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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Debate sobre o gramscismo e as ideias liberais e conservadoras no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Ainda como consequência das perguntas e debates ocorridos a propósito das nossas palestras no Instituto de Direito Público, respondo aqui a uma pergunta muito interessante de um dos presentes no auditório.
Houve também uma resposta do segundo (ou primeiro) palestrante, mas só postarei se e quando autorizado por ele.
Paulo Roberto de Almeida

Questão: Quais, na opinião do senhor, serão os próximos passos da esquerda gramsciana brasileira após a atual derrota marcada pelo impeachment e pelo renascimento dos movimentos conservadores e liberais no Brasil.

PRA: Impossível responder essa questão objetivamente, uma vez que “esquerda gramsciana” não é uma organização com local, pessoal, CNPJ, e sim o que poderia ser chamado de “estado de espírito”. Trata-se daquilo que alguns masturbadores sociais, também chamados de sociólogos, tratam como um “constructo social”, ou seja, uma lenta acumulação de tendências e orientações “filosóficas” – geralmente inconscientes – que traduzem um padrão comportamental de análise de questões sociais e de práticas políticas que convergem para aquele universo militante (mesmo involuntariamente) que foram resumidas em obras do comunista italiano (luta de posições conquista do Estado, hegemonia ideológica, processo educacional, etc.), especialmente nos Cadernos do Cárcere e também em Moderno Príncipe.

Quem foi derrotado pela aprovação da abertura do processo de impeachment foi, em primeiro lugar, o PT e todos os seus militantes que aparelharam o Estado e que agora estão sendo afastados do governo (mas nem todos poderão ser devidamente identificados e extraídos de cargos públicos), depois todas as organizações daquilo que pode ser chamada de “nebulosa PT”, um amálgama de membros confirmados do partido e de militantes diversos do partido e associados, todo um arquipélago de satélites e de pedaços diversos dos tentáculos do PT na sociedade civil, correias de transmissão formais e informais desse partido “neobolchevique” (mais em espírito do que em organização rígida, como era o antigo PSODR, depois Partido Comunista da URSS). Essas correias de transmissão vão perder, progressiva ou repentinamente, suas fontes de financiamento e continuarão sendo “gramscianas” mais em intenção do que na prática, pois vai faltar “mortadela” para sustentar todo o ativismo político nos meses à frente. Estas organizações possuem, sim, sedes, pessoal permanente, toda uma agenda de atividades, que agora serão reduzidas ou desativadas. Ou seja, o gramscismo “prático” vai sim diminuir, mas isso não significa um retraimento do “espírito gramsciano”, aquilo que está, há anos, ou décadas, nos corações e mentes de todos esses militantes ou apenas apoiadores eventuais, ou permanentes, da nebulosa da esquerda em nosso país, que é imensa, quase indestrutível no futuro previsível.

Registre-se que os sindicatos, todos eles, inclusive as centrais, preservam as suas fontes de financiamento, e podem assim não apenas continuar suas atividades alinhadas ao PT ou às suas causas similares, como poderão, eventualmente, ajudar a manter algumas das organizações gramscianas “práticas”, sustentando suas ações, provendo os manifestantes de “mortadela” e outras facilidades tópicas. Os “gramscianos duros”, dentro e fora dos sindicatos continuarão, portanto, com suas atividades, ainda que em ritmo e dimensões reduzidos. Mas esta não é o conteúdo principal do gramscismo no Brasil, que é bem mais presente e mais diáfano, nas consciências de professores (as chamadas “saúvas freireanas”) ou de simples cidadãos, true believers nas crenças de milhares, milhões de pessoas, quanto a projetos de reformas sociais, distribuição de renda, ascensão dos mais pobres, derrota das elites predadoras, reforma agrária, taxação dos ricos e todo um conjunto de medidas que apontam inevitavelmente para um Estado controlado por essas forças não elitistas, não oligárquicas, necessariamente de esquerda e alinhadas com as propostas de “redenção” que figuram no núcleo das mensagens publicitárias do PT e seu chefe populista (e mafioso).

Respondendo mais diretamente à pergunta, podemos pois “prever” que as organizações materiais do gramscismo político no Brasil continuarão em suas tarefas, agora numa missão de “resistência” e de tentativa de reconquista do poder, pela via eleitoral ou qualquer outra que se apresente taticamente. A estratégia é a mesma, e se conforma totalmente àquela que tinha sido sugerida pelo teórico italiano: em lugar de guerra frontal, eventual putsch, ou até revolução, o lento crescimento do partido e de suas organizações subordinadas e associadas em direção do poder “mental” e depois do poder real da sociedade, o governo e o aparelho de Estado.

Mais difícil prever é o comportamento dos milhares, milhões de “gramscianos inconscientes”, ou seja, pessoas que foram educadas, desde o jardim da infância, nas teses associadas à corrente: a justiça social, a reforma agrária, a expulsão das elites perversas do poder, e a conquista do Estado pelo povo, para então aplicar todas aquelas soluções simplistas que eles têm a oferecer, que passam sempre pelo distributivismo mais exacerbado, eventual socialização ou estatização de atividades ditas “essenciais”, ou “estratégicas” – saúde, educação, setores fundamentais da economia, etc. – o que representaria o triunfo do gramscismo na construção de sua hegemonia ideológica.

Esse “gramscismo espiritual” vai continuar durante longos anos, pois ele está ligado, estruturalmente, aos sistemas de ensino (todos eles), e espiritualmente a uma “ideologia nacional”, que é desenvolvimentista e estatizante e distributivista, antes de ser produtivista, poupadora ou investidora. As esquerdas – mesmo que o PT perca a sua atual hegemonia partidária e no controle de dezenas de correias de transmissão – continuarão de certa forma hegemônicas na sociedade brasileira, em virtude das desigualdades e da pobreza persistentes, o que justifica o seu discurso salvacionista, redentor e transformador. Vão perder apoio eleitoral nas camadas médias baixas, um pouco mais educadas, e que rejeitam o espetáculo da corrupção protagonizado pelo PT e suas organizações, mas um porção significativa do eleitorado, tanto pobres quanto aqueles instruídos completamente no “gramscismo educacional”, permanecerão apoiando as principais teses dessas esquerdas, que são geneticamente gramscistas.

Quanto ao alegado “renascimento de forças conservadoras ou liberais” no Brasil, não sou muito otimista a esse respeito, por razões mais de ordem prática do que no plano filosófico ou teórico (que está restrito a um punhado extremamente reduzido, sendo redundante, de acadêmicos consistentemente liberais). Existe o efeito da conjuntura política, o rescaldo do estelionato eleitoral de 2014, as revelações bastante chocantes da Lava Jato, e finalmente a crise econômica que atinge a todos e cada um. Muitos brasileiros médios, portanto, mesmo sem muita educação política, ou sem qualquer formação teórica ou fundamentos filosóficos de crença em alguma doutrina liberal ou conservadora, se “descobrem” repentinamente ser liberais ou conservadores, mesmo que isto não tenha muita coerência ou consistência prática. Em outros termos, não atribuo muita importância a este “renascimento” conjuntural do liberalismo ou do conservadorismo, que correspondem, em minha opinião, mais a rótulos, ou emblemas, do que a movimentos consistentes e permanentes, ou seja, organizações e doutrinas instalados solidamente na sociedade (com locais, pessoal e CNPJ).

Existem, é claro, movimentos tendenciais nesse sentido, como o Estudantes pela Liberdade, a crescente multiplicação de “institutos liberais” em vários estados do Brasil e os movimentos que atuaram de maneira decisiva nos últimos dois anos para expulsar o PT do poder. Mas não está claro que isso resulte em partidos ou organizações liberais de maneira consistente e ativos na vida política do país. Existe ainda muita confusão mental quanto a valores, princípios, programas e agendas de atividades, e muita gente que se diz conservadora ou liberal tende ainda a “importar” ideias, slogans e até medidas de outros países – sobre armas, aborto, drogas, questões de gênero e uma grande variedade de outros temas – e tentam adaptá-los ao Brasil, sem perceber que s realidades nos EUA ou na Europa são marcadamente diferentes das nossas realidades. Creio que o liberalismo e o conservadorismo, ou qualquer outro conjunto de ideias não gramscistas precisam enfrentar um longo e lento caminho de esclarecimento, de depuração de ideias, de formulação doutrinal, o que depende, obviamente, de que acadêmicos, intelectuais, jornalistas e outros formadores de opinião identificados com essas correntes deixem de ser a minoria que são atualmente para tornar-se, não digo majoritários, mas pelo menos presentes num espectro mais amplo dos espaços públicos.

Por fim, não acredito que a “derrocada” do gramscismo prático, representando pelo impeachment da presidente, tenha algo a ver com esse hipotético renascimento de “ideias” liberais ou conservadoras. Ela tem muito mais a ver com a indignação de uma imensa classe média – que não tem ideologia, mas sentimentos e percepções – contra a corrupção e o estelionato eleitoral, junto com a ação da “República de Curitiba”, ou seja, o ativismo do pessoal da Operação Lava Jato, mas isso só teve o impacto decisivo a partir do agravamento da crise econômica, do descrédito do governo do PT, e da aceleração de movimentos que precipitaram essa “ladeira abaixo” do governo, inclusive com episódios “acidentais” ou circunstanciais (como a eleição de Eduardo Cunha na Câmara, por exemplo); portanto, a dinâmica das ruas e a República de Curitiba foram determinantes nessa derrocada, bem mais do que o Congresso ou o STF (que aliás tiveram um papel de delonga, e até de entorpecimento, nesse processo).

As ideias liberais ou conservadoras não são propriamente ascendentes na atual fase do processo político-partidário brasileiro, ainda que possam ser emergentes – mesmo de forma confusa, difusas, como já mencionei – no atual cenário político. Será preciso um grande e lento trabalho de reeducação das mentalidades, em direção desses formadores de opinião já mencionados: professores (do pré-primário à pós-graduação), jornalistas, “intelectuais públicos”, líderes políticos e outros personagens da vida pública. Não é para amanhã, nem para a próxima década, pois o Brasil, como acredito, é um país geneticamente distributivista, estatizante, dirigista, protecionista, e isso há décadas; certas crenças não são vencidas ou superadas facilmente. Prefiro ser realista, mas entendo que esta minha atitude possa decepcionar alguns amigos.

Esse realismo não me impede de trabalhar pelas “boas ideias”, e de contribuir para a formação dos “formadores de opinião”, pelo meu trabalho didático e acadêmico. Mas não creio que as ideias liberais, menos ainda as conservadoras, venham a ter um papel decisivo na política brasileira no futuro previsível, mesmo que líderes “liberais” venham a ser eleitos para posições importantes no cenário político-eleitoral: eles sempre serão minoria no quadro geral das políticas públicas. Digo isto porque mesmo em países de economia avançada, tidos por “liberais”, o peso do Estado continua determinante, e em todos eles crises fiscais estão sempre ameaçando no horizonte, ou seja, despesas públicas com saúde e educação, ou ainda gastos previdenciários e assistenciais. Ao fim e ao cabo, não acredito no “triunfo” das ideias liberais no Brasil, mas sim num lento avanço, aliás não muito diferente das táticas gramscianas de luta de posições, de conquista de hegemonia, de aparelhamento do Estado. Será que veremos isso?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de maio de 2016.

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