sexta-feira, 20 de julho de 2018

A Rotinizacao do Diplomata (1993) - Paulo Roberto de Almeida

Um texto de 1993, quando se discutia a reforma da carreira e do próprio Itamaraty, durante a gestão do então chanceler Fernando Henrique Cardoso. Nunca foi publicado. Vai aqui divulgado pela primeira vez.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de julho de 2018

A rotinização do diplomata

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 269: 03/05/1993

Max Weber, ao que tudo indica, voltou à moda no Itamaraty, se é que alguma vez sua sociologia das instituições burocráticas serviu de modelo para a organização da carreira. Em todo caso, aqueles que se esforçam atualmente pela modernização de métodos administrativos e pelo aperfeiçoamento das normas que regem a política de pessoal fazem, direta ou indiretamente, constante referência a princípios de organização burocrática supostamente inspirados na obra do grande sociólogo alemão.
Note-se, en passant, que o Itamaraty sempre foi “weberiano” malgré-lui: tendo começado a funcionar sob uma sociedade decididamente “patrimonialista”, a Casa adquiriu sua aura de prestígio sob uma administração tipicamente “carismática”, quando não “patriarcal”, na figura do velho Barão, objeto de um verdadeiro culto à personalidade. Acompanhando o processo de modernização do Estado, ela também passou por diversos experimentos de racionalização burocrática (de inspiração “daspiana” ou independente) e conservou, a despeito de uma crescente profissionalização no modelo da administração impessoal, diversas práticas personalistas e outras tantas vantagens prebendalistas. Mais weberiana, portanto, impossível. Trata-se, no entanto, de um weberianismo pelo método confuso, na qual a própria burocracia apresenta-se como carismática — cultiva-se muito o mito da excelência — e subjugada por uma personalização extremamente rebuscada das relações de poder (Herrschaft). 
Seria, portanto, desejável que um verdadeiro “weberianismo de resultados” inspirasse nossos colegas e autoridades na difícil tarefa de estabelecer os princípios, definir os mecanismos e conduzir os atos administrativos e legais de mais uma reforma na Casa e na carreira, depois de tantos experimentos malogrados e esforços frustrados. O malaise existe e é perceptível por quem quer que tenha conversado com os estratos iniciais e intermediários da carreira. Ele não deriva tão simplesmente de uma situação material particularmente penosa durante o serviço em Brasília, por mais que a pesquisa sobre as “condições de vida” tenha indicado uma real preocupação com as condições de trabalho na SERE ou com questões tão prosaicas como a concessão de RD para os diplomatas lotados em Brasília.
O diplomata brasileiro, aparentemente num péssimo exemplo de weberianismo prático, se rotinizou a tal ponto que ele passa a perseguir as mesmas vantagens de tipo material que transformaram o serviço público brasileiro num mosaico de absurdos corporativos e a estrutura de sua remuneração numa verdadeira selva salarial, com os vários penduricalhos particularistas que são as gratificações. Se é verdade, como quer nosso Chanceler-sociólogo, que o Itamaraty deve abrir-se à sociedade, seria interessante que ele tomasse a iniciativa e participasse de um movimento por uma verdadeira racionalização dos sistemas de remuneração e qualificação do serviço público brasileiro, no qual o objetivo maior seria a defesa dos interesses da Nação e do Estado e não a busca de vantagens corporativas.
Mas, vamos direto ao ponto: o malaise atual da carreira é inteiramente devido ao deficiente e moroso sistema de ascensão funcional e aos critérios pouco claros de seleção para chefias e postos. As observações que se seguem pretendem deixar claro o que uma reforma verdadeiramente “weberiana” poderia assegurar em termos de transparência e participação nos destinos da carreira. Tratemos primeiro da ascensão funcional.
Um dos elementos mais interessantes aportados ao debate pelo texto de Fernando de Mello Barreto sobre o serviço exterior canadense (ADB, I, 1) foi a informação de que o “direito administrativo canadense contém princípios que impedem a interferência política em promoções. Fundamentam-se em legislação sobre a neutralidade política do funcionário público”, aliás um saudável princípio weberiano. O sistema ali em vigor, com Comissões de Promoção múltiplas e formulários escritos de avaliação, parece assegurar os requisitos necessários de transparência e democracia, sendo como tal digno de estudo e consideração por parte de nossos reformadores weberianos.
Mas, como paliar os problemas reais do serviço exterior brasileiro, responsáveis por tantos desestímulos e desalentos na carreira ? Tendo em vista o incômodo fenômeno da redução no fluxo das promoções, a introdução de um sistema de quotas mínimas anuais para fins de ascensão funcional, aplicado com base em critérios etários, apareceria como eminentemente justo, inclusive para prevenir o desestímulo vocacional nas jovens gerações e uma baixa dedicação ao trabalho nos estratos intermediários.
Mas, também é justo o atual critério dos 15 anos de permanência no nível máximo da carreira, introduzido justamente para atender a princípios da equidade e de justiça, algo abalados pelo estabelecimento, em sucessivas administrações anteriores, de regras casuísticas que beneficiaram determinadas categorias de funcionários em detrimento de outras (promoções “fora do Quadro”, por exemplo, formalmente “legais”, mas notoriamente ilegítimas). Este critério é, aliás, consentâneo com regras semelhantes existentes em carreiras comparáveis do ponto de vista hierárquico e funcional (de que é exemplo, na carreira militar, a expulsória, cumpridos 12 anos de generalato), concorrendo assim para o estabelecimento de uma certa isonomia nos regimes jurídicos do funcionalismo federal.
A aplicação combinada e coerente de ambos os sistemas, ou seja a regra da expulsória e o critério etário, permitiria atender ao preenchimento das quotas anuais segundo critérios bastante claros. Ambos os sistemas são de natureza essencialmente objetiva e sua aplicação combinada atenderia plenamente aos princípios da equidade e da justiça. A renovação contínua dos graus superiores da hierarquia asseguraria, também, a necessária fluidez no exercício efetivo de cargos de chefia nos postos da SERE ou do exterior.
Quanto ao problema da remoção para postos, o critério de seleção mediante prévia e adequada publicidade das vagas e postulação aberta de candidaturas parece realmente o mais adequado, tendo sido acolhido pela CAOPA. Manifesta-se ali uma opção pela criação de “colegiados decisórios” o que, se por um lado, corresponde a uma saudável democratização da política de pessoal, pode, por outro, pender para o lado do democratismo populista, tendência negativa já observada, por exemplo, na instituição acadêmica.
Nessa questão, como na das promoções, não se deve descartar, em absoluto, a desigualdade inerente e estrutural de qualificações pessoais, de interesse profissional e de dedicação funcional presente no universo itamaratiano (como aliás em qualquer outro corpo burocrático constituído). Assim, mesmo sendo radicalmente a favor de uma aferição objetiva da performance na carreira, de preferência medida por méritos próprios e desprovida de apadrinhamentos externos, não se pode rotinizar excessivamente o trabalho de aferição qualitativa dos funcionários diplomáticos sob risco de matar o potencial criador das personalidades individuais. A transformação e o progresso nas organizações burocráticas sempre passaram, deve-se reconhecer, por uma boa dose de carisma weberiano. 

[Brasília, 269: 03/05/1993]

339. “A Rotinização do Diplomata”, Brasília: 3 maio 1993, 4 pp. Artigo sobre os problemas da carreira diplomática, com ênfase na crítica dos pequenos ganhos corporativos e nas deformações do fluxo ascensional. Destinado ao Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, mas reconsiderado por seu conteúdo crítico. Inédito.

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