Transcrevo o Posfácio deste livro publicado em formato Kindle, em junho de 2022, ou seja, antes do BRICS+. Em postagem imediatamente anterior, transcrevi o Prefácio.
A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida
Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas
Posfácio:
O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.”
Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote (1914)
A frase do filósofo espanhol é bastante conhecida, e pode ser interpretada de diversas formas, geralmente no plano individual. Pelo menos dois dos autores citados nos ensaios que compõem este livro, Robert Kagan e Parag Khanna, atribuem forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.
Napoleão, por sua vez, reconhecendo a relação muito estreita entre a geografia e a política, teria dito: “Um Estado faz a política de sua geografia”, ou, segundo outras fontes, “A política de um Estado está em sua geografia.” Qualquer que seja a forma exata do aforisma do primeiro cônsul da Revolução francesa, depois Imperador da nação dominante na Europa do século XVIII e início do XIX, ele não conseguiu dominar a geografia europeia, ao tentar estender sua preeminência sobre a Europa continental – que se estendia das penínsulas ibérica e itálica, até praticamente a Prússia oriental, onde vivia Kant – às terras eslavas da Rússia, passando, portanto, sobre territórios que depois conformariam duas repúblicas soviéticas, a Bielorrússia (ou Rússia branca) e a Ucrânia. O pequeno corso, genial estrategista militar, foi vencido não tanto pela geografia, como pela distância, fator que também afligiu as tropas da Wehrmacht, quando tentaram vencer onde Napoleão tinha falhado: as terras longínquas da Rússia europeia, que podia escolher, como fizeram os generais czaristas, recuar até o ponto no qual o “general inverno” se encarregaria de abater tropas francesas e blindados nazistas.
Voltando à circunstância geográfica do Brasil, sua projeção estratégica – para retomar o vocabulário dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Aqui se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.
Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. O que ultrapassasse tais “circunstâncias geográficas” – o hemisfério norte, o Atlântico Sul, o continente africano, terra de origem de grande parte da população, que depois se mesclou aos aborígines e aos colonizadores e aos imigrantes, e as terras mais distantes “para além da Taprobana” – seriam objeto de suas relações exteriores “dentro de lo que cabe”, como poderia também dizer Ortega y Gasset. Ou seja, construído o espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.
Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e alhures, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.
Os argumentos acima podem ajudar a explicar os motivos pelos quais eu falei de uma “miragem do Brics” e de um “universo paralelo da diplomacia brasileira”, pois estas duas expressões me parecem resumir o desvario da política externa do lulopetismo ao pretender construir uma aliança não natural com duas superpotências nucleares, autocráticas, e uma outra potência nuclear, mas de dimensão média, embora afligida pelos mesmos problemas de subdesenvolvimento de parte de sua população, mas dotada de instituições democráticas de tão baixa qualidade quanto as do Brasil, os quatro Estados originais não exatamente isentos dos males da corrupção, da desigualdade e de um excesso de intervencionismo estatal. A adição de mais um parceiro, africano, não mudou quase nada a conformação inicial do novo grupo, e de toda forma não resultou de uma decisão diplomática do Brasil, e sim de uma decisão tomada praticamente de forma monocrática pelo principal membro do grupo. Que o Brics tenha sido uma miragem – talvez imaginada como sendo capaz de criar uma ordem mundial alternativa àquela dominada pelos arrogantes ocidentais – e que ela tenha sido promovida por uma espécie de diplomacia paralela à normalmente existente na instituição bicentenária de nossas relações exteriores, as justificativas desse julgamento, talvez severo, se encontram na dezena de textos compilados nesta coletânea que teve por único objetivo oferecer à curiosidade dos interessados meus argumentos dotados de ceticismo sadio quanto à propriedade da iniciativa e sua adequação aos requisitos do desenvolvimento brasileiro, que se estenderam desde antes que esse “animal diplomático” fosse criado até certa ruptura do padrão diplomático seguido durante três mandatos e meios do assim chamado lulopetismo. Os governos ulteriores receberam essa herança e a mantiveram num ritmo mais incerto, sem o entusiasmo dos amadores que comandaram a política externa por quase três lustros.
Nunca tive nenhuma hesitação em classificar de erro de percepção, até de concepção, a iniciativa, tomada entre as duas nações que figuram em primeiro lugar no acrônimo do Brics, de operar a transmutação de um mero exercício de “carteira de investimentos” de um economista de banco de negócios internacionais em um grupo diplomático, como toda a parafernália habitual nesse tipo de empreendimento: reuniões de sherpas, conferências de ministros e, culminando, os encontros de cúpula, com o diplomatês também habitual garantido pelos diplomatas profissionais, e o entusiasmo pouco refletido da maior parte da academia e do jornalismo. Uma das coisas que me surpreenderam sobremaneira, em mais de quatro décadas de exercício profissional da diplomacia – mas combinada a uma atividade acadêmica também constante, assim como a estudos e pesquisas regulares ao longo de todo esse período –, foi a pouca capacidade de meus colegas, tanto na diplomacia quanto na academia, de refletirem criticamente sobre a aventura proposta por dirigentes políticos e diplomáticos, em meados da segunda década deste século e de avançarem estudos técnicos, reflexões ponderadas, exercícios e simulações fundamentadas em dados empíricos, no tocante às possibilidades praticamente inexequíveis de tal grupo heterogêneo, separado pela cultura, pela história e pela geografia, resultar em algum arranjo racional e instrumental para os objetivos nacionais de desenvolvimento, vale dizer para os interesses da nação.
O que ocorreu foi que uma decisão oportunista, movida unicamente pelo apelo ocasional de uma sigla construída com objetivos totalmente distintos, acabou transformada em um empreendimento de Estado, em total ligeireza de avaliação e com falta completa de senso crítico. Surpreendeu-me a submissão de diplomatas – geralmente tido por burocratas de altíssima qualidade intelectual – a uma ideia sem qualquer consistência efetiva, sem apoio numa tradição de relacionamentos mais profundos – como os existentes entre os países da América do Sul, por exemplo – e sem o cuidado de buscar, na densidade já adquirida de nossas interfaces externas (geralmente no próprio hemisfério, e com os continentes de origem de nossa população mestiça), a rationale fundamental que justificasse tal objetivo grandioso: a união diplomática, num novo grupo, de quatro grandes economias emergentes, pensadas originalmente como fonte de retornos ampliados a investidores, repentinamente consideradas como iniciadoras de um projeto de mudança da “ordem internacional” existente, tida talvez como não compatível com os interesses nacionais dos quatro paladinos (mas esses interesses eram compatíveis entre si?). Não, não estou condenando ou censurando os diplomatas: eles apenas cultivam os dois princípios que lhes foram inculcados desde o Instituto Rio Branco e depois em discursos regulares da direção quando falando para a tropa reunida: hierarquia e disciplina (coisa que eu considero válidas para soldados de linha, mas não para diplomatas).
Meus artigos e ensaios, espaçados por toda a “vida útil” do Brics, visavam tão somente chamar a atenção para as discrepâncias entre os países, para o lócus único de cada um no sistema internacional – se sistema existe – e discutir as dificuldades em construir uma agenda coerente a partir dessas diferenças estruturais entre eles, o que eu já havia feito, aliás, para o primeiro exercício de voluntarismo internacional do lulopetismo diplomático, o grupo IBAS, congregando três dos futuros cinco integrantes do Brics, Brasil, Índia e África do Sul. Não considerava, tampouco, desde o início de 2003, que os três países tivessem problemas comuns, a não ser a pobreza, a desigualdade e até a miséria de boa parte das populações respectivas, e jamais admiti que esses problemas pudessem ser solucionados por uma agenda comum de trabalhos, que necessariamente seria reduzida ao mínimo denominador comum e acabaria se traduzindo em viagens de diplomatas e outros burocratas, num esforço insano de produzir declarações que se alimentam delas próprias, entre uma e outra reunião de consulta e coordenação. Assim, quando foi aventada a ideia de mais um grupo diplomático a partir de ideias mal concebidas e, de toda forma, pensadas para objetivos mais prosaicos – retornos de investimentos financeiros –, considerei que o novo empreendimento também padecia de “males de origem”, como classificou Manoel Bonfim as dores do subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina.
Mas, o que eram apenas reflexões de natureza basicamente econômica, sociológica, com alguns toques amadores de geopolítica para aprendizes, não pretendiam de forma alguma mudar as posições do governo brasileiro ou de sua diplomacia, pois eu tinha plena consciência de que o pacote partidário da diplomacia lulopetista seria aplicado de forma fiel pelos apparatchiks da presidência e pelos servidores do corpo diplomático. Essas reflexões adquirem agora, no momento em que decido coletar as mais importantes – apenas 10, entre duas dúzias, aproximadamente – para uma publicação consolidada, uma outra conotação, que é mais de caráter propriamente político, ou talvez essencialmente moral: o governo daquele momento decidiu unir alguns dos movimentos diplomáticos do Brasil aos de dois outros países já bastante conhecidos pelo caráter autocrático de seus governos. O que parecia uma simples oportunidade de ganhos econômicos, diplomáticos e de prestígio internacional, no momento em que uma dessas autocracia viola flagrantemente a Carta das Nações Unidos, afronta todos os capítulos dos manuais de Direito Internacional e pratica crimes de guerra – e possivelmente crimes contra a humanidade – meus textos críticos ao Brics aparecem numa nova luz, a de uma recusa prévia de uma aventura que eu já achava antinatural e contrária ao espírito e à letra de nossas tradições diplomáticas mais arraigadas, o respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas condenadas pela Carta da ONU e pela Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas. Não é possível o Brasil permanecer indiferente à agressão e aos crimes.
Eppur si muove, como diria Galileu, no entanto, o Brasil do atual governo não apenas permanece indiferente ao terrível suplício de um povo e de uma nação, como, pelo seu mais alto dirigente demonstra uma ativa solidariedade e um apoio objetivo a esses crimes. Daí, que resolvi – depois de já ter coletados os artigos e ensaios aqui compilados – escrever este posfácio para declarar, em alto e bom som, que como acadêmico, como diplomata e como cidadão, repudio e condeno a postura do governo atual, o dessa gestão absolutamente prejudicial à diplomacia profissional, ao conceito e à imagem do Brasil no plano externo, ao nosso prestígio internacional tão duramente construído e mantido, a despeito de percalços, nos anos que se sucederam à ditadura militar (que também nos envergonhou como cidadãos e diplomatas). Parte da postura do governo atual em relação aos crimes que estão sendo perpetrados contra o povo ucraniano se devem, justamente, à nossa condição de membros desse grupo anômalo que se chama Brics, que na verdade se tornou um instrumento a mais de atuação de duas autocracias bastante poderosas. Isso já era verdade, quando um governo anterior permaneceu igualmente indiferente em face de uma primeira violação da soberania da Ucrânia, o sequestro e a anexação de parte do seu território – a península da Crimeia – e a promoção do separatismo armado em suas províncias orientais, de ocupação russa.
Meu posfácio tinha sido concebido primariamente para explicar os conceitos de “miragem do Brics” e de “universo paralelo” da diplomacia lulopetista, mas agora está sendo escrito para declarar minha postura em face da miséria diplomática atual, uma fase indigna de nossa política exterior que espero possa ser corrigida num futuro próximo. Um dos escolhos a uma reversão nesse sentido se chama justamente Brics: o quadro atual materializa temores que eu já mantinha desde o início, apenas por uma rejeição natural a ditaduras.
Espero que esta coletânea possa servir para despertar certo espírito crítico entre meus colegas, acadêmicos, jornalistas, cidadãos interessados na diplomacia brasileira: ela teve apenas esse modesto objetivo, que aliás se coaduna com um dos objetivos declarados do editor Monteiro Lobato, que era originalmente o de Castro Alves:
Livros à mão cheia,
E manda o povo pensar!
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de junho de 2022