Uns mais iguais do
que outros
Marcelo de Paiva
Abreu*
O Estado de São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 2014
A recente reunião do
Brics realizada em Fortaleza mostrou que o bloco pode ir além das palavras,
embora os resultados sejam bem mais modestos do que pretende o governo. Foram
criados o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Arranjo Contingente de
Reservas (ACR). O banco, com capital de US$ 50 bilhões, financiará projetos de
infraestrutura. O ACR, de US$ 100 bilhões, poderá ser usado pelos acionistas
com saques baseados em diferentes múltiplos de seus aportes: US$ 41 bilhões
para a China (limite de saque de 50%), US$ 5 bilhões para a África do Sul
(200%) e US$ 18 bilhões para os demais (100%). Os saques estarão limitados a
30% do valor acordado, na dependência de acordo paralelo com o Fundo Monetário
Internacional (FMI). As limitadas possibilidades de saque só são relevantes no
caso da África do Sul, cujas reservas internacionais são relativamente
modestas.
A comparação de
Fortaleza a Bretton Woods, quando foram criados o FMI e o Banco Mundial, é
ridícula. Escala e abrangência são muito mais modestas. Tudo indica que o
objetivo dos Brics seja explicitar sua insatisfação com a resposta dos países
desenvolvidos à limitada redistribuição de poder no FMI. Mesmo a reforma já
aprovada no âmbito do fundo está encalhada no Congresso norte-americano em meio
ao tiroteio entre democratas e republicanos. Mas esse objetivo de sinalização
dos Brics perde bastante eficácia com a restrição de saques do ACR dependendo
em grande medida de programas com o próprio FMI.
Houve muita conversa
sobre "poder igual" entre os acionistas do NBD, por causa da
participação igual dos cinco países no seu capital. Mas a realidade é mais
complicada. A dominância chinesa é clara e refletiu-se na escolha da sede em
Xangai. A China é a maior economia entre os Brics e, de longe, o país com mais
envolvimento comercial e financeiro com os outros integrantes do bloco. Para os
russos foi importante mostrar que não estão isolados em meio à crise ucraniana,
embora a queda do avião da Malaysia Airlines tenha cancelado boa parte desse
efeito. A diplomacia indiana mais uma vez prevaleceu sobre a brasileira. Em
2008, em Genebra, a resistência protecionista indiana afundou um possível
breakthrough na Rodada Doha relativo à agricultura no qual o Brasil tinha
interesse. O Brasil teve agora de abrir mão de sua postulação à presidência do
banco em benefício da Índia para evitar um impasse que impediria a boa foto de
Dilma Rousseff no início da campanha eleitoral.
Mas, levando tudo em
conta, diante dos inúmeros percalços diplomáticos brasileiros desde Lula, o
resultado concreto de Fortaleza merece ser comemorado. Comedidamente.
Exatamente quando esse
modesto sucesso foi alcançado, qualquer otimismo quanto aos rumos da política
comercial foi posto em perspectiva pela aprovação pelo Senado, por iniciativa
do governo, da prorrogação da Zona Franca de Manaus até 2073 (dez anos antes
que expirasse o prazo) e da redução de pelo menos 70% do IPI sobre produtos de
informática por 15 anos! Aécio Neves afirmou que há convergência clara entre
governo e oposição sobre o assunto. Agripino Maia diz ter votado
entusiasticamente a favor, pois a medida é importante para o Amazonas, o Brasil
e o mundo. Nessa foto, ninguém saiu bem.
A sátira de George
Orwell - "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que
outros" - pode ser aplicada tanto à distribuição de poder entre os países
integrantes do Brics quanto à capacidade de extração de benesses públicas por
diferentes segmentos da sociedade brasileira. A diferença entre as duas
situações é que há relativamente pouco que se possa fazer no curto prazo para
melhorar de forma significativa o poder de barganha do Brasil entre os Brics,
porém abandonar as formas mais grotescas de protecionismo é algo que depende
somente de nós. Mas é preciso botar as cabeças no lugar.
*Marcelo de Paiva Abreu,
doutor em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no
Departamento de Economia da PUC-Rio.
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