terça-feira, 25 de junho de 2024

Livres da Polarização - Darwin Reverso, por Guga Casari (revista Inteligência Democrática)

 

Darwin Reverso

Guga Casari, Inteligência Democrática (25/06/2024)

Recentemente tive a oportunidade de observar a rápida formação de um grupo de WhatsApp chamado Livres da Polarização. Rapidamente se formou um grupo fenomenal constituído por mais de 160 membros, ansiosos por um espaço onde pudessem conversar e trocar ideias sobre o atual momento político do Brasil, extremamente polarizado, de extremos com os quais não se identificam. Grupo do qual faço parte, com uma proposta que acredito e com a qual espero poder colaborar.

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A proposta atratora do Livres da Polarização não tem a intenção de organizar um movimento político com esta ou aquela pauta, ou promover esta ou aquela candidatura, mas de fomentar conversações sobre o próprio ambiente em que a política chega a fazer sentido, o ambiente democrático.

No caso ali não se trata de formar um grupo para ter algum poder ou força, mas de criar uma maré ampla aonde todos os barcos possam navegar com segurança e liberdade.

Mas ocorre um paradoxo, exatamente ao se formar “um grupo”, surgem fundadores, patronos, decanos, seniores e juniores, informadores e informados... E por mais bem intencionadas que estejam as pessoas, multipolarizações acontecem, e principalmente a ideia de dentro/fora surge concomitantemente ao surgir uma agremiação. Pois por voluntaria e de boa vontade que seja a reunião, o caos, a agitação, e todas as nossas ansiedades de resolver no outro questões tão prementes que nos incomodam surgem nesse espelho agitado.

Fica evidente que a arquitetura do WhatsApp e o ambiente que conjura não é o mais adequado para conversações que se chamariam matrísticas (*). Difícil naquele fluxo não ser estimulado a tomar atitudes hierárquicas e hierarquizantes. Onde estão os líderes? Para onde vamos com isso? Qual é a pauta, a eficácia, a estratégia? O efeito frenético e afunilador é exatamente o oposto de um emocionar necessário a conversas inclusivas, integradoras, democráticas. A agitação, e o fluxo multi monológico de tantas vozes atomizadas querendo ouvidos dificulta que as questões sutis originais e necessárias surjam no meio do caldo grosso das repetições.  É uma arquitetura de corredor de tempo crônico e com um fluxo lixiviante de sentido, dificultando a conversação humanizante.

A opção de configuração possível que ressurge para “organizar” os fluxos parece ser transformar o corredor em megafone (um tipo piramidal, um para muitos, broadcasting), ou criar um fluxo tão coerente que se torna um raio laser cortante, ou ainda um campo de força para mais uma bolha de mais polarização. Métodos naturais de um grupo, um exército de crentes, que quer se organizar e ocupar um espaço, uma corporação que controla um poder etc. As arquiteturas disponíveis  parecem exigir estruturação dos corpos e das vozes, e sua organização. Parece pedir que uns (muitos) se calem para que alguns (poucos) possam falar, mas pouco faz para realmente horizontalizar e criar as redes micelares, fluidas e polinizantes nas quais poderíamos distribuir mais poder e abundancia que ousamos conceber.

Me parece que presentemente as mídias sociais reproduzem um efeito de onda do complexo militar que criou a internet. Por que estas estruturas de comunicação pedem hierarquia, por que concentram poder? Será uma limitação, uma exigência intrínseca do meio ou é uma limitação de nossa imaginação ao usar as ferramentas? Pois para servir de instrumento democratizante, essas ferramentas de super-comunicação deveriam ser colocadas ao serviço de uma comunidade imaginal maior e de um tempo diferente do crônico, mais amplo e com mais caminhos. Talvez ande nos faltando imaginação, ou desintoxicação dos modos autoritários para usarmos os instrumentos ao nosso dispor como arados e não armas?  Estaremos condicionados ao utilitarismo de tal forma que não conseguimos usar o tempo como inútil aos nossos propósitos, à nossa história, aos nossos pequenos métodos e apenas sentir a humanidade extensa num espaço calmo e cheio de vida, para começar dali uma história nova? Sem polarização, sem alienação, sem guerra?

Penso que uma praça e práxis sem polarização tem que ser vista num contexto imaginal de tempo e de espaço mais livre, não condicionado por pautas agitadoras de emoções, divisionistas e emburrecedoras, desinteressado por estratégias de conquista e vitória, por esquemas de divisão do trabalho e rankeamento de funções. Ou seja para que por um momento se crie uma brecha pela qual vejamos o essencial, o que nos une como gente viva.

Vale como experimento, dar uma respirada, ouvir mais, ser mais essencial na comunicação, falar a partir do cerne inteiro de si, e assumir como seu aquilo que se projeta sobre o outro, ao menos como hipótese para começar um detox.  Se aproximar do outro é uma atividade de cuidado e aprendizado, é aprender uma língua nova, é ensinar com gestos amistosos, é oferecer pequenos brindes, e aceitá-los.

Somos mais "conscientes" socialmente conectados do que não. A "consciência humana" é um empreendimento coletivo. Tudo o que significa alguma coisa para o meu EU não veio de mim, e subsistirá após minha partida. Fui ensinado a ser gente, por bem e por mal por gerações de avós até a primeira tartaruga que sustenta o mundo em cima de um elefante, em cima de um dragão. E porque sou primata, porque sou um mamífero primitivo com um mini cérebro de lagartixa lá no meio da gosma cinza que parece achar que tem razão, eu amo, e coopero, e choro, e copio, e vibro com tudo o que é vivo.

E aqui se torna necessário colocar duas definições de consciência: algo do que se é consciente (um conteúdo), ou ter uma percepção sensorial, emocional ou racional de algo. Existe uma ideia de que há graus de consciência, inferiores animalescos e corruptos, superiores espiritualizados e virtuosos. Essa ideia é amplamente explorada na desumanização do outro, e nossa alienação de seu mundo e do nosso próprio. O maior grau de polarização vem daí. Nossa virtude, a baixeza do outro. A ideia de um baixo grau de consciência da humanidade que vai por aí, sem futuro seres estúpidos todos, sem salvação, e a necessidade de preservar nosso bunker de virtude, pureza e virgindade...

Posso ter uma grande magnitude de consciência/percepção focada num aspecto mínimo ou disfuncional de consciência/conteúdo, o carisma de um Hitler talvez venha disso, hiperfoco num buraco negro. Posso ter uma pequena magnitude de consciência/percepção e vislumbrar por essa brecha estreita um horizonte de liberdade para mim e para todos os seres e fazer disso um caminho humilde, e feliz. Dai que penso que consciência é qualidade mais que quantidade. Consciência é ao mesmo tempo o que escolho colocar no altar de minha atenção, como o que dedico da minha pequena chama para iluminar um pergaminho de sabedoria, de amor ao próximo, ou um pequeno mantra de desintoxicação da autocracia e patriarcado entranhados em meus ossos.

Muito do que sei ou sou, sei ou sou em relação, e só faz sentido porque sou parte da comunidade humana, e da comunidade das pessoas commons dessa região do planeta. Negros escravos, índios desterrados, desbravadores broncos, regentes despreparados, imigrantes esperançosos, território imenso, céu sem fim, favela, condomínio, família, igreja, hospício, mina... Minha consciência é um incomodo e desconjuntado conhecimento disso, algo que nunca consigo arrumar, e o outro, o outro... não ajuda. Não entende minha fala, não intui minha necessidade, e ocupa todos os espaços! Difícil curar a loucura surtada, desintegradora e alienante que é achar que o mundo é um problema por culpa primeira e última do outro. Meu desafio diário...

É porque tantas vezes sou eu é que estou pirando num fluxo caudaloso e saturado de informações que querem me formatar que manter a sanidade, mesmo quando o mundo parece pirar, é um jeito, talvez o único de salvar o mundo. E uma comunidade de pessoas afins sem dúvida é um balsamo fundamental para permanecer são mantendo acesa a tocha do viver democrático, resistindo suave e com doçura e picardia quando os vendedores de óleo de cobra oferecem soluções doentias, ou se colocam em palanques pra se vender como líderes visionários ou salvadores.

Este artigo se chama Darwin Reverso porque é exatamente a lógica do indivíduo em competição por recursos escassos que está nos falhando como imagem daquilo que realmente somos, ou podemos ser. Darwin reverso é a ideia de inverter a ideia da vitória do mais forte, mais alto, do mais mais, faminto e canceroso. O Indivíduo, a ideia que somos aquela bolha isolada e autogerada, que parece um pouco com um ser humano, está sendo levada à ultima potência, e está quebrando nas juntas. Estamos usando uma teoria de nós que não presta, que já era. E não é de surpreender que instrumentos e métodos que visam servir a esse construto capenga venham nos atrapalhando. Na realidade estão potencializando de tal modo a ideia do self isolado que vão levar essa bolha a uma explosão catastrófica. Não estamos dando conta de nós mesmos... veja a cacofonia que aparece quando ajuntados numa tubulação de WhatsApp. E estamos custando a compreender a dimensão da mudança requerida para que contemos uma nova história, para que cantemos uma nova e renovada canção local e planetária de sentido e proposito.

Os índios Hopi têm um mito de que a humanidade já passou por alguns momentos críticos, pelo que me lembro já foram quatro passagens estreitas e estamos na quinta. A percebemos presentemente como a singularidade, o efeito exponencial do acumulo de saberes e poderes rompendo todos os gráficos e apontando para a estratosfera, rompendo o teto, e talvez, tirando o chão.

Acredito que estamos todos sendo convidados a abrir uma porta diferente dessa singularidade explosiva e sem controle, estamos sendo convidados a abrir uma interface nova com os outros eus a nossa volta, desarmando a bomba. O mundo de muita gente está em guerra capturado num passado estéril e o remédio de um outro tempo já está aqui, entre nós.


(*) O termo 'matrístico' foi introduzido por Humberto Maturana (1993) no seu livro Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. Assim ele explica o seu significado: "O termo “matrístico” é usado aqui com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra “matrístico”, portanto, é o contrário de “matriarcal”, que significa o mesmo que o termo “patriarcal”, numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras, a expressão “matrística” é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa".

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