José Osvaldo de Meira Penna: um intelectual brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI).
Qualquer que seja a
qualificação que se lhe atribua – liberal, conservador, direitista –, Meira
Penna foi um dos grandes intelectuais brasileiros, certamente o maior da
carreira diplomática, talvez até mais, na variedade e volume dos escritos, que os
dois outros colegas que poderiam legitimamente lhe ser equiparados: Roberto
Campos e José Guilherme Merquior. Já conhecedor de boa parte de sua obra, para
preparar esta nota fui consultar as entradas sob seu nome nas bibliotecas próximas.
As do Itamaraty, possuem apenas 27 obras (mas em vários exemplares), sendo 17
na SERE, oito no Rio de Janeiro e duas no Instituto Rio Branco. A do Senado
Federal, mais copiosa em artigos do que em livros, exibe 16 obras no catálogo,
mas 104 artigos – parte ínfima de seus “sueltos” em periódicos, durante décadas
–, sendo o último deles significativamente intitulado “Por que escrever memórias?”
(2006).
Suas memórias, justamente, ficaram por terminar, e
ainda permanecem sob a guarda da família. Um excelente verbete na Wikipedia
registra 23 livros publicados, dos quais eu destacaria os seguintes: O Brasil na Idade da Razão (1980); O Evangelho segundo Marx (1982); O Dinossauro (1988); Utopia brasileira (1988); Opção preferencial pela riqueza (1991); O espírito das revoluções (1997); A Ideologia do século XX (1994); Em berço esplêndido: ensaios de psicologia
coletiva brasileira (1999); Da moral
em economia (2002). Esse verbete, provavelmente escrito pelo amigo Ricardo
Vélez-Rodríguez, trata de suas análises sobre o patrimonialismo brasileiro,
nosso cartorialismo, o burocratismo, e vários ismos também fustigados pelo seu
colega – e contemporâneo na carreira – Roberto Campos. Ambos ingressaram em
1938, ainda na fase dos concursos do DASP, (mal) acompanhados por muitos outros
“empistolados” que entraram pela janela, o que prolongou-se até a criação do
Instituto Rio Branco.
Antes de entrar no Itamaraty eu já o conhecia de nome,
pelos artigos publicados no Estadão ou
no Jornal do Brasil. Quando ingressei,
fui ler um de seus livros: Política externa: segurança e desenvolvimento (1967), obra que discute de forma inteligente os dois
princípios da era militar. O primeiro livro emergiu no segundo posto: Shanghai:
aspectos históricos da China moderna (1944). Ao partir para missão temporária nessa
cidade, em 2010, eu o contatei, para conversar sobre a cidade que ele tinha
conhecido antes da dominação comunista. Em mensagem de 8/11/2009, ele me escreveu:
Estive
duas vezes em Xanghai [sic]. Da primeira, 1941-42, como Vice-Cônsul sob as
ordens do Cônsul Geral James F. Mee. Da segunda, em 1949, assistindo ao fim da
guerra civil que trouxe Mao ao poder. Dessa segunda vez, fiquei quase um ano em
Nanking como Encarregado de Negócios, até a chegada do novo Embaixador, Paranhos
da Silva. Saí da cidade duas semanas antes da entrada dos maoístas. (...) Terei
grande prazer em conversar consigo. Meu telefone é...
Eu já o conhecia desde os anos 1980, tendo feito uma
visita à sua residência, a “Vila Castália”, na Park Way, depois de retornar do
doutorado e começar a dar aulas no Instituto Rio Branco e na UnB, onde ele
também se exercia como professor do então Departamento de Relações
Internacionais. Ele me presenteou com um de seus livros, e nos anos seguintes
fui adquirindo ou sendo agraciado com vários outros, todos eles fortemente
estimulantes de um diálogo de alto nível sobre as razões do atraso brasileiro
em perspectiva histórica e comparada, com base em grandes nomes da cultura
ocidental: Weber, Tocqueville, Marx e outros pensadores. Meira Penna foi, salvo
engano, o primeiro brasileiro a ser admitido na Sociedade do Mont Pèlerin,
o grupo liberal criado no imediato pós-guerra por Friedrich Hayek para se
contrapor ao keynesianismo, já dominante nas universidades e nas políticas
econômicas de quase todos os países.
Por sua vez, ele se contrapôs desde o início ao
pensamento estatizante e terceiro-mundista, que prevalecia nas elites
brasileiras, independentemente do regime político ou das chefias do Itamaraty. Em
plena atividade como embaixador nos anos 1970, Meira Penna nunca se eximiu de
criticar as orientações da política externa, em especial as dos últimos
governos da era militar. Tais críticas recrudesceram na democratização, a
despeito da boa disposição inicial em relação ao banqueiro Olavo Setúbal. Aposentado
desde 1981, seu último grande embate se deu pela denúncia das “polonetas”, os
créditos oferecidos a países socialistas para a exportação de manufaturas
brasileiras sem quaisquer garantias credíveis. O mesmo ocorreu nos
financiamentos oferecidos a países do Terceiro Mundo, na África e na América
Latina, redundando em grandes perdas para o país, quando as insolvências
passaram a exame, e desconto, no âmbito do Clube de Paris, onde o Brasil era
admitido como credor.
Em meados dos anos 1980 ele funda, com amigos e
intelectuais de renome, a Sociedade Tocqueville, assim como esteve na origem do
Instituto Liberal de Brasília. Suas principais contribuições no campo
intelectual se dão na crítica ao patrimonialismo e à mentalidade estatizante e
intervencionista no Brasil, entranhada na psicologia social, que interpreta com
base em teses de Carl Gustav Jung. Uma
das últimas manifestações de Meira Penna se deu em entrevista a Bruno
Garschagen, do Instituto Mises Brasil, em 6/12/2013 – no link: https://www.youtube.com/watch?v=XkE00n0ZYNk –, na qual ele revela inicialmente que sua orientação
liberal surgiu ainda em 1935, quando ele iniciava estudos de Direito e ocorreu
a intentona comunista de novembro daquele ano. As leituras de Hayek, Mises e
Milton Friedman foram solidificando suas convicções liberais, e sua oposição ao
ambiente positivista, intervencionista, nacionalista míope, predominante no
Brasil e na grande maioria dos países dominados pelo keynesianismo.
Sua morte, aos cem anos,
em 29 de julho de 2017, deixou o Brasil mais pobre na vertente liberal, num
ambiente intelectual carente de grandes nomes nessa área, pois já rarefeito
desde o desaparecimento de Roberto Campos e de José Guilherme Merquior. Uma
coleção de ensaios em sua homenagem seria bem vinda, a exemplo daquela que se
fez por ocasião do centenário de Roberto Campos: O homem que pensou o Brasil. Uma coletânea de seus escritos mais
representativos seria ainda melhor...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de janeiro de 2018
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