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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Meus livros podem ser vistos nas páginas da Amazon. Outras opiniões rápidas podem ser encontradas no Facebook ou no Threads. Grande parte de meus ensaios e artigos, inclusive livros inteiros, estão disponíveis em Academia.edu: https://unb.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida

Site pessoal: www.pralmeida.net.
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sábado, 19 de julho de 2025

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida, Prefácio e Posfácio

Em vista dos desenvolvimentos recentes no âmbito do BRICS+ (cúpula no RJ) e as ameaças do presidente Trump contra o bloco e especificamente contra o Brasil, assim como declarações tempestuosas dele e do presidente Lula sobre os embates em curso entre os dois dirigentes (certamente não entre os dois países, seus empresários e trabalhadores), resolvi transcrever o prefácio e o posfácio de meu livro sobre o bloco, publicado em formato Kindle em meados de 2022, antes, portanto, de sua transmutação em bloco de oposição ao Ocidente, sob pressão da China e da Rússia.


Eis o índice geral, sendo que o livro está disponível neste link da Amazon.com:
https://www.amazon.com/grande-ilus%C3%A3o-%20Brics-diplomacia-brasileira-%20ebook/dp/B0B3WC59F4/ref=sr11?keywords=A+grande+ilus%C3%A3o+do+Brics+e%20+o+universo+paralelo+da+diplomacia+brasileira&qid=1656513882&sr=8-1

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida


Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas

O Prefácio pode ser lido aqui:
https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/07/a-grande-ilusao-do-brics-e-o-universo_18.html

sexta-feira, 18 de julho de 2025

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira, Posfácio do livro de Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo o Posfácio deste livro publicado em formato Kindle, em junho de 2022, ou seja, antes do BRICS+. Em postagem imediatamente anterior, transcrevi o Prefácio.


A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida

Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas


Posfácio:
O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.”
Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote (1914)

        A frase do filósofo espanhol é bastante conhecida, e pode ser interpretada de diversas formas, geralmente no plano individual. Pelo menos dois dos autores citados nos ensaios que compõem este livro, Robert Kagan e Parag Khanna, atribuem forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.
        Napoleão, por sua vez, reconhecendo a relação muito estreita entre a geografia e a política, teria dito: “Um Estado faz a política de sua geografia”, ou, segundo outras fontes, “A política de um Estado está em sua geografia.” Qualquer que seja a forma exata do aforisma do primeiro cônsul da Revolução francesa, depois Imperador da nação dominante na Europa do século XVIII e início do XIX, ele não conseguiu dominar a geografia europeia, ao tentar estender sua preeminência sobre a Europa continental – que se estendia das penínsulas ibérica e itálica, até praticamente a Prússia oriental, onde vivia Kant – às terras eslavas da Rússia, passando, portanto, sobre territórios que depois conformariam duas repúblicas soviéticas, a Bielorrússia (ou Rússia branca) e a Ucrânia. O pequeno corso, genial estrategista militar, foi vencido não tanto pela geografia, como pela distância, fator que também afligiu as tropas da Wehrmacht, quando tentaram vencer onde Napoleão tinha falhado: as terras longínquas da Rússia europeia, que podia escolher, como fizeram os generais czaristas, recuar até o ponto no qual o “general inverno” se encarregaria de abater tropas francesas e blindados nazistas.
        Voltando à circunstância geográfica do Brasil, sua projeção estratégica – para retomar o vocabulário dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Aqui se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.
        Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. O que ultrapassasse tais “circunstâncias geográficas” – o hemisfério norte, o Atlântico Sul, o continente africano, terra de origem de grande parte da população, que depois se mesclou aos aborígines e aos colonizadores e aos imigrantes, e as terras mais distantes “para além da Taprobana” – seriam objeto de suas relações exteriores “dentro de lo que cabe”, como poderia também dizer Ortega y Gasset. Ou seja, construído o espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.
Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e alhures, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

        Os argumentos acima podem ajudar a explicar os motivos pelos quais eu falei de uma “miragem do Brics” e de um “universo paralelo da diplomacia brasileira”, pois estas duas expressões me parecem resumir o desvario da política externa do lulopetismo ao pretender construir uma aliança não natural com duas superpotências nucleares, autocráticas, e uma outra potência nuclear, mas de dimensão média, embora afligida pelos mesmos problemas de subdesenvolvimento de parte de sua população, mas dotada de instituições democráticas de tão baixa qualidade quanto as do Brasil, os quatro Estados originais não exatamente isentos dos males da corrupção, da desigualdade e de um excesso de intervencionismo estatal. A adição de mais um parceiro, africano, não mudou quase nada a conformação inicial do novo grupo, e de toda forma não resultou de uma decisão diplomática do Brasil, e sim de uma decisão tomada praticamente de forma monocrática pelo principal membro do grupo. Que o Brics tenha sido uma miragem – talvez imaginada como sendo capaz de criar uma ordem mundial alternativa àquela dominada pelos arrogantes ocidentais – e que ela tenha sido promovida por uma espécie de diplomacia paralela à normalmente existente na instituição bicentenária de nossas relações exteriores, as justificativas desse julgamento, talvez severo, se encontram na dezena de textos compilados nesta coletânea que teve por único objetivo oferecer à curiosidade dos interessados meus argumentos dotados de ceticismo sadio quanto à propriedade da iniciativa e sua adequação aos requisitos do desenvolvimento brasileiro, que se estenderam desde antes que esse “animal diplomático” fosse criado até certa ruptura do padrão diplomático seguido durante três mandatos e meios do assim chamado lulopetismo. Os governos ulteriores receberam essa herança e a mantiveram num ritmo mais incerto, sem o entusiasmo dos amadores que comandaram a política externa por quase três lustros.
        Nunca tive nenhuma hesitação em classificar de erro de percepção, até de concepção, a iniciativa, tomada entre as duas nações que figuram em primeiro lugar no acrônimo do Brics, de operar a transmutação de um mero exercício de “carteira de investimentos” de um economista de banco de negócios internacionais em um grupo diplomático, como toda a parafernália habitual nesse tipo de empreendimento: reuniões de sherpas, conferências de ministros e, culminando, os encontros de cúpula, com o diplomatês também habitual garantido pelos diplomatas profissionais, e o entusiasmo pouco refletido da maior parte da academia e do jornalismo. Uma das coisas que me surpreenderam sobremaneira, em mais de quatro décadas de exercício profissional da diplomacia – mas combinada a uma atividade acadêmica também constante, assim como a estudos e pesquisas regulares ao longo de todo esse período –, foi a pouca capacidade de meus colegas, tanto na diplomacia quanto na academia, de refletirem criticamente sobre a aventura proposta por dirigentes políticos e diplomáticos, em meados da segunda década deste século e de avançarem estudos técnicos, reflexões ponderadas, exercícios e simulações fundamentadas em dados empíricos, no tocante às possibilidades praticamente inexequíveis de tal grupo heterogêneo, separado pela cultura, pela história e pela geografia, resultar em algum arranjo racional e instrumental para os objetivos nacionais de desenvolvimento, vale dizer para os interesses da nação.
        O que ocorreu foi que uma decisão oportunista, movida unicamente pelo apelo ocasional de uma sigla construída com objetivos totalmente distintos, acabou transformada em um empreendimento de Estado, em total ligeireza de avaliação e com falta completa de senso crítico. Surpreendeu-me a submissão de diplomatas – geralmente tido por burocratas de altíssima qualidade intelectual – a uma ideia sem qualquer consistência efetiva, sem apoio numa tradição de relacionamentos mais profundos – como os existentes entre os países da América do Sul, por exemplo – e sem o cuidado de buscar, na densidade já adquirida de nossas interfaces externas (geralmente no próprio hemisfério, e com os continentes de origem de nossa população mestiça), a rationale fundamental que justificasse tal objetivo grandioso: a união diplomática, num novo grupo, de quatro grandes economias emergentes, pensadas originalmente como fonte de retornos ampliados a investidores, repentinamente consideradas como iniciadoras de um projeto de mudança da “ordem internacional” existente, tida talvez como não compatível com os interesses nacionais dos quatro paladinos (mas esses interesses eram compatíveis entre si?). Não, não estou condenando ou censurando os diplomatas: eles apenas cultivam os dois princípios que lhes foram inculcados desde o Instituto Rio Branco e depois em discursos regulares da direção quando falando para a tropa reunida: hierarquia e disciplina (coisa que eu considero válidas para soldados de linha, mas não para diplomatas).

        Meus artigos e ensaios, espaçados por toda a “vida útil” do Brics, visavam tão somente chamar a atenção para as discrepâncias entre os países, para o lócus único de cada um no sistema internacional – se sistema existe – e discutir as dificuldades em construir uma agenda coerente a partir dessas diferenças estruturais entre eles, o que eu já havia feito, aliás, para o primeiro exercício de voluntarismo internacional do lulopetismo diplomático, o grupo IBAS, congregando três dos futuros cinco integrantes do Brics, Brasil, Índia e África do Sul. Não considerava, tampouco, desde o início de 2003, que os três países tivessem problemas comuns, a não ser a pobreza, a desigualdade e até a miséria de boa parte das populações respectivas, e jamais admiti que esses problemas pudessem ser solucionados por uma agenda comum de trabalhos, que necessariamente seria reduzida ao mínimo denominador comum e acabaria se traduzindo em viagens de diplomatas e outros burocratas, num esforço insano de produzir declarações que se alimentam delas próprias, entre uma e outra reunião de consulta e coordenação. Assim, quando foi aventada a ideia de mais um grupo diplomático a partir de ideias mal concebidas e, de toda forma, pensadas para objetivos mais prosaicos – retornos de investimentos financeiros –, considerei que o novo empreendimento também padecia de “males de origem”, como classificou Manoel Bonfim as dores do subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina.
        Mas, o que eram apenas reflexões de natureza basicamente econômica, sociológica, com alguns toques amadores de geopolítica para aprendizes, não pretendiam de forma alguma mudar as posições do governo brasileiro ou de sua diplomacia, pois eu tinha plena consciência de que o pacote partidário da diplomacia lulopetista seria aplicado de forma fiel pelos apparatchiks da presidência e pelos servidores do corpo diplomático. Essas reflexões adquirem agora, no momento em que decido coletar as mais importantes – apenas 10, entre duas dúzias, aproximadamente – para uma publicação consolidada, uma outra conotação, que é mais de caráter propriamente político, ou talvez essencialmente moral: o governo daquele momento decidiu unir alguns dos movimentos diplomáticos do Brasil aos de dois outros países já bastante conhecidos pelo caráter autocrático de seus governos. O que parecia uma simples oportunidade de ganhos econômicos, diplomáticos e de prestígio internacional, no momento em que uma dessas autocracia viola flagrantemente a Carta das Nações Unidos, afronta todos os capítulos dos manuais de Direito Internacional e pratica crimes de guerra – e possivelmente crimes contra a humanidade – meus textos críticos ao Brics aparecem numa nova luz, a de uma recusa prévia de uma aventura que eu já achava antinatural e contrária ao espírito e à letra de nossas tradições diplomáticas mais arraigadas, o respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas condenadas pela Carta da ONU e pela Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas. Não é possível o Brasil permanecer indiferente à agressão e aos crimes.
        Eppur si muove, como diria Galileu, no entanto, o Brasil do atual governo não apenas permanece indiferente ao terrível suplício de um povo e de uma nação, como, pelo seu mais alto dirigente demonstra uma ativa solidariedade e um apoio objetivo a esses crimes. Daí, que resolvi – depois de já ter coletados os artigos e ensaios aqui compilados – escrever este posfácio para declarar, em alto e bom som, que como acadêmico, como diplomata e como cidadão, repudio e condeno a postura do governo atual, o dessa gestão absolutamente prejudicial à diplomacia profissional, ao conceito e à imagem do Brasil no plano externo, ao nosso prestígio internacional tão duramente construído e mantido, a despeito de percalços, nos anos que se sucederam à ditadura militar (que também nos envergonhou como cidadãos e diplomatas). Parte da postura do governo atual em relação aos crimes que estão sendo perpetrados contra o povo ucraniano se devem, justamente, à nossa condição de membros desse grupo anômalo que se chama Brics, que na verdade se tornou um instrumento a mais de atuação de duas autocracias bastante poderosas. Isso já era verdade, quando um governo anterior permaneceu igualmente indiferente em face de uma primeira violação da soberania da Ucrânia, o sequestro e a anexação de parte do seu território – a península da Crimeia – e a promoção do separatismo armado em suas províncias orientais, de ocupação russa.

        Meu posfácio tinha sido concebido primariamente para explicar os conceitos de “miragem do Brics” e de “universo paralelo” da diplomacia lulopetista, mas agora está sendo escrito para declarar minha postura em face da miséria diplomática atual, uma fase indigna de nossa política exterior que espero possa ser corrigida num futuro próximo. Um dos escolhos a uma reversão nesse sentido se chama justamente Brics: o quadro atual materializa temores que eu já mantinha desde o início, apenas por uma rejeição natural a ditaduras.
Espero que esta coletânea possa servir para despertar certo espírito crítico entre meus colegas, acadêmicos, jornalistas, cidadãos interessados na diplomacia brasileira: ela teve apenas esse modesto objetivo, que aliás se coaduna com um dos objetivos declarados do editor Monteiro Lobato, que era originalmente o de Castro Alves:

        Livros à mão cheia,
        E manda o povo pensar!
        É germe – que faz a palma,
        É chuva – que faz o mar!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de junho de 2022

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: Prefácio - Paulo Roberto de Almeida


Transcrevo o Prefácio deste livro publicado em formato Kindle, em junho de 2022, ou seja, antes do BRICS+. Em postagem subsequente, transcreverei o Posfácio.

A grande ilusão do Brics : e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida

Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo

        Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”.
        A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946.
        Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.
        Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.
        Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.
        Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014.
        Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.
        De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas.
        Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

        Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política.         A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.
        O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil.
        Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais.
        Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo.         Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 6 de maio de 2022