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sábado, 22 de julho de 2017

Nas origens da crise: a divisao estrutural do Brasil, e a atual fase de transicao politica


Lições da história, 1961-2017: da necessidade de reformas no Brasil

Paulo Roberto de Almeida
 [Rememorar uma crise anterior; tirar lições para a modernidade]


Jânio Quadros e a modernidade: alguma lição?
“Fi-lo porque qui-lo”, esta parece ter sido a frase mais famosa pela qual ficou conhecido, pelo menos gramaticalmente, o presidente Jânio Quadros, que poderia ser alcunhado de O Breve (janeiro a agosto de 1961). Independentemente da eventual genialidade da expressão (que provavelmente nunca foi dita por ele), reveladora talvez de seu espírito atilado, essa resposta surpreendente, imaginada, a um jornalista por demais inquisitivo, revela o caráter afirmativo, senão voluntarioso, de um dos políticos mais famosos do Brasil, criador de um movimento que continua a ter seguidores ainda hoje, mesmo muitos anos (um quarto de século, exatamente) depois do desaparecimento físico (mas não político) de seu inspirador, em 1992. Mais até do que sua ascensão fulgurante, nos dez anos anteriores à sua eleição como o presidente mais votado do país, até então (proporcionalmente), seu breve mandato, escassos oito meses, representou um dos momentos culminantes de transformação do Brasil, para o bem e para o mal.
Jânio Quadros foi, sem dúvida alguma, um populista, no sentido que emprestam ao conceito os cientistas políticos, ou seja, num entendimento necessariamente não depreciativo do termo, apenas refletindo um determinado tipo de postura política. De fato engajado em reformas moralizadoras e progressistas, Quadros padeceu, entretanto, de certa tendência ao autoritarismo e à superestimação de si mesmo, o que o fez, justamente, apostar numa espécie de “golpe branco” de corte gaullista, causando então sua derrocada do poder. Mas antes de provocar um dos maiores terremotos da história política do Brasil – e que esteve indubitavelmente na origem da crise do governo subsequente e do golpe de Estado militar de 1964 – Jânio Quadros empreendeu várias reformas necessárias e relevantes na vida econômica do país, como a breve tentativa de estabilização monetária (mas destruída por sua própria renúncia), a desvalorização e a reunificação cambial, depois de mais de oito anos de um regime de taxas múltiplas que, além de heterodoxo do ponto de vista das regras de Bretton Woods, foi relativamente flexível para acomodar as dificuldades de carência de dólares e os desequilíbrios de balanço de pagamentos, a despeito de gerar certa corrupção na atribuição de divisas, ademais de focos inflacionários setoriais.
O sistema tinha sido distorcido pela política demagógica de enfrentamento com o FMI que JK provocou, com sua insistência em construir Brasília sem orçamento e à margem do orçamento, o que deixou o Brasil sem acesso a novos créditos ou fontes de financiamento externo. Uma das primeiras medidas tomadas por Jânio Quadros foi, portanto, despachar o banqueiro Walter Moreira Salles e o diplomata e economista Roberto Campos para renegociar as dívidas bilaterais brasileiras respectivamente com os EUA e diversos países europeus, o que permitiu contornar o estrangulamento cambial já em curso. Outra medida importante, no plano das relações exteriores, foi a continuidade da aproximação diplomática e do processo de integração comercial com a Argentina, na continuidade do Memorando Lafer-Taboada, concluído no governo JK.
Bem mais ambiciosa, talvez servindo de compensação para uma política econômica conservadora, foi a chamada Política Externa Independente, comandada pessoalmente por Jânio Quadros, e equilibradamente bem administrada pelo chanceler Afonso Arinos de Mello Franco, um grande tribuno do regime de 1946. Herdeiro de uma das grandes famílias políticas da República velha, Arinos pontificava como jurista e ideólogo da UDN, talvez o único partido de oposição ao sistema varguista, que tinha a seu favor os dois outros partidos criados pelo ex-ditador ao final do Estado Novo, o PSD e o PTB. A UDN era, na definição um pouco maldosa de Roberto Campos, “um partido burro de homens inteligentes”, definição que ele estendia, jocosamente, à sua própria instituição, o Itamaraty.
Jânio Quadros, por sua vez, não era um homem de partidos, de nenhum partido, e transitava soberanamente por diversos, até por nenhum, sendo até cobiçado, como candidato, por alguns deles. Justamente, conduziu sozinho sua trajetória de candidato a presidente em 1960, e estabeleceu seus próprios requerimentos, a cavaleiro dos partidos, sendo considerado um fenômeno eleitoral por quase todos os analistas políticos. Reinou da mesma forma como ascendeu na carreira política: rápida e surpreendentemente, sendo o único responsável por seu sucesso eleitoral extraordinário, e igualmente por sua queda estrondosa da presidência. Suas medidas mais bizarras – proibir as brigas de galo, os biquínis nas praias, etc., esta a pedido do então poderoso lobby das “senhoras católicas” – constituíram uma espécie de diversionismo político para diminuir a pressão em direção das iniciativas mais importantes: a austeridade fiscal, a unificação cambial e uma política externa com certo grau de controvérsia.
Neste último terreno, precisamente, algumas iniciativas suscitaram intensos debates em diversos meios: o estabelecimento de relações diplomáticas com os países socialistas, o afastamento cauteloso (ou dissociação) do colonialismo português, este fortemente representado por poderosos grupos de interesse no Rio de Janeiro. Outras iniciativas despertaram, como seria de se esperar, amplas reações nos meios militares e conservadores em geral, como a aproximação e a simpatia demonstrada em relação ao regime comunista de Fidel Castro, assim como a condecoração num grau elevado da Ordem do Cruzeiro do Sul ao guerrilheiro argentino-cubano Ché Guevara.
A maior fonte de fricção de Jânio Quadros foi, no entanto, o próprio Congresso, onde dispunha de frágil apoio, dados seu desprezo pelos partidos, sua condenação generalizada da corrupção política e sua atitude soberba de tentar governar segundo sua própria concepção da política e vontade pessoal, e não em função das forças representadas no parlamento. Essa animosidade se transmutou em choque no momento decisivo de sua cartada de corte bonapartista, e esteve na origem da tragédia anunciada que se desenvolveu de agosto de 1961 a março de 1964, um drama que não teve o desenlace que ele talvez esperasse, no momento em que apresentou sua carta de renúncia à presidência, aceita imediatamente pelo presidente do Congresso.

O legado indesejável: a divisão do país e a crise permanente
Jânio Quadros, que talvez se considerasse uma espécie de De Gaulle tropical, provocou a maior divisão da história política do Brasil de que se teve notícia até a recente destituição de um fantoche do líder de uma organização criminosa travestida em partido político. Ele também criou a maior crise política de nossa história até a recente crise provocada por investigações, revelações, denúncias, indiciamentos e processos contra uma classe política notoriamente corrupta, mas que também serviu para reforçar e aprofundar a divisão política do país estimulada pelo lulopetismo mafioso.
Mais de meio século depois da crise política deslanchada pela renúncia de Jânio Quadros, agravada pelas turbulências geradas pelo governo errático e inepto de seu sucessor, e também pelas divisões políticas e sociais criadas pelos embates entre varguistas e anti-varguistas, e por uma esquerda que já era incompetente e ignorante naquela época (e que continua a sê-lo ainda hoje), o Brasil volta novamente a viver num ambiente de crise política profunda, deslanchado pelo processo de impeachment e agravado pelas dubiedades do governo sucessor, num quadro de divisões políticas e sociais surgidas nos embates entre lulistas e anti-lulistas, tudo isso num cenário de incertezas trazidas pelas investigações contra praticamente a maioria da classe política, atingindo indistintamente todos os partidos e forças organizadas nacionalmente.
O Brasil carece, urgentemente, de um estadista que esteja à altura deste momento de transição, e que saiba traçar uma agenda clara de reformas estruturais e de medidas conjunturais, suscetíveis de superar o atual quadro de anomia política, de recessão econômica e de desesperança social, e que deveria começar sua tarefa esclarecendo à população sobre as razões do atual desastre econômico e descalabro moral, e sobre os caminhos possíveis e os processos capazes de restabelecer a confiança dos cidadãos na legitimidade e na capacidade de novas lideranças políticas. O fato é que a população perdeu completamente a confiança nas suas supostas elites políticas e empresariais, nos atuais dirigentes nacionais, quase todos eles comprometidos em atos sórdidos de corrupção, mantendo negócios promíscuos entre si, envolvendo os representantes públicos e os empreendedores privados, num coalizão de delinquentes.
Daí o chamamento a novos líderes, que não sejam mais representantes da velha classe política, dos partidos tradicionais, mas que sejam gestores dotados de um outro tipo de discurso e de outras práticas que não a velha demagogia política e o execrável populismo econômico. Uma liderança desse tipo precisar propor uma agenda de reformas compatível com a gravidade do momento e a profundidade da crise moral que se abateu sobre o país. Quais lições, então, tirar de nossa experiência historicamente vivida, na atualidade e na origem de nossa crise atual – o fracasso do populismo, com Vargas, com Jânio Quadros, com Sarney, com Lula –, tal como hoje refletida nos impasses criados pelas novas formas de populismo, o lulopetismo, em sua forma mais depravada, mais nociva, essencialmente criminosa?
As lições são muitas, mas podemos dividi-las em dois universos imbricados um no outro, nem sempre coerentes entre si, até mesmo contraditórios, mas de certa forma inter-relacionados, que constituem os dois lados de nossa existência enquanto cidadãos e enquanto sociedade, ou país: eles são, respectivamente, numa moldura conceitual à la Spinoza, as relações reais, tais como existem no mundo dos negócios e da política, de um lado, e as concepções que as pessoas mantêm sobre esse mundo e sobre as maneiras de melhor organizá-lo, de outro lado. Ou seja, o mundo da realidade, de um lado, e o mundo das ideias, de outro, sendo que as ideias podem moldar a realidade, mas esta acaba se impondo, por vezes se vingando, das ideias eventualmente erradas que podem ter impulsionado as pessoas em suas relações e interações na economia e na política.
Agora, como nos idos de 1961-64, as concepções e as relações sociais reais não evoluíram muito em sua essência, ou natureza, e elas se dividem, por sua vez, em dois universos distintos, por vezes opostos e distantes, por vezes mais próximos ou complementares entre si. Elas são, respectivamente, as concepções, as ideias e os modos socialistas de ser, e os modos liberais de conceber e de organizar a sociedade e a economia. Esses dois universos costumam ser identificados respectivamente ao Estado e aos mercados, mas estes dois termos não traduzem perfeitamente toda a complexidade e os matizes das realidades e das concepções que eles são supostos descrever.

Estado e mercados: uma divisão artificial, e no entanto tangível
O Estado é uma construção social tangível, imanente ao progresso civilizatório e um atributo indispensável e indissociável de qualquer sociedade ou comunidade humana relativamente complexa, e ele vem necessariamente acompanhado de todos os acessórios que o compõem, quais sejam: os mecanismos de segurança e defesa coletiva, de justiça, de representação política e da burocracia, com todos os seus componentes regulatórios. O Estado tende a crescer, naturalmente, uma vez que a complexidade da vida moderna tende a se ampliar continuamente.
Já os mercados não costumam ou não precisam ser tangíveis, embora eles o possam ser, acompanhando a complexidade da regulação estatal (nacional e supranacional), mas eles são, em sua essência, interações sociais bilaterais ou plurilaterais, que se criam e se desfazem incessantemente, cada vez que dois ou mais agentes, atuando na qualidade de ofertantes e compradores, resolvem interagir em busca de sua satisfação. Mercados livres são mais dinâmicos, mais criativos e inovadores, os mais conformes à natureza imanente das pessoas, que é a de sempre procurar satisfazer suas ambições, desejos, interesses, gostos ou necessidades, na medida exata dos ativos de que dispõem para concretizar essas interações. Mercados organizados ou regulados pelos Estados costumam ser mais letárgicos, menos dinâmicos, sujeitos a restrições diversas, impondo limitações à liberdade dos agentes na busca da realização de seus objetivos legítimos (mas que nem sempre são perfeitamente legais, num sentido que pode ser definido pela comunidade em causa). Mercados não são morais ou imorais, pois são perfeitamente amorais, ao simplesmente permitir a realização de trocas entre quaisquer tipos de parceiros para quaisquer objetivos que eles possam ter.
Daí uma distinção fundamental na história da humanidade, entre, de um lado, povos e sociedades mais prósperos, nos quais os mercados são mais livres, e de outro, nações materialmente ou espiritualmente menos avançadas, que são aquelas nas quais as interações sociais são mais controladas e limitadas pelo Estado ou pelas autoridades que o representam. Não é preciso dizer de que lado se situa o Brasil, não é mesmo? Pode-se aliás facilmente dizer que o Brasil é, e continua sendo, um país insuficientemente desenvolvido justamente porque o Estado desempenha, em nosso país, um papel vastamente superior, no sentido de regulador e intrusivo, do que outras sociedades mais livres, com maior grau de liberdade econômica deixada aos cidadãos e empresas.
Não seria difícil traçar a origem da grande recessão que caracteriza o Brasil atual na gestão perfeitamente incompetente exercida nos últimos anos, na última década e meia, por líderes políticos particularmente ineptos e corruptos, agregando o problema do desvio de recursos à má gestão exercida nas políticas macroeconômicas e setoriais durante o período que deveria passar à história como sendo o da Grande Destruição (não só material, mas de valores igualmente). Mas essa gestão inepta e corrupta não teria conseguido ser tão “bem sucedida” na sua obra destruidora se o Estado não dominasse tão amplamente, tão completamente, vastos setores da economia e da organização e oferta de determinados bens e serviços de interesse coletivo. Um espaço maior deixado aos mercados livres teria corrigido precocemente os grandes equívocos de gestão exercidos pelas lideranças da organização criminosa que esteve no comando do país nos últimos três lustros. Justamente devido a essa preeminência do Estado na vida nacional, os erros cumulativos de gestão, agregados à monumental corrupção já quase plenamente identificada, puderam redundar na grande destruição material e no imenso descalabro moral que contemplamos atualmente.

Que tipo de agenda seria necessário traçar para a restauração moral do Brasil, quais reformas seriam indispensáveis para retirar a economia de sua atual letargia, quais as mudanças a serem introduzidas em seu sistema político para que deixemos de exibir o atual cenário de baixíssima qualidade democrática, para recompor a funcionalidade das instituições centrais de governo, enfim, para superar o atual quadro de esquizofrenia social?
É a tal tarefa analítica, de diagnóstico e de prescrições que devemos nos dedicar proximamente...

Paulo Roberto de Almeida
Em voo, Lisboa-Brasília, 3134: 30 de junho de 2017

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