Um livro exemplar, por um dos grandes historiadores do Brasil:
Biografia resgata história do primeiro embaixador negro do Brasil e joga luzes sobre racismo na diplomacia nacional
Nordestino e de família pobre, o escritor Raymundo Souza Dantas foi primeiro negro nomeado embaixador, sob críticas da elite; pessoas declaradamente negras ainda são minoria ínfima entre os que ingressam no Instituto Rio Branco
Thayz Guimarães
O Globo, 08/08/2021
O embaixador Raymundo Souza Dantas
Foto: Foto Luis Alberto / Agência O Globo/21-10-1971
Nordestino de origem pobre e analfabeto até os 18 anos, Raymundo Souza Dantas (1923-2002) foi o primeiro negro a figurar no alto escalão da diplomacia brasileira. Sua nomeação pelo então presidente Jânio Quadros a embaixador do Brasil em Gana, em 1961, foi saudada por movimentos progressistas, mas também foi alvo de intensa campanha difamatória por parte da elite nacional, ressentida com a pressão para abandonar sua postura racista — ao menos de forma escancarada — nos anos do pós-guerra, quando veio à tona o genocídio de milhões de judeus pelo Estado nazista.
No livro Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador brasileiro negro, lançado neste ano pela Saga Editora, Fábio Koifman, professor de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), resgata esse capítulo quase esquecido da diplomacia brasileira e joga luzes sobre o racismo existente na carreira, com um número diminuto de diplomatas negros tendo conseguido atingir os cargos mais altos até hoje.
‘Democracia racial’
Segundo o autor, o Brasil dos anos 1960 gostava de se apresentar como uma “democracia racial”, supostamente livre de preconceitos de cor. Mas isso não significava que as estruturas sociais haviam mudado de fato. Os exemplos de racismo que passaram a ser abertamente discutidos a partir de 1945 ainda persistiam, como a falta de negros nas escolas de oficiais das Forças Armadas e no Itamaraty.
— Em 1961, a elite brasileira já não podia dizer abertamente qual era o problema da indicação de Raymundo para um posto historicamente reservado à nata da sociedade — afirma Koifman. — Como pegava muito mal dizer que ele não servia como embaixador porque era negro, o argumento adotado foi que ele não era ninguém, não tinha expressão como intelectual, jornalista ou escritor, o que também não é verdade.
Nascido em 1923 na pequena cidade de Estância, interior de Sergipe, a 66 quilômetros de Aracaju, Raymundo Souza Dantas aprendeu sozinho a ler e a escrever nos fundos de uma oficina tipográfica onde trabalhou no Rio. Entre meados dos anos 1940 e início dos anos 1960, seu nome já era conhecido na imprensa carioca, com publicações em diversos veículos, entre eles a revista ilustrada O Cruzeiro, editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e o jornal Diário Carioca, onde se tornou próximo de figurões como Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende.
No livro, Koifman destaca uma publicação de 1946 do jornal A manhã que cita autores relevantes e promissores, incluindo Souza Dantas, que aparece ao lado de uma jovem Clarice Lispector e de Antonio Candido, mais tarde considerado um dos maiores críticos literários do Brasil.
— Souza Dantas foi nomeado embaixador na mesma leva que o escritor Rubem Braga e o pintor Cícero Dias, ambos também de fora da carreira diplomática. Mas nenhum deles foi tão pesadamente criticado como Raymundo, que era negro, pobre e de família nordestina desconhecida, tudo a que as elites, principalmente as do Rio de Janeiro, tinham horror — afirma Koifman.
Além das críticas diretas que Souza Dantas recebia, especialmente de pessoas ligadas ao Instituto Rio Branco — criado em 1945 para formar diplomatas profissionais —, muitas histórias também foram inventadas a seu respeito, como conta o autor de “O primeiro embaixador brasileiro negro”.
A talvez mais célebre delas dizia que o agrément do brasileiro pelo governo de Gana havia demorado muitíssimo porque Acra tinha se ofendido com a indicação de um negro para comandar a embaixada do Brasil no país, uma democracia africana recém-fundada após a independênca do domínio britânico, em 1957.
— Durante a minha pesquisa, descobri que a historiografia incorporou mitos e boatos que circularam à época e foram sendo repetidos como verdades — afirma Koifman. — No caso do agrément, a aprovação de todos os indicados de fora da carreira foi demorada. A do Rubem Braga, por exemplo, chegou muito depois da de Raymundo, e a do Cícero Dias nem sequer chegou, tanto que ele acabou nem indo para o Senegal.
Dança com Nkrumah
Outra história inventada, mas repetida nas biografias de Souza Dantas, diz o autor, foi a de que o presidente de Gana e líder político pan-africano Kwame Nkrumah se recusou durante três meses a receber o brasileiro e que, depois de ter concordado com o encontro, o teria maltratado por esperar um tratamento igual ao das embaixadas europeias, para onde eram direcionados diplomatas brancos.
— Essa é uma das grandes mentiras que inventaram contra ele. A recepção oficial de Raymundo em Gana demorou apenas oito dias, e as fotos revelam que ele chegou a dançar com Nkrumah, uma honraria concedida a poucos na cultura local. A rainha Elizabeth II dançou com Nkrumah! — contou Koifman. — A verdade é que a elite brasileira colocava na boca dos outros os seus próprios preconceitos.
Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, a missão de Souza Dantas em Gana, que nunca recebeu apoio suficiente — não tanto por ele ser negro, mas mais por ser na África, ressalva Koifman —, terminou de naufragar. Seu retorno para o Brasil, no entanto, ocorreu somente em julho de 1963, depois de um duro período de restrições financeiras, a ponto de a embaixada precisar cortar funcionários e atrasar salários.
Em 2002, o ano da morte de Souza Dantas, o Instituto Rio Branco implantou o Programa de Ação Afirmativa (PAA), um esforço pioneiro de diversificação do funcionalismo brasileiro por meio da concessão de bolsas-prêmio para negros que queiram ingressar na carreira diplomática. A esse programa somou-se, em 2014, a Lei 12.990, que garante ao menos 20% de negros entre os aprovados em concursos públicos.
Sem sucessores
Porém, passados 60 anos da nomeação do escritor, o cenário pouco mudou na diplomacia brasileira, com um número diminuto conseguindo atingir o topo da carreira.
O Ministério das Relações Exteriores disse ao GLOBO não saber o número exato de negros em seus quadros, porque não há um formulário perguntando a cor da pele dos funcionários. Levantamentos feitos por Koifman, no entanto, apontam que apenas mais um negro chegou a ministro de primeira classe, que é o cargo mais alto da diplomacia, equivalente a embaixador.
Informações do ministério dão conta de que 20 candidatos beneficiados com a bolsa do PAA ingressaram no Instituto Rio Branco entre 2002 e 2014. Entre 2014 e 2020, 32 candidatos negros foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, dos quais 27 em vagas reservadas nos termos da Lei 12.990 e cinco por vagas destinadas à ampla concorrência. Isso significa que, de um total de 950 vagas oferecidas entre 2002 e 2020, apenas 5,4% foram preenchidas por pessoas declaradamente negras.
No livro, Koifman conclui: “O precedente foi estabelecido, aos trancos, barrancos e ao custo de muito sofrimento para Raymundo. Mas o fato de tão poucos afrodescendentes terem chegado à posição mais alta do Itamaraty em toda a História do Brasil é evidência mais do que suficiente de que as resistências seguiram a existir e seguem existindo, e de que a sociedade brasileira ainda precisa evoluir muito para poder ser considerada ou se aproximar um dia da tão mencionada ‘democracia racial’”.
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