Lições da história, 1961-2017: da necessidade de
reformas no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
[Rememorar uma
crise anterior; tirar lições para a modernidade]
Jânio
Quadros e a modernidade: alguma lição?
“Fi-lo porque qui-lo”,
esta parece ter sido a frase mais famosa pela qual ficou conhecido, pelo menos
gramaticalmente, o presidente Jânio Quadros, que poderia ser alcunhado de O
Breve (janeiro a agosto de 1961). Independentemente da eventual genialidade da
expressão (que provavelmente nunca foi dita por ele), reveladora talvez de seu
espírito atilado, essa resposta surpreendente, imaginada, a um jornalista por
demais inquisitivo, revela o caráter afirmativo, senão voluntarioso, de um dos
políticos mais famosos do Brasil, criador de um movimento que continua a ter
seguidores ainda hoje, mesmo muitos anos (um quarto de século, exatamente) depois
do desaparecimento físico (mas não político) de seu inspirador, em 1992. Mais
até do que sua ascensão fulgurante, nos dez anos anteriores à sua eleição como
o presidente mais votado do país, até então (proporcionalmente), seu breve
mandato, escassos oito meses, representou um dos momentos culminantes de
transformação do Brasil, para o bem e para o mal.
Jânio Quadros foi, sem
dúvida alguma, um populista, no sentido que emprestam ao conceito os cientistas
políticos, ou seja, num entendimento necessariamente não depreciativo do termo,
apenas refletindo um determinado tipo de postura política. De fato engajado em
reformas moralizadoras e progressistas, Quadros padeceu, entretanto, de certa
tendência ao autoritarismo e à superestimação de si mesmo, o que o fez,
justamente, apostar numa espécie de “golpe branco” de corte gaullista, causando
então sua derrocada do poder. Mas antes de provocar um dos maiores terremotos
da história política do Brasil – e que esteve indubitavelmente na origem da
crise do governo subsequente e do golpe de Estado militar de 1964 – Jânio
Quadros empreendeu várias reformas necessárias e relevantes na vida econômica
do país, como a breve tentativa de estabilização monetária (mas destruída por
sua própria renúncia), a desvalorização e a reunificação cambial, depois de
mais de oito anos de um regime de taxas múltiplas que, além de heterodoxo do
ponto de vista das regras de Bretton Woods, foi relativamente flexível para
acomodar as dificuldades de carência de dólares e os desequilíbrios de balanço
de pagamentos, a despeito de gerar certa corrupção na atribuição de divisas,
ademais de focos inflacionários setoriais.
O sistema tinha sido
distorcido pela política demagógica de enfrentamento com o FMI que JK provocou,
com sua insistência em construir Brasília sem orçamento e à margem do
orçamento, o que deixou o Brasil sem acesso a novos créditos ou fontes de
financiamento externo. Uma das primeiras medidas tomadas por Jânio Quadros foi,
portanto, despachar o banqueiro Walter Moreira Salles e o diplomata e
economista Roberto Campos para renegociar as dívidas bilaterais brasileiras
respectivamente com os EUA e diversos países europeus, o que permitiu contornar
o estrangulamento cambial já em curso. Outra medida importante, no plano das
relações exteriores, foi a continuidade da aproximação diplomática e do processo
de integração comercial com a Argentina, na continuidade do Memorando
Lafer-Taboada, concluído no governo JK.
Bem mais ambiciosa,
talvez servindo de compensação para uma política econômica conservadora, foi a
chamada Política Externa Independente, comandada pessoalmente por Jânio
Quadros, e equilibradamente bem administrada pelo chanceler Afonso Arinos de
Mello Franco, um grande tribuno do regime de 1946. Herdeiro de uma das grandes
famílias políticas da República velha, Arinos pontificava como jurista e
ideólogo da UDN, talvez o único partido de oposição ao sistema varguista, que
tinha a seu favor os dois outros partidos criados pelo ex-ditador ao final do
Estado Novo, o PSD e o PTB. A UDN era, na definição um pouco maldosa de Roberto
Campos, “um partido burro de homens inteligentes”, definição que ele estendia,
jocosamente, à sua própria instituição, o Itamaraty.
Jânio Quadros, por sua
vez, não era um homem de partidos, de nenhum partido, e transitava
soberanamente por diversos, até por nenhum, sendo até cobiçado, como candidato,
por alguns deles. Justamente, conduziu sozinho sua trajetória de candidato a
presidente em 1960, e estabeleceu seus próprios requerimentos, a cavaleiro dos
partidos, sendo considerado um fenômeno eleitoral por quase todos os analistas
políticos. Reinou da mesma forma como ascendeu na carreira política: rápida e
surpreendentemente, sendo o único responsável por seu sucesso eleitoral
extraordinário, e igualmente por sua queda estrondosa da presidência. Suas
medidas mais bizarras – proibir as brigas de galo, os biquínis nas praias,
etc., esta a pedido do então poderoso lobby das “senhoras católicas” – constituíram
uma espécie de diversionismo político para diminuir a pressão em direção das
iniciativas mais importantes: a austeridade fiscal, a unificação cambial e uma
política externa com certo grau de controvérsia.
Neste último terreno,
precisamente, algumas iniciativas suscitaram intensos debates em diversos
meios: o estabelecimento de relações diplomáticas com os países socialistas, o
afastamento cauteloso (ou dissociação) do colonialismo português, este
fortemente representado por poderosos grupos de interesse no Rio de Janeiro. Outras
iniciativas despertaram, como seria de se esperar, amplas reações nos meios
militares e conservadores em geral, como a aproximação e a simpatia demonstrada
em relação ao regime comunista de Fidel Castro, assim como a condecoração num
grau elevado da Ordem do Cruzeiro do Sul ao guerrilheiro argentino-cubano Ché
Guevara.
A maior fonte de fricção
de Jânio Quadros foi, no entanto, o próprio Congresso, onde dispunha de frágil
apoio, dados seu desprezo pelos partidos, sua condenação generalizada da
corrupção política e sua atitude soberba de tentar governar segundo sua própria
concepção da política e vontade pessoal, e não em função das forças
representadas no parlamento. Essa animosidade se transmutou em choque no
momento decisivo de sua cartada de corte bonapartista, e esteve na origem da
tragédia anunciada que se desenvolveu de agosto de 1961 a março de 1964, um
drama que não teve o desenlace que ele talvez esperasse, no momento em que
apresentou sua carta de renúncia à presidência, aceita imediatamente pelo
presidente do Congresso.
O
legado indesejável: a divisão do país e a crise permanente
Jânio Quadros, que
talvez se considerasse uma espécie de De Gaulle tropical, provocou a maior
divisão da história política do Brasil de que se teve notícia até a recente
destituição de um fantoche do líder de uma organização criminosa travestida em
partido político. Ele também criou a maior crise política de nossa história até
a recente crise provocada por investigações, revelações, denúncias,
indiciamentos e processos contra uma classe política notoriamente corrupta, mas
que também serviu para reforçar e aprofundar a divisão política do país
estimulada pelo lulopetismo mafioso.
Mais de meio século
depois da crise política deslanchada pela renúncia de Jânio Quadros, agravada
pelas turbulências geradas pelo governo errático e inepto de seu sucessor, e
também pelas divisões políticas e sociais criadas pelos embates entre
varguistas e anti-varguistas, e por uma esquerda que já era incompetente e
ignorante naquela época (e que continua a sê-lo ainda hoje), o Brasil volta
novamente a viver num ambiente de crise política profunda, deslanchado pelo
processo de impeachment e agravado pelas dubiedades do governo sucessor, num
quadro de divisões políticas e sociais surgidas nos embates entre lulistas e
anti-lulistas, tudo isso num cenário de incertezas trazidas pelas investigações
contra praticamente a maioria da classe política, atingindo indistintamente
todos os partidos e forças organizadas nacionalmente.
O Brasil carece,
urgentemente, de um estadista que esteja à altura deste momento de transição, e
que saiba traçar uma agenda clara de reformas estruturais e de medidas
conjunturais, suscetíveis de superar o atual quadro de anomia política, de
recessão econômica e de desesperança social, e que deveria começar sua tarefa
esclarecendo à população sobre as razões do atual desastre econômico e
descalabro moral, e sobre os caminhos possíveis e os processos capazes de
restabelecer a confiança dos cidadãos na legitimidade e na capacidade de novas
lideranças políticas. O fato é que a população perdeu completamente a confiança
nas suas supostas elites políticas e empresariais, nos atuais dirigentes
nacionais, quase todos eles comprometidos em atos sórdidos de corrupção,
mantendo negócios promíscuos entre si, envolvendo os representantes públicos e
os empreendedores privados, num coalizão de delinquentes.
Daí o chamamento a novos
líderes, que não sejam mais representantes da velha classe política, dos
partidos tradicionais, mas que sejam gestores dotados de um outro tipo de
discurso e de outras práticas que não a velha demagogia política e o execrável
populismo econômico. Uma liderança desse tipo precisar propor uma agenda de
reformas compatível com a gravidade do momento e a profundidade da crise moral
que se abateu sobre o país. Quais lições, então, tirar de nossa experiência
historicamente vivida, na atualidade e na origem de nossa crise atual – o
fracasso do populismo, com Vargas, com Jânio Quadros, com Sarney, com Lula –,
tal como hoje refletida nos impasses criados pelas novas formas de populismo, o
lulopetismo, em sua forma mais depravada, mais nociva, essencialmente
criminosa?
As lições são muitas,
mas podemos dividi-las em dois universos imbricados um no outro, nem sempre
coerentes entre si, até mesmo contraditórios, mas de certa forma inter-relacionados,
que constituem os dois lados de nossa existência enquanto cidadãos e enquanto
sociedade, ou país: eles são, respectivamente, numa moldura conceitual à la Spinoza, as relações reais, tais como
existem no mundo dos negócios e da política, de um lado, e as concepções que as
pessoas mantêm sobre esse mundo e sobre as maneiras de melhor organizá-lo, de
outro lado. Ou seja, o mundo da realidade, de um lado, e o mundo das ideias, de
outro, sendo que as ideias podem moldar a realidade, mas esta acaba se impondo,
por vezes se vingando, das ideias eventualmente erradas que podem ter
impulsionado as pessoas em suas relações e interações na economia e na
política.
Agora, como nos idos de
1961-64, as concepções e as relações sociais reais não evoluíram muito em sua
essência, ou natureza, e elas se dividem, por sua vez, em dois universos
distintos, por vezes opostos e distantes, por vezes mais próximos ou
complementares entre si. Elas são, respectivamente, as concepções, as ideias e
os modos socialistas de ser, e os modos liberais de conceber e de organizar a
sociedade e a economia. Esses dois universos costumam ser identificados
respectivamente ao Estado e aos mercados, mas estes dois termos não traduzem perfeitamente
toda a complexidade e os matizes das realidades e das concepções que eles são
supostos descrever.
Estado
e mercados: uma divisão artificial, e no entanto tangível
O Estado é uma
construção social tangível, imanente ao progresso civilizatório e um atributo
indispensável e indissociável de qualquer sociedade ou comunidade humana
relativamente complexa, e ele vem necessariamente acompanhado de todos os
acessórios que o compõem, quais sejam: os mecanismos de segurança e defesa
coletiva, de justiça, de representação política e da burocracia, com todos os
seus componentes regulatórios. O Estado tende a crescer, naturalmente, uma vez
que a complexidade da vida moderna tende a se ampliar continuamente.
Já os mercados não
costumam ou não precisam ser tangíveis, embora eles o possam ser, acompanhando
a complexidade da regulação estatal (nacional e supranacional), mas eles são,
em sua essência, interações sociais bilaterais ou plurilaterais, que se criam e
se desfazem incessantemente, cada vez que dois ou mais agentes, atuando na
qualidade de ofertantes e compradores, resolvem interagir em busca de sua
satisfação. Mercados livres são mais dinâmicos, mais criativos e inovadores, os
mais conformes à natureza imanente das pessoas, que é a de sempre procurar satisfazer
suas ambições, desejos, interesses, gostos ou necessidades, na medida exata dos
ativos de que dispõem para concretizar essas interações. Mercados organizados
ou regulados pelos Estados costumam ser mais letárgicos, menos dinâmicos,
sujeitos a restrições diversas, impondo limitações à liberdade dos agentes na
busca da realização de seus objetivos legítimos (mas que nem sempre são
perfeitamente legais, num sentido que pode ser definido pela comunidade em
causa). Mercados não são morais ou imorais, pois são perfeitamente amorais, ao
simplesmente permitir a realização de trocas entre quaisquer tipos de parceiros
para quaisquer objetivos que eles possam ter.
Daí uma distinção
fundamental na história da humanidade, entre, de um lado, povos e sociedades mais
prósperos, nos quais os mercados são mais livres, e de outro, nações
materialmente ou espiritualmente menos avançadas, que são aquelas nas quais as
interações sociais são mais controladas e limitadas pelo Estado ou pelas
autoridades que o representam. Não é preciso dizer de que lado se situa o
Brasil, não é mesmo? Pode-se aliás facilmente dizer que o Brasil é, e continua
sendo, um país insuficientemente desenvolvido justamente porque o Estado
desempenha, em nosso país, um papel vastamente superior, no sentido de
regulador e intrusivo, do que outras sociedades mais livres, com maior grau de
liberdade econômica deixada aos cidadãos e empresas.
Não seria difícil traçar
a origem da grande recessão que caracteriza o Brasil atual na gestão
perfeitamente incompetente exercida nos últimos anos, na última década e meia,
por líderes políticos particularmente ineptos e corruptos, agregando o problema
do desvio de recursos à má gestão exercida nas políticas macroeconômicas e
setoriais durante o período que deveria passar à história como sendo o da
Grande Destruição (não só material, mas de valores igualmente). Mas essa gestão
inepta e corrupta não teria conseguido ser tão “bem sucedida” na sua obra
destruidora se o Estado não dominasse tão amplamente, tão completamente, vastos
setores da economia e da organização e oferta de determinados bens e serviços
de interesse coletivo. Um espaço maior deixado aos mercados livres teria
corrigido precocemente os grandes equívocos de gestão exercidos pelas
lideranças da organização criminosa que esteve no comando do país nos últimos
três lustros. Justamente devido a essa preeminência do Estado na vida nacional,
os erros cumulativos de gestão, agregados à monumental corrupção já quase
plenamente identificada, puderam redundar na grande destruição material e no
imenso descalabro moral que contemplamos atualmente.
Que tipo de agenda seria
necessário traçar para a restauração moral do Brasil, quais reformas seriam
indispensáveis para retirar a economia de sua atual letargia, quais as mudanças
a serem introduzidas em seu sistema político para que deixemos de exibir o
atual cenário de baixíssima qualidade democrática, para recompor a
funcionalidade das instituições centrais de governo, enfim, para superar o
atual quadro de esquizofrenia social?
É a tal tarefa
analítica, de diagnóstico e de prescrições que devemos nos dedicar proximamente...
Paulo Roberto de Almeida
Em voo, Lisboa-Brasília, 3134: 30 de junho de 2017