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domingo, 30 de julho de 2017

Reflexoes sobre a transicao no Brasil: um partido das reformas - Paulo Roberto de Almeida


Reflexões sobre a transição no Brasil: um partido das reformas

Paulo Roberto de Almeida
 [Continuidade do exercício de reflexão – iniciado pelo trabalho 3134, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017; https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html); tarefas políticas da presente conjuntura]


1. Introdução: liberdade, igualdade, civilidade
Em outubro de 1789, muito pouco tempo depois, portanto, da queda da Bastilha, Edmund Burke deu início às suas “Reflexões sobre a Revolução na França” (“e sobre as discussões em certas sociedades de Londres relativas a esse evento”) sob a forma de uma carta que tencionava despachar a um “jovem cavalheiro em Paris”, que havia solicitado sua opinião sobre aqueles acontecimentos que, “desde então e continuamente, capturaram a atenção de todos os homens”. A resposta foi mantida sob reserva devido a “prudential considerations”. Imediatamente depois Burke deu início a uma discussão ampla sobre o tema, que ele terminou na primavera seguinte, tendo o resultado sido publicado em Londres, por J. Dodsley, em Pall-Mall, em “M.DCC.XC”, isto é, 1790 (como leio no texto das “coleções online do século XVIII” da Universidade de Oxford).
Nessa carta, aludindo retoricamente a dois clubes de cavalheiros londrinos, a “Constitutional Society” e a “Revolution Society”, Burke faz uma distinção bastante nítida entre aquilo que se poderia designar por “partido constitucional” – que seria algo equivalente ao sistema político inglês depois da Revolução Gloriosa de um século antes – e um “partido da revolução”, que seria justamente representado pelo espírito da Assembleia Nacional nos quadros da Revolução francesa. Burke primeiro cumprimenta os franceses pelo “espírito da liberdade em ação”, mas ele imediatamente suspende os seus cumprimentos com base num raciocínio bastante sensato:
I must be tolerably sure, before I venture publicly to congratulate men upon a blessing, that they have really received one. Flattery corrupts both the receiver and the giver; and adulation is not of more service to the people than to kings. I should therefore suspend my congratulations on the new liberty of France, until I was informed how it had been combined with government; with public force; with the discipline and obedience of armies; with the collection of an effective and well-distributed revenue; with morality and religion; with the solidity of property; with peace and order; with civil and social manners. All these (in their way) are good things too; and, without them, liberty is not a benefit whilst it lasts, and is not likely to continue long. The effects of liberty to individuals is, that they may do what they please: We ought to see what it will please them to do, before we risque [sic] congratulations, which may be soon turned into complaints. Prudence would dictate this in the case of separate insulated private men; but liberty, when men act in bodies, is power. Considerate people before they declare themselves will observe the use which is made of power; and particularly of so trying a thing as new power, in new persons, of whose principles, tempers, and dispositions, they have little or no experience, and in situations where those who appear the most stirring in the scene may possibly not be the real movers. (Burke, 1790, p. 7-8 of the “Eighteenth Century Collections Online”, University of Oxford; original emphasis)

Burke, que reconhece, pouco adiante (p. 9), que “tomadas em conjunto todas as circunstâncias, a Revolução francesa é a mais impressionante [das crises] que aconteceram no mundo até aqui.” Mas ele sempre contrasta o exercício da liberdade com a garantia da legalidade do exercício do poder e do respeito aos “direitos do homem”, um conceito que já estava então bastante assentado no constitucionalismo inglês, desde a Magna Carta, e que estava sendo introduzido no direito e na política da França. E, como revelado pelo trecho acima transcrito de sua carta dirigida a um “jovem cavalheiro francês”, ele combinava o exercício da liberdade à existência de um governo legítimo, à segurança pública, à disciplina e obediência nos exércitos, à arrecadação e à boa distribuição das rendas auferidas pelo Estado, à moralidade e religião, à solidez da propriedade, à paz e ordem e, finalmente, às maneiras civis e sociais, ou seja, o bom comportamento dos indivíduos em sociedade.

À maneira de Burke, mas sem pretender absolutamente comparar-me a ele, vou também alinhar algumas reflexões sobre o atual momento de transição no Brasil, que alguns chamam de “golpe”, que eles pretendem transformar em revolução, mas que para outros consiste num processo de ajuste e de reformas, após uma deterioração sensível da situação econômica e das contas públicas, quase tão relevante quanto aquela ocorrida pouco antes da Revolução francesa. Pretendo permanecer no espírito da Sociedade Constitucional, mas levarei em conta a ação do “clube revolucionário”, suas ações, sua filosofia e seus propósitos divisionistas, tentando oferecer algumas luzes para a atuação dos homens de bem em meio ao caos e à fragmentação atual da política brasileira.
As notas a seguir podem ser lidas na sequência deste trabalho, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017), sobre a crise política criada com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a título de reflexão retrospectiva sobre a atual crise brasileira, disponível em meu blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html) e preliminar a um esforço de elaboração de propostas de reformas. Elas também oferecem continuidade a trabalho imediatamente anterior, no qual eu já refletia sobre o estado relativo de anomia política no Brasil, perguntando se o Brasil já era um “Estado falido”, mas constatando, ao mesmo tempo, que seu sistema político já podia ser considerado como completamente falido: “Brazil as a Failing State (or, is it already a Failed State?)” (12/06/2017, igualmente disponível no blog Diplomatizzando http://diplomatizzando.blogspot.pt/2017/06/brasil-existe-uma-crise-da-democracia.html).

2. A dominação hegemônica da esquerda: incontornável?
O Brasil aparece hoje como uma sociedade dividida, embora muito dessa divisão seja alimentada artificialmente, calculadamente pelos inimigos da liberdade, que se apresentam como pretensos defensores da igualdade, dois conceitos que estão no coração da Revolução francesa e que constituem o objeto das reflexões de Burke e de mais de dois séculos de debates contínuos sobre o papel do Estado, sobre a organização do sistema político, sobre as prioridades na determinação das políticas públicas, ou seja, aquilo que o filósofo conservador britânico chamava de exercício do poder. Essa divisão ocorre em meio à maior crise econômica – que se desdobrou em grave crise política e que explica, mais do que os atos de corrupção, o ato do impeachment, em maio-agosto de 2016 – jamais enfrentada pelo Brasil (quase 10% a menos no PIB entre 2015 e 2016), o que deveria supostamente suscitar alguma unidade de propósitos entre as principais forças políticas na difícil missão de resgatar o país da recessão e levá-lo novamente ao caminho do crescimento.
Tal união, no entanto, não ocorreu, por uma razão muito simples: a sociedade, especialmente em sua fração “pensante” – ou seja, aquela porção que influencia a opinião pública e que determina parte dos comportamentos, não sociais, mas dos movimentos ditos “sociais”, entre os quais se situa o sindicalismo – já se encontrava dividida por décadas de “hegemonia cultural” da esquerda, basicamente representada pelo assim chamado “gramscismo acadêmico”, que conforma o padrão usual de referência intelectual para a quase totalidade dos movimentos de esquerda no Brasil. Há muito tempo existe uma preeminência desse tipo de pensamento político – para não dizer ideologia – nos meios típicos de influência social relevante no Brasil. Não é difícil citar as esferas usualmente afetadas: todo o aparelho educacional (a partir das universidades para todo o sistema), na rede sindical (em praticamente todos os níveis e nas diferentes centrais existentes), na mídia (na qual, em sua maioria, os jornalistas são esquerdistas mesmo sem o saber, resultado de uma deformação curricular até inconsciente), nos meios culturais e supostamente “intelectuais” (onde, até por força do politicamente correto, o progressismo de tipo esquerdista predomina amplamente), no ambiente político, de modo geral (já que não existem partidos de “direita” e quase todos dizem defender “causas sociais”) e até em certas categorias profissionais supostamente identificadas com os mercados (engenheiros, por exemplo) ou a defesa da legalidade (os bacharéis em direito são especialmente “vítimas” desse tipo de contaminação).
Não seria exagerado dizer que o “universo mental” ordinário, no Brasil, se confunde com esse espectro cultural do pensamento de esquerda, isto é, socialmente progressista, distributivista, igualitário, ainda que a maioria da população se defina ao longo de valores conservadores para a maior parte dos costumes correntes. A questão é que são aqueles meios identificados com o pensamento progressista que fornecem os ativistas de base – militantes de partidos de esquerda; voluntários de movimentos ditos “sociais”; jornalistas que “trabalham” as informações e análises; sindicalistas que fazem de sua atividade um meio de vida, antes que uma atividade-meio; professores com teses pré-concebidas, absorvidas de acadêmicos gramscianos; funcionários públicos e agentes de entidades oficiais que estão comprometidos antes com a “justiça social” do que com a legalidade dos atos – que sustentam, direta e indiretamente, a predominância dessas ideias identificadas com a hegemonia cultural da esquerda.  
A própria acumulação de fatos, evidências e processos que comprovam o envolvimento direto de grande parte da esquerda “oficial” – ademais de outros agentes políticos de todo o espectro ideológico – com a onda avassaladora de corrupção que passou a percorrer praticamente todas as instâncias públicas, as maiores estatais e até grandes empresas privadas, não parece ter abalado o apoio de que dispõem esses meios desde o início das investigações identificadas com a chamada Operação Lava Jato, a despeito de algumas poucas desvinculações tópicas de personalidades progressistas.

3. O que fazer?; as tarefas do partido da reforma
Uma situação de hegemonia cultural só poderia ser aparentemente vencida por um outro tipo de hegemonia cultural, mas esse é um caminho longo, eivado de dúvidas quanto à eficácia desse tipo de estratégia, povoado de incertezas quanto à temporalidade dessa substituição e, de toda forma, a “contra-hegemonia” não dispõe, e não disporá no futuro previsível, do conjunto de aparelhos civis, paraestatais ou diretamente estatais, que permitiram à esquerda estabelecer e manter seu predomínio cultural e político ao longo das últimas décadas. Quais seriam, então, os caminhos para o início de uma inversão das tendências observadas até aqui no campo da mobilização política de apoios sociais em prol de outras políticas mais identificadas com a liberdade dos mercados?
Pessoalmente não creio que uma ação no mesmo plano conceitual dos resultados atualmente exibidos pela hegemonia cultural da esquerda consiga ter sucesso nos próximos anos, pela ausência, por parte do “partido da reforma”, de meios, mecanismos e instrumentos similares ou funcionalmente equivalentes aos detidos atualmente pelos “hegemônicos”, de maneira a ocorrer uma substituição de hegemonias. Uma estratégia de “combate de ideias”, em torno de conceitos abstratos, do tipo defender o liberalismo ou o conservadorismo, ou um “partido de direita”, enquanto alternativas melhores, ou desejáveis, como eixos de ação política, não parece suscetível de conquistar apoios ou influências significativas na sociedade. Menos ainda terá sucesso qualquer projeto no sentido de esperar alguma ação por parte das FFAA, ainda que fosse por meio dessa figura totalmente contraditória designada pela nome esquizofrênico de “intervenção militar constitucional”. O que resta, então, às forças da reforma?
Justamente esquecer qualquer debate no plano das ideias “liberais”, de “direita” ou de inspiração “conservadora”, conceitos que não possuem qualquer chance de se impor no plano das referências sociais para fins de influência política. O debate precisa se dar ao nível de questões práticas, concretas, vinculadas à vida cotidiana dos cidadãos, e suas preocupações mais prosaicas. Mesmo que esse fosse o terreno de jogo, e não é, o partido da reforma não tem condições de levar um “combate” nesses termos, e por razões muito simples: em primeiro lugar, não existem liberais no Brasil, ou são poucos; os conservadores são ainda em menor número, e os que se acreditam pertencer a um ou outro campo, parecem (ou são) totalmente desprovidos de formação teórica numa ou noutra vertente, já que ideias das vertentes respectivas não são discutidas, aprendidas, transmitidas nas instituições de ensino superior, ou em qualquer outro nível de estudo.
Em segundo lugar, os que se classificam sob esses rótulos, ou até mesmo os de “direita”, se apressam em agregar algum conteúdo ou adjetivo “social” ao epíteto principal, para não incorrerem em qualquer acusação de “insensibilidade” em relação aos graves problemas sociais que existem objetivamente no Brasil. O antigo Partido da Frente Liberal se apressava em agregar o conceito de “liberalismo social” às suas propostas de políticas públicas, e mais tarde abandonou completamente o adjetivo, talvez por pressentir que não encontrava receptividade eleitoral (o que se explica, justamente, pela campanha viciosa da esquerda contra qualquer ideia de liberalismo como opção política aceitável no plano eleitoral ou no das definições de políticas). Não existem perspectivas de mudanças repentinas nessa frente, o que pressupõe que tais conceitos, abstrata ou concretamente, não gozarão de ampla aceitação e legitimidade política em prazos razoáveis. O Brasil ainda é um país no qual o conceito de igualdade prevalece arrasadoramente contra o da liberdade.
A mensagem, ou as mensagens que devem ser defendidas incessantemente pelo partido da reforma, a ser apresentado sob essa designação, são justamente as de que o Brasil é um país entrevado, bloqueado, cerceado e empobrecido pelo conservadorismo das ideias de esquerda, que são de fato anacrônicas, desadaptadas ao mundo moderno, contraditórias com os requerimentos da globalização, e de que propostas reformistas, de ampliação das franquias democráticas no campo das atividades econômicas são, de fato, progressistas e avançadas. Não será uma tarefa fácil, pois isso implica, justamente, sair do terreno das ideias abstratas, dos conceitos políticos gerais, e penetrar na formulação de propostas pragmáticas, que atendam aos interesses da população, de forma clara, direta, empiricamente comprovada.
A população provavelmente não quer ouvir, ou se ouvir não vai entender, que o liberalismo econômico, se implantado, vai ser bom para o Brasil, ou que, na outra vertente, o conservadorismo é melhor que o “progressismo” para resolver os problemas que ela enfrenta, concretamente. A população gostaria de ouvir propostas práticas sobre como sua vida pode ser melhorada ou facilitada por meio de explicações claras, diretas, contendo medidas podendo ser implementadas de modo transparente. Tal objetivo implica um estudo detido e fundamentado de cada um dos grandes problemas concretos da população brasileira, geralmente a nível microeconômico (mas que necessitam ter, igualmente, alguma sustentação macro, ou seja, fiscal, monetário, creditício).
O que liberais, conservadores, pessoas de “direita” precisam fazer, no Brasil, é arregaçar as mangas, abrir livros, relatórios, consultar especialistas, reunir técnicos e começar a preparar propostas simples para os grandes problemas do países. Não existem, obviamente, respostas simples a problemas complexos, mas existem modos de explicar à população como as propostas esquerdistas, socialistas, distributivistas e intervencionistas são nefastas e, na verdade, agravam os problemas, em lugar de resolvê-los. É preciso quantificar os custos efetivos, orçamentários e de oportunidade, das políticas atualmente em curso no Brasil, em todos os terrenos práticos de atividade.
Um começo de ativismo, nesse terreno, seria partir de mapeamentos já feitos, que indicam, aliás, onde estão os problemas existentes, e quais seriam as possíveis soluções aos obstáculos atuais. Um dos melhores “mapas da realidade” disponíveis no mercado é o relatório anual do Banco Mundial “Fazendo Negócios” (Doing Business), que tem indicadores precisos sobre cada uma das etapas burocráticas que infernizam a vida dos empreendedores no Brasil, nas dimensões nacional e comparada. Uma equipe dedicada ao estudo desse relatório do Banco Mundial, fazendo um detalhamento das distorções mais aberrantes atualmente em curso, poderia produzir propostas de políticas nos terrenos mais relevantes da atividade empresarial, aquela suscetível de produzir emprego e criar renda para milhões de trabalhadores.
Uma concentração nesse tipo de exercício traria mais frutos, a curto e a médio prazo, do que milhões de horas-aulas dedicadas ao enriquecimento cultural dos eleitores mediante aulas teóricas sobre os benefícios do liberalismo ou do conservadorismo para ouvintes preocupados com problemas da vida diária. Os conservadores, na verdade, são aqueles que se opõem às reformas, e estes são os esquerdistas e em primeiro lugar, mas também, e amplamente, os políticos tradicionais. Liberais, ou pessoas se apresentando como tais, já partem com o ônus original da desconfiança, quando não com a acusação (equivocada mas “credível”) de “inimigo dos pobres” ou “amigo dos ricos”, o que pode ser mortal. Uma ação política eficaz não pode ficar na defensiva, e sim partir para a ofensiva, teórica e praticamente.
Sou por um “partido das reformas”, progressista, inovador, ousado, voltado para soluções práticas e desprovido de qualquer rebuscamento intelectual ou de deformações conceituais inúteis para 99% dos eleitores. Num momento de transição como o que o Brasil atravessa atualmente, liberais, conservadores, pessoas de “direita” (se existem, de fato) não podem perder o seu tempo em propaganda abstrata ou discussões principistas em torno das grandes ideias que dizem defender, inclusive porque elas não serão bem recebidas pelo eleitor médio, que é desprovido completamente de educação política, quando não de educação simplesmente. Mas não basta proclamar-se a favor de reformas, também tomadas genericamente: seria preciso ter um cadernos de sugestões e de debates sobre cada uma das reformas focadas em resultados práticos, com exposição concreta sobre as maneiras de implementá-las. Edmund Burke pode até fornecer belas ideias sobre a superioridade do constitucionalismo civil sobre o igualitarismo violento, mas isso não basta: é preciso descer ao terreno da práxis, como já disse um filósofo...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3141: 23 de julho de 2017.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Debate sobre o gramscismo e as ideias liberais e conservadoras no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Ainda como consequência das perguntas e debates ocorridos a propósito das nossas palestras no Instituto de Direito Público, respondo aqui a uma pergunta muito interessante de um dos presentes no auditório.
Houve também uma resposta do segundo (ou primeiro) palestrante, mas só postarei se e quando autorizado por ele.
Paulo Roberto de Almeida

Questão: Quais, na opinião do senhor, serão os próximos passos da esquerda gramsciana brasileira após a atual derrota marcada pelo impeachment e pelo renascimento dos movimentos conservadores e liberais no Brasil.

PRA: Impossível responder essa questão objetivamente, uma vez que “esquerda gramsciana” não é uma organização com local, pessoal, CNPJ, e sim o que poderia ser chamado de “estado de espírito”. Trata-se daquilo que alguns masturbadores sociais, também chamados de sociólogos, tratam como um “constructo social”, ou seja, uma lenta acumulação de tendências e orientações “filosóficas” – geralmente inconscientes – que traduzem um padrão comportamental de análise de questões sociais e de práticas políticas que convergem para aquele universo militante (mesmo involuntariamente) que foram resumidas em obras do comunista italiano (luta de posições conquista do Estado, hegemonia ideológica, processo educacional, etc.), especialmente nos Cadernos do Cárcere e também em Moderno Príncipe.

Quem foi derrotado pela aprovação da abertura do processo de impeachment foi, em primeiro lugar, o PT e todos os seus militantes que aparelharam o Estado e que agora estão sendo afastados do governo (mas nem todos poderão ser devidamente identificados e extraídos de cargos públicos), depois todas as organizações daquilo que pode ser chamada de “nebulosa PT”, um amálgama de membros confirmados do partido e de militantes diversos do partido e associados, todo um arquipélago de satélites e de pedaços diversos dos tentáculos do PT na sociedade civil, correias de transmissão formais e informais desse partido “neobolchevique” (mais em espírito do que em organização rígida, como era o antigo PSODR, depois Partido Comunista da URSS). Essas correias de transmissão vão perder, progressiva ou repentinamente, suas fontes de financiamento e continuarão sendo “gramscianas” mais em intenção do que na prática, pois vai faltar “mortadela” para sustentar todo o ativismo político nos meses à frente. Estas organizações possuem, sim, sedes, pessoal permanente, toda uma agenda de atividades, que agora serão reduzidas ou desativadas. Ou seja, o gramscismo “prático” vai sim diminuir, mas isso não significa um retraimento do “espírito gramsciano”, aquilo que está, há anos, ou décadas, nos corações e mentes de todos esses militantes ou apenas apoiadores eventuais, ou permanentes, da nebulosa da esquerda em nosso país, que é imensa, quase indestrutível no futuro previsível.

Registre-se que os sindicatos, todos eles, inclusive as centrais, preservam as suas fontes de financiamento, e podem assim não apenas continuar suas atividades alinhadas ao PT ou às suas causas similares, como poderão, eventualmente, ajudar a manter algumas das organizações gramscianas “práticas”, sustentando suas ações, provendo os manifestantes de “mortadela” e outras facilidades tópicas. Os “gramscianos duros”, dentro e fora dos sindicatos continuarão, portanto, com suas atividades, ainda que em ritmo e dimensões reduzidos. Mas esta não é o conteúdo principal do gramscismo no Brasil, que é bem mais presente e mais diáfano, nas consciências de professores (as chamadas “saúvas freireanas”) ou de simples cidadãos, true believers nas crenças de milhares, milhões de pessoas, quanto a projetos de reformas sociais, distribuição de renda, ascensão dos mais pobres, derrota das elites predadoras, reforma agrária, taxação dos ricos e todo um conjunto de medidas que apontam inevitavelmente para um Estado controlado por essas forças não elitistas, não oligárquicas, necessariamente de esquerda e alinhadas com as propostas de “redenção” que figuram no núcleo das mensagens publicitárias do PT e seu chefe populista (e mafioso).

Respondendo mais diretamente à pergunta, podemos pois “prever” que as organizações materiais do gramscismo político no Brasil continuarão em suas tarefas, agora numa missão de “resistência” e de tentativa de reconquista do poder, pela via eleitoral ou qualquer outra que se apresente taticamente. A estratégia é a mesma, e se conforma totalmente àquela que tinha sido sugerida pelo teórico italiano: em lugar de guerra frontal, eventual putsch, ou até revolução, o lento crescimento do partido e de suas organizações subordinadas e associadas em direção do poder “mental” e depois do poder real da sociedade, o governo e o aparelho de Estado.

Mais difícil prever é o comportamento dos milhares, milhões de “gramscianos inconscientes”, ou seja, pessoas que foram educadas, desde o jardim da infância, nas teses associadas à corrente: a justiça social, a reforma agrária, a expulsão das elites perversas do poder, e a conquista do Estado pelo povo, para então aplicar todas aquelas soluções simplistas que eles têm a oferecer, que passam sempre pelo distributivismo mais exacerbado, eventual socialização ou estatização de atividades ditas “essenciais”, ou “estratégicas” – saúde, educação, setores fundamentais da economia, etc. – o que representaria o triunfo do gramscismo na construção de sua hegemonia ideológica.

Esse “gramscismo espiritual” vai continuar durante longos anos, pois ele está ligado, estruturalmente, aos sistemas de ensino (todos eles), e espiritualmente a uma “ideologia nacional”, que é desenvolvimentista e estatizante e distributivista, antes de ser produtivista, poupadora ou investidora. As esquerdas – mesmo que o PT perca a sua atual hegemonia partidária e no controle de dezenas de correias de transmissão – continuarão de certa forma hegemônicas na sociedade brasileira, em virtude das desigualdades e da pobreza persistentes, o que justifica o seu discurso salvacionista, redentor e transformador. Vão perder apoio eleitoral nas camadas médias baixas, um pouco mais educadas, e que rejeitam o espetáculo da corrupção protagonizado pelo PT e suas organizações, mas um porção significativa do eleitorado, tanto pobres quanto aqueles instruídos completamente no “gramscismo educacional”, permanecerão apoiando as principais teses dessas esquerdas, que são geneticamente gramscistas.

Quanto ao alegado “renascimento de forças conservadoras ou liberais” no Brasil, não sou muito otimista a esse respeito, por razões mais de ordem prática do que no plano filosófico ou teórico (que está restrito a um punhado extremamente reduzido, sendo redundante, de acadêmicos consistentemente liberais). Existe o efeito da conjuntura política, o rescaldo do estelionato eleitoral de 2014, as revelações bastante chocantes da Lava Jato, e finalmente a crise econômica que atinge a todos e cada um. Muitos brasileiros médios, portanto, mesmo sem muita educação política, ou sem qualquer formação teórica ou fundamentos filosóficos de crença em alguma doutrina liberal ou conservadora, se “descobrem” repentinamente ser liberais ou conservadores, mesmo que isto não tenha muita coerência ou consistência prática. Em outros termos, não atribuo muita importância a este “renascimento” conjuntural do liberalismo ou do conservadorismo, que correspondem, em minha opinião, mais a rótulos, ou emblemas, do que a movimentos consistentes e permanentes, ou seja, organizações e doutrinas instalados solidamente na sociedade (com locais, pessoal e CNPJ).

Existem, é claro, movimentos tendenciais nesse sentido, como o Estudantes pela Liberdade, a crescente multiplicação de “institutos liberais” em vários estados do Brasil e os movimentos que atuaram de maneira decisiva nos últimos dois anos para expulsar o PT do poder. Mas não está claro que isso resulte em partidos ou organizações liberais de maneira consistente e ativos na vida política do país. Existe ainda muita confusão mental quanto a valores, princípios, programas e agendas de atividades, e muita gente que se diz conservadora ou liberal tende ainda a “importar” ideias, slogans e até medidas de outros países – sobre armas, aborto, drogas, questões de gênero e uma grande variedade de outros temas – e tentam adaptá-los ao Brasil, sem perceber que s realidades nos EUA ou na Europa são marcadamente diferentes das nossas realidades. Creio que o liberalismo e o conservadorismo, ou qualquer outro conjunto de ideias não gramscistas precisam enfrentar um longo e lento caminho de esclarecimento, de depuração de ideias, de formulação doutrinal, o que depende, obviamente, de que acadêmicos, intelectuais, jornalistas e outros formadores de opinião identificados com essas correntes deixem de ser a minoria que são atualmente para tornar-se, não digo majoritários, mas pelo menos presentes num espectro mais amplo dos espaços públicos.

Por fim, não acredito que a “derrocada” do gramscismo prático, representando pelo impeachment da presidente, tenha algo a ver com esse hipotético renascimento de “ideias” liberais ou conservadoras. Ela tem muito mais a ver com a indignação de uma imensa classe média – que não tem ideologia, mas sentimentos e percepções – contra a corrupção e o estelionato eleitoral, junto com a ação da “República de Curitiba”, ou seja, o ativismo do pessoal da Operação Lava Jato, mas isso só teve o impacto decisivo a partir do agravamento da crise econômica, do descrédito do governo do PT, e da aceleração de movimentos que precipitaram essa “ladeira abaixo” do governo, inclusive com episódios “acidentais” ou circunstanciais (como a eleição de Eduardo Cunha na Câmara, por exemplo); portanto, a dinâmica das ruas e a República de Curitiba foram determinantes nessa derrocada, bem mais do que o Congresso ou o STF (que aliás tiveram um papel de delonga, e até de entorpecimento, nesse processo).

As ideias liberais ou conservadoras não são propriamente ascendentes na atual fase do processo político-partidário brasileiro, ainda que possam ser emergentes – mesmo de forma confusa, difusas, como já mencionei – no atual cenário político. Será preciso um grande e lento trabalho de reeducação das mentalidades, em direção desses formadores de opinião já mencionados: professores (do pré-primário à pós-graduação), jornalistas, “intelectuais públicos”, líderes políticos e outros personagens da vida pública. Não é para amanhã, nem para a próxima década, pois o Brasil, como acredito, é um país geneticamente distributivista, estatizante, dirigista, protecionista, e isso há décadas; certas crenças não são vencidas ou superadas facilmente. Prefiro ser realista, mas entendo que esta minha atitude possa decepcionar alguns amigos.

Esse realismo não me impede de trabalhar pelas “boas ideias”, e de contribuir para a formação dos “formadores de opinião”, pelo meu trabalho didático e acadêmico. Mas não creio que as ideias liberais, menos ainda as conservadoras, venham a ter um papel decisivo na política brasileira no futuro previsível, mesmo que líderes “liberais” venham a ser eleitos para posições importantes no cenário político-eleitoral: eles sempre serão minoria no quadro geral das políticas públicas. Digo isto porque mesmo em países de economia avançada, tidos por “liberais”, o peso do Estado continua determinante, e em todos eles crises fiscais estão sempre ameaçando no horizonte, ou seja, despesas públicas com saúde e educação, ou ainda gastos previdenciários e assistenciais. Ao fim e ao cabo, não acredito no “triunfo” das ideias liberais no Brasil, mas sim num lento avanço, aliás não muito diferente das táticas gramscianas de luta de posições, de conquista de hegemonia, de aparelhamento do Estado. Será que veremos isso?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19 de maio de 2016.

Debate no IDP (18/05/2016): Respostas a perguntas formuladas, 2 - Paulo Roberto de Almeida

Dou continuidade à tentativa de responder adequadamente às perguntas formudas por ocasião do debate ocorrido ontem, 18/05/2016, no IDP, como abaixo indicado.


Instituto Brasileiro de Direito Público
Escola de Direito de Brasília

Perguntas: Palestra Manifestações políticas a partir de 2013 e a crise brasileira recente

[Respostas de Paulo Roberto de Almeida a perguntas feitas por ocasião do evento título, no qual efetuei pequena palestra, já divulgada em meu blog Diplomatizzando, disponível no link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/movimentos-politicos-e-crise-politica.html].



3) É possível, de fato, a existência em um Brasil pluralista, tal qual se configura, uma dinâmica de Direita, que não observa de fato a necessidade de todos os brasileiros? É necessária a polarização, ou é necessária a observância de que todos, de fato, são em algum grau minoria? Como se pode, se possível, derramar menos sangue?

PRA: Em primeiro lugar, permito-me observar que não vejo, no atual momento político brasileiro, ameaças de “derramamento de sangue”. A Venezuela, sim, corre esse risco, mas no Brasil, a despeito da polarização atual – provocada, inteiramente, diga-se de passagem, pelos opositores ao processo legal e constitucional de impeachment – não parece haver o perigo de enfrentamentos armados ou manifestações muito violentas.
Em segundo lugar, creio que o Brasil já constitui uma democracia pluralista, ainda que uma democracia de baixa qualidade (pelos enormes problemas de governança, de segurança pública, de deformações nos sistemas eleitoral, pela corrupção disseminada em amplas esferas do setor público, etc.). Não vejo, por outro lado, nenhuma dinâmica de “direita”, ainda que possam existir personagens e atores políticos que se identificam dessa forma, mas são raros, raríssimos, praticamente inexistentes.
O cenário político nacional é amplamente dominando por partidos que pertencem, ou dizem pertencer, a correntes progressistas, reformistas, socialdemocratas, quando não claramente de esquerda, alguns abertamente socialistas, outros absurdamente “comunistas”, como o anacrônico PCdoB e outra seitas de extrema-esquerda. Mesmo o chamado partido de direita, antigamente PFL (Partido da Frente Liberal), modernamente DEM (ou Democratas) se pretende um partido “social liberal”, ou seja, de inspiração liberal, mas consciente de que essa corrente precisa de alguma forma se justificar “socialmente” em face do eleitorado, o que redunda, para praticamente TODOS os partidos um apelo a soluções estatais para a resolução dos imensos problemas sociais brasileiros. O único, até aqui, partido que proclama abertamente as virtudes do liberalismo econômico clássico, e que pretende soluções de mercado para a maior parte desses problemas é o partido NOVO, ainda que o PSL também pretenda aderir ao credo liberal.
Não vejo, portanto, nenhuma “dinâmica de Direita”, e não vejo polarização sendo criada artificialmente pela maior parte dos partidos políticos. De fato, há essa divisão, mas ela é feita, sempre foi feita, continua sendo feita, pelo partido que foi, durante muito tempo, socialmente e eleitoralmente hegemônico no país, o Partido dos Trabalhadores, PT, que sempre apoiou sua publicidade nessa divisão artificial, mentirosa e fraudulenta, entre o “povo” e as “elites”, entre “nós” (eles) e “eles” (todos nós, não membros e não militantes do PT). No momento atual, em que esse partido hegemônico (até pouco tempo) se vê alijado do poder – por ter cometido crimes eleitorais, crimes comuns, e dirigido um vasto esquema de corrupção como nunca antes se viu no país, possivelmente no hemisfério, talvez no mundo –, ele dá início, ou intensifica uma campanha mais uma vez viciosa, temerária, negativa e mais uma vez fraudulenta, de divisão do país, e de aposta na fratura política para eventualmente recolher apoio eleitoral mais adiante. Seu Diretório Nacional pretende continuar denunciando como “golpe”, ou como “governo ilegítimo” o mandato transitório, ou temporário, do vice Michel Temer, enquanto dura o processo de impeachment, no Senado, e disse que vai fazer uma oposição completa, total, a todas as medidas do governo, ou seja, a todo o esforço de reconstrução econômica e política, depois que eles conduziram o que eu chamo de Grande Destruição no país (ver meu artigo: The Great Destruction in Brazil: How to Downgrade an Entire Country in Less Than Four Years”, Mundorama (n. 102, 1/02/2016, ISSN: 2175-2052; link: http://www.mundorama.net/2016/02/01/the-great-destruction-in-brazil-how-to-downgrade-an-entire-country-in-less-than-four-years-by-paulo-roberto-de-almeida/).
Em resumo, o Brasil já é pluralista, e a maior parte da população quer um país pluralista, com todas as correntes de opinião e movimentos político-partidários com total liberdade de expressão, mas alguns, sempre da esquerda (já que não existe direita no Brasil, ou pelo menos não como expressão real, com implantação social), querem e conduzem uma campanha de divisão, de polarização.


Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 19/05/2016

Debate no IDP (18/05/2016), Respostas a perguntas formuladas, 1 - Paulo Roberto de Almeida

Permito-me postar abaixo, respostas a duas das diversas perguntas formuladas por ocasião da palestra-debate:
Manifestações políticas a partir de 2013 e a crise brasileira recente
(ver aqui: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/movimentos-politicos-e-crise-politica.html),
sem a identificação de seu formulador: 
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 19/05/2016


Instituto Brasileiro de Direito Público
Escola de Direito de Brasília

Perguntas: Palestra Manifestações políticas a partir de 2013 e a crise brasileira recente

[Respostas de Paulo Roberto de Almeida a perguntas feitas por ocasião do evento título, no qual efetuei pequena palestra, já divulgada em meu blog Diplomatizzando, disponível no link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/movimentos-politicos-e-crise-politica.html].

1) O quanto Michel Temer pode se afastar do programa de governo que o elegeu junto com Dilma, sem perder legitimidade?

PRA: Campanhas eleitorais são conduzidas, na maior parte das vezes, com apoio em vagas promessas dos candidatos, que costumam anunciar tudo de bom para sua audiência cativa, os eleitores, que constituem uma imensa massa de cidadãos, a maior parte contribuintes compulsórios das receitas de governo (e uma pequena parte de dependentes ou excluídos do mercado de trabalho), e que deverão, de uma forma ou de outra, financiar eles mesmos, direta ou indiretamente, todas as supostas realizações prometidas, muitas vezes de forma demagógica pelos ditos candidatos. Não devemos nunca esquecer, em primeiro lugar, que o governo não produz um único centavo de riqueza; toda agregação de valor numa determinada economia é feita pelos agentes primários da criação de riqueza, empresários e trabalhadores empregados, que têm, ou veem, uma parte da renda criada com suas atividades apropriada pelo governo – por meio de tributações diversas, diretas e indiretas, como impostos, taxas, contribuintes, recolhimentos compulsórios sobre determinados serviços, etc. – que pode, depois, pela via orçamentária, prestar aqueles serviços demandados pela população e, em princípio, devidos pelo Estado. Digo em princípio porque não necessariamente precisaria ser assim: muitos dos serviços utilizados pelos cidadãos podem ser diretamente comprados nos mercados – como de fato o são em diversos casos – pelos cidadãos: saúde, educação, transportes, habitação, segurança, aposentadoria, etc. Não há quase nada que o Estado “forneça” ao cidadão que não possa ser objeto de uma transação legítima feita diretamente pelos cidadãos em mercados livres, com exceção (e ainda assim sob condições especiais) de defesa nacional, relações exteriores, garantia de justiça (e a devida segurança nos contratos e transações) e algumas grandes obras de infraestrutura de longa maturação (como barragens, estradas, portos, etc., que mesmo assim são contratadas pelo Estado junto a provedores privados de construção e manutenção).
Esta longa introdução é necessária para dizer que não há nada, absolutamente nada que um candidato possa prometer aos eleitores – ou seja, seu “programa de governo” – que não passe, necessariamente pela “extração” de recursos da própria sociedade. E esses “programas de governo”, como já dito, são em grande parte mentirosos ou demagógicos. Um candidato, se for são de espírito, jamais vai dizer aos seus eventuais eleitores, algo do gênero: “Ouçam aqui idiotas: eu vou prometer uma longa série de realizações, aumento da renda, emprego garantido, facilidades para comprar a casa, serviços públicos gratuitos, mas tudo isso será financiado por vocês mesmos, por meio dos impostos já arrecadados, ou novos que eu terei de criar se eu quiser realmente cumprir o que estou prometendo. E se não der para cobrar mais impostos, eu vou simplesmente aumentar a dívida pública, que será paga por vocês, algum dia, e os juros imediatamente, e será também deixada para seus filhos e netos.”
Acredito que nenhum candidato é louco o suficiente para dizer claramente O QUE OCORRE, de fato, em qualquer processo eleitoral e, depois, de governo. Como ninguém assume a realidade, os “programas de governo” são geralmente enganosos, uma vez que os candidatos não esclarecem os cidadãos que TUDO AQUILO que ele pretende oferecer aos eleitores poderia ser simplesmente comprado por eles, segundo sua própria escolha e vontade, em mercados livres, em lugar de passar pela geralmente custosa intermediação do governo (que consome com sua própria máquina boa parte desses recursos arrecadados, para sua própria manutenção: burocratas que ficam, assim, encarregados de satisfazer os desejos dos eleitores, mas que também custam, e muito, à sociedade). Ou seja, TODOS, cidadãos contribuintes ou não, estariam numa melhor situação de bem estar se passassem a usar a sua própria renda para decidir o que fazer com ela, em lugar de “emprestá-la” (compulsoriamente) ao Estado, para que este possa decidir, de forma correta ou não, o que fazer com esses recursos.
Pois bem, chegando ao caso brasileiro, o que ocorreu nas eleições de 2014? O que foi claramente observado é que a candidata à reeleição prometeu continuar com suas promessas mirabolantes de aumento do emprego, combate à inflação, bolsas e subsídios diversos (FIES, Pró-Uni, Minha Casa, etc.), acusando o adversário de pretender acabar com todas essas “generosidades” do governo. O papel do vice-candidato nessa chapa foi mínimo, para não dizer inexistente: não há registro do candidato a vice, Michel Temer, repetindo na televisão ou nos anúncios publicitários, as promessas mirabolantes da sua cabeça de chapa, dominada amplamente pela máquina eleitoral do PT. O PMDB foi um importante partido de apoio – uma vez que possui imensa capilaridade no país inteiro – mas não teve, por assim dizer, papel estratégico na definição desse “programa de governo”, ou na condução efetiva da campanha eleitoral.
A própria candidata reeleita por estreita margem de votos sobre o adversário começou, aliás, a se afastar de seu programa de governo imediatamente após a eleição, sem sequer esperar o início de seu novo (segundo) mandato. Isso porque a situação econômica – em primeiro lugar orçamentária – já era periclitante, para não dizer caótica, requerendo a adoção de medidas imediatas para combater o desequilíbrio nas contas públicas. Não é preciso mencionar tampouco – como amplamente comprovado pelas investigações do TCU e de outros órgãos de controle – que as contas já vinham sendo fraudadas há muito tempo, com a adoção da chamada “contabilidade criativa”—na verdade destrutiva – cometida pela presidente e seus assessores econômicos. Ou seja, quem não cumpriu em primeiro lugar o seu “programa de governo” foi a presidente reeleita, e isto precisa ficar muito claro, para que justamente não se afirme que o vice-presidente empossado provisoriamente, Michel Temer, de estar se afastando desse “programa” absolutamente irrealista e construído sobre mentiras deliberadas.
Quem perdeu legitimidade – e até as honorabilidade, e portanto as condições para continuar presidindo o país – foi a presidente reeleita, que se elegeu por meio do que já foi designado como “estelionato eleitoral”, uma vez que enganou não apenas seus próprios eleitores como toda a população do Brasil. Por isso ele está sendo processada, e deverá ser punida com a perda do mandato, o que é absolutamente necessário se o Brasil quer restaurar o devido processo legal. Recomendo, a este título, o artigo do economista Roberto Macedo, “Os crimes de Dilma e a cassação de sua CNHP”, publicado no jornal O Estado de São Paulo de 19/05/2016 (disponível neste link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,os-crimes-de-dilma-e-a-cassacao-de-sua-cnhp,10000052156). Michel Temer está tentando, simplesmente, reconstruir as condições de governabilidade no Brasil, destruídas por Dilma e sua equipe.

2) Como o Brasil pode recuperar sua credibilidade no âmbito externo?

PRA: Muito simples: fazendo uma governança correta, com o respeito ao devido processo legal – o que implica, no plano interno, contas públicas fiáveis – e à palavra dada. No plano externo, a diplomacia governamental precisa exibir, justamente, credibilidade, o que eu discuti neste artigo recentemente publicado: “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, O Estado de S. Paulo (17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687), reproduzido no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/epitafio-do-lulopetismo-diplomatico.html). Os governos do PT retiraram credibilidade à política externa e à diplomacia brasileira alinhando o país com ditaduras desprezíveis e regimes falidos, e isolando economicamente o Brasil do mundo, numa canhestra política econômica de construção de “campeões nacionais” à custa de subsídios públicos, o que revelou-se totalmente equivocado.

(a continuar...)

Movimentos politicos e crise politica no Brasil: um debate no IDP (Brasilia), 18/05/2016 - Paulo Roberto de Almeida

Como anunciado nesta minha postagem: 
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/05/manifestacoes-politicas-partir-de-2013.html
participei ontem, 18/05/2016, de uma palestra-debate, no Instituto de Direito Público, em Brasília, sobre os chamados "movimentos de rua", e suas manifestações políticas, como "causa ou sintoma" da crise brasileira recente, ainda em curso, aliás, embora já numa fase de governo transitório.

O poster feito a propósito do evento, como acima reproduzido, serve para esclarecimento de seus termos, que já delimitavam os objetivos da palestra-debate, e foram por mim desenvolvidos no texto que segue abaixo, como informação do que penso a respeito desses velhos (que não são "de rua", mas que podem estar na rua) e novos movimentos (que estes sim, são de rua), que tiveram, os últimos, um papel decisivo no processo de impeachment (junto com a chamada "República de Curitiba"), e que têm, os primeiros, um papel igualmente relevante na luta de "retaguarda" (ou de resistência ao que eles designam como "golpe", o que é uma farsa) mantida pelo grupo hegemônico afastado agora do poder para não ser escorraçado de vez do governo.
Creio que o que eu escrevi abaixo revela claramente o que penso sobre uns e outros movimentos, mas permito-me agregar, nesta curta introdução que, por falta de tempo (e eu não sabia dessas limitações), não pudemos responder a todas as demandas da audiência. Como eu sempre me comprometo com respostas a perguntas efetuadas pelos presentes, vou postar, sequencialmente, minhas respostas a algumas dessas perguntas que me foram dirigidas.
Paulo Roberto de Almeida


Velhos e novos movimentos políticos na crise brasileira recente

Paulo Roberto de Almeida
 [Notas para participação de debate sobre “Manifestações políticas, a partir de 2013, e a crise brasileira recente”, para debate no Instituto de Direito Público, em 18/05/2016]


O objetivo geral deste evento foi descrito como sendo o de “analisar os movimentos de rua (sic) como causa ou sintoma da crise política”. Em outros termos, os chamados “movimentos de rua” estariam de alguma forma associados à presente crise política, o que me parece apenas parcialmente correto. Para isso vou fazer qualificações aos conceitos de “movimentos” e de “de rua”, bem como aos de “causa ou sintoma”, e por fim a isso que chamamos de “crise política”. Cada um desses termos merece uma qualificação muito bem feita, se é que eu preciso atender ao que se anunciou como “objetivo geral”, deste encontro, cuja organização eu agradeço a meu amigo Danilo Porfírio, o nosso Pancho Villa do Direito, não que ele seja um revolucionário radical, mas que ele tem o perfil do mexicano, embora armado apenas das pistolas do Direito.
Movimentos, de rua ou não, são geralmente identificados a ONGs, ou seja, organizações não governamentais, o que redundaria a dizer que são associações de interesses específicos que brotam da própria sociedade civil e que, no mais das vezes, são independentes do, quando não opostas ao Estado. Mas, no Brasil, país da mil jabuticabas em profusão, essas ONGs tem uma curiosa tendência a virarem quase que imediatamente ONGGS, ou seja, organizações não governamentais governamentais, no sentido em que elas vivem em função de recursos do Estado, não da sociedade que as viu supostamente brotar, e algumas, aliás, são constituídas expressamente com esse objetivo: sugar recursos dos cidadãos através do Estado, que as patrocina e as mantém.
A maior parte dos movimentos assim constituídos não tem nada a ver com a atual crise política, pois estão na paisagem há algum tempo já, sugando os recursos do Estado há muitos anos, talvez décadas. Foi por isso que eu fiz a distinção entre velhos e novos movimentos políticos, pois os que surgiram supostamente no bojo da atual crise política, e que ainda estão usando fraldas e tomando mamadeira, têm muito pouco a ver com seus congêneres já de barba e bigode, várias de cabelos brancos, quando não com muitos militantes aposentados nas “lutas sociais”.
Impossível catalogar todos os movimentos ditos sociais, ou “de rua”, que existem no Brasil: eles são centenas, milhares, tanto mais números quanto é generoso o governo que arranca dinheiro do Estado, ou seja, de todos os cidadãos, para distribuir esse maná apenas para alguns cidadãos que são mais iguais que outros, ou seja, os membros de ONGGs que possuem essa faculdade especial de manter boas relações com membros de um determinado governo.
Nem todas as ONGs são oportunistas a esse ponto: muitas são efetivamente sociais ou se dedicam a finalidades sociais relevantes, causas humanitárias, ou até salvar o planeta de seu muitos males causados, como não poderia deixar de ser, pela ambição e ganância capitalista por mais lucros, em detrimento do bem estar dos trabalhadores, do meio ambiente e até da paz social, concentradores perversos como são todos os sistemas capitalistas existentes neste nosso planetinha redondo.
Uma consulta a uma rede, ou associação-guarda-chuva de organizações sociais “velhas”, ou seja, constituídas em fases bem anteriores à atual crise política, a REBRIP, Rede Brasileira pela Integração dos Povos, criada em 2001 para lugar contra esses mesmos capitalistas perversos, permite verificar que sua lista de membros ou associados conta com não menos de setenta outras ONGs, associações, sindicatos, movimentos, ou grupos de interesses muito diversos, e que coincidem justamente na luta pelos direitos coletivos, da natureza social ou política, com uma forte nas ações anticapitalistas e anti-imperialistas. Segundo seu próprio site, a REBRIP é apoiada pela OXFAM, Oxford Famine Relief (em sua origem, na Inglaterra da Segunda Guerra), pela sempre tão generosa Comissão Europeia e pela Ford Foundation, uma organização capitalista anticapitalista como se vê. Por acaso, sua secretaria executiva é abrigada pela CUT nacional, com sede em São Paulo.
Esses “movimentos de rua” não são todas as associações ou grupos que se mobilizam em torno do governo, do governo petista em especial: são muitas outras que comparecem, para ser mais exato, na folha de pagamentos do governo, entre elas as mais famosas, como MST, MTST, UNE, sem mencionar as dezenas, talvez centenas de entidades que se situam no plano da mobilização em redes virtuais e que se dedicam, justamente, à conexão de todas essas entidades em favor das mesmas causas que favoreciam o governo suspenso do lulopetismo, em especial na área de comunicação: são os chamados blogueiros sujos, além de alguns importantes veículos digitais ou mesmo impressos, que também figuram entre os beneficiários do maná governamental. No lado oposto, ou seja, movimentos contrários a essas correias de transmissão do mesmo arquipélago da esquerda, não existem forças similares ou sequer equivalentes.
Sabe-se que existe uma associação mais recente de organizações que poderiam ser classificadas como de direita, elas sim produtos ou sintomas da crise política, a Aliança Nacional dos Movimentos Democráticos em cuja lista figuram cerca de meia centena, mais exatamente 48 organizações de orientações diversas, mas todas elas centradas na luta contra a corrupção, em favor da reforma política-eleitoral, pela responsabilidade fiscal, pela escola sem ideologia e outros objetivos assemelhados. Mas, sintomaticamente, dela não fazem parte os dois principais movimentos que organizaram, com a ajuda de várias outras organizações – inclusive seres bizarros que pediam uma intervenção militar constitucional para acabar com o governo corrupto e inepto do PT –, as gigantescas manifestações que mobilizaram milhões de pessoas em todo o Brasil, o MBL, Movimento Brasil Livre, e o VPR, que não é a antiga Vanguarda Popular Revolucionária do finado capitão Lamarca, mas o Vem Prá Rua.
Se quisermos ser maniqueístas poderíamos chamar os primeiros de mortadelas e os segundos de coxinhas, mas esses dois termos, aparentemente pejorativos (mas o de coxinhas foi bem absorvido pelos próprios), não refletem todos os matizes dessas duas grandes agrupações de movimentos que são classificados, grosso modo, pela imprensa burguesa (ou golpista, à escolha), como sendo, de um lado, “progressistas”, ou de esquerda, e, de outro, direitistas ou conservadores. Não vamos entrar aqui num debate sobre esses termos, mas voltar para aqueles do nosso objetivo geral.
Os coxinhas são indiscutivelmente movimentos de rua, pois expressam a santa indignação da classe média, ou das elites, como quiserem, pela situação de crise econômica, e de impasses políticos, a que o Brasil foi conduzido desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff, e com maior acuidade e dramaticidade, a partir de sua vitória apertada em 2014. O desenlace atual não restabeleceu a paz social, ou um entendimento político, pois os movimentos ditos progressistas prometem continuar se opondo ao governo transitório, ou temporário, de Michel Temer, e o próprio PT acaba de declarar que vai opor-se terminantemente ao governo golpista deste último. Os coxinhas, por sua vez, continuam a pedir a punição dos políticos corruptos, mas ainda não programaram nenhuma grande manifestação para esta estação outonal. Eles estão, aparentemente satisfeitos com o que foi alcançado até aqui, mas continuam vigilantes para o que der e vier. As ruas, no momento, estão sendo ocupadas pelos chamados movimentos de esquerda, pelo menos enquanto houver mortadela e dinheiro dos sindicatos, o que durar mais.
O processo de impeachment vai ser provavelmente confirmado pelo Senado, com o que diminuirá sensivelmente o financiamento de muitas ONGGs, e de vários movimentos que viviam de transferências públicas algo obscuras, mas não parece capaz de reduzir a divisão política entre os muitos movimentos, velhos ou novos, que se organizam de acordo aos dois polos antinômicos herdados do Iluminismo europeu e da Revolução Francesa, a saber, de um lado o liberalismo de corte individualista, de outro as demandas por igualdade de cunho social ou coletivista. Esta divisão, que toma apoio em filosofias claramente opostas quanto às formas possíveis de organização econômica e social, promete durar pelo futuro indefinido: numa ponta se situam os partidários dos livres mercados e da iniciativa privada, na outra os proponentes de uma forte ação estatal para corrigir o que é percebido como desigualdades criadas naturalmente pela ação desses mercados livres, e que portanto necessitam do Estado para domar mercados e diminuir as desigualdades por via de uma ação distributiva a partir do alto.
Não creio que essa divisão fundamental venha a diminuir no futuro previsível, ainda que os antigos partidários do coletivismo econômico, especificamente em sua forma socialista centralizada, tenham sido constantemente frustrados pela incapacidade do intervencionismo estatal em suas modalidades mais extremadas produzir o quantum de igualdade e de prosperidade como apregoado pelos pais fundadores da doutrina. Mas mesmo os liberais, aparentemente triunfantes na grande luta do século XX entre os socialistas e os defensores de economias de mercado, não estão perto de recolher esse triunfo ilusório, pois em todas as partes, mesmo nas economias de mercado mais avançadas, o Estado assumiu enormes responsabilidades, e controla uma parte cada vez maior da riqueza produzida pela sociedade civil.
Tudo isso é conhecido, desde longos anos, pelos cientistas políticos e pelos economistas de diferentes escolas, e não apresenta grandes novidades para fins deste nosso debate. A intenção, como dito no objetivo geral, é avaliar a ação desses grupos, ou movimentos, na crise brasileira recente. Pois bem, vamos a ela. O que poderia ser dito sobre a participação dos “movimentos de rua”, ou assimilados a tal no processo brasileiro recente?
Obviamente que as contribuições, transferências e subsídios concedidos pelos governos lulopetistas às suas correias de transmissão na chamada sociedade civil não são responsáveis pela crise econômica, pelo menos em sua parte fiscal. Dados disponíveis a esse respeito indicam que a “bolsa banqueiro” – ou se quisermos, os juros da dívida pública, mas que já faz parte do panorama fiscal desde longos anos, pelo menos desde a independência – assim como a “bolsa empresário”, ou “bolsa BNDES”, esta sim uma inovação, ou o seu reforço extraordinário nos últimos anos, provocaram, junto com as desgravações setoriais e subsídios enormes a programas específicos, o imenso descalabro fiscal que precipitou a crise econômica em que vivemos atualmente. Mas o apoio a supostos “movimentos de rua” alinhados com o governo, muitos deles atuando de maneira mercenária – a chamada turma da mortadela – são um componente relevante na crise política, uma vez que eles mantêm, depois da derrota no Congresso, a pressão das ruas e entre os chamados formadores de opinião, que são geralmente jornalistas ou gramscianos de academia (ou seja, professores simpáticos a causa petista).
Essa realidade vai continuar, pelo menos enquanto o pessoal da mortadela for alimentado, ou financiado, e enquanto os apoiadores ideológicos – isto é, os jornalistas e os professores alinhados – estiverem convencidos de que é possível esperar uma volta do partido hegemônico da esquerda, ou seja, o PT, que funciona como um hub, ou seja, um núcleo central, com tentáculos e satélites espalhados por toda a sociedade civil (os mesmos, aliás, que aparelharam extensivamente o Estado nos anos lulopetistas). Não podemos nos enganar nesse particular: os chefes daquilo que foi descrito como uma organização criminosa podem ter sido expulsos do poder central, mas seus apoiadores continuando ocupando postos no governo e no Estado em todas as esferas e níveis da federação, e toda a imensa rede de sustentação, que não é constituída apenas pelos movimentos de rua, ou assemelhados, são ainda extremamente relevantes, eu diria até estratégicos, para a manutenção da ideologia que motivou essa conquista do Estado na década passada. As mentalidades continuam preservadas e ainda bastante fortes, não só nas instituições de ensino, em diversos níveis, mas sobretudo nos sindicatos e nessas organizações sociais que são, ainda são, sustentadas pelo governo mediantes diferentes canais de transferência de recursos.
Do outro lado, podemos sinalizar a existência de velhos grupos saudosistas do antigo regime militar, mas sobretudo a emergência dos novos movimentos classificados como de “direita”, o que eu considero fundamentalmente equivocado. A sociedade civil espontânea, ou seja, aquela não organizada nesses movimentos tradicionais, evoluiu bastante no Brasil, desde o início do governo petista, que conseguiu conquistar uma parte da classe média com sua mensagem pela ética na política, de justiça social, de redistribuição de renda e de serviços públicos fornecidos em caráter universal ou focados em grupos específicos (as chamadas minorias sociais, geralmente raciais ou sexuais). Essa mesma sociedade se deu conta, no decurso dos últimos anos, e talvez desde a denúncia do Mensalão, que havia um outro PT, uma outra esquerda que ela não conhecia: uma organização centrada em seu interesse próprio, operando o completo aparelhamento do Estado e envolvida em rumorosos casos de corrupção que serviu para quebrar o encanto com os antigos “justiceiros sociais”. Tudo isso explodiu nas eleições de 2014, percebidas como “estelionato eleitoral”, o que logo após foi confirmado pela mudança completa de política econômica e pela revelação do imenso déficit causado nas contas públicas pela política irresponsável conduzida nos últimos anos.
Tudo isso serviu de estopim para os novos movimentos de rua, que congregam aquilo que eu chamo de cidadania ativa, consciente e crítica: é esta cidadania, basicamente os coxinhas de classe média, pequenos empresários, jovens não contaminados pelo marxismo vulgar da academia gramsciana, que constituiu os mais famosos movimentos desta fase, o Movimento Brasil Livre e o Vem Prá Rua, além de outros menos conhecidos. São eles que, junto com a República de Curitiba, empurraram o Congresso para o impeachment, e são eles talvez figurem no novo panorama político do Brasil. Este é um cenário novo, de transição. Mas não tenho dons de adivinho para prever o que vai acontecer nos próximos meses, ou até 2018, quando deveremos renovar todas as expressões políticas mais importantes no executivo e no legislativo.
Seguiremos atentos...


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Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 18 de maio de 2016 

2980. “Velhos e novos movimentos políticos na crise brasileira recente”, Brasília, 18 maio 2016, 6 p. Notas para participação de debate sobre “Manifestações políticas, a partir de 2013, e a crise brasileira recente”, a convite e sob a coordenação de Danilo Porfírio, professor da graduação e pós-graduação da Escola de Direito de Brasília do Instituto de Direito Público, com a participação de Raul Sturari (Instituto Sagres).