Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
A citação de hoje é do ensaio de janeiro de 1832 deAlbert Gallatin, “Memorial of the Committee of the Free Trade Convention” (disponível na íntegraaqui), uma parte da qual é citada na página 169 do livro deDouglas Irwinde 2017, “Clashing Over Commerce” (ênfase adicionada pelo autor):
Que, ao se multiplicar em qualquer país os caminhos da indústria doméstica, maior escopo é dado à sua utilização, um mercado mais diversificado e menos propenso de ser alagado com seus produtos, e um campo maior é aberto a todas as espécies de habilidade e talento é, sem dúvida, verdadeiro. Mas direcionar essa indústria para atividades não lucrativas que não podem ser sustentadas sem exagerado fardo pago pelo consumidor, e uma perda nacional correspondente, não abre novos caminhos para a indústria produtiva, mas apenas a desvia de atividades lucrativas para não lucrativas para a comunidade.É realmente notável que os defensores do sistema restritivo devam fingir considerar seus memorialistas como teóricos ousados, quando não pode haver uma questão mais clara do que o fato que se um homem paga dois dólares a mais por seu casaco, seu arado ou os implementos de seu comércio, isto é uma perda para ele, que ele deve pagar com o produto de seu trabalho, e que a soma dessas perdas individuais é na verdade uma perda nacional.
Durante o segundo quarto do século XIX nos Estados Unidos,Henry Clay, do Kentucky, foi o mais poderoso, vigoroso e (sim) inflexível oponente do livre comércio. Seu “sistema americano”, como era chamado, não passava de uma versão do início do século XIX de um nacionalismo econômico. Clay e seus seguidores viam os negócios e empregos possibilitados pelos gastos do governo e pelas tarifas protecionistas; eles eram cegos para os negócios e empregos – e bens de consumo – negados ao povo americano por essas intervenções.
Uma das realidades que ficaram claras com o relato de Douglas Irwin sobre o debate a respeito de políticas comerciais que ocorreu na época é que o passado é de fato um prólogo. As questões de hoje são as mesmas que eram na época, mesmo que o “temido” parceiro comercial hoje seja diferente. (Naquela época, o temido parceiro comercial era a Grã-Bretanha, hoje é principalmente a China.) As falácias econômicas que alimentaram Henry Clay e seu movimento são idênticas àquelas que hoje alimentam a hostilidade ao livre comércio por pessoas como Donald Trump, Wilbur Ross, Peter Navarro e Steve Bannon. E muitas das acusações lançadas contra o livre comércio pelos protecionistas daquela época não diferem substancialmente das acusações feitas hoje.
Houve oad hominem. Por exemplo, Clay grosseiramente acusou o ativista pró (mais) livre mercado Albert Gallatin de ser hostil aos interesses americanos porque ele, Gallatin, nasceu na Suíça.
E houve os que estavam simplesmente enganados – um exemplo frequente do qual é belamente exposto na parte acima em negrito da citação de Gallatin. Os protecionistas (aqueles que Jon Murphy chama mais precisamente de “escassistas”), erroneamente supondo serem profundos, na época, como hoje, acusavam os ativistas pró-comércio de serem idealistas cujas teorias os cegavam para a realidade. No entanto, como está implícito na resposta de Gallatin, a teoria que os protecionistas rejeitam por ser especulativa e pouco confiável é, na verdade,uma aplicação direta de aritmética simples e análise econômica básica: tarifas que forçam para cima os preços que os cidadãos pagam por bens e serviços são uma perda para estes cidadãos, e porque as empresas e os setores domésticos que existem apenas por conta das restrições comerciais e dos subsídios são geralmente aqueles que operam com menos eficiência do que aquelas empresas e aqueles setores domésticos que são destruídos por tais intervenções, a quantidade de recursos necessários para sustentar qualquer padrão de vida (ou taxa de crescimento econômico) é maior com tais intervenções do que sem.Em suma, tais intervenções tornam a maioria das pessoas mais pobres do que seriam de outra forma.
O livre comércio não comprovado é um mito
É um mito que o livre comércio não seja comprovado na prática. Esqueça que os países com comércio mais livre têm tantorenda per capita mais altacomotaxas de crescimento econômico mais rápidas. Olhe, em vez disso, para o essencial da questão. Todos os dias você negocia livremente com muitos comerciantes. Você acha que você e sua família enriqueceriam se seu vizinho extraísse pagamentos punitivos de você sempre que você comprasse algum item que ele julgasse ser de um vendedor localizado muito distante de sua vizinhança? Todos os dias, os habitantes do Arizona negociam livremente com os texanos e os habitantes de Rhode Island. Você acha que os habitantes do Arizona seriam enriquecidos se o governo desse estado obstruísse sua capacidade de negociar como preferirem com pessoas localizadas em outros estados?
As pessoas negociam livremente inúmeras vezes, todos os dias. Sim, sim, estou bem ciente de que esse tipo de comércio não é livre como o ideal. Licenças ocupacionais, por exemplo, obstruem injustamente e prejudicialmente o comércio interno. Mas o fato permanece que hoje dentro de cada país – inclusive nos EUA – o comércio não é tipicamente obstruído com base na localização geográfica ou em fronteiras políticas. E, portanto, as pessoas compram e vendem livremente dentro dos países. Se a defesa de uma política de livre comércio não fosse prática – se fosse apenas uma curiosidade teórica – então seria verdadeiro que as pessoas comuns seriam ainda mais ricas se o Estado obstruísse suas capacidades de negociar umas com as outras internamente.
É também um mito que o argumento econômico para uma política de livre comércio em qualquer país requer que outros governos também pratiquem o livre comércio. A defesa de uma política de livre comércio é, no fundo, uma defesa do livre comércio unilateral: embora quase todos no mundo se beneficiariam se todos os governos adotassem políticas de livre comércio, quase todos no país de origem seriam beneficiados se o seu governo adotasse uma política de livre comércio, independentemente das políticas de outros governos.
O protecionismo é uma mistura desagradável de falácias lógicas, meias-verdades, arrogância, ignorância econômica e apologia ao clientelismo.
Todo economista sensato é – ou deveria ser – a favor do livre
comércio. Digo “deveria ser”, já que não existem argumentos econômicos
contrários ao princípio, e que os economistas (insensatos?) que se
posicionam contrariamente, o fazem por outras razões que não as de ordem
propriamente econômica: defesa do emprego nacional, ausência de
reciprocidade por parte dos parceiros comerciais, desequilíbrios
setoriais devidos a externalidades negativas em outros setores, etc.; ou
seja, argumentos de natureza puramente política, quando não oportunista
ou meramente conjuntural.
Todos os políticos sensatos afirmam ser – por vezes, enganosamente – a
favor do livre comércio; mas, de fato, praticam o mais deslavado
protecionismo. Eles o fazem sob o argumento de que “a teoria é perfeita,
mas na prática não funciona”; na verdade, geralmente, eles estão apenas
atrás de reeleição no seu curral eleitoral, eventualmente ameaçada se a
competição estrangeira destruir muitos empregos localmente.
É compreensível que a lógica (inatacável) do livre comércio – evidenciada desde o início do século 19 pelo economista britânico David Ricardo, proponente da tese das vantagens comparativas relativas
– não seja muito compreensível ao cidadão comum (com perdão pela
redundância): pessoas sem maior instrução econômica – ou sem um
conhecimento mais acurado da história – não conseguem compreender que
comprar produtos mais baratos do exterior sempre será melhor do que se
tentar fazer tudo localmente, empregando os fatores nacionais na
produção de bens para os quais os países, ou seus atores
microeconômicos, dispõem de vantagens comparativas relativas, uma vez
que, deste modo, a renda aumentará para todos os parceiros no negócio,
tanto exportadores, quanto importadores. O cidadão comum só consegue ver
a “perda” dos empregos locais, ou a “transferência” de renda para o
exterior, deixando de perceber os benefícios evidentes da especialização
produtiva segundo a dotação (não estática) de fatores. Como se diz
comumente: o comércio nunca é um jogo de soma zero, ou seja, só uma das
partes pode ganhar, em detrimento da outra; todos sempre ganham no
exercício totalmente livre de trocas voluntárias.
É menos compreensível que políticos, em geral cidadãos mais educados
do que a média – ops, talvez não em todos os países… –, sejam contra o
livre comércio, já que eles (ou os seus assessores) estariam em
condições de comprovar o quanto o livre comércio contribui para o
aumento dos índices de produtividade, para os níveis de competitividade
e, portanto, para a geração de riqueza nacional, medidos direta ou
indiretamente quanto aos seus resultados de médio e de longo prazos. Mas
talvez não se possa pedir a políticos que sejam sempre racionais e
coerentes com a realidade.
É menos compreensível ainda, ou talvez não seja racionalmente
admissível, que economistas inteligentes se posicionem contra o livre
comércio, quando, mesmo decidido unilateralmente, ele só traz benefícios
aos países que o praticam. Como dito acima, os argumentos contra o
livre comércio por parte de ‘economistas’ não são de natureza econômica,
mas de ordem essencialmente política. Mesmo um economista reputado
inteligente como Paul Samuelson
produziu um ‘teorema’ e caiu na esparrela de opor-se ao livre comércio
sob a justificativa de que ele diminuía os salários dos trabalhadores
menos qualificados… nos Estados Unidos (sic!). Ele provavelmente não
mediu o aumento da renda – ou seja, do poder de compra, da capacidade
aquisitiva – desses mesmos trabalhadores na vigência do livre comércio.
Em outros termos, ainda que o livre comércio provoque pressão baixista
sobre os salários dos trabalhadores menos qualificados, eles adquirem
uma “renda extra” ao poderem adquirir bens e serviços mais baratos,
eventualmente de melhor qualidade também, quando importados.
Talvez os economistas que procedem como Samuelson tampouco querem, a
exemplo dos políticos oportunistas, ser acusados de contribuir para a
perda de empregos nacionais, ou para o aumento do déficit comercial,
seja lá o que for mais importante. Mas nada explica a construção de
argumentos aparentemente sérios contra o livre comércio, quando essa
oposição causa, objetivamente, perda de renda nacional, perda de
oportunidades de especialização produtiva – e, portanto, de ganhos de
produtividade em setores com demanda externa potencialmente maior – e
perda de nichos de integração na economia internacional, a maior
provedora possível de tecnologias inovadoras, know-how,
capitais e receitas de exportação. Não se pode esquecer que, por
definição, a soma do conhecimento externo sempre será maior do que
qualquer conhecimento interno, mesmo para a maior e mais poderosa
economia nacional (o que é evidente pelos dados de licenciamento
tecnológico e de registro de patentes).
O livre comércio, aliás, é um pouco como a tecnologia: destrói alguns
empregos localizados, setorialmente e temporariamente, ao mesmo tempo
em que cria novos empregos, em setores mais avançados e geralmente de
melhores salários. Pode ocorrer, claro, que as perdas sejam mais amplas,
de mais longa duração, e que os novos empregos não sejam, localmente,
de mais alta remuneração. Mas isto se deve a outros fatores causais,
talvez externalidades negativas ainda não revertidas pela economia
nacional, e não propriamente aos mecanismos do livre comércio, que
sempre tendem a produzir ganhos de renda na economia como um todo.
Sendo isso verdade – e não vejo argumentos contrários a essas ideias
que sejam racionalmente defensáveis – é surpreendente que o livre
comércio não seja ainda mais disseminado – ou seja, universal e
unilateral – do que os poucos exemplos parciais, quase em formato de
arquipélago ou de colcha de retalhos, dos acordos que podem ser
legitimamente classificados sob essa rubrica e como tal registrados na OMC.
Com efeito, a maior parte dos acordos ditos de livre comércio são, na
verdade, de liberalização comercial, deixando ainda largas frações das
economias nacionais – geralmente agricultura e indústrias intensivas em
trabalho – ao abrigo da concorrência estrangeira. Na verdade, como já
dizia outro economista britânico, John Stuart Mill,
mais importante do que a simples troca de mercadorias, o que o livre
comércio mais promove – aliás o simples ato de comerciar,
independentemente das condições – é o intercâmbio de “ideias”, que estão
sempre embutidas em quaisquer produtos.
O outro argumento – de natureza política, sublinhe-se mais uma vez –
que busca refrear o avanço dos acordos de livre comércio é o de que seus
ganhos (ou perdas), do ponto de vista da renda dos cidadãos, seriam
muito pequenos e difusos (ou seja, disseminados por toda a sociedade);
ao passo que seu impacto negativo é geralmente concentrado numa
indústria ou num setor específico, podendo produzir, portanto, efeitos
devastadores numa cidade ou numa região inteira. Se isso é verdade,
políticos responsáveis deveriam ser a favor do livre comércio, já que os
ganhos (ou perdas) para a economia e a sociedade como um todo são
incomensuravelmente maiores do que o argumento do foco concentrado, por
definição parcial e limitado a uma parte apenas da economia ou da
sociedade.
Um simples cálculo de contabilidade nacional
permitiria comprovar que o efeito de uma tarifa elevada ou de uma
salvaguarda – mesmo temporária – sobre um produto ou serviço qualquer
oferecido em competição a um similar nacional, é muito mais relevante do
que os custos setoriais e limitados do livre comércio, por vezes em
dígitos de milhões, contra simples dezenas ou centenas de milhares. Da
mesma forma, os empregos perdidos (ou não criados) pela ausência de
livre comércio são mais relevantes, no plano da qualidade e dos
vencimentos, do que os poucos empregos preservados temporariamente pela
sanha de algum político protecionista.
Este é, finalmente, o último argumento em favor do livre comércio: os
empregos assim ‘salvos’, estão irremediavelmente condenados, pois que
eles não poderão se manter indefinidamente num mundo irremediavelmente
globalizado (mas, de certa forma, ele sempre o foi, pelo menos para as
economias de mercado). A indústria assim protegida corre um risco
ampliado de, mais cedo ou mais tarde, perecer completamente, quando não
se lhe oferece a oportunidade (e a chance) de enfrentar a concorrência
pela qualificação tecnológica, pela reconversão produtiva, pela inovação
incremental.
A América Latina é uma região que, ao longo da história, produziu
alguns dos argumentos mais esgrimidos por economistas, políticos,
simples acadêmicos, contra o princípio e a prática do livre comércio.
Desde o imediato pós-Segunda Guerra, o economista argentino Raúl Prebisch, então diretor-geral da Comissão Econômica da ONU para a América Latina (Cepal),
com sede em Santiago, disseminou sua tese quanto à “deterioração das
relações de troca”, uma construção baseada na crença, a partir de
estatísticas selecionadas arbitrariamente, de que os países em
desenvolvimento exportadores de matérias primas sempre perderiam contra
os países desenvolvidos exportadores de manufaturas, pois que as
primeiras, argumentava ele, tendiam a ter seus preços reduzidos no
comércio internacional, ao passo que os segundos sempre ganhariam com a
venda de produtos industrializado.
Desse “intercâmbio desigual” se deduzia a necessidade de
industrialização – o que é absolutamente aceitável – mas também de
projetos, a serem negociados nos foros internacionais, no sentido de
“corrigir” os mercados de commodities pelos seus efeitos depressivos
sobre os seus preços, com o que se passou à elaboração de acordos
setoriais (café, cacau, açúcar, estanho, etc.) para diferentes matérias
primas livremente transacionadas desde sempre visando à estabilização e
manutenção de preços de referência (com quotas, estoques reguladores e
outros mecanismos intervencionistas). O Brasil, inclusive, é um país
“pioneiro” nesse tipo de intervenção, desde as primeiras medidas, no
início do século 20, de “defesa do café”, das quais resultaram processos
em cortes de Nova York contra a “manipulação dos mercados”.
Não existem, repito, argumentos racionais, economicamente
defensáveis, contra o livre comércio; tudo o que se disser contra ele
tem causas e fundamentação essencialmente políticas. Ainda aguardo o
teorema que irá provar o contrário, eu e David Ricardo…
Paulo Roberto de Almeida (São Paulo, 1949) é
Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre
em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), e
diplomata de carreira desde 1977. Foi professor no Instituto Rio Branco e
na Universidade de Brasília, diretor do Instituto Brasileiro de
Relações Internacionais (IBRI) e, desde 2004, é professor de Economia
Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito
no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Visite seu site, seu blog ou confira seu CV-Lattes.