Do
lulopetismo diplomático a uma política externa profissional
Paulo Roberto de Almeida
Dura lex, sed lex: os padrões da diplomacia profissional
Diplomatas costumam ser,
salvo as exceções de praxe, discretos e disciplinados. Típicos servidores de
Estado, eles pautam sua conduta por servir, indistintamente, com igual
proficiência, proverbial discrição e sentido de responsabilidade, os governos
que, legitimamente ou não, ocupam temporariamente as rédeas do poder político (espera-se,
contudo, que seja na saudável alternância das democracias consolidadas). Apenas
essas características explicam que o Itamaraty e seus funcionários tenham
atravessado os anos turbulentos do lulopetismo, tendo sabido preservar de modo
relativamente incólume sua reputação de qualidade, em face de tantos problemas
acumulados pelo modo bizarro de fazer política – e “negócios” – que caracterizaram
quase três lustros de anomalias funcionais e de disparates políticos em
praticamente todas as áreas da administração.
Também com as poucas exceções
de praxe, os diplomatas sempre procuram conciliar a qualidade técnica de seus
serviços especializados com algumas anomalias na política externa que por vezes
destoam, e muito, do modo de ação diplomática que sempre distinguiu a Casa de
Rio Branco. Confesso não ter sido um membro da maioria, constituindo antes uma
dessas exceções de praxe. Como sabem meus colegas, e muitos de fora da carreira
também, todo diplomata que pretenda escrever em outras áreas que não contos,
romances ou poesia – isto é, produtos habituais da literatura e das belas
artes, que não precisam passar pelos controles políticos da instituição –, defronta-se
com dois instrumentos (e com dois problemas de consciência) regulando o que ele
teria a dizer sobre o seu objeto próprio de trabalho. O primeiro deles é a Lei
do Serviço Exterior, que, entre outros objetivos, disciplina o comportamento
funcional do “autor” que pretenda discorrer sobre temas que integram a agenda
de trabalho da instituição. Devo dizer, de imediato, que considero esta lei
basicamente correta, e tenho me esforçado para cumprir os seus termos tão
completa e fielmente quanto possível.
O outro instrumento é a famigerada
“lei da mordaça”, uma circular restritiva, emitida no final de 2001 com o
intuito de reforçar os controles existentes na lei, e que reforçou
negativamente qualquer manifestação pública hipoteticamente considerada pelos
funcionários do quadro, introduzindo o que se poderia chamar de censura prévia
na eventualidade de se pretender vir a público para discorrer sobre quaisquer
assuntos da pauta oficial. Não sei se essa circular, deletéria sob qualquer
padrão de circulação e de debate de ideias que se considere, foi ou não
revogada, mas conheço dois diplomatas que foram por ela censurados, até com consequências
funcionais num dos casos. O primeiro – e creio que a circular foi feita especialmente
para ele – foi o antigo diretor do Instituto de Pesquisas de Relações
Internacionais, que costumava insurgir-se contra as negociações da Alca e
contra o Mercosul neoliberal e que, demitido e transformado em vítima do ancien Régime tucanês, tornou-se um dos
principais arquitetos da política externa dos companheiros, ao ser guindado à
posição de Secretário Geral do Itamaraty durante quase todo o decorrer dos dois
mandatos do demiurgo do lulopetismo enquanto governo. O segundo é este mesmo
que aqui escreve, censurado por uma entrevista às Páginas Amarelas da Veja, não por contradizer qualquer
política oficial do governo, mas simplesmente por ter falado sem o nihil obstat dos barões da Casa. Um
crime!
O mais curioso é que a
censura, e a advertência (feitas ao abrigo da “lei da mordaça”), ocorreram também
sob o reinado do ancien Régime tucanês,
isto é, quando o Brasil e seu Estado ainda não tinham sido dominados pelo
pensamento único dos companheiros, e por todas as suas preferências militantes
e ideológicas, especialmente em matéria de política externa. (Isto porque, numa
primeira fase, a política econômica continuou a ser dominada pelo espírito
“neoliberal” dos tucanos, que teriam deixado, segundo as acusações mentirosas e
maldosas dos companheiros, uma “herança maldita” na passagem ao novo regime
salvador.) Em matéria de política externa, como todos se lembrarão, fomos
bafejados por uma “diplomacia ativa e altiva”, e também “soberana”, como se
encarregavam de lembrar seus principais promotores. Como eu nunca fui de aderir
a modismos, ou de me curvar às verdades do momento, continuei a fazer minhas
análises, que sempre entendi objetivas e de espírito puramente acadêmico, e a
publicar ocasionalmente artigos em revistas e ensaios em livros, que nunca
sofreram, esclareço, qualquer sanção formal do “comitê central” do nouveau Régime companheiro.
A sanção, na verdade, veio
sob outra forma: um veto não declarado, mas real e mesquinho, a qualquer
trabalho na Secretaria de Estado, o que significou, na prática, uma longa
travessia no deserto funcional, que redundou em ostracismo administrativo e
total bloqueio na carreira. Esse foi o preço pago por ousar desafiar o adesismo
em vigor, uma situação patética na qual todo o Itamaraty foi colocado a serviço
do “guia genial dos povos”, e suas preferências políticas orientadas pelos apparatchiks do partido e seus mestres
em outras esferas. Durante esse longo período, publiquei algumas matérias de
atualidade, e até alguns livros de pesquisa, mas deixei muitos outros trabalhos
– que poderiam, eventualmente se enquadrar na esfera da Lei do Serviço
Exterior, que sempre procurei não infringir – dormitando em minhas pastas de
“working files”, aguardando publicação em alguma ocasião mais propícia. Parece
que este tempo finalmente chegou.
Nunca antes
na política externa: os crimes diplomáticos dos companheiros
Agora que se encerra um
capítulo – certamente um dos menos memoráveis – da história política
brasileira, com uma mudança sensível no comando supremo da nação, pode-se
tentar fazer um balanço do que representaram os anos loucos do lulopetismo na
frente diplomática e no terreno da política externa, começando justamente por
fazer essa necessária distinção entre diplomacia e política externa. A primeira
é simplesmente uma técnica, uma modalidade de ação estatal, que congrega
recursos humanos e capacitação especializada na interface do relacionamento do
país com o mundo exterior, nos planos bilateral, regional ou multilateral. A
segunda é o conteúdo que se imprime a essa ação, feita de opções políticas legitimadas
pelas escolhas básicas feitas pelos eleitores, em função de sua percepção sobre
os interesses nacionais e as prioridades sociais.
Não é incorreto dizer que
a área da política externa é uma das menos exploradas nos embates eleitorais,
tanto pela sua aparente distância em relação aos problemas mais prementes da
cidadania – geralmente de caráter econômico e social – quanto pela complexidade
da agenda internacional aos olhos da cidadania. A política externa, com, também,
exceções de praxe, geralmente passa ao largo dos debates nas campanhas
presidenciais, e assim costuma permanecer ao longo de um exercício político
qualquer. O Itamaraty raramente aparece nas polêmicas políticas e nos embates
eleitorais. Não foi o caso nos anos bizarros do lulopetismo, e não apenas no
Brasil, mas extravasando regionalmente também, como sabem todos os que
acompanharam as campanhas presidenciais em vários dos países vizinhos.
Ignorando por completo preceitos constitucionais quanto à não ingerência nos
assuntos internos de outros países, o grande demiurgo apoiou (com poucos
insucessos, o sortudo), quase todos os companheiros bolivarianos candidatos (ou
até mais do que isso, embora, infelizmente, não se pode dispor de registros
adequados a respeito dessas ações, conduzidas por outros canais).
Ao lado dos vários crimes
comuns cometidos por grão-petistas que se exerceram no governo – nem sempre
devidamente sancionados pela justiça – e dos muitos “crimes econômicos”
cometidos por uma gestão particularmente inepta na condução dessa área, daí a
Grande Destruição – que deixou fundas marcas em termos de baixo crescimento, de
recrudescimento da inflação, de desequilíbrios e irregularidades nas contas
públicas, e da exacerbação do dirigismo estatal e do protecionismo comercial –,
o lulopetismo diplomático representou uma séria deterioração dos padrões
habituais da atuação do Brasil na frente externa. O Itamaraty só não foi
aparelhado e assaltado por uma horda de militantes da causa petista – como
ocorreu em praticamente todas as demais agências públicas – por injunções da
legislação que obsta esse tipo de invasão exótica. Mas a política externa não
ficou imune ao festival de bobagens cometidas pelos petistas em quase todas as
demais esferas da administração pública.
Já examinei, em meu livro Nunca Antes na Diplomacia: a política
externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014), os
principais exemplos das bizarrices lulopetistas nesse terreno especializado da
ação estatal, mas convém neste momento chamar a atenção para alguns aspectos
que tiveram de ser discretamente abordados nesse livro, em função justamente da
discrição que os diplomatas devem manter quando se pronunciam sobre temas da
política externa corrente. Começaria por destacar o próprio rótulo que tentaram
pespegar à essa política externa, feita de gestos histriônicos conduzidos pelo
“guia genial dos povos” no cenário internacional, com a assessoria de alguns
diplomatas profissionais convertidos em fieis servidores da causa: ela teria
sido “ativa, altiva e soberana”, como não se cansava de repetir um dos chefes
dessa diplomacia feita de muita publicidade em causa própria e de poucas
explicações sobre as razões de determinadas ações jamais explicadas ao
Congresso ou à cidadania.
Quando se tem a
preocupação de grudar um ou dois rótulos à diplomacia – que geralmente dispensa
qualificações quando é exercida dentro dos parâmetros normais da ação estatal –,
é porque, no plano psicológico, já se sente a necessidade de justificar as
escolhas feitas, provavelmente pelo pressentimento de que elas não se moldam ao
que se tinha habitualmente como padrão de um relacionamento externo normal. Esta
foi justamente a atitude dos lulopetistas – diplomatas ou não – em relação a
temas que deixaram cicatrizes no estabelecimento diplomático, a começar por uma
estranha “diplomacia Sul-Sul”.
Essa miopia partiu, não de
um exame tecnicamente isento da agenda externa do país, mas de uma escolha
prévia, deliberada e totalmente ideológica, por alianças internacionais, ditas
“estratégicas”, que premiavam parceiros considerados “anti-hegemônicos”, em
contraposição às posições tradicionais do Itamaraty. A Casa de Rio Branco
sempre se pautou por um relacionamento externo não discriminatório nos planos
geográfico e político, em função unicamente dos interesses do país, não de uma
tentativa ingênua e canhestra de “mudar a relação de forças no mundo”, ou de
criar uma também bizarra “nova geografia do comércio internacional”, geralmente
com resultados frustrantes e sempre patéticos. Os países previamente escolhidos
de maneira enviesada pelos lulopetistas para serem “parceiros estratégicos”
devem ter ficado satisfeitos de contar com esse apoio unilateral e preventivo,
adotado sem qualquer negociação a respeito. Toda ação gera uma reação: o que
podem ter pensado determinados parceiros tradicionais, sobretudo na Europa,
quando um país candidato a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança
adota a posição que se conhece em relação, por exemplo, ao caso da Criméia
invadida pela Rússia? Ou a costura improvisada de um acordo sobre o programa
nuclear iraniano, ao arrepio do que pensavam os países do P5+1?
A soberania do país foi
exatamente ainda mais comprometida por uma série de escolhas que
invariavelmente primavam por um anti-imperialismo infantil e por um
antiamericanismo anacrônico, ou por um apoio indisfarçável a uma das ditaduras
mais longevas na região e no mundo, sem mencionar os regimes
populistas-autoritários, ideologicamente beneficiários da tradicional postura
diplomática, aliás consagrada num dos mais sagrados princípios constitucionais
– o da não intervenção nos assuntos internos dos demais países – que sempre
levou o Itamaraty a nunca fazer considerações de natureza política sobre
escolhas eleitorais. Por ocasião de campanhas presidenciais em países vizinhos,
como já se mencionou, o demiurgo condutor da nação nunca deixou de emprestar
apoio político – quando não o dinheiro da nação – aos candidatos que ele próprio
julgava merecedores dessas bizarras “alianças estratégicas”, invariavelmente
complementadas por financiamentos ultra-favorecidos raramente questionados pelo
corpo parlamentar. Vários, aliás, nunca foram devidamente esclarecidos, até
aqui.
O Mercosul, um projeto
basicamente de abertura econômica e de liberalização comercial, e de formação
de um espaço integrado com os vizinhos do cone sul, foi desviado de seus
objetivos essenciais, e convertido num empreendimento político que serviu
unicamente de palanque para a retórica vazia dos lulopetistas e bolivarianos,
com um recuo notável nos seus padrões de funcionamento, uma vez que a
administração petista condescendeu com todas as violações cometidas contra o
livre comércio e a união aduaneira que deveriam servir de regras fundamentais
para a sua existência.
Não se descobrirá, por
outro lado, qualquer iniciativa na frente externa que tenha descontentado as
lideranças castristas ou bolivarianas, invariavelmente beneficiadas pelo apoio
político ou financeiro do lulopetismo diplomático. Certamente que o Itamaraty
por si próprio não teria apoiado determinadas escolhas – na Bolívia, em
Honduras, na Venezuela, ou no Paraguai – que foram decididas exclusivamente no
círculo restrito dos apparatchiks
petistas, sem o devido registro nos expedientes diplomáticos e nos arquivos da
Casa. Este é um dos aspectos que reputo mais nefastos em toda a trajetória do
lulopetismo diplomático: não contentes em se desviar dos padrões de uma
política externa simplesmente sensata, eles também transformaram determinados
episódios em “buracos negros” nos anais da Casa: não há registro sobre como
algumas iniciativas foram tomadas, ou como se conduziram certas ações.
Rumo à normalidade
na diplomacia profissional: algum balanço possível?
Fico imaginando como os
futuros historiadores interpretarão, se puderem, certas decisões tomadas nesses
anos loucos, na ausência de um processo diplomático de exame circunstanciado da
cada ação empreendida na frente externa. Como e por que, por exemplo, se
decidiu suspender o Paraguai do Mercosul, na ausência completa de uma estrita
observância dos rituais próprios ao Protocolo de Ushuaia, relativo à cláusula
diplomática do bloco? Como, e sob quais justificativas, se decidiu admitir
politicamente a Venezuela no mesmo bloco, se ela, simplesmente, jamais conseguiu
cumprir qualquer um dos requisitos técnicos e das normas conducentes à sua
adesão à união aduaneira do Mercosul (sem mencionar o lado bem mais grave da
observância de padrões aceitáveis no plano da democracia)? Que tipo de acordo
foi feito com a ditadura cubana para repassar um volume expressivo de recursos
para aquele regime, se o parlamento não foi chamado a dar a sua chancela a
esses “encargos gravosos” no plano externo, como aliás determinado pela
Constituição?
Esses são apenas alguns
dos muitos casos nos quais não foram respeitados dispositivos legais em vigor
no Brasil, bem como padrões habituais do acatamento do Itamaraty às regras do
direito internacional que sempre pautaram a atuação da Casa de Rio Branco ao
longo de sua história. Num momento em que uma diplomacia normal, sensata, sem
rótulos bizarros, começa a ser novamente estabelecida, não apenas em benefício
do próprio Itamaraty, mas em função dos reais interesses da nação, caberia
refletir sobre o volume inacreditável de deformações impostas pelo lulopetismo à
ação externa do Brasil. Não tenho certeza de que tal avaliação seja integralmente
possível.
Um balanço feito a partir
dos registros disponíveis certamente revelaria um número bem maior de bizarrices
diplomáticas que conviria examinar, e corrigir, para que a política externa do
Brasil retorne aos seus padrões habituais de atuação, e de equilíbrio, sem mais
aventuras exóticas e escolhas francamente deletérias do ponto de vista dos
interesses nacionais. Pode-se temer, no entanto, que algumas grandes lacunas
persistam no plano dos registros devidos, uma vez que o demiurgo, ao que
parece, não tinha o hábito de ler, e na verdade exibia verdadeiro horror a
qualquer texto que lhe fosse apresentado para leitura. Lembro-me, por exemplo,
que ano após ano, nas datas habituais de comemoração do “Dia do Diplomata” –
oficialmente a cada 20 de abril, mas muitas vezes delongado no calendário, e
invariavelmente atrasado nos horários – o demiurgo em questão desdenhava,
aberta e acintosamente, a “maçaroca” de papeis que lhe passavam diplomatas
ciosos da “boa palavra” numa síntese regular do que se tinha feito no ano
decorrido, para discorrer improvisadamente sobre todas as glórias da sua
diplomacia triunfante, seja no confronto com os poderosos do mundo, seja no
total entendimento com os companheiros regionais. Lições memoráveis, no
YouTube...
Mesmo que um balanço rigoroso
desses anos bizarros não seja feito pela própria Casa, espera-se que membros da
academia não contaminados pelo pensamento único dos companheiros possam
conduzir uma análise mais serena da diplomacia e da política externa da nossa
“década infame”, embora eu duvide muito disso. Pelos contatos que mantenho na
academia, pelos pareceres que sou chamado a dar anonimamente a artigos
submetidos a revistas e publicações dessa área, pelo acompanhamento de
discussões que se processam nas chamadas redes sociais, percebo que o espírito
do lulopetismo ainda é amplamente majoritário entre os gramscianos de academia
que se dedicam aos temas de política internacional e de diplomacia brasileira.
Durante esses três últimos
lustros fui uma das poucas vozes dissonantes – talvez apenas seguido por
veneráveis porta-vozes do chamado “partido da imprensa golpista” – na avaliação
das bizarrices diplomáticas do lulopetismo em vigor. Agora que ele perdeu suas
alavancas de poder, bem como muitas das correias de transmissão na chamada
sociedade civil (na verdade “movimentos sociais” e blogueiros “sujos” mais assemelhados
a mercenários do que a aderentes voluntários), pode ser que algo mude nesse
terreno. Como já escrevi algumas vezes – a última
neste artigo do Estadão, um dos jornais reacionários, “Epitáfio do lulopetismo
diplomático” (17/05/2016; disponível: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687) –, já não era sem
tempo...
Paulo Roberto de Almeida
[Anápolis, 2840: 11 de julho de 2015; Brasília, 2982:
22 de maio de 2016]
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