prata provocou o fechamento das minas, deslocando milhares de bolivianos para o
cultivo da matéria-prima da cocaína. Em 2000, os protestos da “guerra da água”
derrubaram a privatização desse serviço e expulsaram do país a empresa
americana Bechtel, que iria administrá-lo em Cochabamba. Em 2003, a “guerra do
gás” barrou a construção de um gasoduto até um porto no Chile, pelo qual se
venderia gás boliviano ao México e à Califórnia. Uma campanha americana contra
Morales teve o efeito de carrear mais votos para sua eleição à Presidência, em
2005. Finalmente, apenas 1% da droga produzida na Bolívia passou a ter os
Estados Unidos como destino.
“A
Colômbia é um problema nosso, a Bolívia é um problema de vocês”, disse a um
interlocutor brasileiro o ex-embaixador em La Paz Philip Goldberg, que acabou
expulso por Morales em 2008, junto com a DEA, a agência americana de repressão
às drogas.
Roger
Pinto mantinha contato com a embaixada brasileira desde pelo menos 2008, quando
o Grupo de Amigos da Bolívia, formado por Brasil, Colômbia e Argentina, foi
criado para mediar a crise entre governo e oposição. O embaixador Marcel Biato
o conheceu logo que assumiu o posto, em setembro de 2010. Cinco dias antes do pedido
de asilo, dois correligionários do político haviam passado por Brasília.
Ciceroneados pelo senador acriano Sérgio Petecão, do PSD, eles fizeram um tour
pelo Congresso, pedindo apoio para denunciar Morales na Comissão Interamericana
de Direitos Humanos. Os mesmos parlamentares tinham audiência marcada na
Embaixada do Brasil na manhã do dia 28 de maio, uma segunda-feira. O senador se
juntou ao grupo.
Recebido
por Biato e Eduardo Saboia, o opositor entregou duas cartas – uma para o
embaixador e outra para Dilma – pedindo refúgio. Para pleitear essa modalidade
de proteção, ele deveria estar no Brasil, mas disse que cruzar a fronteira não
atenderia seu objetivo: “Vão dizer que lá vai outro ladrão, corrupto,
assassino. Não vou pular a cerca.” O senador não escondeu – e as autoridades em
Brasília foram informadas disso – que pretendia protagonizar um ato político.
O governo
brasileiro passou então a analisar a possibilidade de que lhe fosse concedido
asilo diplomático – uma decisão que cabe à Presidência da República, enquanto o
pedido de refúgio é analisado pelo Comitê Nacional para os Refugiados, o
Conare, ligado ao Ministério da Justiça.
Roger
Pinto apresentou um arrazoado em que constavam 21 ações judiciais contra ele,
das quais seis por desacato, quatro por crimes ambientais e cinco por
corrupção. A lista incluía a acusação de assassinato no episódio de Porvenir,
mas não existe processo formalizado nesse caso; segundo o senador, uma
agricultora que o incriminara encaminhou ao juiz uma carta voltando atrás. (Em
outubro de 2012, o delito de desacato foi extinto pelo Tribunal Constitucional,
a corte boliviana equivalente ao Supremo Tribunal Federal. O governo
Morales contabiliza hoje cinco ações contra o opositor, todas sob a acusação de
corrupção.)
O
prontuário do político enumerava ainda seis dossiês dele contra o governo. O
mais conhecido, de abril de 2011, acusava autoridades como Quintana de
envolvimento no tráfico de cocaína.
Dois dias
depois do ingresso do senador na embaixada, Biato esteve com Evo Morales, numa
audiência que já estava marcada. Ao comentar o assunto Roger Pinto, o
presidente boliviano, cuja fisionomia é habitualmente inescrutável, disse que
as relações entre Bolívia e Brasil estavam acima de qualquer consideração.
Muitos acham que Biato interpretou mal essa declaração. “Foi autoengano achar
que o Evo respeitaria a tradição latino-americana de asilo. A prioridade dele é
a política interna”, me disse um diplomata que acompanhou o affaire e
o definiu como “uma sequência de erros”.
Logo
depois desse encontro, o chanceler Antonio Patriota recomendou a Dilma a
concessão do asilo. Não deixou de registrar que a decisão era politicamente
delicada e a reação boliviana, incerta. Marco Aurélio Garcia apoiou o asilo na
época.
Uma
dúvida ainda dividiu o governo brasileiro. Tratava-se de constatar se o caso de
Roger Pinto configurava uma situação de urgência, como demanda a Convenção de
Caracas, base legal do asilo diplomático. A afirmação do senador de que vinha
sendo ameaçado por grupos paramilitares era difícil de verificar. O opositor
citava um episódio de 2009, quando um sicário de Pando teria lhe confessado que
recebera uma proposta em dinheiro para matá-lo. Na época, o político contou a
história a diplomatas americanos, que anotaram num telegrama: “É bem possível
que Pinto tenha pago [Busher] Alpire [o pistoleiro] para tornar
públicas suas acusações, mas isso não quer dizer necessariamente que elas
não tenham nenhuma base.”
De
qualquer maneira, a regra não escrita de que o asilo deve ser isonômico em relação
à coloração política do beneficiário também pesou para a decisão de Dilma. Em 6
de junho de 2012, dois dias antes do anúncio oficial no Brasil, o senador e o
governo boliviano foram comunicados de que o pedido havia sido aceito. O
Itamaraty instruiu a embaixada a avisar Roger Pinto de que deveria se abster de
manifestações públicas. Recomendou que as visitas se restringissem a advogados
e à família. Biato deveria pedir o salvo-conduto para que o asilado pudesse
sair do país. Seria um roteiro de manual, mas raramente é assim que as coisas
funcionam.
Como
Marcel Biato, Eduardo Saboia é filho e neto de diplomatas. Magro e alto, com um
nariz fino num rosto também afilado, usa barba há anos. Sua aparência de
sacerdote, sua fé católica, seu currículo de bom aluno e diplomata disciplinado
contribuíram para o tratamento de herói que recebeu de parte da opinião pública
quando trouxe Roger Pinto para o Brasil. Sua mulher, Saide, que é oficial de
chancelaria e atuava como vice-cônsul em Santa Cruz de la Sierra, diz que o
marido é “irritantemente calmo”.
A avó
materna de Saboia contava que, quando o marido serviu em Quito, nos anos 30,
havia um quarto na casa preparado para os asilados. O histórico de golpes já
fizera do asilo diplomático uma tradição latino-americana antes de ser
formalizado em convenções regionais, a mais recente delas a de Caracas, de
1954. Como candidatos a asilo são em geral alvo de ações judiciais, o documento
prevê que cabe ao país que concede o benefício “classificar a natureza do delito”
e decidir se os fatos que embasam o pedido “se revestem claramente de caráter
político”.
A
tradição não impede que quase todo asilo – diplomático ou territorial, se o
contemplado já estiver no país ao qual pede proteção – dê razões à
controvérsia. Houve celeuma quando Lula concedeu o asilo a Cesare Battisti,
depois de livrá-lo da extradição para a Itália. Também houve quando a embaixada
brasileira em Quito recebeu o presidente Lucio Gutiérrez, um coronel reformado
do Exército que tinha acabado de ser deposto pelo Congresso.
No dia 20
de abril de 2005, Gutiérrez fugiu de helicóptero do palácio presidencial
cercado de manifestantes. Havia uma ordem de prisão contra ele, por causa da
repressão a protestos iniciados semanas antes. O presidente deposto rumou para
o aeroporto, de onde pretendia decolar para sua cidade natal, a amazônica Tena.
Quando o jatinho que o levaria taxiava na pista, a multidão invadiu o local.
Prestes a ser apanhado, Gutiérrez telefonou para o embaixador do Brasil, Sergio
Florêncio, e pediu asilo. Depois de consultar o Itamaraty, Florêncio disse a
Gutiérrez que o esperaria no portão de casa. O fugitivo avisou que estaria num
Chevette. O embaixador não o viu quando o carro chegou, até que o motorista fez
um gesto para trás com
o indicador. O portão foi aberto e o asilado saltou do porta-malas. Horas
depois, a casa foi cercada por manifestantes.
Devido à
pressão popular, o governo interino do Equador demorou quatro dias para
permitir a saída de Gutiérrez do país – a Convenção de Caracas estipula que o
salvo-conduto deve ser dado imediatamente, “salvo caso de força maior”. Nesse
meio tempo, a pressão brasileira foi intensa. Lula mandou o “Sucatinha”, o
então recém-aposentado Boeing presidencial, buscar o asilado em Quito, mas o
avião não teve autorização para pousar e precisou esperar em Porto Velho.
“Todo dia
eu ia à Chancelaria equatoriana pedir o salvo-conduto. Ele foi resultado de
gestões minhas diárias, muitas vezes mais de uma vez. E de telefonemas do
chanceler [Celso] Amorim para o novo chanceler equatoriano, de
telefonemas ao presidente interino”, contou Florêncio.
No caso de
Roger Pinto, não houve Sucatinha nem ligações em série de altas autoridades de
Brasília para La Paz. No início, o Itamaraty achava que havia uma “negociação
fluida” com a Bolívia. Mas logo o vice-presidente Álvaro García Linera –
sociólogo e matemático, ex-guerrilheiro, na prática o primeiro-ministro –
chamava a decisão brasileira de “desatinada”. Morales disse que o Brasil
protegia um “delinquente”.
Apesar da
tensão, nem o Planalto nem o Itamaraty intervieram diretamente nas tratativas
para a liberação do asilado, que continuaram nas mãos de Marcel Biato. Ele
tentou, primeiro, articular uma conversa entre Morales e o ex-presidente Lula,
veterano conhecedor dos humores do boliviano. A ideia era aproveitar a presença
dos dois na conferência Rio+20, em meados de junho de 2012. Lula – que na época
teve que fazer uma biópsia e cancelou a maior parte dos encontros que teria no
evento – diz hoje que não recebeu esse pedido e que ele e Morales nunca falaram
do assunto.
No início
de julho, a revista Veja publicou uma manchete em que chamava
a Bolívia de “República da cocaína”. A embaixada brasileira atribuiu o texto a
gestões de Roger Pinto. A revista citava como fonte informes da polícia vazados
por um político insatisfeito do mas, o partido de Morales. Seu conteúdo
coincide com o dossiê divulgado pelo opositor em 2011.
Logo
depois, ministros de Morales anunciaram que não dariam o salvo-conduto a um
“criminoso comum”. A Bolívia nunca tinha impedido a saída de um asilado
diplomático, mas formalmente o governo passou a alegar que o país tinha
assinado, mas não tinha ratificado a Convenção de Caracas – na prática, dizia
que não poderia recorrer a um compromisso internacional para ir contra decisões
da Justiça local a respeito do senador.
O
opositor reagiu divulgando uma carta em que acusava Morales de abuso do poder e
propunha uma “anistia geral como base da reconciliação nacional”. Brasília
cogitou expulsar o político da embaixada por causa desse documento – a
Convenção de Caracas diz que o asilado não pode “intervir na política interna
do Estado territorial”. Roger Pinto acabou advertido de que correria esse risco
se repetisse gesto parecido.
Naquela
altura, o senador, que inicialmente dormiu no escritório de Saboia, já estava
instalado na antiga sala de comunicações da embaixada, um espaço de 20 metros
quadrados onde recebia visitas da filha Denise, do advogado, e também de
amigos, pastores e correligionários. A sala foi mobiliada com um armário, uma
cama de viúva, uma mesa pequena, um sofá de três lugares, cadeiras e um
frigobar. O asilado levou notebook, tablet e celular. Em duas paredes havia
janelas, mas elas não podiam ser abertas. O cômodo não tinha banheiro, e o
senador partilhava o dos fuzileiros navais, no corredor de acesso à sala.
Era claro
que a negativa do salvo-conduto não se devia a razões legais, mas políticas.
Para contornar o constrangimento que a decisão brasileira causava a Morales –
os casos anteriores de asilo aconteceram no calor de golpes ou durante
ditaduras –, a embaixada em La Paz propôs soluções menos convencionais. Numa
delas, a ida de Roger Pinto para o Brasil seria atribuída a uma doença grave, e
em seguida Dilma anunciaria sua primeira visita a La Paz – o fato de a
presidente nunca ter ido ao país era uma reclamação constante dos bolivianos. A
ideia ficou sem resposta de Brasília.
Biato
passou então a negociar a remoção do asilado para um terceiro país – foi
cogitado o Uruguai –, de onde ele, em tese, poderia depois vir para o Brasil.
As tratativas foram interrompidas pelos bolivianos. Eles insistiam numa visita
de Marco Aurélio Garcia, mas pareciam menos inclinados a negociar do que a
convencê-lo a revogar o asilo. Garcia diria depois que sua saúde – ele foi
operado do coração no início de 2013 – o impedia de enfrentar os quase 4 mil
metros de altitude de La Paz.
Em meio à
crise, o governo brasileiro concedeu o agrément para a
instalação do novo embaixador da Bolívia em Brasília, Jerjes Justiniano Talavera.
Normalmente, essa autorização formal é automática, mas nesse caso a decisão
desagradou aos diplomatas brasileiros em La Paz, para os quais o Planalto
poderia ter atrasado a aprovação como forma de pressão. Ministros de Morales
atacavam Biato, chamado de “porta-voz político” da direita. O embaixador se
ressentiu da falta de reação de Brasília a esses ataques.
O caso
tinha mergulhado num impasse quando, em dezembro de 2012, Brasília sediou a
cúpula semestral do Mercosul, na qual Morales assinou um protocolo de adesão da
Bolívia ao bloco, do qual o país é hoje membro associado, sem obrigações
comerciais. O Itamaraty pediu que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo,
falasse da questão Roger Pinto com a ministra da Justiça boliviana, Cecilia
Ayllón. Na conversa, presenciada por um diplomata, Ayllón sugeriu que a Bolívia
faria vista grossa se o Brasil retirasse o asilado pela fronteira com
Desaguadero, no Peru, a uma hora e meia de carro de La Paz.
Dilma se
recusou a resolver a questão com um acordo informal. “É inadmissível”, disse.
Era o salvo-conduto ou nada. A presidente proibiu Cardozo de tratar do
problema: “Quem cuida disso é o Itamaraty.”
Enquanto
o senador esteve na embaixada, Dilma e Morales se encontraram mais cinco vezes
em eventos internacionais, a última delas na Jornada Mundial da Juventude, já
no final de julho de 2013, quando o presidente boliviano veio assistir à missa
do papa Francisco em Copacabana. Só existe certeza de que discutiram o tema
Roger Pinto uma vez, em fevereiro de 2013, na Cúpula América do Sul–África em
Malabo, na Guiné Equatorial, e por iniciativa de Morales.
Os
bolivianos são conhecidos como negociadores difíceis. “Há uma herança de
ressentimentos do passado – eles perderam o acesso ao Pacífico, perderam o Acre
–, somada ao estilo dos dirigentes”, disse o embaixador aposentado Rubens
Ricupero, um estudioso da história diplomática.
Em
fevereiro de 2007, Evo Morales fez uma de suas visitas a Lula. Antes da viagem,
disse que só voltaria a La Paz com um acordo para aumentar os pagamentos da
Petrobras à Bolívia. No ano anterior, seu governo havia nacionalizado a
exploração dos hidrocarbonetos – determinara, na verdade, um aumento dos
impostos e royalties pagos pelas companhias estrangeiras. Agora, Morales
cobrava um valor adicional pelo gás fornecido por meio do gasoduto
Brasil–Bolívia. Tratava-se de remunerar o “gás rico”, os componentes do produto
que podem servir para a indústria petroquímica, mas que o Brasil não utiliza
com esse fim.
Quando
terminou o almoço oferecido por Lula, no Palácio do Itamaraty, Morales fez o
que prometera – ficou ali. Ele se instalou no gabinete do chanceler Amorim,
sugestivamente decorado com uma tapeçaria que mostrava um mapa-múndi invertido,
com a África e a América do Sul em cima. O entendimento saiu quase de
madrugada, contra a vontade da Petrobras.
Esse
acordo virou um dos muitos problemas bilaterais. A Petrobras teria que pagar de
100 milhões a 180 milhões de dólares a mais por ano pelo “gás rico”, mas só o fez
uma vez, em 2009, e não passa um dia sem que a Bolívia cobre a dívida. “É
irônico que o Brasil, um país rico, deva tanto a um país tão pobre como a
Bolívia”, disse Jerjes Justiniano, o embaixador boliviano em Brasília, um
senhor de bigodes volumosos, retórica ardilosa e temperamento efusivo.
O gás
boliviano supre hoje em torno de 35% do consumo brasileiro. Em longo prazo, a
Bolívia até depende mais do Brasil, que compra 70% de suas exportações
gasíferas, mas a pendência do “gás rico” tem sido usada, por exemplo, na
barganha sobre a termelétrica de Cuiabá. O fornecimento de combustível para
essa usina alugada pela Petrobras é objeto de um acordo separado, de curto
prazo. Em março deste ano, a Bolívia cortou o suprimento. O novo contrato, que
garante gás apenas até agosto, só foi assinado mais de quinze dias depois.
No dia em
que conversamos, Justiniano vestia terno mostarda e gravata vermelha, traje que
remeteu à bandeira multicolorida do Estado Plurinacional da Bolívia içada na
fachada da embaixada, um sobrado modesto no Lago Sul. De pé em seu gabinete,
apontando para dois mapas pendurados na parede, um da Bolívia e outro da
América do Sul, ele fez uma preleção sobre a relação de seu país com o Brasil.
A
população boliviana, de pouco mais de 10 milhões, é 5,2% da brasileira. O país,
apesar do crescimento dos últimos anos – a administração das contas públicas
recebeu elogios do Fundo Monetário Internacional –, continua sendo o mais pobre
da América do Sul. Dos dez países com os quais o Brasil tem fronteiras, os 3
423 quilômetros que o separam da Bolívia constituem a mais extensa, grande
parte dela demarcada por rios.
Devido à
amplidão da fronteira, o narcotráfico é outra dor de cabeça. Segundo a ONU, a
Bolívia tem hoje 23 mil hectares de plantações de folha de coca, a menor área
desde 2002. Pouco mais da metade desse cultivo é autorizado para consumo
tradicional; cerca de 50% das folhas são vendidas no mercado ilegal. Passa pelo
Brasil perto de 60% da cocaína produzida no país, que também é rota da droga
que vem do Peru.
Na
campanha presidencial de 2010, o assunto foi explorado pelo tucano José Serra,
que chamou o governo Morales de “cúmplice” do tráfico. Diante do barulho
político, o Planalto propôs um acordo de cooperação antidrogas, assinado em
2011, que prevê o treinamento de policiais bolivianos e o compartilhamento de
inteligência. Planejou-se também o uso de aviões não tripulados da Polícia
Federal em território boliviano, mas a Bolívia ainda precisa resolver problemas
técnicos de controle do seu espaço aéreo.
“Todos os
dias há mortos na fronteira entre México e Estados Unidos. O Exército mais rico
do mundo não pode com os traficantes em sua fronteira, e pedem a nós que
terminemos com o tráfico de drogas quando não temos mais que cinco helicópteros
para percorrer quilômetros e quilômetros?”, queixou-se Justiniano.
Como
parte do material que preparou sobre o caso Roger Pinto, o embaixador me
entregou uma cópia da Convenção de Caracas. Leu em voz alta o artigo que afirma
que o asilo não pode ser dado a pessoas processadas por crimes comuns. Chamei
atenção para o aposto da frase – “salvo quando os fatos que motivam o pedido de
asilo [...] tenham claramente caráter político” –, mas Justiniano não cedeu. Em
tom dramático, declarou:
“Eu
estive asilado, senhora. Vivi sete anos no Peru durante a ditadura de Banzer,
em 1971 pedi asilo. Tive que ir de Santa Cruz a La Paz num caminhão, disfarçado
de ajudante, com chullo [o gorro de lã com tapador de
orelhas], com tudo. Entrei na embaixada, mas não poderia ter entrado se não
tivesse falado previamente, pedindo que me recebessem. O caso do senhor Pinto
foi premeditado. Não foi um homem que estava sendo perseguido e entrou numa
embaixada.”
No início
de 2013, Roger Pinto estava esquecido. Havia então na Bolívia uma campanha de
educação no trânsito encenada por pessoas vestidas de zebra. Os funcionários da
embaixada faziam piada, dizendo que iam tirar o senador disfarçado com a mesma
indumentária. Foi então que um assunto muito mais palpitante para
telespectadores e políticos brasileiros – a prisão de doze torcedores do
Corinthians em 20 de fevereiro, acusados de matar com um sinalizador de navio o
adolescente boliviano Kevin Espada, de 14 anos, durante um jogo em Oruro pela
Taça Libertadores da América – fez o Brasil redescobrir o caso.
No final
de março, o senador capixaba Ricardo Ferraço viajou à Bolívia para se inteirar
da situação dos torcedores. Ferraço – que, tal qual o colega boliviano, tem um
rosto de garoto – é do PMDB “não alinhado” à cúpula do partido que apoia Dilma.
Quando foi a La Paz, tinha acabado de assumir a presidência da Comissão de
Relações Exteriores do Senado. Estava determinado a “dar protagonismo” ao
espaço, que antes, disse, se prestava à mera “sabatina de embaixadores”.
Naquela
altura, um garoto de 17 anos havia sido apresentado pela torcida Gaviões da
Fiel como autor do disparo do sinalizador, mas os corintianos continuavam
detidos (os últimos do grupo só seriam libertados em agosto). Eduardo Saboia
era o responsável por assisti-los, e fazia com frequência o percurso de três
horas e meia entre La Paz e Oruro. Ferraço o acompanhou numa dessas viagens,
ouviu seus lamentos e ficou sabendo de Roger Pinto. Na volta a La Paz,
conversou com o colega boliviano. Prometeu-lhe fazer barulho no Brasil sobre o
assunto.
Três
semanas antes de Ferraço, havia passado por La Paz um grupo da Comissão
Parlamentar de Inquérito do Trabalho Escravo, que investigava as redes de
aliciamento de bolivianos para confecções no Brasil. No aeroporto, os deputados
eram esperados por Marcel Biato e por Jerjes Justiniano. Cláudio Puty, do PT do
Pará, presidente da CPI, embarcou no carro do boliviano, que lhe disse em tom
de confidência: “Nós temos um problema.” Era o asilado, de cuja presença na
embaixada Puty nem tinha conhecimento.
O deputado
foi levado para o Palacio Quemado. Lá, foi recebido pelo ministro Ramón
Quintana no gabinete de Morales, que estava em Caracas para o enterro de Hugo
Chávez. “Nesta mesa”, começou Quintana, “fechamos o acordo de hidrocarbonetos
com Lula e Amorim.” Em seguida, queixou-se de que o diálogo com o Brasil já não
era mais o mesmo, e que a embaixada brasileira estava fazendo o papel antes
desempenhado pela americana.
Quintana
contou a Puty que, na reunião com Dilma em Malabo, três semanas antes, Morales
tinha reclamado que Roger Pinto mantinha atividades políticas na embaixada,
“despachando e dando entrevistas”. A presidente, segundo o relato do boliviano,
demonstrou surpresa. Há versões de que, depois dessa conversa, Dilma teria dito
ao chanceler Antonio Patriota que não queria mais que o asilado viesse para o
Brasil. O que há de certo é que ela mandou que Patriota fosse à Bolívia tratar
da questão pessoalmente: “Vai e resolve.”
Terminado
o encontro com Quintana, Puty foi à casa do embaixador, que oferecia um jantar
para os visitantes. Encontrou um ambiente tenso. O deputado Ivan Valente, do
PSOL de São Paulo, estava de pé discutindo com a mulher de Saboia, que por sua
vez aparentava constrangimento. “Ela tratou a Bolívia com desprezo e
preconceito”, disse Valente. Os diplomatas atacavam o país vizinho; os
parlamentares defendiam. Puty ficou convencido de que o asilo tinha sido um
“erro político colossal”. “Quem foi pouco pragmático e muito ideológico foram
os diplomatas lá.”
No início
de abril, a revista CartaCapital publicou uma entrevista em
que Quintana detalhava os processos contra Roger Pinto e acusava Biato de ter
enviado ao Brasil informações parciais sobre o oposicionista. Naquela altura,
porém, Patriota já tinha oferecido a cabeça do embaixador à Bolívia.
O temperamento
brusco de Dilma e o estilo formal de Antonio Patriota nunca deram liga. O
ex-ministro praticamente nasceu no Itamaraty – é filho de diplomata e dois de
seus quatro irmãos seguiram a carreira. Volta e meia pipocavam notícias das
carraspanas que levava da presidente, até por coisas que não controlava. Em
março de 2013, na cúpula dos Brics na África do Sul, ele foi admoestado porque
o presidente Jacob Zuma deixou Dilma esperando uma hora enquanto confabulava
com o russo Vladimir Putin.
As
diferenças não eram apenas de gênio. Faltava sintonia na concepção da política
externa. Patriota, que foi chefe de gabinete de Celso Amorim, fez carreira em
instituições multilaterais como a ONU. Aos grandes temas políticos, Dilma
preferia programas que podiam ser controlados com planilhas, como o Ciência sem
Fronteiras – ficou célebre seu discurso para os formandos de 2012 do Instituto
Rio Branco, em que pediu mais engenheiros, matemáticos e físicos no Itamaraty.
As
preferências da presidente foram reforçadas pelo novo contexto internacional e
interno. O deslumbramento com os emergentes esmaeceu; o crescimento do país
diminuiu. Dilma cortou a possibilidade de o Brasil continuar nas negociações
sobre o programa nuclear no Irã e deixou de bater na tecla da candidatura ao
Conselho de Segurança. Quando tomava decisões diplomáticas de impacto, ela o
fazia à revelia do Itamaraty. A lista inclui a retirada do embaixador
brasileiro da Organização dos Estados Americanos em 2011, quando a Comissão de
Direitos Humanos da entidade pediu que fosse interrompida a construção da
hidrelétrica de Belo Monte; e a suspensão do Paraguai do Mercosul depois
do golpe parlamentar que depôs o presidente Fernando Lugo, em 2012.
O
Itamaraty perdeu dinheiro. Com o contingenciamento deste ano, o valor nominal
do orçamento do ministério – 871,5 milhões de reais – ficou menor do que o dos
gastos em 2009. O número de vagas abertas no concurso para novos diplomatas,
que chegou a 100 por ano no segundo mandato de Lula, baixou a trinta sob Dilma
e neste ano foi de apenas dezoito. A presidente também cortou drasticamente a
verba para projetos de cooperação técnica, coordenados pelo Itamaraty e
realizados por órgãos como a Fiocruz e a Embrapa, que Lula havia promovido em
países pobres.
A
política externa passou a ser atacada à direita e à esquerda. Os tucanos –
antes críticos contumazes da dupla Lula–Amorim – agora repetem que a diplomacia
“encolheu”. O recuo em relação ao ímpeto de protagonismo anterior, sem que a
presidente definisse bem o que pôr no lugar, abriu espaço no Itamaraty para os
proponentes de uma política mais conservadora e dura com os vizinhos
bolivarianos, como a que Saboia e Biato passaram a defender. “Uma coisa é
diminuir seu perfil na área multilateral; outra é diminuir o perfil na região
imediata – os problemas continuam porque nossa relação é estrutural”, disse o
diplomata que acompanhou o caso Roger Pinto.
Um
chanceler diplomata, como é comum no Brasil, não tem base na sociedade. Seu poder
depende do presidente. O desprestígio de Patriota se refletiu no seu comando
sobre a burocracia do ministério e no seu relacionamento com o resto do
governo. Ele relutava em dar más notícias a Dilma e atrasava instruções aos
postos. “Se o presidente da República diz que você é o melhor chanceler do
mundo, quando você vai falar com o ministro da Agricultura, fala como o melhor
chanceler do mundo. Sem essa injeção regular de elogios, você vai se
enfraquecendo”, disse um embaixador da ativa com mais de quarenta anos de
Itamaraty.
É hábito
atribuir o problema ao estilo de Dilma. A despeito disso, Patriota também
careceu de experiência e instinto políticos. Há quem caracterize o chanceler
como um técnico cuja missão é zelar pela herança do barão do Rio Branco. Isso
está longe da verdade, disse o embaixador veterano. “Faltou ao Patriota
conhecimento prático do Brasil, da burocracia, da política, dos jornais.” Ou,
segundo outra definição corrente, como chanceler ele foi um ótimo embaixador.
Nenhuma
saída ortodoxa para o affaire Roger Pinto surgiu da viagem que
Dilma mandou Patriota fazer à Bolívia depois das reclamações de Morales em
Malabo. Na primeira hora, os bolivianos reafirmaram que não dariam
salvo-conduto nem “garantias de segurança” – na formulação eufemística proposta
pelo Brasil – para a saída do asilado.
O
encontro aconteceu em 2 de março de 2013, no casarão colonial que sedia o
governo de Cochabamba. Antes da reunião, Patriota mandou a La Paz um diplomata
graduado. Ele visitou o asilado e iria se avistar com a embaixadora da
Venezuela, mas ela tinha viajado para Caracas. Da tentativa de encontro surgiu
a versão de que Roger Pinto poderia ser levado para a Venezuela – na
sindicância sobre o caso, Patriota disse que pretendia pedir ajuda para convencer
Morales a deixar o senador sair do país.
Marcel
Biato e Eduardo Saboia foram barrados no encontro, ao qual compareceram o
próprio Morales e Quintana. Foi então que Patriota, na prática, destituiu o
embaixador do cargo – disse-lhe que sua situação estava insustentável e lhe
ofereceu outros postos. Biato continuou em La Paz, mas perdeu toda a
autoridade. Na falta de acordo, foi criado um grupo de trabalho sobre o
asilado.
Depois de
Cochabamba, a guerra de nervos entre Patriota e a embaixada recrudesceu. O chanceler
determinou, agora sem contemporizações, que o asilado só poderia receber
advogados e parentes. Ele alegava que era preciso cumprir estritamente a
Convenção de Caracas, mas Biato e Saboia, citando outros documentos
internacionais e a legislação prisional brasileira, diziam que os direitos
humanos do senador estavam sendo violados, e que a pressão tinha o objetivo de
forçá-lo a desistir do asilo.
Enquanto
isso, o senador Ferraço mantinha contato com a embaixada. Cumprindo a promessa
que fez em La Paz, tratou de chamar atenção para o assunto. Numa audiência no
Senado em 4 de abril, Patriota foi questionado. “A integridade física [do
asilado] não será posta em risco. Isso é compromisso da presidenta Dilma”,
declarou o ministro, que defendeu as restrições de visita a Roger Pinto e disse
que o sigilo contribuiria para o sucesso das negociações com a Bolívia.
O
segredo, de fato, foi completo. Ao contrário do que é praxe no Itamaraty, nada
foi registrado no papel enquanto o grupo de trabalho funcionou. A embaixada em
La Paz não era informada do seu andamento, e tampouco a Presidência recebia
relatórios por escrito.
Os
negociadores trafegaram por caminhos inusitados. Os bolivianos alegavam que não
havia mandado de prisão contra Roger Pinto, que ele tinha imunidade parlamentar
e podia circular livremente. Só não podia sair do país porque havia uma ordem
judicial, o arraigo, que o proibia. Eles sugeriram que o opositor
fosse ao Tribunal Constitucional pedir a suspensão dessa medida.
Os
brasileiros quiseram saber se um representante da Justiça poderia ir à
embaixada resolver a questão. Diante da resposta positiva, no início de maio
Patriota enviou um emissário a La Paz com uma lista de perguntas
“exploratórias” a serem feitas ao senador. A mensagem sem assinatura, entregue
num envelope lacrado, instruía Biato a saber de Roger Pinto se ele estava
disposto a assinar uma carta a Dilma abrindo mão do asilo. Caso o aceitasse, o
senador receberia os emissários do Judiciário para tratar da suspensão do arraigo.
A ideia era
que o político fosse então levado a um terceiro país – o Brasil chegou a
consultar o Uruguai; os bolivianos insistiam no Peru. Era a hipótese do destino
neutro que chegou a ser negociada por Biato em 2012, mas no ano anterior não
estava previsto que Roger Pinto perdesse a proteção brasileira antes de sair da
Bolívia (ele a perderia depois). O asilado recusou a proposta. Disse que, como
advogado, não acreditava que o arraigo seria suspenso.
Com essa
negativa, as negociações estancaram – e se tornaram ainda menos promissoras
quando, no final de junho, o senador foi condenado, pela primeira vez, a um ano
de prisão. No processo, ele é acusado do desvio de fundos da Zona Franca de
Cobija para a Universidade Amazônica de Pando, uma instituição privada. Em sua
defesa, afirma que a transferência do dinheiro foi aprovada por um colegiado.
Enquanto
as negociações secretas patinavam, mais um personagem entrou em cena. Em abril
de 2013, o advogado Fernando Tibúrcio Peña foi procurado pelo documentarista
baiano Dado Galvão, diretor de Conexão Cuba–Honduras, cuja
personagem principal é a blogueira cubana Yoani Sánchez. Galvão tentava
entrevistar Roger Pinto na embaixada em La Paz para seu novo filme, Missão
Bolívia, e não foi autorizado pelo Itamaraty. Queria a ajuda de Tibúrcio
para conseguir a permissão na Justiça.
Tibúrcio
é um personagem típico de Brasília, que trafega por todas as faixas do espectro
político. Já defendeu o petista Ricardo Berzoini, hoje ministro de Relações
Institucionais; é amigo de Sigmaringa Seixas, outro petista, mas é avesso à
política externa do governo, que “não consegue ser crítica com os pares
ideológicos” do pt. Boa praça, com um forte sotaque de Uberlândia, onde nasceu,
ele conversa com a veemência de quem sustenta uma tese no tribunal.
O
advogado não conhecia o caso do asilado e se interessou. Entrou em contato com
Roger Pinto e acertou defendê-lo no Brasil. Em maio, entrou com uma ação no STF
pedindo um habeas corpus extraterritorial para o político. A
ação propunha justamente o que aconteceu depois: que a embaixada fornecesse um
carro diplomático – território brasileiro – para que o senador fosse trazido ao
Brasil.
A
proposta teve parecer contrário da Procuradoria Geral da República, mas ainda
esperava uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello quando, no início de
julho, o avião de Morales foi impedido de entrar no espaço aéreo de vários
países europeus, que atenderam um pedido dos Estados Unidos. O presidente
boliviano voltava de Moscou e faria uma escala para reabastecimento em Lisboa.
Sem combustível, teve que fazer um pouso de emergência em Viena. O ex-espião
Edward Snowden, que revelara a extensão da espionagem cibernética da Agência de
Segurança Nacional americana, estava na época retido no aeroporto da capital
russa. Como Snowden pedira asilo a vários países latino-americanos, Washington
achava que ele pudesse estar no voo de Morales.
O
incidente dominou a cúpula do Mercosul que aconteceu logo depois, em
Montevidéu. Os presidentes condenaram a agressão ao colega boliviano e
defenderam o direito de asilo. “É fundamental assegurar que seja garantido o
direito dos asilados de transitar com segurança até o país que tenha concedido
o asilo”, disse o comunicado, assinado por Dilma e Morales. O texto citava
Snowden, mas não o opositor boliviano.
Com
um timing perfeito, Tibúrcio então vazou para a imprensa uma
informação que era conhecida da embaixada em La Paz, mas vinha sendo mantida em
segredo pelo governo: a de que o avião de Celso Amorim, agora ministro da
Defesa, tinha passado por uma revista não autorizada na Bolívia. Havia um
paralelo com o caso de Morales: ambos foram violações da imunidade diplomática
de autoridades de Estado.
“O Evo,
pela primeira vez, pediu desculpas públicas ao Brasil. Certamente o Eduardo [Saboia]
levou isso em conta na avaliação do risco de tirar o senador de lá. Nunca um
policial vai revistar um carro diplomático depois desse escândalo”, disse
Tibúrcio.
Quando
anunciou a Roger Pinto que era hora de partir, no início da tarde de
sexta-feira, 23 de agosto, Saboia já tinha providenciado fraldas geriátricas
para a viagem (os passageiros dizem que elas não chegaram a ser usadas), além
de água mineral, frutas e barras de cereais. Antes de deixar a embaixada, ele
escreveu sua última mensagem de La Paz, informando da decisão de remover o
asilado por razões médicas. Manuel Montenegro, o terceiro diplomata mais
graduado da missão, deveria enviá-la ao Itamaraty assim que a comitiva cruzasse
a fronteira. Quando se separou do grupo em Cochabamba, Montenegro informou os
adidos militares da fuga.
Os dois
carros saíram da embaixada às três horas da tarde. Para evitar rastreamento,
todos desmontaram seus celulares. Os únicos aparelhos eletrônicos ligados na
viagem foram dois walkie-talkies, para a comunicação entre a
primeira Nissan Patrol e a segunda, que levava Saboia e Roger Pinto. Com
pressão alta, o político passou mal e vomitou no primeiro terço da viagem, um
caminho sinuoso pela serra. Saboia, que pouco antes tinha se tratado de uma
labirintite, deu um remédio seu para o político, que apagou.
A
caravana foi parada ao menos doze vezes em barreiras policiais e militares, a
primeira delas ainda em La Paz. O fuzileiro naval no carro da frente explicava
que o embaixador, que ia atrás, não queria ser incomodado. Na região produtora
de coca do Chapare, já à noite, os policiais insistiram em falar com Saboia,
que baixou “três dedos” do vidro da camionete. O senador não foi reconhecido ou
não foi avistado.
Depois
que a serra acaba, a estrada até Corumbá é boa, com trechos inaugurados
recentemente. Por um acordo especial, não existe controle migratório na
fronteira. Os carros não foram detidos pelos policiais do lado boliviano; no
Brasil, havia apenas agentes da Receita, que pediram os documentos dos
ocupantes e os deixaram passar.
A
comitiva entrou na cidade no fim da manhã de sábado, dia 24. No que se revelou
um problema para ele, Saboia não levou o senador ao médico. Foram todos para o
Santa Mônica, um hotel meio decadente em Corumbá.
Antes de
sair para o almoço, Saboia avisou Biato que estava no Brasil com Roger Pinto. O
embaixador deu a notícia a Patriota, que achou, no início, que a vinda do
asilado tinha sido combinada com a Bolívia. Quando recebeu o laudo médico do
senador, dois dias antes, ele tinha pedido a um diplomata que telefonasse para
a Chancelaria boliviana com o recado de que já havia passado da hora de
resolver a questão. Como a embaixada não era informada dessas gestões, não
soube do telefonema. Patriota achava – e disse para Dilma – que o político
seria levado para um hospital. Biato também falou com Marco Aurélio Garcia, que
ficou de conversar com a presidente. Os dois não se falaram mais.
Do
Itamaraty, Saboia recebeu a ordem de não falar com jornalistas. Sugeriram-lhe
que levasse o político para uma clínica, mas ele disse que Roger Pinto estava
descansando em seu quarto de hotel. A essa altura, o Planalto estava
mobilizando os ministros Cardozo e Alexandre Padilha, da Saúde, para saber se o
boliviano tinha passado por algum hospital. Informado de que o político estava
no hotel, Cardozo acionou a Polícia Federal. Agentes assumiram a segurança do
recém-chegado, que protocolou ali mesmo um pedido de refúgio.
No início
da noite, Roger Pinto foi examinado por um médico, que constatou pressão alta e
taquicardia. “Eu estava muito doente, fazia mais de quinze dias que não comia
direito”, disse ele. Nesse momento, Ricardo Ferraço já estava a caminho de
Corumbá, num jato emprestado de um amigo, para buscar o colega boliviano. O
senador brasileiro vinha conversando com Saboia, por telefone e e-mail. “Ele
não tinha a quem mais recorrer.”
O
diplomata diz hoje que não pretendia entregar Roger Pinto aos cuidados de
Ferraço, e que telefonou para o político capixaba quando percebeu que seria
punido. “Soube que queriam a minha cabeça. Aí liguei para o Ferraço, que era
uma autoridade. Eu tinha que dar minha versão porque ele sabia o que eu estava
enfrentando. Ele se ofereceu para pegar um avião, ir lá.”
Roger
Pinto aterrissou em Brasília na madrugada de domingo, e foi para a casa de
Fernando Tibúrcio, que antecipou o retorno de uma viagem a Lima. “Quando
cheguei, por volta de 9 horas, ele chorou por umas duas horas seguidas”, contou
o advogado. “É óbvio que estava abalado psicologicamente, mas fiquei espantado
com o discurso governista. Eles escalaram uma turma de deputados para
fotografar o Roger feliz numa churrascaria.”
O
embaixador Jerjes Justiniano só tomou conhecimento da fuga às sete da manhã de
domingo, por um boliviano que lhe telefonou de Corumbá. Como esperava a saída
do asilado pelo Peru, ficou calado para não se comprometer. Às 11 horas, falou
com Marco Aurélio Garcia, que lhe disse que nem ele nem Dilma sabiam do plano de
retirar Roger Pinto.
Saboia
ficou quieto até que, pouco antes do meio-dia de domingo, o Itamaraty soltou a
nota sobre a fuga. O comunicado informava que ele estava sendo chamado para
prestar esclarecimentos. Anunciava que o ministério abriria inquérito e
“tomaria as medidas administrativas e disciplinares cabíveis”. O teor da nota
foi determinado pelo Planalto.
O
diplomata diz que ao ver seu nome citado ficou transtornado, pois sua mulher
continuava em Santa Cruz, e, naquele fim de semana, atendia brasileiros
encarcerados no presídio de Palmasola, onde uma rebelião havia estourado na
sexta-feira. No domingo à noite, ele deu entrevista ao Fantástico,
da tv Globo. Disse que na embaixada, com o asilado, se sentia como um
carcereiro do DOI-Codi.
Na
segunda-feira, dia 26, Patriota foi demitido. No dia seguinte, Dilma cancelou a
nomeação de Biato para a embaixada em Estocolmo – o agrément do
governo sueco estava dado desde junho. Pela primeira vez em quinze meses, ela
falou publicamente da questão Roger Pinto. “Eu estive no DOI-Codi, eu sei o que
é o DOI-Codi. E asseguro a vocês que é tão distante o DOI-Codi da embaixada
brasileira lá em La Paz como é distante o céu do inferno”, disse. “Nós
negociamos em vários momentos o salvo-conduto e não conseguimos. Lamento profundamente
que um asilado brasileiro tenha sido submetido à insegurança que esse
foi.”
A reação
inicial da Bolívia, no domingo, foi branda. Ao ser questionado se a fuga
afetaria a relação com o Brasil, o ministro Ramón Quintana contemporizou:
“Afeta, claro que afeta, mas não vamos exagerar. Com o Brasil temos que ser
muito prudentes porque o que é Roger Pinto diante de uma relação bilateral de 2
a 3 bilhões de dólares? Roger Pinto é um suspiro no ar.” Na segunda-feira,
depois de constatarem a convulsão que o assunto gerava no Brasil, os bolivianos
subiram o tom. Acusaram o governo brasileiro de “facilitar a fuga” e pediram a
devolução do opositor.
Desde que
voltou para Brasília, Eduardo Saboia ocupa um apartamento funcional de três
quartos numa quadra reservada a diplomatas. Antes de fugir com Roger Pinto, ele
negociava a volta para o FMI, onde já serviu. Morar em Washington lhe convém
porque o segundo dos seus três filhos, que tem autismo, foi alfabetizado em
inglês.
Saboia,
de 46 anos, mostrou fotos da época em que trabalhava no gabinete de Celso
Amorim, no primeiro mandato de Lula. Ele aparece em São Tomé e Príncipe,
em Cuzco, em Porto Príncipe, dentro do Aerolula. Contou que de vez em quando,
caminhando pelas pistas de cimento entre as quadras, encontra o atual ministro
da Defesa. Não comentam o affaire Roger Pinto, disse. “Tem um
limite do que ele pode fazer.”
No dia 13
de março deste ano, a comissão que investiga o caso – formada por um auditor
fiscal e dois diplomatas – concluiu um relatório em que Saboia é indiciado em
seis infrações administrativas. A mais grave é de deslealdade à instituição:
ele é acusado de mentir sobre o verdadeiro estado de saúde do asilado. “Em
momento algum o laudo diz que era uma emergência médica. Era um problema
psicológico. Se eu tivesse levado uma pessoa que estava com hemorragia, seria
uma irresponsabilidade. Quando um adulto fala em suicídio, você não brinca com
isso. O senador pode ter simulado tudo aquilo, mas o fato é que ele não estava
bem”, defende-se o diplomata.
A
investigação é acompanhada por Ferraço e outros senadores da Comissão de
Relações Exteriores, que mantêm em suspenso a aprovação do novo embaixador em
La Paz. Para Saboia, as acusações se concentram na fuga e ignoram os
antecedentes do caso. “Toda a omissão do governo nos 453 dias não é levada em
conta.” Ele, que pensa em escrever um livro sobre a história, vê um simbolismo
nas datas da operação. “No dia 23 de agosto o [caudilho boliviano]
Germán Busch se matou [em 1939]. No dia 24 de agosto, o Getúlio se
matou.”
Num
ministério cujo zelo pela hierarquia só se compara ao dos militares, a atitude
de Saboia dificilmente passará sem punição. A demora no desenlace da
investigação é interpretada como um indício de que se cogita uma sanção mais
grave do que um mês de suspensão, o máximo que pode ser decidido pela
corregedoria do Itamaraty. Em caso de demissão, a decisão será da própria
presidente Dilma. Como a oposição levou o assunto para a arena eleitoral, é
possível que a decisão não saia antes das eleições. Saboia poderá recorrer à
Justiça.
Ele
afirma que fez o que a Bolívia queria. “Eu achei que havia uma questão de
oportunidade, além de uma situação-limite. Já tinha havido sinais inequívocos
do lado boliviano para a gente tirar ele. Tinha uma resolução do Mercosul sobre
direito ao asilo. Houve o episódio dos aviões, do Morales e do Amorim. Eu tinha
ido 36 vezes a Oruro e nunca fui parado, o senador já estando lá. Você tem que
entender o lado boliviano, é óbvio que eles não podiam dizer explicitamente que
dariam salvo-conduto ou garantias.”
Pouco
tempo depois de voltar ao Brasil, Saboia recebeu pelo correio a Ordem do Mérito
Militar que deixou de ganhar em Cochabamba. Em abril, ele pediu uma licença
remunerada de noventa dias, a que tem direito por tempo de serviço. Em meados
daquele mês, foi ao lançamento da candidatura de Eduardo Campos e Marina Silva
em Brasília. Queria agradecer o apoio do presidenciável do PSB, que, assim como
o tucano Aécio Neves, deu declarações em seu favor. No dia 12 de junho, enquanto
Brasil e Croácia disputavam no Itaquerão o primeiro jogo da Copa, ele se
dirigia ao aeroporto, rumo à Europa. Visitaria Paris, Genebra e o santuário de
Lourdes, na França.
Roger
Pinto, hoje com 54 anos, vive em Brasília na condição de refugiado provisório,
enquanto espera a decisão definitiva do Comitê Nacional para Refugiados. Sem
reserva de dinheiro – ele diz que foi vendendo o gado de sua fazenda –, mora há
onze meses no apartamento do senador Petecão. Patriota foi compensado com a
chefia da missão na ONU, um dos postos mais cobiçados da diplomacia. Biato está
sem função definida, no “Departamento de Escadas e Corredores”, como se diz no
Itamaraty. O embaixador passou a ser acusado por setores do PT de ter combinado
o ingresso do senador na embaixada – o que ele e o boliviano negam com
veemência.
A
presidente ainda não foi à Bolívia, mas Lula voltou ao país no final de maio.
Foi dele o discurso principal de um seminário sobre mudanças climáticas
organizado por Morales, que, como sempre faz, o saudou como seu “irmão mais
velho”. De guayabera branca, o brasileiro elogiou o anfitrião,
candidato a uma nova reeleição em outubro. “Evo, você deve ter muitos
adversários aqui na Bolívia, como eu tive no Brasil quando era presidente. Mas
tenho certeza que qualquer adversário seu, mesmo aquela pessoa que tenha todos
os preconceitos do mundo contra você, eles são obrigados, quando colocam a
cabeça no travesseiro, a dizer para sua consciência: ‘Eu não gosto desse índio,
mas eu nunca estive tão bem na Bolívia como estou no governo desse
índio.’” .
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