O evento transcorreu no restaurante Mahalo, uma supresa extremamente agradável no coração da América do Sul.
Abaixo o texto-guia que tinha preparado para a ocasião, sem que no entanto eu o tenha lido ou utilizado. Transcrevo para conhecimento dos presentes ao encontro, e para tutti quanti se interessam pelos problemas atuais do Brasil e pelas soluções propostas, décadas atrás, por Roberto Campos.
Paulo Roberto de Almeida
[Notas para
palestra a convite do LIDE-Mato Grosso, em Cuiabá, em 9
maio 2017, presidido por Pedro Neves; participação
de Marcos Troyjo e Adriano Pires]
1. O
liberalismo, um animal completamente desconhecido no Brasil
O Brasil está tão longe
do liberalismo quanto a Terra está de Andrômeda, ou seja, é improvável que
tenhamos a chance, a sorte, a inacreditável melhoria da situação sociopolítica
e econômica em nosso país nas próximas décadas. Não pretendo ser pessimista,
derrotista, ou catastrofista, mas o fato é que nem as nações ditas liberais,
atualmente, são realmente liberais. Todas elas são, em maior ou menor grau,
formações socialdemocratas, ou seja, economias de mercado com alto grau de
intervenção estatal, obviamente em diferentes modalidades de dirigismo e com
níveis também variados de carga fiscal, mas todas elas oscilando entre 30 e 50%
do PIB. Não se pode, assim, acreditar que qualquer uma delas se aproxime de uma
estrutura institucional identificada com o chamado “Estado Mínimo”, que
supostamente equivaleria ao ideal pregado por alguns economistas clássicos,
neoclássicos, das escolas austríaca, de Chicago, ou qualquer outra cultivando
preceitos usuais dos liberais ou neoliberais.
Mesmo aquelas economias
frequentando tradicionalmente e regularmente os primeiros lugares nos
indicadores de liberdades econômicas, de competitividade e de bom ambiente de
negócios – como Cingapura, Hong Kong, Nova Zelândia, Suíça, Emirados Árabes,
Irlanda, Canadá ou Chile – não poderiam verdadeiramente ser classificados como
“países liberais”, ainda que se aproximem de alguns critérios normalmente
retidos nessas listas para identificar as economias mais abertas do mundo. Grande
parte delas também padece de uma burocracia intrusiva, mas nenhuma delas
consegue vencer o Brasil em matéria de surrealismo burocrático-kafkiano.
Segundo leio no livro de meu amigo Marcos Troyjo, no ensaio introdutório ao Desglobalização, “nos últimos dez anos,
o Brasil editou cerca de 4 milhões de normas. Mais de 800 por dia. Uma a cada 2
minutos.” (p. 16)
Não por outra razão, o
Brasil se situa depois do 120o. lugar dentre 160 países
aproximadamente, ou seja, no final do terceiro quarto nessas listas que
trabalham sob diferentes critérios de natureza objetiva, isto é empiricamente
embasada, ademais de avaliações do tipo qualitativo, ou de seja, de natureza
mais impressionista. Em todo caso, quer julguemos o Brasil pelos relatórios do
Fraser Institute (Economic Freedom of the
World), do World Economic Forum (Global
Competitiveness Report) ou do Banco Mundial (Doing Business), ou de nossa
própria percepção e conhecimento direto da realidade brasileira, a situação do
nosso país é propriamente deprimente, por qualquer lado que o julguemos.
Aliás, há duas maneiras,
justamente, de avaliar o Brasil, e se pode até mesmo utilizar esses relatórios
dotados de uma metodologia rigorosa, em seus diferentes componentes, para
julgar e constatar o quanto o Brasil se afasta ou se aproxima, numa relação
inversa de organização dos dados, de um bom ambiente de negócios, tendente,
portanto, a uma democracia de mercado, ou, ao contrário, de um inferno terrível
para os empresários, segundo outros dados. Com efeito, basta separarmos os
indicadores setoriais usados nesses relatórios e os agregarmos sob dois
critérios, micro e macro, ou seja, aqueles que dependem unicamente da
performance das empresas, ou aqueles que, inversamente, dependem da ação do
governo. Listando, portanto, o Brasil na primeira categoria veremos que a sua
classificação tende a melhorar tremendamente, podendo se situar no final do
segundo quarto, mas o mérito incumbe integralmente ao setor privado, que sabe
ser competitivo mesmo num terreno hostil em termos de ambiente de negócios.
Mas, se por uma infelicidade separarmos unicamente os elementos pertinentes ao
setor estatal, aqueles dos quais nem indivíduos nem empresas conseguem escapar
da sanha normativa e da voracidade arrecadatória do Estado, constataremos que
nossa classificação pode ir para os últimos lugares da lista, tamanha é a ação
deletéria do ogro famélico e do monstro burocrático que nos inferniza a
existência, todos os dias, do nascimento à morte, de indivíduos ou empresas
(aliás, nem na morte, de uns ou de outras, conseguimos escapar da abominável
entidade que nos aprisiona).
Para não sermos
totalmente pessimistas, não há como não reconhecer que existem, sim, liberais
no Brasil. Eles são poucos, rarefeitos como essas espécies ameaçadas de
extinção, mas que por incrível que pareça começam a florescer nas planícies,
nas cidades, no cerrado central, em diversas partes do Brasil, e esse
renascimento talvez possa ser creditado – como nas leis de consequências
involuntárias – inteiramente aos companheiros que comandaram aos destinos do
país entre 2003 e 2016, que nos levaram ao que eu chamo de Grande Destruição,
ou seja, à pior recessão de toda a nossa história, nunca antes vista no país. Um
deles foi liberal de nascimento, e morreu há dezesseis anos, e estaria
completando cem anos, se vivo fosse, nascido em 1917, nas terras do Mato
Grosso: eu quero referir-me, obviamente, a Roberto Campos.
2.
Roberto Campos, 100 anos: atualidade de suas ideias
As principais ideias
econômicas de Roberto Campos foram sendo formuladas ao longo dos anos 1950,
paulatinamente a seus trabalhos no âmbito da Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos e, imediatamente após, no quadro do BNDE, onde ele começa a trabalhar
desde o seu início, designado Diretor Econômico. O que então caracterizava o
seu pensamento era a mobilização da capacidade administradora do Estado para
acelerar o processo de industrialização, por meio do planejamento indutivo e da
atração de capitais estrangeiros, atuando na linha de um projeto nacional de
desenvolvimento guiado pela racionalidade de resultados, antes que por um
nacionalismo de intenções. Mas, por força de suas leituras e registros
empíricos sobre os processos inflacionários ocorridos em outros países, Roberto
Campos atribuía também grande importância à estabilidade macroeconômica, ou
seja, ao equilíbrio fiscal e à contenção da inflação.
Tendo participado da
formulação do Plano de Metas de JK, e depois de planos de estabilização feitos
com Lucas Lopes, ministro da Fazenda de JK, e a pedido de Tancredo Neves, em
1961, quando este se preparava para assumir o cargo de primeiro ministro no
gabinete parlamentarista de João Goulart, Roberto Campos adquiriu plena maturidade
para formular ele mesmo um projeto de reforma completo da economia brasileira,
por ele apresentado na primeira reunião de trabalho convocada pelo presidente
Castello Branco, em 23 de abril de 1964. Nesse documento, intitulado “A Crise
brasileira e diretrizes de recuperação econômica” – Anexo VII da Lanterna na Popa, p. 1353-1359 – Campos
formula uma abrangente análise da crise conjuntural, das perspectivas para
1964, examina as raízes do desequilíbrio econômico e propõe um elenco de
medidas corretivas, composto de combate à inflação (por medidas fiscais, de
ação sobre as expectativas, ação emergencial sobre a oferta), de reativação da
economia, de correção do desequilíbrio cambial e de inversão da crise de
motivação, para trazer de volta os investimentos e a criação de empregos, com
amplas reformas de estrutura.
Esse programa seria
aplicado de maneira coerente no PAEG, mas sem o caráter de ajuste recessivo que
economistas puramente monetaristas, ou então o próprio FMI, recomendavam, o que
confirma o caráter eclético do economista-diplomata. Depois disso Roberto
Campos se retira do governo e continua seu trabalho de explicação didática da
economia por meio de seus livros – dois publicados com Mário Henrique Simonsen
– e de seus muitos artigos publicados de maneira regular nos grandes jornais de
São Paulo e Rio. Ele só volta realmente a propor um programa abrangente de
correção dos desequilíbrios econômicos quanto pronuncia seu discurso inaugural
no Senado Federal, em junho de 1983. Esse discurso, chamado de “As lições do
passado e as soluções do futuro” constituiu, segundo suas memórias, “talvez a
melhor peça que já escrevi, como síntese de problemas e propositura de
soluções”. A despeito disso, ele não tardou a reconhecer que a sua “capacidade
de análise e previsão era vastamente superior à [sua] capacidade de persuasão e
mobilização” (A Lanterna na Popa, p.
1073). A importância desse discurso merece que suas propostas, formuladas
portanto 34 anos atrás, sejam relidas, melhor conhecidas e talvez aplicadas,
pois praticamente nenhuma delas conseguiu inserção nos muitos planos de
estabilização ou nos programas de desenvolvimento econômico conduzidos desde
então. Com a possível exceção do problema da dívida externa, relativamente
desimportante atualmente, todos os demais pontos elencados nesse discurso, e na
dezena de projetos de leis de reformas estruturais apresentados
simultaneamente, poderiam ser implementados hoje em dia (aliás, estão sendo,
como parcialmente nas reformas laboral e previdenciária).
Já seu discurso de
despedida do Congresso, realizado em janeiro de 1999 na Câmara dos Deputados,
representou um “melancólico pronunciamento”, uma confissão de fracasso, o de
toda uma geração, que não conseguiu retirar o Brasil de uma condição de pobreza
evitável para colocá-lo numa de prosperidade atingível, como ele mencionou em
mais de uma ocasião. No intervalo entre um e outro se situaram batalhas épicas
contra os descaminhos do desenvolvimento brasileiro, equívocos tremendos de
políticas econômicas e setoriais, contra as quais ele se posicionou
resolutamente em oposição, fazendo discursos de alerta e apresentando propostas
alternativas, mas sendo sempre derrotado pela conjuração de néscios, ao ter de
votar solitariamente, ou com apenas dois ou três colegas solidários no
liberalismo, contra leis e outras medidas adotadas cujo desastre previsível ele
anunciava com amargo sabor de desespero político e econômico.
Situam-se nesse universo
de estupidezes legais, desde sempre ou como novidades dentro do atraso mental característico
da classe política brasileira, o monopólio do petróleo, a lei de informática, o
nacionalismo comercial e tecnológico, o protecionismo tarifário, o
corporativismo dos mandarins do Estado contra a renda dos demais cidadãos, ou
súditos do ogro famélico que ele denunciava sem cessar, e sobretudo o conjunto
esquizofrênico de direitos e benesses concedidos no âmbito da Constituinte, que
ele já antecipava como uma receita segura para preservar a pobreza geral,
inviabilizar a formação de poupança para fins de investimento, destruir o
equilíbrio das contas públicas, produzir inflação e de modo geral manter o
Brasil isolado da economia mundial. Os
inimigos continuam os mesmos: nacionalismo rastaquera, protecionismo inibidor
da inserção na economia global, estatismo excessivamente intervencionista nas
atividades do setor privado, patrimonialismo das elites, corporativismo
institucional, enfim o domínio da sociedade pelo Estado.
Registre-se que, em
todos esses terrenos, Roberto Campos tinha razão antes da adoção das políticas
equivocadas, durante a sua vigência desastrosa, e depois, quando depois de
provocar os previsíveis efeitos nefastos, elas foram, no todo ou em parte,
mudadas, eliminadas, parcialmente alteradas por revisões legais ou
constitucionais posteriores. Subsistem ainda diversas generosidades irracionais
no texto constitucional que continuam a produzir desequilíbrios nas contas
públicas, como ele antecipava de modo lógico e racional, sem precisar de muitas
provas empíricas para comprovar o acertado de suas críticas. Campos não apenas
teve razão durante todo o tempo, mas também viu antes de todos os demais as
consequências do caminho errado tomado pelo Brasil, e sobretudo viu mais e
melhor do que todos os seus contemporâneos.
Mas registre-se igualmente
que Roberto Campos teve a duvidosa “felicidade” de morrer antes da ascensão dos
companheiros ao poder, que combinaram algumas das políticas erradas dos
“estruturalistas” que ele combatia nos anos 1950, com o pior do
intervencionismo estatal dos anos Geisel, sem ter a competência para
administrar políticas públicas como feito durante a era militar. Se ele
continuasse vivo durante toda a vigência do caos econômico criado pelas
políticas esquizofrênicas do lulopetismo, até o paroxismo da Grande Destruição
trazida não só pela velhíssima “Nova Matriz Econômica”, mas também pela
incompetência gerencial, inépcia administrativa e inacreditável corrupção
megalomaníaca dos aloprados do partido neobolchevique, Roberto Campos poderia
ter morrido deprimido, ao contemplar tamanha destruição de riqueza em tão pouco
tempo.
Um ano depois de seu
discurso de despedida das atividades parlamentares, e um ano antes de morrer,
Roberto Campos publicou um novo e contundente artigo, cujo título é
apropriadamente “Repetindo o óbvio” (9/01/2001), no qual ele diz claramente,
com todas as letras que “nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou
tecnológico. É político.” Ele listava então todas as graves deficiências da
arquitetura institucional e da legislação político-partidária que atuavam como
poderosos entraves ao desenvolvimento do país, muitas das quais são objeto dos
atuais debates sobre reforma político-eleitoral. Ele terminava esse artigo num
tom de lamentação que se aplica ainda hoje:
O mundo está cansado de esperar pelas “reformas” brasileiras. E de
ouvir lamentações sobre a nossa pobreza. Há muito, exceto em regiões desérticas
da África ou gravemente sobrepovoadas da Ásia, a pobreza deixou de ser uma
fatalidade. É um acidente histórico de povos que preferem externalizar a culpa
em vez de fabricar seu próprio destino.
Não há nenhuma dúvida
quanto a isso: Roberto Campos continua atual, em seus diagnósticos dos erros
cometidos pelas lideranças políticas e econômicas, em seus alertas sobre os
desastres potenciais das políticas em vigor, em suas prescrições de urgentes
reformas estruturais e em suas antecipações de possíveis caminhos que nos
retirariam da pobreza evitável para nos lançar na construção da riqueza
possível. Como aliás eu me esforcei de demonstrar no livro que organizei com a
colaboração de muitos amigos: O Homem que
Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (pela editora
Appris, de Curitiba).
3. O
que os empresários têm a ver com tudo isto? Muito...
Se leio o site do LIDE,
o que vou encontrar? Esta declaração de valores e princípios:
O LIDE,
fundado em 2003, é a mais influente organização privada que reúne líderes de
empresas nacionais e estrangeiras com o objetivo de difundir e fortalecer os
princípios éticos de governança corporativa no Brasil, promover e incentivar as
relações empresariais e sensibilizar o apoio privado para educação,
sustentabilidade e para construção de uma sociedade mais ética, desenvolvida,
consciente e justa.
Ora, se percorro os
relatórios e informes relativos às investigações da Operação Lava Jato, ou a
outras investigações nas demais esferas desse imenso universo que parece
constituir a corrupção organizada no Brasil – ou seja, crimes de colarinho
branco, na acepção a mais ampla possível – não seria difícil encontrar várias,
muitas empresas que frequentam os encontros do LIDE, empresas que devem
contribuir para suas atividades e até conseguem, vejam só, fazer discursos que
refletem perfeitamente a missão acima explicitada do LIDE, mas que na prática
constituem nada mais do que pronunciamentos da mais alta hipocrisia, uma vez
que sabemos que diversos, muitos executivos que assim se pronunciaram em
público estavam, simultânea e dedicadamente, engajados em torpes negociações
com políticos indignos desse nome, todos eles ativos habitantes desse imenso
continente que constitui a propinocracia brasileira.
Vamos reconhecer,
senhores, que existe algo de muito errado quando vemos, quando constatamos, em
relatórios policiais, que vários líderes da economia brasileira, e supostamente
líderes do LIDE também, conseguem ostentar uma imagem ética, limpa,
hipocritamente seguindo os melhores princípios de governança corporativa
defendidos pelo LIDE, quando ao mesmo tempo, na calada da noite, ou nos
intervalos do dia, estavam ativamente engajados em corromper, em fraudar, em
mentir, em elidir o Fisco, em transacionar com bandidos profissionais,
cometendo, portanto, crimes econômicos, crimes políticos, ou vulgares crimes
comuns, tipificados no Código Penal, o que lhes deveria garantir,
hipoteticamente, várias décadas de cadeia firme.
Não vou me estender mais
sobre este aspecto. Apenas vou terminar dizendo que Roberto Campos certamente
ficaria tão deprimido quanto eu disse que ele ficaria, se tivesse vivido para
assistir à Grande Destruição perpetrada por companheiros ineptos e corruptos,
sobretudo nos últimos anos de comando político desta nossa nação por uma
organização criminosa, se ele tivesse, igualmente, vivido para assistir a
vários, a muitos, dos maiores capitalistas do Brasil envolvidos nas mais
sórdidas transações criminosas com vulgares bandidos e com políticos de alto
coturno, se ouso dizer. Ele poderia, da mesma forma, morrer deprimido.
O Brasil nunca mereceu o
grande intelectual, o grande economista, o insigne diplomata que foi Roberto
Campos, um dos maiores estadistas da segunda metade do século XX. Ele não o
mereceria ainda hoje, pelo que se lê nos jornais, pelo que se sabe nas redes de
informação, pelo que se assiste nas telas que nos invadem com mostras da mais
pura desfaçatez política e empresarial. Espero que não estejamos muito longe do
dia em que poderemos ler, ou reler, Roberto Campos, num ambiente mais propício
à discussão de suas ideias e propostas para melhorar o Brasil.
Grato a todos pelo
convite e pelo comparecimento.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de maio de 2017
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