A morte misteriosa de diplomata
brasileiro na Europa durante a ditadura
Livro-reportagem investiga episódio obscuro da história nacional
e revela fatos novos sobre ações da diplomacia brasileira em apoio ao regime
militar.
BBC
BRASIL.com
26 JUL2017
16h30
Agosto de 1970. No auge da repressão durante a ditadura
militar no Brasil, um jovem diplomata que servia na Embaixada do Brasil em
Haia, na Holanda, aparece morto na cidade dentro de seu carro, com cortes
pequenos no pulso esquerdo e um ferimento profundo no pescoço.
Paulo
Dionísio de Vasconcelos (à esq.) e os trabalhos de investigadores no carro em
que foi encontrado morto na Holanda; quase 50 anos depois, livro reconta
história esquecida do regime militar
Foto:
BBCBrasil.com
O caso levanta suspeita de motivação política. O mundo
vive sob a tensão da Guerra Fria. Diplomatas ajudavam a ditadura na vigilância
e até na perseguição a exilados políticos. Outros eram detidos e expulsos sob
acusação de colaborar com organizações de esquerda, que sequestravam
embaixadores estrangeiros para troca por presos políticos.
Em 24 horas de investigação, a polícia holandesa conclui
que o mineiro Paulo Dionísio de Vasconcelos cometera suicídio, pouco antes de
completar 35 anos. Responsável pela codificação de documentos secretos da
embaixada, ele deixava uma bebê de dois anos e a mulher nos últimos dias de
gravidez da segunda filha.
O inquérito se baseia em duas evidências: um inspetor
encontrara uma lâmina de barbear numa poça de sangue no carro e testemunhas
dizem que o diplomata vinha demonstrando sinais de nervosismo, ansiedade e
depressão. Não há pista de um eventual assassino nem carta de despedida.
Órgãos de imprensa, alguns colegas de Itamaraty e a
família levantam dúvidas sobre o inquérito. Fatos novos, surgidos nos meses
seguintes, aumentam as incertezas, mas autoridades pouco se mexem para
desvendá-los e o episódio acaba caindo no esquecimento da opinião pública.
Quase 50 anos depois, essa morte sob circunstâncias
misteriosas é reconstituída pelo jornalista Eumano Silva no
livro-reportagem A Morte do Diplomata: Um Mistério Arquivado pela Ditadura (Tema Editorial), que traz
informações inéditas sobre o caso e os anos de regime militar no Brasil.
Silva cobriu política por mais de 20 anos em Brasília, é
coautor de Operação
Araguaia: Os Arquivos Secretos da Ditadura (Geração Editorial), prêmio Jabuti de
livro-reportagem em 2005, e foi consultor da Comissão Nacional da Verdade
(2012-2014), que apurou violações aos direitos humanos cometidas no Brasil
entre 1946 a 1988.
Para reconstruir a história de Paulo Dionísio, que narra
em estilo de romance policial, ele teve acesso a documentos, fotos e até ao
diário pessoal do diplomata produzido durante o período na Holanda - centenas
de páginas com desabafos, resenhas, opiniões e relatos.
A família também lhe concedeu uma procuração para acesso
a documentos do Itamaraty sobre o caso.
Nesse trabalho de dois anos, Silva coletou informações
que expunham o cenário que envolvia a diplomacia brasileira à época, inclusive
com evidências da rede de vigilância montada para seguir a movimentação no
exterior do ex-arcebispo de Recife e Olinda d. Helder Câmara (1909-1999), que
denunciava prisões e torturas do regime para plateias internacionais.
"Tentei dar todos os elementos - os mesmos a que
tive acesso - para que as pessoas pudessem avaliar o caso. É muito complicado
saber como uma pessoa morreu se você não está perto. Como achava que não iria
conseguir uma resposta definitiva, achei mais importante colocar todos os elementos.
Seria isso suficiente? Não sei", disse Silva à BBC Brasil.
Resultado
de dois anos de pesquisas, livro de Eumano Silva conheceu teve origem em
trabalho de jornalista na Comissão Nacional da Verdade
Foto:
Divulgação
Trajetória
Natural de São Domingos do Prata, região central de Minas
Gerais, Paulo Dionísio de Vasconcelos vinha de uma família de elite. Seu pai,
José Matheus, era médico e referência política na região - foi prefeito de São
Domingos do Prata por dez anos. Cometeu suicidio em 1968, pouco mais de dois
anos antes da morte do filho, cravando um bisturi no peito.
Paulo frequentou rígidos colégios internos. Estudioso,
ainda na juventude exibia conhecimento do latim aprendido em escolas católicas,
montava peças de teatro, mostrava gosto por Filosofia. Conhecido como Paulão,
tinha mais de 1,90m de altura.
Formou-se advogado pela Universidade Federal de Minas
Gerais e ingressou no Itamaraty em fevereiro de 1966. O trabalho na Holanda,
onde chegara com a família em maio de 1969, era seu primeiro posto de
relevância fora do Brasil. Como segundo-secretário, chefiava o setor de
promoção comercial da embaixada.
Por ter feito um estágio em criptografia ainda no Brasil,
ele acabou também sendo encarregado do serviço sigiloso - codificava e
decodificava documentos secretos produzidos e recebidos pela representação
brasileira em Haia.
Os manuscritos do diário, conta o jornalista Eumano
Silva, revelam um diplomata aficionado por futebol (ele fazia longa análises
táticas sobre jogos europeus), cheio de opiniões sobre assuntos da atualidade e
que desfrutava de uma intensa vida social e cultural ao lado da mulher, Maria
Coeli, namorada de adolescência.
Ansiedade e tensão
Por outro lado, as páginas descreviam também brigas
constantes do casal - por "divergências na maneira de agir", como
descreve o autor do livro -, chateações do trabalho diplomático e o clima de
desconfiança vigente entre funcionários públicos naquele período.
"As perseguições políticas levam as pessoas a temer
o que fazem e falam", relata Eumano Silva no livro, a partir de exemplos
do diário do diplomata.
Paulo vinha reclamando, por exemplo, de pressões que
recebia do Itamaraty para acompanhar os movimentos de d. Helder Câmara em
viagens pela Europa - o diplomata costumava passar noites em claro para
transmitir, em criptografias, entrevistas concedidas pelo religioso à mídia
europeia.
Certa vez, teve que prestar esclarecimentos a superiores
após ter comentado com colegas - sem ter informado previamente aos chefes - que
assistira a uma entrevista com o religioso na TV holandesa.
Dom
Helder Câmara em visita a Holanda em 1981; livros mostra como passos de
religioso no exterior eram monitorados pela ditadura via Itamaraty
Foto:
Marcel Antonisse/Wikimedia Commons / Divulgação
Também manifestava nervosismo com uma cobrança insistente
do Ministério das Relações Exteriores sobre uma conta telefônica que havia sido
gerada pelo inquilino do apartamento que ele tinha em Brasília - a linha era do
Itamaraty, e a burocracia do ministério não aceitava as explicações do
diplomata.
"Os elementos de angústia mais fortes que aparecem
no diário estão no livro, quando ele fala do pai dele, de fraqueza",
lembra Eumano Silva.
Poucos dias antes de morrer, Paulo Dionísio havia tido
uma crise de impaciência após esquecer de postar uma carta da embaixada. A mulher
o convenceu então a ir ao médico, que prescreveu um calmante leve.
Morte e fatos sem explicação
O corpo de Paulo Dionísio foi encontrado à tarde por um
casal de estudantes, dentro de seu carro, estacionado ao lado de um bosque em
Haia, numa rua paralela à praia. Naquele dia, ele dissera à mulher que iria à
cidade vizinha de Utrecht, onde organizava uma feira comercial, passaria na
embaixada e voltaria para casa.
Em três horas de buscas no veículo e nos arredores, a
polícia não localizou nenhum objeto capaz de provocar os ferimentos que tinham
causado a morte do diplomata. Numa segunda busca, já no final da noite, um
inspetor encontrou uma lâmina de barbear numa espessa poça de sangue no tapete
do banco da frente.
Em menos de 24 horas, a polícia de Haia ouviu várias
testemunhas - como o embaixador do Brasil em Haia, colegas da embaixada, um
padre amigo da família e a viúva Maria Coeli.
Todos descreveram que Paulo Dionísio andava muito nervoso
e angustiado. Baseado na existência da lâmina e desses relatos, o inquérito
apontou que houve suicídio, conclusão que o próprio embaixador Carlos Eiras
reforçou à imprensa à época.
Mas a rapidez do inquérito (que não investigou o que
Paulo Dionísio havia feito naquela tarde, por exemplo) e a localização tardia
do instrumento do crime não eram as únicas "pontas soltas" do caso a
alimentar questionamentos na imprensa, entre colegas de Itamaraty e a própria
família do diplomata.
Naquelas mesmas semanas de agosto de 1970, Paulo Dionísio
recebera, na embaixada, uma carta em papel timbrado de um suposto escritório de
advocacia britânico, com as palavras "privada" e
"confidencial".
A correspondência detalhava supostas situações e atos
comprometedores atribuídos ao diplomata mineiro, como extorsões e posse de
documentos de veículos e barcos alheios. Por meio do escritório de advocacia,
um cliente chamado Jean Pierre Goehl cobrava a devolução de altas somas de
dinheiro e dizia estar preso após ter sido alvo de "maldades",
"maquinações" e "chantagens" de Paulo Dionísio.
"Ao mesmo tempo que culpa o diplomata, o remetente
extorque e ameaça. Descreve uma situação de criminalidade. Não explicita que
tipo de relação pessoal haveria entre o remetente e o destinatário da
carta", descreve Eumano Silva no livro.
As cartas misteriosas continuaram a chegar nos meses
seguintes à morte, mas acabaram sem explicação. A polícia holandesa disse que o
caso estava encerrado e sugeriu que uma eventual investigação ocorresse em
Londres. A Embaixada do Brasil na Holanda transferiu o caso à representação de
Londres, que comunicou apenas, segundo mensagem do embaixador em Haia à cúpula
do Itamaraty, que "nada" tinha sido apurado sobre o caso.
Não se sabe até hoje se a representação em Londres chegou
a tomar alguma providência concreta nesse sentido.
O autor do livro destaca que "não há elementos que
comprovem a veracidade dos acontecimentos narrados na correspondência".
"Falta conexão entre os episódios descritos e a rotina do diplomata. As
referências a vultosas quantias de dinheiro, Mercedes, motor de barco não fazem
sentido para os familiares", escreve.
As cartas também citavam a presença do diplomata em
Luxemburgo no ano de 1967, o que parentes dele sempre negaram - afirmam que,
pelo que sabiam, ele havia conhecido a Europa apenas ao se mudar para Haia. Mas
nunca foi possível encontrar um passaporte antigo dele para verificar essa
situação.
Eumano Silva menciona duas hipóteses para a estranha
correspondência: ação de golpistas que queriam se aproveitar da fragilidade da
família para pedir dinheiro para abafar um escândalo inexistente. Ou a ação de
algum serviço secreto tentando desestimular a família a contestar o resultado
da investigação.
"Qualquer que seja a circunstância, se realmente
aconteceu, as páginas expõem uma situação extrema. Merecedora de atenção
especial por parte das autoridades brasileiras e holandesas", escreve.
Incerteza
O político Paulino Cícero de Vasconcellos, irmão do
diplomata que foi deputado estadual, federal e ministro das Minas e Energia,
viajou à Inglaterra atrás de pistas em 1975 e no começo dos anos 1990 pediu
apoio do Itamaraty para encerrar as dúvidas, mas os documentos fornecidos não
trouxeram novidades.
Em 2014, ele entregou documentos à filha caçula do irmão
para que fossem levados à Comissão Nacional da Verdade, mas o material chegou
na reta final dos trabalhos do grupo e acabou sem análise.
Maria Lucia Abbott, jornalista brasileira baseada em
Londres que trabalhou com Eumano Silva no livro, foi a campo e em um mês e meio
de trabalho reuniu indícios de que um advogado e um escritório com nomes
citados nas cartas misteriosas realmente existiram na Inglaterra dos anos 1970.
"Quarenta e seis anos depois da morte do diplomata,
com alguns contatos e entrevistas, a jornalista descobre pontos de conexão das
cartas com a realidade na época dos fatos. Ao desprezar a busca de
esclarecimentos, o Itamaraty exime-se de desvendar a autoria das cartas. Deixa
na memória da instituição e da família Vasconcelos a incerteza quanto aos
autores das cartas", escreve Eumano no livro.
Pesquisa
para livro confirmou existência nos anos 1970 de escritório de advocacia em
Kingston upon Thames, na Grande Londres (foto), que assina carta
Foto:
Google Maps / Reprodução
O jornalista lembra que a documentação pesquisada para o
livro mostra que "as embaixadas tinham outras tarefas mais urgentes"
naquele momento, demandadas pela cúpula do Itamaraty e do regime: o
monitoramento da imprensa e dos exilados e a propaganda da ditadura.
Nesse sentido, para além da reconstrução da história do
diplomata, a pesquisa feita para o livro acabou trazendo à luz fatos históricos
que não eram de conhecimento público.
Como a atuação do Itamaraty na difusão da versão -
considerada falsa pela Comissão da Verdade - de suicídio do estudante e
sindicalista Olavo Hansen, morto em maio de 1970 após ser preso pela repressão.
Ou contatos feitos pela Embaixada do Brasil em Londres com a Scotland Yard, a
polícia metropolitana da capital britânica, para monitoramento de exilados
brasileiros.
Na história de Paulo Dionísio, a família não descarta a
hipótese de suicídio - há, por exemplo, a sombra do ato cometido pelo pai dois
anos antes e os relatos da própria mulher sobre o estado mental do diplomata
nos meses anteriores à morte. Mas a dúvida permaneceu, relata o jornalista no
livro.
"Ao procurar um fato citado nas cartas que tenha
relação com a vida dele, não há. Mas por que então isso não foi dito na época,
por que não apuraram, por que preferiram deixar a família em dúvida, realmente
não sei", diz.
A BBC Brasil procurou o Ministério das Relações
Exteriores para comentários sobre os fatos expostos no livro de Eumano Silva,
mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
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