O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A "cultura" diplomatica e as mulheres: respostas a um questionario - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Respostas a um questionário de pesquisa, que permaneceram inéditas desde então.


Alguns aspectos da cultura diplomática
Respostas a questionário no âmbito de Projeto “Mulheres e Relação entre os Gêneros nas Diplomacias Brasileira e Portuguesa”

Respostas a Professora da USP

Comentários de Paulo Roberto de Almeida
Ministro de segunda classe da carreira diplomática
(ingresso por concurso direto em 1977, sem curso no Instituto Rio Branco)

Brasília, 25 de fevereiro de 2006


Opiniões sobre alguns aspectos da carreira diplomática

1-A carreira diplomática é reconhecidamente masculina. Em sua opinião, quais os estereótipos que circulam no quotidiano do MRE e no IRBr, quanto à participação das mulheres na carreira.

            PRA: A carreira já foi exclusivamente masculina, no passado remoto (ou não tão remoto, em alguns países). Depois se tornou essencialmente masculina, na segunda metade do século XX, como resultado de uma lenta evolução em direção de maiores oportunidades e chances para o gênero feminino, embora muito lentamente.
Acredito, pessoalmente que estereótipos e preconceitos devem ter sido superados, no momento atual, mas as evidências estatísticas sugerem o contrário, com uma participação feminina inferior a um quarto do total dos quadros.
Não obstante a não discriminação no recrutamento, em seu formato impessoal e anônimo, como adotado atualmente, a carreira ainda permanece como predominantemente masculina, refletindo um pouco o quadro geral da estrutura profissional do mercado de trabalho da sociedade brasileira, que reserva a maior parte das funções gerenciais e executivas para o elemento masculino.
Não creio que essas diferenças nos “volumes” respectivos de homens e mulheres na diplomacia reflitam estereótipos ainda predominantes, mas tão simplesmente uma herança do passado que persiste no presente. Determinadas profissões permanecem essencialmente masculinas, como podem ser as engenharias, outras se tornaram essencialmente femininas, como a psicologia, outras, enfim, realizaram uma bem sucedida transição para a “feminização”, como pode ter ocorrido com a medicina. No caso da diplomacia, essa transição ainda não se deu, mas os estereótipos têm pouco a ver com a situação atual.


2- Quais os obstáculos que as mulheres encontram para a ascensão na carreira?

            PRA: Eles podem ser divididos entre os “estruturais” e os “específicos”. Os primeiros seriam comuns a todas as profissões, no sentido em que existem elementos que penalizam a mulher devido a seus muitos encargos familiares e de maternidade, redundando numa menor dedicação ao trabalho, devido aos afastamentos pelas razões apontadas acima. Eles são comuns a praticamente todas as profissões que requerem empenho e dedicação intensos, o que pode redundar em sacrifícios familiares e matrimoniais.
            Os específicos estariam ligados à história da carreira, que já teve, sim, aspectos extremamente negativos para a inserção e o sucesso da profissional feminina. Quando surgiu o Instituo Rio Branco, o concurso estava limitado aos homens, numa flagrante inconstitucionalidade. Depois, as mulheres foram sendo na prática discriminadas com promoções mais delongadas, não atribuição de chefias (na Secretaria de Estado ou no exterior) e uma subordinação de fato à carreira do marido em caso de casais de diplomatas (anteriormente a mulher era obrigada a “agregar”, ou seja, sair da lista de antiguidade, quando da remoção do marido para o exterior, prática que perdurou ainda até os anos 1980).
            Atualmente, todos os obstáculos formais foram levantados, e as novas gerações não praticam nenhum tipo de discriminação subreptícia, mas podem ter restado algumas mentalidades ainda resistentes à plena equalização de chances...


3-O senhor cita o embaixador Geraldo Eulálio, este aponta predicados e inconvenientes, resultantes do ingresso das mulheres na carreira. Em sua opinião, quais seriam, os predicados e os inconvenientes?

            PRA: Não estabeleço qualquer tipo de diferencial, em princípio, entre homens e mulheres, e não creio que qualquer um dos gêneros detenha qualquer vantagem ou desvantagem inerente à sua condição no maior ou menor sucesso na carreira. A única coisa que posso constatar é que a carreira ainda impõe certas obrigações de disponibilidade – sobretudo em termos de viagens e missões ao exterior, reuniões se estendendo fora dos horários normais de trabalho etc. – que podem representar algum ônus para a mulher, que ainda é vista, a despeito de todo o progresso realizado na nossa sociedade, como a principal responsável pelo cuidado, atenção e educação com os filhos. A sociedade ainda não está organizada para permitir plena igualdade de chances – faltam creches e outras condições que permitiriam à mulher exercer plenamente qualquer atividade na qual tenha interesse – o que termina inevitavelmente penalizando a mulher.
            Por outro lado, a sociedade é também bem mais exigente, em termos de apresentação, cuidados pessoais, vestimentas etc., com a mulher do que com o homem, o que pode ser também um ônus adicional na carreira, mas isto é apenas uma hipótese.
            Do ponto de vista dos comportamentos, igualmente, existe mais leniência para com os homens, no que se refere ao círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos que podem ser considerados como “ocasionais”.
            Tudo isto não está ligado a “predicados” o “inconvenientes”, mas a percepções sociais sobre o papel e a imagem de cada um dos gêneros.


4-Vige a visão difundida pelos organismos da Onu, como também por ONGS e teóricas feministas, de que as mulheres são mais capazes do que os homens, para negociar a paz, até de participar positivamente na resolução dos conflitos armados. Qual a sua opinião sobre estas afirmações?

            PRA: Não há nenhum fundamento para esse tipo de opinião, que se prende mais a estereótipos comuns em nossa sociedade do que a determinações “estruturais” ligadas aos gêneros. Agora, é um fato histórico que as sociedades evoluíram tradicionalmente segundo uma divisão sexual de funções que sempre deu à mulher atribuições domésticas e aos homens os encargos externos, inclusive a “arte da guerra”. Este é um fato histórico, não um destino inelutável, aliás em fase de evolução crescente, com a incorporação das mulheres a todas as responsabilidades guerreiras em número crescente de sociedades modernas, sendo os EUA e Israel exemplos conspícuos destas tendências.
Creio que não há nenhuma determinação a priori capaz de diferenciar entre os gêneros na capacidade de fazer a paz ou a guerra. Opiniões nesse sentido são simplesmente desprovidas de fundamentação científica.


5-Seriam as mulheres, melhores interlocutoras, do que os homens, nas negociações, de qualquer natureza?

            PRA: Em absoluto, não há nem pode existir uma determinação dessa natureza, pois isso desafia a lógica e o bom senso. Homens ou mulheres não negociam enquanto gênero, mas enquanto funcionários burocráticos de uma organização mais vasta, e eles devem, portanto, ater-se às instruções expedidas pelos seus serviços diplomáticos respectivos, e não responder a suas orientações idiossincráticas. Os indivíduos podem fazer alguma diferença em qualquer negociação, mas isso não se prende ao seu gênero, e sim à sua capacidade de melhor conduzir um processo negociador, o que responde à sua formação enquanto indivíduos, não importando o sexo.


6-No MRE haveria distinção na distribuição das missões, entre homens e mulheres? Por quê?

            PRA: Desconheço qualquer orientação nesse sentido. Em tempos remotos, chefes de administração poderiam ostentar ou esconder algum preconceito nesse sentido, mas não creio que esse tipo de comportamento tenha lugar no período atual. Nenhuma das funções diplomáticas apresenta qualquer conotação específica a um gênero qualquer.
            Pode-se pensar, outrossim, que negociações em torno dos direitos da mulher seriam mais bem conduzidas pelas próprias interessadas, em vista da discriminação de fato que ainda cerca o gênero feminino na maior parte das sociedades modernas e concedo que seria mais interessante ter mulheres nessas posições.
Mas o princípio é talvez perigoso, uma vez que redundaria em dar a outras minorias – infelizmente os temas ligados à mulher costumam ser enfeixados na mesma categoria das “minorias discriminadas” – o “direito original” de representar seus pares, o que pode conduzir a um sistema similar ao do “apartheid” ou da segregação, no qual apenas os próprios representantes daquela categoria têm o direito de falar em seu nome. A sociedade como um todo teria o dever de opinar e decidir o que é melhor para o conjunto dos cidadãos, não apenas um grupo determinado. As distorções que poderiam ser criadas por esse tipo de orientação podem ser mais danosas do que os supostos benefícios que ela traria.


7-Quais as missões, ditas apropriadas para as mulheres?

            PRA: Não atribuo legitimidade a esse tipo de questão, mas caberiam as ponderações feitas acima.
            De toda forma, considerando-se que a mulher não é uma “minoria” – classificação que ainda ocorre em determinadas instâncias da vida nacional e nos foros internacionais – e sim metade da humanidade, seria totalmente racional que todos os temas envolvendo mulheres, crianças, adolescentes, direitos reprodutivos e de certa forma educação tivessem um forte componente de representação e até de “direção” feminina.
A humanidade estaria bem melhor se isso ocorresse, considerando-se que o critério básico para se julgar o avanço civilizacional de qualquer povo é o tratamento concedido à mulher.


8-Quais as missões mais apropriadas para os homens?

            PRA: Absolutamente nenhuma, de qualquer tipo, que não possa igualmente ser atribuída à mulher.
            Entendo, por outro lado, que por razões eminentemente práticas, missões que envolvam certo diferencial “civilizatório” tenham de atender a esse critério de distinção entre sexos. Um exemplo apenas, no limite do possível imaginável: não se enviaria alguma chefe de missão de paz da ONU negociar com rebeldes de alguma tribo ou comunidade étnica cujas tradições e cultura envolvam esse tipo de discriminação sexista. É bem conhecido o fato de que determinadas sociedades colocam a mulher em patamar inferior ao do homem, daí a “impraticidade” de se colocar uma mulher negociadora à frente de alguma missão que envolva esse tipo de comunidade.
            Isso não quer dizer que a missão seja mais apropriada para o homem, apenas que o critério de desempenho tem de levar em conta esse aspecto peculiar na seleção do negociador principal.


9- As embaixatrizes são fundamentais na carreira dos embaixadores, sobretudo, no estrangeiro, devido ao trabalho complementar, por exemplo, a organização de eventos, recepções etc. Qual é a sua opinião a respeito disso?

            PRA: De fato, isso ainda ocorre, e não apenas no estrangeiro, na medida em que a carreira diplomática foi tradicionalmente reservada aos homens – como a militar, aliás – e que o papel da mulher sempre foi pensado como o de coadjuvante. A presença, ainda predominante, dos homens como atores principais e das mulheres como meras “acompanhantes”, faz com que esse papel ainda seja importante. De certa forma, “se espera” que seja assim.
            No futuro, provavelmente, isso vai diminuir e as sociedades se tornarão absolutamente igualitárias, mas trata-se de evolução lenta, que depende do aprofundamento das mudanças nos costumes sociais e também das formas de organização das sociedades.
            Minha opinião pessoal é a de que a mulher do chefe do posto, ou de qualquer outro diplomata, tem de ser “libertada” dessa corvéia, pois se trata de imposição social, não de missão voluntariamente assumida. Em bases individuais, não deveria haver discriminação na preparação de recepções entre amigos. Nas recepções oficiais, se deveria simplesmente terceirizar o serviço, convertê-lo em uma obrigação profissional no sentido prático da palavra, não impor um “serviço não remunerado” a qualquer um dos cônjuges apenas porque ele é o acompanhante do diplomata (aqui sem qualquer distinção de sexos). Aliás, a mulher não deveria sequer ser cogitada como “acompanhante” do marido apenas para acompanhar; ela deveria ser convidada enquanto indivíduo independente, e decidir por ela mesma se deseja comparecer ou não.


10- No caso, dos maridos das embaixadoras, teriam relevância no trabalho complementar, ou em outro, outros? Qual/ais ?

            PRA: Não se demanda, por hábito, do marido da embaixadora, as mesmas obrigações que se costuma demandar às embaixatrizes, mas isso é preconceito residual. Não consigo ver qualquer tipo de missão especial associada ao “marido”, a não ser, pateticamente, como acompanhante da mulher.
            Os comentários acima são válidos neste particular também.


11- A família, cônjuge e filhos, são de vital importância na carreira diplomática? Por quê?
            Não deveria ser, uma vez que a atividade diplomática é uma função de Estado, que é exercida por burocratas aos quais se atribuem encargos independentemente do sexo. Na prática, a questão do “acompanhante” – que não precisa necessariamente ser o cônjuge legal – assume um papel social relevante. Os filhos são de menor importância no desempenho das funções, pois normalmente não se leva em conta essa dimensão nos eventos sociais da diplomacia corrente.
            A diplomacia, de toda forma, evoluiu muito entre o início do século XIX e os tempos modernos. Do congresso de Viena às reuniões absolutamente burocráticas da ONU, estilos foram se consolidando. Não se fazem mais bailes ao estilo de Viena e não se organizam mais saraus diplomáticos, nos quais a presença feminina era puramente decorativa (ou até podia ter outras funções, que não tinham de toda forma muito a ver com a negociação de posições em si).
            A família ainda é um componente fundamental de organização da sociedade humana e como tal interfere no desempenho de funções oficiais, mas não deveria haver, a rigor, qualquer “cruzamento” entre desempenho na carreira e status familiar ou matrimonial. Não creio, assim, que essa questão seja de “vital importância” na carreira, que como se sabe integra vasto componente de solteiros, muitos deles claramente homossexuais. Sem conhecer estatísticas precisas, acredito que a proporção de homossexuais na carreira seja superior à do conjunto da sociedade, isto por razões culturais específicas à carreira. Esse aspecto diminui, portanto, o peso da família na carreira.


12- Quando o diplomata/a diplomata, são solteiros, quem substitui a família nuclear?(cônjuge e filhos)

            PRA: Não creio que essa substituição seja necessária, em qualquer hipótese. A questão só se justifica numa visão tradicional dos papéis sociais e da própria diplomacia.
No passado, quando a discriminação social era mais forte contra os homossexuais – que tendem a ser “solteiros” em maior número --, muitos homossexuais, de ambos os sexos, mas basicamente os homens, tendiam a constituir famílias, justamente para não sofrerem discriminações. Essa tendência é cada vez menos freqüente, mas ainda ocorre nos tempos atuais, tendo em vista que a evolução dos costumes ainda não foi completa. Poucos países adotaram, por exemplo, o chamado “casamento gay”, mas paulatinamente haverá, futuramente, uma maior aceitação de casais homossexuais nos meios diplomáticos também.


13-Esse papel seria exercido pelos pais, irmãos, amigos?

            PRA: A questão não se coloca, nem absolutamente, tendo em vista as tradições da diplomacia – que considerava apenas o status matrimonial do diplomata, geralmente homem –, nem relativamente aos padrões atuais do exercício da carreira. Não se exige que um diplomata solteiro tenha qualquer tipo de acompanhante, mas se espera que o diplomata casado se faça acompanhar do cônjuge em determinados eventos sociais.


14-O trabalho complementar da mulher seria remunerado pelo MRE, um salário, um pró-labore, ou outra modalidade?

            PRA: Não creio que um serviço público de tipo “republicano” tenha de remunerar “acompanhantes” por atividades sociais ligadas ao status do funcionário, mas entendo que o cônjuge deveria ser desobrigado de trabalhar gratuitamente na preparação de eventos oficiais. O trabalho deveria ser profissionalizado e terceirizado, com responsabilização apenas do titular da função pela prestação de contas, ainda que ambos se engajem voluntariamente em atividades não remuneradas ligadas a esse tipo de evento (como horas extras incorridas em alguma recepção oficial, etc.). Sou contra qualquer tipo de pró-labore em eventos puramente sociais, e isso não tem nada a ver com o sexo do cônjuge.


15- Os filhos dos diplomatas receberiam algum tipo de subsídio, por exemplo, para estudos, creches etc.?

            PRA: Isso não tem nada a ver com a condição de filhos ou com a carreira diplomática. Isso tem a ver com disposições legais ou constitucionais quanto à educação das crianças ou quanto à vida no exterior a serviço do país. Se uma sociedade impõe a obrigação do ensino, ela tem o dever de oferecer meios para que os pais possam ter escolas à disposição para o tipo de ensino esperado dos cidadãos dessa sociedade.
            Em alguns casos especiais, funcionários no exterior – diplomatas, militares etc. – podem não ter condições de oferecer escola a seus filhos salvo em regime de pagamento em instituição particular. Creio que funções no exterior deveriam estar associadas a subsídios ao ensino e à habitação em função de condições peculiares do posto, a serem examinadas pelo chefe do posto, em consulta com o serviço oficial nacional. Parece-me normal que chefes de família possam dispor desse tipo de subsídio, pois suas necessidades superam as de um funcionário solteiro, sem obrigações familiares (e constitucionais, em certos casos).
            Não deve haver subsídio a nenhum indivíduo, filho ou pai, apenas intervenção pública ligada a um determinado serviço – ensino ou habitação – quando isso se revelasse absolutamente indispensável, tendo em vista as peculiaridades mencionadas (que geralmente envolvem inexistência de escolas públicas de qualidade, culturas muito distantes da realidade nacional, custo elevado da habitação, etc.).


16- Caso haja alguma ajuda, para as mulheres ou para os filhos, seria no estrangeiro e, também, no Brasil?

            PRA: Apenas no exterior. No Brasil, se espera que o chamado “espírito republicano” prevaleça, ou seja, a sociedade tem de oferecer ensino público a todos os que fazem essa demanda. A decisão pela instituição particular é de natureza privada, caso contrário se estaria discriminando contra a maioria da sociedade – ao alocar recursos de impostos -- para um serviço que seria hipoteticamente oferecido apenas a alguns poucos (diplomatas, ou funcionários públicos). A missão no exterior impõe alguns “custos” que talvez convenha “socializar”, mas o princípio deveria ser aplicado com extrema parcimônia.


17-E para os maridos das diplomatas?

            PRA: Cônjuge de diplomata, de qualquer sexo, não é função, é uma condição social. A diplomacia é um serviço público e os recursos do Estado devem estar estritamente vinculados ao desempenho de funções públicas. Sou contra qualquer tipo de subsídio atribuído a indivíduos, mas sou a favor de algum tipo de subsídio, caso necessário, se isso ocorrer por necessidade de serviço.


18-E no caso dos/as solteiros/as, o trabalho complementar, exercido por outrem, teria alguma ajuda de custo?

            PRA: Em hipótese alguma. Deve haver estrita e total separação entre a esfera privada e a esfera pública.


19-Como as diplomatas conciliam a atividade profissional e a vida familiar?

            PRA: Sem dúvida, parece complicado, pois a atividade profissional, e não apenas a diplomática, impõe por vezes uma dedicação que interfere e prejudica a esfera familiar. A família pode ser sacrificada em alguns casos. A disponibilidade de recursos – financeiros ou de outro tipo – pode paliar determinados serviços – como baby-sitter, empregados, etc. – mas o déficit de atenção exclusiva aos filhos permanece. Não faço distinção entre sexos aqui, pois entendo que as obrigações familiares e matrimoniais se impõem a ambos, igualmente. Na prática, a carga mais pesada acaba caindo com a mulher, que tem de fazer muito maior esforço para um bom desempenho na carreira do que os homens.


20-Como os diplomatas conciliam a vida profissional e a vida familiar?

            PRA: Os diplomatas homens geralmente colocam a profissão à frente da família, salvo casos raros. Esta é uma constatação, não uma escolha ou demonstração de preferência. Raramente o diplomata homem vai recusar uma missão no exterior, ou o comparecimento a um evento social, por razões de ordem familiar, alegando que sua mulher ou os filhos necessitam de sua presença no lar. Esse tipo de justificativa não é considerada legítima, e isso se aplica mesmo fora do serviço diplomático.


21-Essa conciliação seria diferenciada, se no estrangeiro ou no Brasil?  

            PRA: No exterior, os constrangimentos são ainda maiores, em detrimento da mulher e dos filhos, no entendimento de que na sociedade de origem existem esquemas alternativos para a “solidariedade familiar” que não existem no estrangeiro, um meio novo e relativamente desconhecido para o casal diplomático.
            Mas, toda essa questão não deveria ser um “problema de Estado” e sim pertencer à esfera privada ou familiar. Cabe ao indivíduo que tem família tentar conciliar suas obrigações pessoais e familiares com as profissionais, não ao Estado tentar acomodar o serviço público, que deve ser exercido em bases impessoais, às conveniências dos servidores individuais.


22- É possível a embaixatriz, exercer uma atividade profissional própria?

            PRA: Certamente, mas isso depende de arranjos entre os Estados, uma vez que o estatuto diplomático restringe, de ordinário, o exercício de atividade remunerada. Havendo acordo entre os países – que geralmente implica em levantamento da imunidade tributária para aquele tipo de atividade – não deveria haver obstáculos a essas atividades. Quase todos os Estados ostentam regimes tributários incidindo sobre a renda individual, a que estão imunes os diplomatas por receberem seus proventos de um Estado estrangeiro – o que é regido pela Convenção de Viena sobre relações diplomáticas. Mas caso haja preferência pela atividade remunerada – o que se distingue de atividades de tipo assistencial, por exemplo --, parece normal que o Estado possa tributar essa atividade. 


23- E o marido da embaixadora?

            PRA: Não há, nem deve haver, nenhum tipo de distinção.


24-Os filhos seriam obstáculo para a ascensão na carreira das diplomatas? Por quê?

            PRA: Intrinsecamente não. Na prática, pode haver algum impacto, na medida em que a atenção e a dedicação aos filhos podem redundar na recusa de alguma missão no exterior, durante um determinado período da vida dos filhos. Como registrado acima, não se espera que o homem recuse uma missão, sob a alegação de que precisa cuidar dos filhos à noite, enquanto sua mulher, hipoteticamente, estuda. Espera-se que o casal tenha ajuda familiar. Mas, existe maior compreensão para esse tipo de caso, quando a mulher está em fase de aleitamento, por exemplo. Esse tipo de “escolha” pode resultar em menores chances de ascensão profissional para a mulher.


25-E para a carreira dos diplomatas? Por quê?

            PRA: Já respondido acima. A sociedade ainda não está organizada para dispensar total igualdade de tratamento a homens e mulheres.


26-A Plataforma de Ação, resultante da Conferência de Pequim, orienta os países membros da ONU, entre outras, para a implementação da estratégia “gender mainstreaming”, isto é, os programas e as políticas em todas as instâncias governamentais devem contemplar o recorte de gênero, maneira de ajudar na eliminação da discriminação sofrida pelas mulheres.Como o senhor, aquilata essa implantação no MRE? Enfrenta obstáculos ? quais?

            PRA: Confesso que não acompanhei esse tipo de assunto e não tenho idéia de sua implementação no MRE. Sou a rigor favorável a que toda a sociedade, e não apenas o serviço público, invista em melhores condições para que a mulher possa se desempenhar profissionalmente em toda a sua plenitude. Isso implica em algum tipo de “subsídio”, em troca da função social da maternidade, o que se traduz em creches em grande número, a serem pagas em função da renda familiar. Mecanismos de mercado têm de ser encontrados para “remunerar” a mulher por suas funções reprodutivas e educacionais. 


27- Os curricula dos cursos de preparação para a carreira diplomática, abordam a questão de gênero?

            PRA: Não, segundo meu conhecimento. Eu seria contrário a qualquer discriminação por gênero, positiva ou outra, numa função que deve ser apenas e tão somente pública.


28-A questão das mulheres e gênero, é tema transnacional, diz respeito às relações internacionais. Este tema, em sua opinião, recebe a devida importância, pelo MRE?

            PRA: Ele só é um tema “transnacional” por um razão civilizacional muito clara: as mulheres foram discriminadas, e ainda o são, na maior parte das sociedades, por um tempo longo na história da humanidade. O tema deveria deixar de ser objeto de tratamento especial se e quando o status da mulher vir a ser o de uma completa igualdade de direito – o que ainda não é o caso em diversas sociedades, sobretudo da vertente islâmica – e o de uma igualdade de fato, o que ainda está longe, aparentemente, de ocorrer no futuro previsível.
            Confesso que não tenho a menor idéia de como o tema vem sendo tratado no MRE, pois jamais me dediquei a esse tipo de assunto. Entendo que o MRE tenha um discurso que pode ser classificado de “politicamente correto” nesse particular – pois seria difícil que fosse de outro modo – e que sua prática, como em vários outros setores, deixe algo a desejar, na medida em que isso exige mudança de hábitos, de pensamento, e até certo investimento em coisas novas, não tradicionais na agenda diplomática.


29-Haveria desistência, por parte dos interessados, da carreira diplomática? Por quê?

            PRA: Ocorrem poucas desistências na carreira diplomática, em ambos os gêneros. Não possuo estatísticas a respeito, mas suspeito que seja menos do que 1% dos ingressados. As motivações são sempre de ordem pessoal e familiar, pois a carreira é relativamente tranqüila, no sentido em que todo o funcionalismo público o é: estabilidade, garantia de salários, aposentadoria integral (até a pouco) e outras prebendas associadas à carreira. Os que o fazem são motivados, geralmente, por razões puramente pessoais, e não remunerativas, muito embora possa haver uma enorme diferença entre ganhos no exterior e vencimentos no Brasil (como ocorre em diversos serviços diplomáticos, aliás).
            A carreira também impõe certo stress familiar – postos difíceis, por exemplo – e sobre as mulheres em particular, o que pode motivar algumas desistências, mas não disponho de evidências a respeito. 


30-Em sua opinião, como o MRE, convive com a agenda das ONGs, nacionais e internacionais?

            PRA: Entendo que há, atualmente, uma convivência respeitosa, dependendo do tema e das circunstâncias. Todo serviço público, e não apenas o diplomático, se julga detentor de um mandato e de uma responsabilidade, que decorrem de arranjos institucionais e de disposições burocráticas formalizadas. As ONGs não estão submetidas aos mesmos princípios, daí uma ausência intrínseca de legitimidade política em seu trabalho, que não pode ser desprezada. O MRE, como outros ministérios, presta contas ao chefe do Executivo e eventualmente ao Congresso (e também ao Tribunal de Contas, aos órgãos da receita pública, etc.). A quem prestam contas as ONGs? Aparentemente apenas a suas clientelas, e estas são, necessariamente, sempre setoriais e parciais e portanto discriminatórias.
            Isso conflita, em princípio, com o caráter nacional e impessoal do serviço público.
            Em determinadas circunstâncias, no entanto – geralmente ligadas às agendas social, humanitária, ambiental, trabalhista, etc. –, pode ocorrer maior “osmose” entre o MRE e algumas dessas ONGs. Mas, o próprio das negociações diplomáticas é o caráter por vezes confidencial de qualquer arranjo preliminar, até que possam ser barganhadas soluções aceitáveis para todas as partes. Isso conflita também com a natureza do trabalho das ONGs, que fazem da transparência e da chamada “public accountability” um princípio de trabalho.
            Não creio, pessoalmente, que o MRE deva prestar contas a ONGs, mas apenas informá-las, no limite do aceitável, como se faz com a sociedade em geral.
            Mas, as ONGs também podem ser parceiras no trabalho diplomático, desde que as responsabilidades de cada ator estejam claramente definidas.
            Sou contrário, por exemplo, ao excesso de transparência e de “participacionismo” em negociações internacionais, por razões de ordem prática. Todo e qualquer acordo internacional envolve, inevitavelmente, renúncia de soberania e perdas parciais ou relativas para determinados grupos ou setores da sociedade nacional. Se o processo for “aberto” em demasia, qualquer acordo se tornará impossível, pois grupos organizados – chamemo-los de ONGs, se quisermos – estarão sempre atentos a que seus interesses não sejam discriminados. Isso torna impossível qualquer progresso concreto em qualquer área. Um exemplo disso são as negociações em torno dos subsídios agrícolas: eles devem ser eliminados, pois além de irracionais economicamente, estrito senso, são discriminatórios para com os países dependentes da agricultura. Ora, as “ONGs” do setor impedem qualquer solução ao problema.
            Em síntese, minha posição seria: cooperação com as ONGs, OK, ma non troppo, ou seja, sem qualquer exclusivismo ou captura por interesses particulares.


31- Gostaria que o senhor, caso queira, me contasse algo a respeito da carreira, da sua experiência, e ou da dos seus colegas.

            PRA: Não represento a vertente típica do Itamaraty, para representar um funcionário padrão, em virtude de uma dedicação paralela e simultânea às lides acadêmicas. Nem sei se represento o típico diplomata, por vir de uma família modesta e provavelmente ter opiniões formadas sobre o caráter da carreira diplomática que conflitam com as opiniões ou posições da quase totalidade dos membros da carreira.
            Sou, por exemplo, contra a estabilidade no serviço público, inclusive de diplomatas. Sou contra a aposentadoria integral, de qualquer funcionário público. Sou contra cotas, por gênero ou raças, o que a rigor não existe, mas as demandas nesse sentido se exercem. Sou contrário a interferências externas nas decisões da Casa – em matéria de promoções ou de remoções, por exemplo – e acredito que qualquer interferência ou pedido externo deveria ser objeto de discriminação, de eventual advertência ou sanção ao “objeto” do pedido, ou seja, ao diplomata em questão. Sou a favor de processos democráticos de avaliação de desempenho, como testes, consultas internas, votação secreta, etc. Sou a favor de completa transparência nas contas públicas, com exibição dos gastos na internet, em todas as esferas, salvo aquelas que impliquem confidencialidade ou segredos de Estado (o que deve ser, de toda forma objeto de controle por órgãos especiais). Sou a favor da completa separação do orçamento de funcionamento do MRE das contribuições aos organismos internacionais, que não podem sofrer cortes, pois se trata de dever do Estado, não do ministério. Sou a favor de uma visão restrita das responsabilidades negociadoras externas, que hoje podem estar dispersas em vários ministérios e assim dar campo à descoordenação de posições na frente internacional. Creio também que a autorização legislativa deva ser requerida para o caso de denúncia de tratados, e não apenas para sua ratificação. Creio que a assinatura de um tratado já envolve a obrigação de sua comunicação ao Congresso.
            Estas são posições hoje não todas consolidadas ou admitidas no serviço diplomático ou no serviço público. Elas têm a ver com o tratamento “administrativo” do serviço exterior, mais do que com suas orientações políticas, que devem ter caráter impessoal, não ideológico e não partidário.
            Quanto a minhas posições pessoais no que se refere aos “deveres” de um diplomata, elas estão parcialmente consolidadas num texto que pode ser lido neste link: http://paulomre.blogspot.com/2005/12/62-dez-regras-modernas-de-diplomacia.html
            No que se refere, à minha própria carreira, creio que ela não apresenta nada de excepcional para ser registrada, a não ser pelo fato da já mencionada compatibilização do serviço público com atividades acadêmicas e intelectuais intensas. Um pouco dessa produção paralela pode ser conferida em meu site pessoal (www.pralmeida.org), ou em meu blog (http://paulomre.blogspost.com).


Sugestões, críticas etc.

            PRA: A tendência a estudos de “gênero”, assim como a qualquer outro microestudo em particular – grupos minoritários, raciais ou religiosos – pode acarretar uma relativa “deformação” analítica do objeto de estudo, uma vez que um determinado problema passa a ser visto por essa ótica particular, abstraindo-se razões e circunstâncias externas a ele, ou próprias à sua temporalidade e contexto social mais vasto.
            As sociedades em geral foram no passado marcadas por práticas que hoje em dia são consideradas inaceitáveis, nos planos racial, sexual ou outro. No caso em espécie, deve-se levar em conta que os serviços diplomáticos nacionais eram “naturalmente” misóginos ou sexistas, pois assim era a sociedade, da mesma forma como preconceitos raciais – judeus, negros, amarelos, etc. – eram mais freqüentes nesses contextos.
            A voga do “relativismo histórico” ou a tendência ao “politicamente correto” podem ser tão nefastas para a isenção analítica quanto essas antigas manifestações discriminatórias e segregacionistas.

            Numa outra vertente, grupos sociais objeto de alguma pesquisa geralmente tendem a ostentar uma opinião mais edulcorada de sua própria situação e de suas opiniões do que a realidade efetiva das coisas, que pode ser menos reconfortante para sua imagem pública. Os diplomatas exibem, em geral, uma alta opinião de si mesmos, e são confirmados nessa crença por uma imagem pública geralmente construída e cuidadosamente mantida. Existem, por outro lado, estereótipos, derivados de situações passadas, que não mais correspondem à situação presente.
            O que pode ser dito do serviço exterior brasileiro é talvez seu caráter relativamente impermeável à sociedade, como pequena “osmose” mantida com a sociedade como um todo, ou com outras agências do Estado. Essa mesma característica, por outro lado, garante uma certa isenção em relação a pressões externas e mantém a qualidade do serviço, que tende a ser altamente competitivo no plano interno. Mas, pode estar ocorrendo, também, certo déficit de “public accountability”.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de janeiro de 2006

(segue complemento de questionário nas páginas seguintes)


Correspondência de Maria Quinteiro em 20 de fevereiro de 2006:

From: Maria Quinteiro [mailto:mquim@usp.br] 

Sent: Monday, February 20, 2006 11:54 AM

To: Paulo Roberto de Almeida

Subject: sobre o artigo e otras cositas mas

Prezado professor Paulo Roberto,
Muito obrigada pela atenção no envio do artigo. Bons tempos o do glamour da rota Elizabeth Arden. Público e privado, conviviam "harmoniosamente", aliás, como hoje. O princípio republicano, fragilizado como anda, de repente, vira natural.
Professor, quanto à sua entrevista é maravilhosa, deu-me pistas para aprofundar aspectos da vida diplomática. Eu concordo com as críticas que fez ao final. Da minha parte,vou procurar estudar um segmento social, com sua s particularidades, historicamente construídas, porém, tentarei contextualizar as diplomacias nas respectivas sociedades. É um trabalho acadêmico não militante.
Professor, eu lhe peço o favor, se possível me elucidar pontos das suas respostas, tais como:
A) na questão 1, o sr. poderia me falar um pouco mais sobre a " herança que persiste", ela faz parte da cultura do MRE, não é?
B) Como é isso?; o que é essa herança?
C) Na questão 3 -Daria para me falar mais sobre o que chama de círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos "ocasionais", quando se refere aos comportamentos do MRE, quanto aos homens?
D) Poderia me falar mais sobre as famílias das embaixadoras/embaixatrizes ou de qualquer outro diplomata?

O aspecto da/s família/s é de extrema importância, neste estudo.
E) Na sua opinião, as famílias, têm a ver com um dos pilares de ascensão na carreira, no passado e hoje?
F) Seria, também, importante a família constituída pelo casamento?
G) Haveria diferenciação no peso de cada uma?
H) De que maneira se dão esses apoios familiares para a ascensão na carreia? 
I) No caso dos solteiros/as este estado, dificultaria a sua ascensão na carreira?
J) E no caso dos/as homossexuais?

Professor, se puder, gostaria imenso dessas suas opiniões.
Ainda não entrei nos links que sugere.
Enviei emails, assim que mos forneceu, para as senhoras diplomatas, porém até o momento, não obtive nenhuma entrevista. É assim mesmo, há receios inúmeros, quando não se conhece pessoalmente a pesquisadora, ainda que eu tivesse dado a minha garantia de anonimato.
Professor obrigada
abraços
Maria


Respostas de Paulo Roberto de Almeida em 25 de fevereiro de 2006:

A) Na questão 1, o sr. poderia me falar um pouco mais sobre a " herança que persiste", ela faz parte da cultura do MRE, não é?
PRA: A “herança que persiste” é a de que o recrutamento e da carreira serem, atualmente, “predominantemente” masculinos, depois de terem sido exclusivamente e essencialmente masculinos no passado remoto e até o segundo terço do século XX, pelo menos. Trata-se de uma “herança social”, mais do que “funcional”, como pode ocorrer nas carreiras militares, até recentemente dominadas exclusivamente pelo elemento masculino, mas que igualmente tendem a se diversificar, oficialmente na questão da admissão do gênero feminino, oficiosamente em relação a possíveis “desvios” do “padrão normal” de heterossexualidade ainda hoje predominante.
A carreira diplomática, diferentemente da carreira militar, não precisaria ser misógina, pelo menos não a partir dos anos 1930, quando a mulher conquista o direito de voto e de participação na política. E, no entanto, ela continuou não declaradamente misógina durante muito tempo, e deliberadamente misógina quando da formalização do concurso de ingresso via Instituto Rio Branco, em 1945 (o que teve de ser derrubado no STF em meados da década seguinte). Na seqüência, ela continuou moderamente anti-feminina, com diversos dispositivos atuando em desfavor da mulher nos casos de remoção e casamento dentro da carreira. Em favor do Itamaraty, diga-se que isso não constituia propriamente uma “cultura do MRE”, mas provavelmente da sociedade brasileira como um todo.
Esses “traços culturais” podem ter diminuido na fase presente, o que não impede a contínua subrepresentação da mulher na diplomacia, mas aqui a “misoginia”, suposta ou real, do Itamaraty não apresenta maior incidência prática. A despeito dos progressos realizados, a carreira continua predominantemente masculina porque nas inscrições e no número de aprovados nos concursos a mulher continua subrepresentada, não mais por discriminação, mas por expressão numérica fidedigna dos candidatos à carreira. Não tenho os números à disposição, mas suspeito que as mulheres constituam algo entre 25 e 30% dos candidatos à carreira, e depois constituam algo como dez ou 15 % das turmas do Rio Branco. Valeria checar os números dos últimos anos com o IRBr.

B) Como é isso?; o que é essa herança?
PRA: Creio que ficou explicitado nos comentários acima.

C) Na questão 3 -Daria para me falar mais sobre o que chama de círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos "ocasionais", quando se refere aos comportamentos do MRE, quanto aos homens?
PRA: Trata-se de questão não exclusiva ao Itamaraty, mas característica de círculos relativamente fechados, que criam uma cultura própria e um intensa convivência social e familiar. Espera-se da mulher um comportamento irrepreensível, caso contrário sua imagem social pode ficar afetada. Quanto ao homem, considera-se “normal” que ela tenha aventuras ou que seja um galanteador, mesmo casado. Creio que esses elementos possam influenciar trajetórias de carreira, embora eles também possam ser utilizados pela mulher diplomata como alavanca de ascensão funcional, numa relação mais de tipo “mercantil”. No geral, não creio que eles determinem uma “cultura” própria ao Itamaraty, e sua influência é mais episódica ou individual do que propriamente social ou “ambiental”.

D) Poderia me falar mais sobre as famílias das embaixadoras/embaixatrizes ou de qualquer outro diplomata?
PRA: Há que distinguir entre as embaixadoras, a maior parte delas solteiras, descasadas ou divorciadas, e as embaixatrizes, que seriam simplesmente “acompanhantes” das carreiras de seus maridos. Não conheço “histórias de vida” de casais diplomatas, ou exempos de trajetórias de mulheres diplomatas ou de mulheres de diplomatas para discorrer a respeito. Creio que algumas entrevistas com as próprias representantes ajudaria na confecção de alguns “cases”, mas não sei se há cases típicos.
Em todo caso, o papel das mulheres de diplomatas hoje diminuiu sobremaneira, com a diminuição geral das recepções diplomáticas, como parece corresponder a uma certa imagem do diplomata belle époque.

O aspecto da/s família/s é de extrema importância, neste estudo.
E) Na sua opinião, as famílias, têm a ver com um dos pilares de ascensão na carreira, no passado e hoje?
PRA: Hoje menos do que no passado, inclusive porque a sociedade está mais tolerante com os comportamentos “desviantes”, ou seja os homossexuais assumidos.

F) Seria, também, importante a família constituída pelo casamento?
PRA: Aparentemente sim, mas não creio que o ingresso na carreira leve em conta, como no passado, o perfil familiar do candidato. Dependendo da banca de avaliação individual no ingresso, esse fator poderá ser mais ou menos considerado, isso se houver alguma banca de avaliação individual, o que por exemplo não ocorreu em 2005. Um membro de banca hipoteticamente homossexual poderá até favorecer o ingresso de “assemelhados” na carreira, ao passo que um membro homofóbico poderia, teoricamente, “vetar” um candidato “desviante”.
Da mesma forma, ao longo da carreira, grupos e clãs de “desviantes” podem se constituir ao longo da carreira, com um certo sentido de proteção grupal. No passado, membros do grupo mantinham extrema discrição, no presente os temores de discriminação são menores.
Não temos exemplos, ainda, de casais homossexuais, mas talvez o fenômeno não demore muito para se manifestar na carreira. Já existem diversos diplomatas militantemente adeptos da causa gay na carreira, o que não significa entretanto qualquer tendência em termos de mérito ou demérito relativos na carreira. O fenômeno ainda é novo.
Em todo caso, a situação familiar deixou de ser um critério relevante para fins de ascensão funcional ou sucesso na carreira.

G) Haveria diferenciação no peso de cada uma?
PRA: Não sei avaliar. Medido pela minha própria experiência, com família preservada ao longo da carreira, não creio que esse fator tenha sido relevante para o sucesso profissional. A maior parte da minha “turma” já se divorciou e outros se revelaram homossexuais, mas não creio que esse fator constitua uma diferenciação na carreira.

H) De que maneira se dão esses apoios familiares para a ascensão na carreia?
PRA: Existem, ainda, algumas “dinastias” – isto é, filhos de diplomatas – na carreira, e creio que isso pode ajudar em algum aspecto em determinados momentos da carreira. Da mesma forma, casamentos “endogâmicos” – isto é, de jovens secretários com filhas de embaixadores, o que parece mais comum – podem, em algum momento, contribuir para algum bom posto ou promoção, mas isso pode não ser preservado ao longo da carreira, pois alguns desses casamentos de “interesse” podem não se sustentar, ou o “protetor” pode vir a perder força ou sair da carreira. De toda forma, a carreira, como um todo, é feita de trabalho e de relações pessoais e sociais, o que indica que relações familiares podem contribuir para o sucesso na carreira, mesmo se o diplomata em questão não for dos mais brilhantes ou de melhor desempenho estritamente funcional.
As “dinastias”, aparentemente, já não são tão numerosas como o foram no passado, e os casamentos “endogâmicos” tendem a se processar, atualmente, bem mais entre pares do que na situação típica do “jovem diplomata-filha de embaixador”, tanto porque a carreira se ampliou e os contatos intimos diminuiram, sobretudo em Brasília. A carreira é hoje menos uma carreira “aristocrática” e mais uma carreira profissional, quase “normal”, com jovens de classe média, bem mais do que os típicos filhos da elite como no passado.

I) No caso dos solteiros/as este estado, dificultaria a sua ascensão na carreira?
PRA: Não tenho uma idéia formada a esse respeito, mas creio que a situação familiar do profissional diplomata é, hoje em dia, bem menos relevante em termos de desempenho na carreira. Não se percebe uma diferenciação na ascensão funcional entre os dois grupos.

J) E no caso dos/as homossexuais?
PRA: Um dos estereótipos mais comuns, fora do ambiente do Itamaraty, é o do diplomata gay, o que provavelmente não corresponde à verdade, mas talvez expresse uma dessas verdades de senso comum que tendem a perdurar. Existiriam mais gays na carreira diplomática do que em outras carreiras? Difícil dizer, mas o preconceito existe e se manifesta de diversas formas.
O fato é que há provavelmente maior “taxa de procura” pela carreira diplomática entre gays, do que no caso de outras carreiras, mas isso teria de ser objeto de pesquisa para eventual confirmação.
Em alguns momentos da história, grosso modo até os anos 1970, os gays podem ter sido discriminados, mas a partir de meados dos anos 1980 e sobretudo nos dias que correm acredito que isso não seja mais verdade. Estou me referindo a homossexuais homens, pois o caso das mulheres parece ser mais raro, ainda que existente. Neste caso, não tenho idéia de qualquer impacto na carreira, pois se trata de casos esparsos e pouco representativos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de fevereiro de 2006

Nenhum comentário: