Questão da Ucrânia — A importância da Comunidade de Estados Independentes e de Minsk para a solução do conflito
Paulo Antônio Pereira Pinto
Rio de Janeiro, 2 de maio de 2023
“Nesse caso, a Rússia também não seria reconhecida como país independente”, comentou leitor da Folha de São Paulo, após notícia de que o Embaixador chinês em Paris, S.r. Shaye, ter afirmado que “a Ucrânia e os demais países que pertenceram à União Soviética não têm status efetivo sob o direito internacional, porque não há um acordo internacional que confirme seus status como nações soberanas”.
Não seria esta, obviamente, a premissa para a resolução do conflito em curso entre a Rússia e a Ucrânia: o não reconhecimento de ambas como países independentes.
Nem seria realista a expectativa de que guerras na Europa sejam resolvidas, atualmente, sempre, pelo “quarteto” EUA, Reino Unido, Alemanha e França. No caso da invasão russa a solução contemplada por tais atores habituais implicaria apenas a busca da vitória ucraniana. Tal solução, resta pouca dúvida, não levaria a paz duradoura.
Na perspectiva de que Rússia e Ucrânia existem como nações soberanas e que há que se buscar o diálogo para solução pacífica do conflito, este exercício de reflexão pretende sugerir que a questão ucraniana poderia ser considerada, em “arcabouço” de geometria mais ampla — deixada, a propósito, pela antiga União Soviética.
Penso na moldura da “Comunidade de Estados Independentes” — herdeira de países que formaram a URSS — estabelecida, em Minsk, capital da Belarus, em 8 de dezembro de 1991.
A partir do início daquele ano, a dissolução da União Soviética parecia algo inevitável e, na data citada no parágrafo anterior, líderes da Rússia, Belarus e Ucrânia se reuniram na reserva natural de Belovezhskaya Pushcha, 50 km ao norte da cidade de Brest, Belarus. Assim nasceu a ideia da Comunidade dos Estados Independentes, ao mesmo tempo em que foi anunciado que a nova confederação estaria “aberta a todas as repúblicas da União Soviética”.
O então Presidente da URSS, Michail Gorbachev, descreveu a reunião como algo “ilegal e perigoso” e “um golpe constitucional”. Mas prontamente ficou claro que pouco ou nada havia por fazer. Em 21 de dezembro, os líderes de onze das quinze ex-repúblicas soviéticas se reuniram em Almaty, Cazaquistão, e assinaram o tratado. Desta maneira, a CEI foi ratificada e a União Soviética oficialmente extinta.Em 25 de dezembro, Gorbachev renunciou como presidente de um país que já não existia “de facto”.
Os três estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) não assinaram o tratado, assim como a Geórgia — os quatro argumentaram que haviam sido incorporados à União Soviética à força. Os 11 participantes iniciais foram Armênia, Azerbaijão, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Moldovia, Federação Russa,Tajiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Ucrânia. Em dezembro de 1993, a Geórgia finalmente aderiu à CEI e em agosto de 2008 se retirou após a invasão russa de seu território.
Mesmo independentes, os 11 antigos membros da URSS decidiram manter vínculo entre si, com o objetivo de estabelecer sistema econômico e de defesa entre antigas repúblicas da União Soviética.
Apesar da forte influência da Federação Russa, os demais países que compõem a CEI mantêm formalmente uma autonomia, garantida pela descentralização política conseguida com a independência em relação à estrutura administrativa da antiga União Soviética.
Tendo como capital a cidade de Minsk, a CEI é estruturada administrativamente por dois conselhos, sendo um composto por chefes de governo e outro, por chefes de Estado.
Apesar da estrutura de seu funcionamento formal, entre seus membros existem inúmeras disputas entre os países da comunidade, além do não cumprimento de acordos firmados. Vale destacar as constantes tensões e conflitos entre membros da CEI ou mesmo no interior dos países, em decorrência de diferenças étnicas e regionais.
Tive oportunidade de visitar a sede da CEI, em Minsk, a título de cortesia, enquanto fui Embaixador na Belarus, entre 2015 e 2019, e verifiquei que se trata de organização “simbólica”, que funcionaria como uma espécie de “banco de reservas”, onde permanecem disponíveis acordos, mecanismos de negociação e projetos da antiga URSS, que poderiam ser “colocados em campo”, caso alguma proposta de integração ou de resolução de conflito fosse realmente almejada.
Embaixadores dos países membros da referida comunidade, acreditados em Minsk, apresentam credenciais também ao Diretor da CEI. A lista de participantes tem variado, com inclusão e separação de antigos membros da URSS, de acordo com dinâmica regional de aproximação ou distanciamento da Rússia.
De qualquer forma, existem adormecidos na CEI mecanismos de articulação que “eventualmente” poderiam ser acionados no que diz respeito à Questão da Ucrânia. Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar disputas entre países membros da antiga União Soviética.
Em certa medida, sugestão de esforço no sentido de valorizar tal “organização semiadormecida” poderia servir de aceno ao Presidente Putin, em seus devaneios de ressuscitar um “projeto Eurasiano”, sob influência de Moscou, conforme será lembrado a seguir.
Ademais, cabe registrar que “acordos de Minsk” têm sido a norma para tentar resolver conflitos envolvendo antigos membros da União Soviética, entre estes a Rússia.
Há, no momento, dois “Minsk Groups”, associados a conflitos ocorridos depois da dissolução da União Soviética: o que foi dedicado ao conflito em Nagorno-Karabakh (NK), entre o Azerbaijão e a Armênia; e o facilitador do diálogo na questão da Ucrânia.
Em ambos, o nome desta capital consta como o local onde os encontros são ou deixam de ser realizados. Não há protagonismo bielorrusso na busca de solução dos problemas. O papel de facilitador nas negociações, no entanto, eleva o perfil diplomático da Belarus no cenário mundial. Este país, sabe-se, é objeto de sanções internacionais por seu sistema de governo autoritário, que o leva a ser conhecido como “A Última Ditadura da Europa”.
O primeiro Grupo de Minsk foi criado, em 1992, com vistas à conferência para negociação entre Baku, Azerbaijão, e Yerevan, Armênia. É presidido por representantes dos Estados Unidos, França e Federação Russa. Seus membros permanentes são: Belarus, Alemanha, Itália, Suécia, Finlândia e Turquia.
Na prática, seus “co-chairs” reúnem-se, periodicamente, em Viena, sede da Organização de Segurança e Cooperação da Europa, e visitam as capitais dos países que disputam o território de Nagorno-Karabakh.
Entre os empecilhos para a solução do conflito, por um lado, a Armênia não aceita a aplicação de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que determinam sua retirada do território azeri. Por outro, Baku não permitiria o contato direto entre as partes em combate naquela área, pois — de acordo com seu entendimento — tal comunicação significaria o “reconhecimento de alguma legitimidade ao inimigo invasor”.
O cenário de congelamento permanente deste conflito muito prejudica projetos de integração da área antes ocupada pela URSS, nos moldes da União Econômica Euroasiática, ambicionada por Putin.
Desnecessário lembrar que a questão da Ucrânia é disputa mais próxima de Minsk, envolvendo populações etnicamente “russas”. Convencionou-se, também, atribuir o nome desta capital ao grupo que lhe busca solução.
A propósito, o que acontece no Cáucaso diz respeito a pessoas que, segundo visão “imperial” de Moscou, seriam bárbaros, a serem mantidos na esfera de influência da Federação Russa, como obstáculo de contenção de impérios vizinhos — como o fazia Roma antiga.
A nova visibilidade de Minsk
Quando cheguei a Minsk, em março de 2015, a Belarus ficara mais nítida no mapa da Europa Central, em virtude da crise ucraniana, iniciada um ano antes.
Sua posição estratégica crescera em importância, em área de turbulência política, enquanto permanecia o interesse pela adesão bielorrussa ao projeto “eurasiano”, ambicionado pelo Presidente Putin.
Em síntese, cabe lembrar que, enquanto “Bela” significa “Branco”, o nome do país não pode ser traduzido por “Rússia Branca”. O “Rus” não se refere à Rússia, mas descreve área da Europa Central, coberta por neve e povoada por eslavos, em oposição à Rustênia Negra, controlada por povos lituanos.
Outra possível origem do nome seria o fato de que aquele território não ter sido invadido pelos mongóis que, no século XIII, conquistaram grande parte da Europa. A área em questão, portanto, era considerada parte do “Rus Branco”. “Bel” ou “Biel” também significaria “livre”, num período em que a maior parte da Rússia se encontrava sob o jugo dos tártaros.
Cabe, portanto, notar que a Belarus é um país cujo nome sugere o passado de um povo que habitou “uma região europeia livre”.
Verifica-se, contudo, que, desde sua independência da extinta União Soviética, tem sido chamada de a “última ditadura na Europa”, em virtude de manter sistema de governo com fortes traços do antigo regime soviético.
O nome “Belarus” referia-se, então, a uma região específica do centro da Europa e, não, a uma nação, até o final do século XIX. A estruturação do território bielorrusso, nos moldes de um Estado moderno, ocorreu a partir de 1920, com sua inclusão na União Soviética.
Durante o período da República Socialista Soviética Bielorrussa, o país adquiriu estrutura de estado nacional. Suas instituições nacionais eram e continuam a ser fortemente moldadas pelas criadas na Rússia Soviética.
Daí, não causar surpresa que a moldura institucional hoje existente em Minsk sirva para manter a Belarus em área de influência russa.
Isto é, a forma de governança, com fortes traços autoritários herdados do período soviético, serve à formulação de políticas nacionais que, ainda hoje, com grande facilidade, se alinham com orientações ditadas por Moscou.
O projeto eurasiano de Putin
Verifica-se, a propósito, que, por trás da ofensiva da Rússia sobre a Ucrânia, há mais do que interesses geopolíticos e econômicos. O Presidente Vladimir Putin estaria defendendo, também, projeto de “neo euro-asianismo”, ideologia nacionalista nascida na década de 1920 e reescrita após o desmoronamento da União Soviética.
Fiel à tradição e aos valores cristãos ortodoxos, a doutrina reúne princípios e ideais distintos dos vigentes no chamado “mundo ocidental”.
No artigo “Um novo projeto de integração para a Eurásia; o futuro que nasce hoje”, publicado em 04.10.2011, Putin defende a criação de uma União Euroasiática — a partir da fusão de mecanismos de integração existentes e herdados da União Soviética (entre estes poderiam ser incluídos os disponíveis na CEI, citados acima) — idealizada como um dos polos de poder no mundo contemporâneo e ponte entre a Europa e a Ásia Oriental.
A teoria reafirma o que qualifica de “identidade russa”, nascida da fusão de povos eslavos e de origem turca. A Rússia seria um terceiro continente, situado entre a Europa e a Ásia. Antes de quase desaparecer no século XX, esta linha de pensamento se opunha, tanto ao Ocidente liberal, considerado decadente, quanto aos soviéticos, que baniram o cristianismo ortodoxo da Rússia, assim como seus valores tradicionais.
O presidente russo, então, adotou discurso que ressalta a ideia de “tradição”, cara à Igreja Ortodoxa russa, e recusando o multiculturalismo, o feminismo, a homossexualidade e o que chama de “valores não tradicionais” de origem ocidental.
A Rússia se define, segundo Putin, como “um modelo civilizacional”, contrastando-se com os EUA, que qualifica de poder “revisionista”, empenhado em desestabilizar o mundo promovendo mudanças de regime, especialmente no mundo árabe. O Kremlin também vê os EUA como uma fonte de instabilidade no antigo espaço soviético e culpa o Ocidente pela turbulência ucraniana.
O tratado para a criação da União Euroasiática, com sede em Moscou, foi assinado em novembro de 2011, pelos presidentes de Rússia, Belarus e Cazaquistão. O grupo deveria incluir Armênia, Quirguistão e Tajiquistão a partir de 2015.
Como se sabe, ao convencer o ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich a renunciar à ambição de um acordo de livre comércio com a União Europeia, em novembro de 2013 — evento que detonou o Movimento na Praça da Independência, em Kiev — Putin planejava a inclusão da Ucrânia no novo bloco.
Na prática, a União Euroasiática reconstituiria a maior parte do território da URSS, cujo esfacelamento é considerado por Putin como uma das maiores tragédias do século XX. O objetivo era manter a Ucrânia sob sua influência, fazendo-a participar de seu projeto, não admitindo sua “deriva” em direção ao Ocidente.
Minsk vem-se inserindo de modo muito mais profundo na órbita russa nos últimos anos. A aproximação de Moscou tem sido conveniente para o Presidente Lukashenko, na medida em que o ajuda a contrabalançar as pressões da União Europeia e dos EUA por maior abertura política no país. A Rússia também é crucial para a Belarus, em razão das deficiências energéticas que a obrigam a importar petróleo e gás natural do vizinho, a preços subsidiados.
A importância da CEI na questão da Ucrânia
No âmbito da Comunidade de Estados Independentes, foi assinado, em 15 de maio de 1992, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva por Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e
Uzbequistão, na cidade de Tashkent. O Azerbaijão assinou o tratado em 24 de setembro de 1993, a Geórgia em 9 de dezembro de 1993 e a Belarus em 31 de dezembro de 1993. O tratado entrou em vigor em 20 de abril de 1994.[1]
A OTSC é uma organização observadora na Assembleia Geral das Nações Unidas. Sua fundação reafirmava o desejo dos Estados participantes em se abster do uso ou ameaça da força. Os signatários não poderiam aderir a outras alianças militares — como a OTAN — ou outros grupos de estados, enquanto a agressão contra um signatário seria percebida como uma agressão contra todos.
Para tanto, a OTSC organizou, regularmente, exercícios militares entre as nações membros. O de maior escala da foi o “Rubezh 2008”, que ocorreu na Armênia. Um total de 4 mil soldados dos sete países membros da OTSC realizaram treinamento conjunto.
Apesar de seus propósitos de segurança coletiva, verifica-se, contudo, que a OTSC, no âmbito da CEI pode apresentar, apenas, um “frozen conflict” — entre Armênia e Azerbaijão — e outro que talvez venha a congelar-se — entre a Rússia e a Ucrânia — no espaço pós-soviético. Dessa forma, fazem parte da agenda de preocupações dos chamados “Grupos de Minsk” iniciativas destinadas a “conviver” com estes problemas.
Conforme sugerido acima, no entanto, o “arcabouço” disponível na referida Comunidade, poderia sondar fórmulas para o debate de temas, como, por exemplo:
- Para que, com o compromisso de não adesão ucraniana à OTAN, as convenções “adormecidas” na CEI, pudessem levar a Rússia a retirar suas tropas das regiões da Ucrânia, Donbass e outras, que ocupara em 2022. Permaneceriam estas sob a soberania da Ucrânia, mas um grau mais elevado de autonomia lhes seria garantido?
- Poder-se-ia, também, considerar o congelamento da crise na Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Ou seja, não haveria um reconhecimento internacional de que a região passe a fazer parte da Rússia. Seria possível, contudo, não haver um questionamento sobre o fato de que, na prática, a região está controlada e administrada por Moscou?
- Haveria espaço, em compromissos assumidos no âmbito da CEI, sobre Direitos Humanos, para discutir o tema do emprego do idioma russo, por aqueles que o tenham como parte de sua cultura original? Lembra-se que não apenas a Ucrânia é habitada por tais minorias.
- Seria garantida, ainda com maior ênfase, a segurança dos membros da CEI, contra eventuais ameaças de países ou alianças militares vizinhas?
Nesse sentido, seria necessário reanimar e fortalecer a Comunidade de Estados Independentes, com sede estabelecida em Minsk, a partir de 1991.
Não saberia indicar como tal sugestão poderia ser levada à consideração dos membros da CEI. Cabe, pelo menos, torcer para que mecanismos de negociação já existentes na OTSC, no âmbito da Comunidade de Estados Independentes, sejam acionados.
Passo inicial, sem dúvida, para ativar os mecanismos adormecidos na referida Comunidade, com sede em Minsk, seria “combinar com os bielorrussos”.
Notas
[1] O TSC foi criado para durar por um período de 5 anos a menos que fosse prorrogado. Em 2 de abril de 1999, apenas seis membros da OTSC assinaram um protocolo de renovação do tratado por um novo período de cinco anos, enquanto Azerbaijão, Geórgia e Uzbequistão se recusaram a assinar, e retiraram-se do tratado de uma vez; juntamente com Moldávia e Ucrânia, formaram um grupo não-alinhado, mais pró-Ocidente e pró-EUA conhecida como a Organização “GUAM” (Geórgia, Uzbequistão /Ucrânia, Azerbaijão, Moldávia). A organização foi nomeada OTSC em 7 de Outubro de 2002, em Tashkent. Durante 2005, os parceiros OTSC realizaram alguns exercícios militares comuns. Em 2005, o Uzbequistão se retirou do GUAM, e em 23 de junho de 2006, o Uzbequistão tornou-se um participante pleno do OTSC e seus membros foram formalmente ratificados por seus parlamentos em 28 de março de 2008. (Wikipédia)
Sobre o autor
Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado.