Livre comércio: quem pode ser contra?
Todos os políticos sensatos afirmam ser – por vezes, enganosamente – a favor do livre comércio; mas, de fato, praticam o mais deslavado protecionismo. Eles o fazem sob o argumento de que “a teoria é perfeita, mas na prática não funciona”; na verdade, geralmente, eles estão apenas atrás de reeleição no seu curral eleitoral, eventualmente ameaçada se a competição estrangeira destruir muitos empregos localmente.
É compreensível que a lógica (inatacável) do livre comércio – evidenciada desde o início do século 19 pelo economista britânico David Ricardo, proponente da tese das vantagens comparativas relativas – não seja muito compreensível ao cidadão comum (com perdão pela redundância): pessoas sem maior instrução econômica – ou sem um conhecimento mais acurado da história – não conseguem compreender que comprar produtos mais baratos do exterior sempre será melhor do que se tentar fazer tudo localmente, empregando os fatores nacionais na produção de bens para os quais os países, ou seus atores microeconômicos, dispõem de vantagens comparativas relativas, uma vez que, deste modo, a renda aumentará para todos os parceiros no negócio, tanto exportadores, quanto importadores. O cidadão comum só consegue ver a “perda” dos empregos locais, ou a “transferência” de renda para o exterior, deixando de perceber os benefícios evidentes da especialização produtiva segundo a dotação (não estática) de fatores. Como se diz comumente: o comércio nunca é um jogo de soma zero, ou seja, só uma das partes pode ganhar, em detrimento da outra; todos sempre ganham no exercício totalmente livre de trocas voluntárias.
É menos compreensível que políticos, em geral cidadãos mais educados do que a média – ops, talvez não em todos os países… –, sejam contra o livre comércio, já que eles (ou os seus assessores) estariam em condições de comprovar o quanto o livre comércio contribui para o aumento dos índices de produtividade, para os níveis de competitividade e, portanto, para a geração de riqueza nacional, medidos direta ou indiretamente quanto aos seus resultados de médio e de longo prazos. Mas talvez não se possa pedir a políticos que sejam sempre racionais e coerentes com a realidade.
É menos compreensível ainda, ou talvez não seja racionalmente admissível, que economistas inteligentes se posicionem contra o livre comércio, quando, mesmo decidido unilateralmente, ele só traz benefícios aos países que o praticam. Como dito acima, os argumentos contra o livre comércio por parte de ‘economistas’ não são de natureza econômica, mas de ordem essencialmente política. Mesmo um economista reputado inteligente como Paul Samuelson produziu um ‘teorema’ e caiu na esparrela de opor-se ao livre comércio sob a justificativa de que ele diminuía os salários dos trabalhadores menos qualificados… nos Estados Unidos (sic!). Ele provavelmente não mediu o aumento da renda – ou seja, do poder de compra, da capacidade aquisitiva – desses mesmos trabalhadores na vigência do livre comércio. Em outros termos, ainda que o livre comércio provoque pressão baixista sobre os salários dos trabalhadores menos qualificados, eles adquirem uma “renda extra” ao poderem adquirir bens e serviços mais baratos, eventualmente de melhor qualidade também, quando importados.
Talvez os economistas que procedem como Samuelson tampouco querem, a exemplo dos políticos oportunistas, ser acusados de contribuir para a perda de empregos nacionais, ou para o aumento do déficit comercial, seja lá o que for mais importante. Mas nada explica a construção de argumentos aparentemente sérios contra o livre comércio, quando essa oposição causa, objetivamente, perda de renda nacional, perda de oportunidades de especialização produtiva – e, portanto, de ganhos de produtividade em setores com demanda externa potencialmente maior – e perda de nichos de integração na economia internacional, a maior provedora possível de tecnologias inovadoras, know-how, capitais e receitas de exportação. Não se pode esquecer que, por definição, a soma do conhecimento externo sempre será maior do que qualquer conhecimento interno, mesmo para a maior e mais poderosa economia nacional (o que é evidente pelos dados de licenciamento tecnológico e de registro de patentes).
O livre comércio, aliás, é um pouco como a tecnologia: destrói alguns empregos localizados, setorialmente e temporariamente, ao mesmo tempo em que cria novos empregos, em setores mais avançados e geralmente de melhores salários. Pode ocorrer, claro, que as perdas sejam mais amplas, de mais longa duração, e que os novos empregos não sejam, localmente, de mais alta remuneração. Mas isto se deve a outros fatores causais, talvez externalidades negativas ainda não revertidas pela economia nacional, e não propriamente aos mecanismos do livre comércio, que sempre tendem a produzir ganhos de renda na economia como um todo.
Sendo isso verdade – e não vejo argumentos contrários a essas ideias que sejam racionalmente defensáveis – é surpreendente que o livre comércio não seja ainda mais disseminado – ou seja, universal e unilateral – do que os poucos exemplos parciais, quase em formato de arquipélago ou de colcha de retalhos, dos acordos que podem ser legitimamente classificados sob essa rubrica e como tal registrados na OMC. Com efeito, a maior parte dos acordos ditos de livre comércio são, na verdade, de liberalização comercial, deixando ainda largas frações das economias nacionais – geralmente agricultura e indústrias intensivas em trabalho – ao abrigo da concorrência estrangeira. Na verdade, como já dizia outro economista britânico, John Stuart Mill, mais importante do que a simples troca de mercadorias, o que o livre comércio mais promove – aliás o simples ato de comerciar, independentemente das condições – é o intercâmbio de “ideias”, que estão sempre embutidas em quaisquer produtos.
O outro argumento – de natureza política, sublinhe-se mais uma vez – que busca refrear o avanço dos acordos de livre comércio é o de que seus ganhos (ou perdas), do ponto de vista da renda dos cidadãos, seriam muito pequenos e difusos (ou seja, disseminados por toda a sociedade); ao passo que seu impacto negativo é geralmente concentrado numa indústria ou num setor específico, podendo produzir, portanto, efeitos devastadores numa cidade ou numa região inteira. Se isso é verdade, políticos responsáveis deveriam ser a favor do livre comércio, já que os ganhos (ou perdas) para a economia e a sociedade como um todo são incomensuravelmente maiores do que o argumento do foco concentrado, por definição parcial e limitado a uma parte apenas da economia ou da sociedade.
Um simples cálculo de contabilidade nacional permitiria comprovar que o efeito de uma tarifa elevada ou de uma salvaguarda – mesmo temporária – sobre um produto ou serviço qualquer oferecido em competição a um similar nacional, é muito mais relevante do que os custos setoriais e limitados do livre comércio, por vezes em dígitos de milhões, contra simples dezenas ou centenas de milhares. Da mesma forma, os empregos perdidos (ou não criados) pela ausência de livre comércio são mais relevantes, no plano da qualidade e dos vencimentos, do que os poucos empregos preservados temporariamente pela sanha de algum político protecionista.
Este é, finalmente, o último argumento em favor do livre comércio: os empregos assim ‘salvos’, estão irremediavelmente condenados, pois que eles não poderão se manter indefinidamente num mundo irremediavelmente globalizado (mas, de certa forma, ele sempre o foi, pelo menos para as economias de mercado). A indústria assim protegida corre um risco ampliado de, mais cedo ou mais tarde, perecer completamente, quando não se lhe oferece a oportunidade (e a chance) de enfrentar a concorrência pela qualificação tecnológica, pela reconversão produtiva, pela inovação incremental.
A América Latina é uma região que, ao longo da história, produziu alguns dos argumentos mais esgrimidos por economistas, políticos, simples acadêmicos, contra o princípio e a prática do livre comércio. Desde o imediato pós-Segunda Guerra, o economista argentino Raúl Prebisch, então diretor-geral da Comissão Econômica da ONU para a América Latina (Cepal), com sede em Santiago, disseminou sua tese quanto à “deterioração das relações de troca”, uma construção baseada na crença, a partir de estatísticas selecionadas arbitrariamente, de que os países em desenvolvimento exportadores de matérias primas sempre perderiam contra os países desenvolvidos exportadores de manufaturas, pois que as primeiras, argumentava ele, tendiam a ter seus preços reduzidos no comércio internacional, ao passo que os segundos sempre ganhariam com a venda de produtos industrializado.
Desse “intercâmbio desigual” se deduzia a necessidade de industrialização – o que é absolutamente aceitável – mas também de projetos, a serem negociados nos foros internacionais, no sentido de “corrigir” os mercados de commodities pelos seus efeitos depressivos sobre os seus preços, com o que se passou à elaboração de acordos setoriais (café, cacau, açúcar, estanho, etc.) para diferentes matérias primas livremente transacionadas desde sempre visando à estabilização e manutenção de preços de referência (com quotas, estoques reguladores e outros mecanismos intervencionistas). O Brasil, inclusive, é um país “pioneiro” nesse tipo de intervenção, desde as primeiras medidas, no início do século 20, de “defesa do café”, das quais resultaram processos em cortes de Nova York contra a “manipulação dos mercados”.
Não existem, repito, argumentos racionais, economicamente defensáveis, contra o livre comércio; tudo o que se disser contra ele tem causas e fundamentação essencialmente políticas. Ainda aguardo o teorema que irá provar o contrário, eu e David Ricardo…
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