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quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Mulheres na diplomacia brasileira: Vanessa Dolce de Faria e Audo Faleiro (República.org)

 MULHERES NA DIPLOMACIA BRASILEIRA

República, 3 de agosto de 2022
Por Vanessa Dolce de Faria e Audo Faleiro

Na entrada do gabinete do ministro das Relações Exteriores, há uma galeria de retratos dos chanceleres brasileiros. São ao todo 107 fotografias dos titulares do Itamaraty entre 1822 e 2021, mas nenhuma delas é de mulher. Tampouco houve uma mulher que tenha ocupado a secretaria-geral, segundo cargo na hierarquia da chancelaria. A cena, emblemática, virou filme: está no excelente documentário “Exteriores: Mulheres Brasileiras na Diplomacia”[1], que jogou luz sobre a questão da baixa representatividade feminina na carreira diplomática. 

Em 2022, nenhuma mulher chefia embaixadas do Brasil na América do Sul (com exceção da Guiana), nem nos demais países dos BRICS, nem nas delegações junto a organismos internacionais situadas em Nova York, Genebra, Paris, Londres, Viena ou Roma. Nunca houve uma embaixadora em Buenos Aires, Washington, Pequim, Tóquio. Atualmente, todas as sete secretarias que compõem a alta hierarquia do ministério são ocupadas por homens. Essa situação não é fortuita. A história da representação feminina na carreira diplomática é repleta de percalços[2]. 

Em 1918, Maria José de Castro Rebello Mendes, primeira mulher diplomata do país, precisou de um parecer jurídico de Ruy Barbosa para poder se inscrever no concurso de admissão, no qual obteve o primeiro lugar. Em 1938, reforma introduzida pelo então chanceler Oswaldo Aranha, e que perdurou até 1954, estipulava que somente poderiam se inscrever no concurso candidatos do sexo masculino[3]. Só em 1956 a primeira mulher chegou ao topo da carreira, ocasião em que Odette de Carvalho e Souza (que havia ingressado em 1936 nos quadros do ministério) foi promovida a embaixadora.

Mesmo com o fim da proibição de acesso, em 1954, outros entraves burocráticos continuaram a limitar o exercício da profissão pelas diplomatas. A proibição de casamento entre funcionários públicos, que vigorou no Itamaraty até 1965, impunha a opção entre a carreira ou a família para muitas mulheres. No ano seguinte, foi instituído o mecanismo da “agregação”, que estipulava o “afastamento do exercício do cargo para acompanhar o cônjuge, funcionário da carreira de Diplomata, removido para posto no exterior”[4]. Ou seja, casais de diplomatas não poderiam ser lotados juntos no exterior, de tal forma que alguém do casal (e em geral foram elas e não eles) necessitaria interromper a carreira. Em 1985, a obrigação de agregar deixa de existir, mas com a condição de que um dos cônjuges receberia 40% menos que o seu par (circunstância que, novamente, recairá predominantemente sobre as mulheres), mesmo que ambos estivessem desempenhando tarefas equivalentes[5]. A promulgação da Constituição de 1988, que reconhecia a igualdade jurídica entre os sexos, não surtiu efeito imediato e essa discriminação em matéria de remuneração foi mantida até 1996. 

OS NÚMEROS CONFIRMAM: ELAS SÃO MINORIA EM CARGOS DE LIDERANÇA
Dados recentemente divulgados pelo Itamaraty indicam que dos 1.539 diplomatas na ativa, 354 são mulheres, o que corresponde a 23% do quadro funcional[6]. Os números comprovam como as dificuldades de progressão funcional das diplomatas são bem maiores do que as de seus colegas homens:

- das 131 embaixadas, missões e escritórios de representação no exterior, só 16 (12,2%) são chefiadas por mulheres;

- dos 53 postos no exterior de maior prestígio (classificados como postos A), só 6 (11,3%) são comandados por mulheres;

- a porcentagem de mulheres na chefia de consulados (24,1%) é mais próxima da taxa de mulheres da carreira, pois são cargos considerados de menor importância do que as atividades realizadas em embaixadas e missões nos organismos multilaterais;

Outro dado relevante é o do perfil dos diplomatas aposentados entre 1º de janeiro de 2016 e 23 de maio de 2022: dos 134, 30 eram mulheres. Enquanto 60% delas (18) se aposentaram nas etapas intermediárias da carreira, só 25% dos homens tiveram que se aposentar nessa mesma faixa.

É urgente reavaliar, portanto, o tratamento conferido às diplomatas no exercício da profissão. Como demonstram os dados, num percurso profissional extenso, a maioria das diplomatas vão ficando pelo caminho, e as que chegam aos escalões superiores são preteridas na ocupação dos cargos de liderança. Essa situação merece consideração aprofundada, bem como debate mais atento na sociedade. Afinal, se mulheres não são vistas ocupando postos de importância, se não lideram e chefiam, ou chefiam pouco, naturaliza-se que posições de maior relevo sejam sempre ocupadas por homens, que funções de poder estejam sempre reservadas aos homens. Barreiras culturais e simbólicas são assim reproduzidas e perpetuadas, em detrimento de uma sociedade - e uma chancelaria - mais paritária, plural e representativa.

Além de progredirem menos do que os homens na carreira diplomática, as mulheres também ingressam em menor número, outro fato que merece olhar atento. Nos 26 concursos, entre 1996 e 2021, entraram no Instituto Rio Branco 268 mulheres, o que representa 24% das 1.116 vagas do concurso de admissão. A oscilação anual de acesso de mulheres à carreira não permite, todavia, verificar uma tendência clara. Na tabela a seguir, foram selecionados os anos de maior e menor porcentagem de mulheres aprovadas. Em nenhum desses anos ingressaram mais mulheres do que homens.

A análise dos dados sobre os números de inscritos nos concursos para a carreira diplomática entre 2003 e 2020 (tabela 2) indica certa estabilidade entre homens e mulheres. Em 2003, o número de candidatas (2.214) representava 60,2% do total. Entre 2004 e 2020, o número de mulheres que iniciam o processo de seleção fica estável em torno de 40%.

Cruzando as duas estatísticas (número de mulheres aprovadas e número de mulheres candidatas), verifica-se (tabela 1) que, com exceção de quatro certames (2005, 2014, 2017 e 2022), existe lacuna expressiva de representação feminina em todos os demais anos. Essa constatação faz pensar sobre a necessidade de ações concretas que não só visibilizem as mulheres já diplomatas, mas também permitam que mais mulheres se tornem diplomatas. Esse é o espírito e a letra da recém-aprovada (por consenso) resolução da Assembleia Geral da ONU, que estabeleceu o dia 24 de junho como o Dia Internacional das Mulheres na Diplomacia e reafirmou que “a participação ativa das mulheres, em pé de igualdade com os homens, em todos os níveis de tomada de decisão, é indispensável para se atingir a igualdade, o desenvolvimento sustentável, a paz a democracia e a diplomacia”[7].

É preciso que as questões de representatividade e gênero sejam debatidas e enfrentadas. O Comitê Gestor de Gênero e Raça do MRE, como foro consultivo, criado em 2014[8], foi instrumental para expor os entraves que afetam a maior representação feminina e sensibilizar a instituição a esse respeito.  Infelizmente, o Comitê deixou de funcionar em 2019, não existindo hoje um canal institucional adequado. Existem pressões vindas do Legislativo. A bancada feminina no Senado tem sido vocal sobre a necessidade de corrigir essas distorções. O Grupo de Mulheres Diplomatas, coletivo criado em 2013, vem exercendo papel de destaque no estudo e na defesa de pautas de gênero no Itamaraty. Que mais e mais vozes se somem! Na ausência de ações afirmativas por parte do Itamaraty, prevalecerá o status quo de baixa representatividade das mulheres na diplomacia - e as galerias de retratos continuarão dominadas por fotografias masculinas, em descompasso com o nosso tempo. 

[1] Produzido pelo coletivo “Grupo de Mulheres Diplomatas do Itamaraty”, o documentário foi lançado em 2018 e está disponível em https://vimeo.com/303550770
[2] Outras referências essenciais são dois livros publicados pela Fundação Alexandre de Gusmão: “Diplomata. Substantivo comum de dois gêneros. Um estudo sobre a presença das mulheres na diplomacia brasileira”, da diplomata Viviane Rios Balbino; e “Mulheres diplomatas no Itamaraty (1918-2011). Uma análise de trajetórias, vitórias e desafios” do diplomata Guilherme José Roeder Friaça.
[3] Decreto-Lei no 791/1938.
[4] Decreto-Lei no 69/1966.
[5] Decreto-Lei no 2.234/1985
[6] Boletim Estatístico “Participação de Mulheres no Serviço Exterior Brasileiro”.
[7] Resolução A/76/L.66 de 16 de junho de 2022.
[8] Portaria MRE n. 491, de 12 de setembro de 2014.

Vanessa Dolce de Faria
Ingressou no Instituto Rio Branco em 1999. Entre 2001 e 2004, esteve lotada na Divisão de Propriedade Intelectual e Novos Temas. Foi chefe de gabinete da Secretaria-Executiva do MPOG entre 2004 e 2005. Entre 2006 e 2009, serviu na embaixada do Brasil em Buenos Aires, onde chefiou o setor de energia, transportes e infraestrutura. Entre 2009 e 2012, serviu na embaixada do Brasil em Assunção, onde chefiou o setor de cooperação em políticas públicas. Foi chefe de gabinete da Secretaria-Geral da Presidência da República entre 2013 e 2015, e assessora na Assessoria Internacional da Presidência da República de 2015 a maio de 2016. De junho de 2016 a julho de 2019, chefiou a Divisão de África Austral e Lusófona do Itamaraty. Desde julho de 2019, é cônsul-geral adjunta em Barcelona. Tem publicado, pela FUNAG, o livro “Política externa e participação social: trajetória e perspectivas

Audo Araújo Faleiro
Ingressou no Instituto Rio Branco em 1996. Entre 1998 e 2002, esteve lotado no Itamaraty, em Brasília, na Divisão de Política Financeira e Desenvolvimento (DPFD) e na Divisão de Agricultura e Produtos de Base (DPB). Membro da missão permanente do Brasil em Genebra (2003-2006), atuou como delegado junto à OMC e ONU. Chefiou os setores político e de promoção comercial na embaixada do Brasil em Caracas (2006 a 2008). De retorno a Brasília, serviu 6 anos (entre 2009 e 2015) na assessoria internacional da presidência da República. Em 2011, foi enviado a Quito para apoiar a instalação da sede da UNASUL naquela capital. Entre 2015 e 2019, foi ministro-conselheiro na embaixada em Paris. Integra atualmente, como assessor, o Departamento de Promoção de Serviços e de Indústria do Itamaraty e coordena as negociações do subgrupo de serviços no Mercosul.

https://republica.org/emnotas/conteudo/mulheres-na-diplomacia-brasileira/

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Mulheres no Itamaraty: um espaço reduzido e um reconhecimento insuficiente - André Bernardo (BBC)

 'Itamaraty continua a usar terno e gravata': a luta das mulheres por espaço na diplomacia brasileira


André Bernardo
Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
BBC Brasil, 10 abril 2022, 09:22

Quando prestou concurso para o Itamaraty, em 28 de agosto de 1918, a baiana Maria José de Castro Rebello Mendes, de 27 anos, não pensava em levantar bandeiras. Queria apenas uma fonte de renda para sustentar a mãe viúva e uma irmã doente — o pai, advogado, tinha acabado de ser assassinado, em circunstâncias misteriosas, na Floresta da Tijuca, no Rio.

Mas ela acabou escrevendo seu nome na história da diplomacia brasileira como a primeira mulher a ingressar no Ministério das Relações Exteriores (MRE).

Foram 19 provas em sete dias: de português a aritmética, de datilografia a direito, de inglês a alemão. Ao fim da exaustiva maratona de testes escritos, exames orais e até uma redação sobre Minas Gerais, Maria José de Castro Rebello Mendes (1891-1936) foi aprovada em primeiro lugar no concurso. Era a única mulher, entre cinco homens, a disputar a vaga de terceiro oficial da Secretaria de Estado.

"No período imperial, os diplomatas brasileiros eram homens, brancos e bem vestidos, recrutados no seio da elite econômica e intelectual porque o Brasil buscava reproduzir os padrões europeus de 'nobreza'", explica Gabrielly Amparo, doutoranda em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora de A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: O Itamaraty e a Desigualdade de Gênero (2021).

"A mulher não faz parte da história oficial do Itamaraty. Elas não estão presentes em cargos de visibilidade e prestígio internacionais. Logo, se não são 'vistas', tornam-se 'invisíveis' e 'inexistentes'. Aquilo que desconhecemos, não existe".

Procurado, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) não respondeu as perguntas enviadas pela reportagem.

A aprovação de Maria José suscitou polêmica. Muita polêmica. "Podem as mulheres ocupar cargos públicos?", questionou o jornal A Noite na edição de 31 de agosto de 1918. Até o escritor Lima Barreto (1881-1922) classificou como "ideia de botequim" a decisão do então ministro Nilo Peçanha (1867-1924) de dar posse a uma mulher. "Sua Excelência, eu lhe rogo, procure arranjar para as meninas bons maridos, honestos e trabalhadores", escreveu o autor em artigo publicado no jornal ABC do dia 5 de outubro de 1918.

Alvo de críticas e protestos, Maria José chegou a consultar o jurista Ruy Barbosa (1849-1923) sobre se poderia concorrer a cargo público. Diante do seu parecer favorável, ela oficializou sua inscrição. "Melhor seria, certamente, para seu prestígio que continuasse à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar sua aspiração", despachou o chanceler Nilo Peçanha.

"Quando começou a trabalhar no Itamaraty, em 1º de outubro de 1918, o ministério teve que adaptar, às pressas, espaço para uso como banheiro feminino, pois somente existiam na repartição sanitários masculinos", explica o ministro Guilherme José Roeder Friaça, cônsul-geral adjunto em Madri, no livro Mulheres Diplomatas no Itamaraty (1918-2011) — Uma análise de trajetórias, vitórias e desafios (2018).

Responsável por abrir as portas da diplomacia brasileira às mulheres, Maria José morreu em 29 de outubro de 1936, aos 45 anos, de osteomielite.

Mais de um século se passou e pouca coisa mudou na diplomacia brasileira. O Itamaraty continua a ser um reduto predominantemente masculino. De 1953 a 2019, segundo o Anuário do Instituto Rio Branco (2020), 2.235 candidatos foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Desses, apenas 454 (20,3%) eram mulheres.

"Há variáveis que ajudam a explicar essa predominância masculina. A primeira delas é estrutural. No mundo do trabalho, os homens são a maioria nos espaços de decisão, privilégio e salário", afirma Karla Gobo, doutora em Sociologia pela Unicamp e autora do artigo Da Exclusão à Inclusão Consentida: Negros e Mulheres na Diplomacia Brasileira (2018). "Enquanto os homens seriam o polo racional, objetivo e afeito à vida pública, as mulheres seriam emotivas, menos objetivas e voltadas aos cuidados da vida privada".

Entre os 1.543 diplomatas brasileiros, apenas 354 (23%) são do sexo feminino
No dia 22 de fevereiro de 2022, a embaixadora Irene Vida Gala postou em seu perfil no Twitter: "Associar, em nossos dias, a ausência de mulheres em posições destacadas no MRE a qualificação definitivamente desautoriza o autor do comentário". A postagem era um desabafo a uma declaração dada pelo diplomata Sérgio Amaral na noite anterior, em entrevista ao programa Roda Viva, em que disse ser necessário combinar "representatividade com qualificação" das mulheres diplomatas.

"É uma vergonha um colega homem fazer esse julgamento de suas colegas mulheres. Toda e qualquer pessoa minimamente informada sabe que a reduzida presença de mulheres é de ordem estrutural e jamais por qualificação inferior", afirma Vida Gala. E acrescenta: "Não quero saber das razões históricas para a situação ser como é hoje. O que interessa é saber por que a instituição e seus representantes ainda não empreenderam uma política efetiva para a promoção da igualdade de gênero no Itamaraty. E a resposta é clara: porque não querem mudar".

Formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Irene ingressou no Itamaraty em 1985. Em uma turma de 44 alunos, só 10 eram mulheres. E, dessas 10, seis já chegaram ao posto de embaixadoras, um coeficiente de sucesso (60%) não alcançado pelos homens. "Nenhuma de nós obteve, até o momento, nenhum papel de destaque na carreira", enfatiza. "O máximo que alcançamos foi uma subsecretaria de Administração".

No exterior, Vida Gala esteve em missões permanentes em Lisboa, Luanda e Pretória e, provisórias, em Bissau, Lusaca e Dacar. Isso sem contar as incontáveis visitas em missão oficial a países do continente africano, como Moçambique, Quênia e Etiópia. Hoje, atua no Escritório de Representação do MRE em São Paulo. "É preciso denunciar a postura machista do Itamaraty. Sou reconhecida dentro e fora da instituição como uma especialista em temas africanos. Mas nunca consegui ser chefe do Departamento da África. O meu é um desses muitos casos em que a tese da falta de qualificação não se sustenta".

Em 2018, por ocasião do centenário da entrada de Maria José na diplomacia brasileira, o Itamaraty lançou a campanha #maismulheresdiplomatas. Dos cerca de 3 mil servidores da pasta, apenas 37% são mulheres (1.114). Entre os 1.543 diplomatas, 23% são do sexo feminino (354) e, entre 213 embaixadores, 20% (43).

A título de comparação, segundo levantamento do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), o percentual de embaixadoras em outros países é: Suécia (49%), Filipinas (41%), Austrália (40%), EUA (36%) e Irlanda (35%). Entre os sul-americanos, o melhor índice pertence à Colômbia (28%).

"Não havia nenhuma convicção institucional por trás dessa campanha", afirma Vida Gala. "Nenhum homem do Itamaraty usou seu lugar de poder para assumir, em alto e bom som, uma posição em defesa do ingresso de mais mulheres na carreira. Foi um blefe para reduzir a pressão. Ou, em linguajar diplomático, para inglês ver". E conclui: "Tudo se resume a uma palavra: querer. É preciso querer ampliar a representatividade. E, até que se prove em contrário, esse desejo não existe".

Se nada for feito, igualdade de gêneros só será alcançada em 2066
No dia de sua posse, em 2003, a conselheira Viviane Rios Balbino se surpreendeu ao encontrar, em uma turma de 39 diplomatas, apenas quatro outras mulheres: "Onde estão minhas colegas?".

Recém-saída da Universidade de Brasília (UnB), onde a paridade no curso de Psicologia era normal, Viviane não conhecia, até então, as razões históricas e sociais que determinavam que a carreira diplomática fosse masculina. No mestrado em diplomacia pelo Instituto Rio Branco, transformou seu questionamento em pesquisa. Em 2005, apresentou a dissertação Diplomata. Substantivo Comum de Dois Gêneros. Um Retrato da Presença Feminina no Itamaraty no Início do Século 21.

No exterior, serviu na missão do Brasil junto à OEA, em Washington, e na embaixada em Doha, no Catar. "Enquanto vários países põem em marcha medidas que vão desde campanhas de recrutamento para mulheres até metas mínimas de promoção e lotação em postos no exterior, no Brasil temos apenas ações pontuais, adotadas em caráter informal", lamenta a chefe da Divisão de Nações Unidas I do Itamaraty.

Durante o governo Lula, o ministro Celso Amorim adotou uma política informal de cotas para promoção de mulheres. Segundo o estudo A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: o Itamaraty e a Desigualdade de Gênero (2021), a proporção de mulheres promovidas entre os diplomatas cresceu de 16% para 29%. No entanto, com o fim do governo, a medida logo perdeu fôlego.

"O que se busca não é um afago, nem ganhos individuais para algumas diplomatas, mas uma mudança institucional, de longo prazo. Para isso, é fundamental contar com liderança e vontade política suficientes para enfrentar as resistências, esperadas e conhecidas", afirma Balbino.

À frente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a senadora Kátia Abreu defende um projeto de lei que reserve pelo menos 30% das vagas de embaixador para mulheres.

"É preciso que uma mulher ocupe lugar de decisão para detectar discrepâncias invisíveis para a maioria masculina", observa Balbino.

Segundo a conselheira, países como França, Austrália e África do Sul já adotaram cotas de gênero para cargos de chefia. No Brasil, não há unanimidade sobre o assunto, nem mesmo entre as mulheres. "Numa carreira em que os avanços devem ser baseados em mérito, um sistema de cotas talvez não constitua o melhor caminho, mas pode ser o começo de uma solução", pondera a embaixadora Thereza Quintella.

Mas, a julgar pelo índice de mulheres aprovadas no concurso entre 1954 e 2010, a tão esperada paridade entre os sexos só seria alcançada no distante ano de 2066. A conclusão é do estudo As Mulheres na Carreira Diplomática Brasileira: Uma Análise do Ponto de Vista da Literatura sobre Mercado de Trabalho e Gênero (2016), dos pesquisadores Rogério Farias e Géssica Carmo. A embaixadora Irene Vida Gala é uma das maiores entusiastas do projeto: "É preciso somar a nossa luta, a das mulheres diplomatas, à de tantas outras mulheres em outras categorias funcionais em que são igualmente postas à margem. Nossa luta é comum. Estamos todas em uma mesma luta por igualdade e respeito", diz.

Mais de 100 relatos de comportamento sexista
Toda vez que a diplomata Sônia Regina Guimarães Gomes é convidada para dar palestra uma pergunta que, invariavelmente, lhe fazem é: "Como conciliar família e carreira?".

"A predominância masculina no Itamaraty ainda é uma incógnita. Há hipóteses que precisariam ser comprovadas e outras que eu simplesmente descartaria. A mais comum é que a carreira tornaria a vida familiar mais difícil para as mulheres", afirma a atual embaixadora do Brasil na República Tcheca. "Tenho uma suspeita particular. Como é um concurso de muita dedicação e empenho e, para alguns candidatos, de múltiplas tentativas, há menos estímulo, muitas vezes da própria família, às mulheres. Eu mesma senti, quando estava me preparando, que era tudo ou nada".

Sônia Gomes é formada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e ingressou no Itamaraty em 1987. Já trabalhou nas embaixadas brasileiras em Bridgetown (Barbados), Roma (Itália), Assunção (Paraguai) e Praia (Cabo Verde). Atuou como cônsul-adjunta no Consulado-Geral em Los Angeles e em Chicago e, também, como chefe no Escritório Financeiro em Nova York.

Ao longo desses 35 anos, nunca sofreu nem testemunhou assédio sexual ou moral. Mas em 2015, muitas mulheres, entre servidoras e diplomatas, por meio de um grupo fechado no Facebook, relataram, em menos de 72 horas, mais de 100 casos de comportamento sexista dentro da instituição. Havia até denúncias de assédio moral e sexual.

Em um dos relatos, uma diplomata conta que passou a ser perseguida por um ex-chefe que lhe mandava flores e bilhetes. Como ela resistiu às suas cantadas, foi lotada em uma divisão de pouco prestígio, incompatível com as notas que tirou no curso. Em outro, uma diplomata reclamava do chefe que pedia aos servidores que batessem palmas toda vez que ela entrava na sala. "Essa atitude corajosa levou a uma grande reflexão interna", recorda Sônia Gomes.

"Na época em que os relatos foram publicados, colegas homens me procuraram para saber se certos comportamentos, reputados como natural para eles eram agressivos para nós, mulheres. Senti que, para muitos, havia uma sincera vontade de entender o que nos incomodava, apesar de não ter sido o sentimento geral".

Brasil nunca teve ministra das Relações Exteriores ou secretária-geral
Quando se inscreveu no concurso do Instituto Rio Branco, em 1958, Thereza Maria Machado Quintella não fazia ideia dos preconceitos que teria de enfrentar. Dos 13 alunos da turma, apenas duas mulheres: ela e Maria Rosita Gulikers de Aguiar. Quando o Itamaraty designou suas respectivas unidades, Quintella deparou-se com aquilo que passou a chamar de "exclusão sistêmica".

"Embora tivéssemos concluído o curso na primeira metade da turma, fomos destinadas à área consular, de menor visibilidade, enquanto colegas com notas inferiores às nossas foram para unidades que tratavam de assuntos econômicos, políticos ou comerciais", explica. Alguns anos depois, Thereza Quintella voltou a se sentir vítima de discriminação. Casada e com dois filhos pequenos, pleiteou um posto perto do Brasil, de preferência no Uruguai ou na Argentina.

Como o Itamaraty não admitia a presença de mais de um diplomata em cada capital, mesmo havendo mais de um posto em Montevidéu e em Buenos Aires, o chefe da Administração lhe ofereceu um consulado em Baía Blanca, a 650 quilômetros da capital argentina. "Era um posto inexpressivo e sem movimento, que estava vago havia dois anos porque nenhum marmanjo aceitava ir para lá. E eu, ingenuamente, aceitei", relata. Passado algum tempo, voltou a pedir transferência para o exterior. Dessa vez, o Itamaraty ofereceu, "como se fosse um prêmio", um consulado em Gênova.

"Outro posto marginal que significaria o fim das minhas perspectivas de sucesso na carreira", avalia. "Nessa armadilha, porém, eu, mais atenta, não caí: resisti, negociei e consegui ser destinada à missão permanente em Bruxelas junto às Comunidades Europeias, hoje União Europeia".

Primeira aluna do Instituto Rio Branco a ser promovida a embaixadora, Thereza Quintella serviu em Viena (1991-1995) e Moscou (1995-2001). Em sua última remoção, já em 2005, assumiu o posto de cônsul-geral em Los Angeles, função que ocupou até 2008, quando se aposentou.

"Mais importante do que saber quantas são as embaixadoras, é fundamental saber que funções ocupam. E a realidade é que a face visível do Itamaraty continua a usar terno e gravata", afirma. "Nunca tivemos uma mulher nas funções de ministro de Estado ou de secretário-geral. Nenhuma das embaixadas de maior visibilidade para a nossa política externa está hoje confiada a mãos femininas".

Entre os sul-americanos, a Colômbia é o país que teve o maior número de ministras das Relações Exteriores: sete. Peru, Equador e Suriname tiveram quatro; Bolívia, Chile, Argentina, Venezuela e Guiana, duas e o Paraguai, uma. O Uruguai nunca teve uma chanceler. Em compensação, teve duas secretárias-gerais.

Tem mais. Brasileiras nunca chefiaram postos estratégicos, como Washington, Buenos Aires, Londres, Tóquio ou Pequim. "O que falta é, sobretudo, vontade política de dar às diplomatas brasileiras mais oportunidades de ocuparem posições em que seu trabalho e sua capacidade de liderança possam ser valorizados".

Documentário expõe os desafios enfrentados por mulheres na diplomacia
Em 2018, Gisela Maria Figueiredo Padovan foi convidada para assumir a direção-geral do Instituto Rio Branco. O órgão, fundado em 1945, é responsável pela seleção e treinamento dos diplomatas brasileiros. Surpresa com o convite, Padovan reagiu com o famoso: "Será que sou capaz?". Diante disso, o colega que a indicou para o cargo provocou: "Quer dizer que você já chegou no seu teto?". Só então ela se deu conta de que ela própria estava impondo limites a si mesma.

Cônsul-geral em Madri, Gisela Padovan é formada em Letras pela USP e ingressou na carreira diplomática em 1991. Sua turma, de 21 diplomatas, tinha apenas três mulheres. "Naquela época, situações de constrangimento moral ou sexual não eram claramente definidas como assédio", recorda a diplomata, que foi promovida à ministra de primeira classe, o mais elevado grau da carreira diplomática brasileira, em 2017.

"Fui, sim, objeto de situações que hoje seriam inaceitáveis. Só que, na época, apesar de constrangida, não me ocorreu fazer qualquer reclamação e tampouco saberia como fazê-la". Padovan serviu na missão permanente do Brasil junto às Nações Unidas (1997-2000) e nas embaixadas em Buenos Aires (2000-2003) e em Washington (2007-2013).

Gisela Padovan integrou a campanha #maismulheresdiplomatas, promovida pelo MRE. Em seu depoimento, admite que nunca tinha sonhado ser diplomata. Mas conta que mudou de ideia ao abrir um jornal em 1988 e ler a notícia: "Paranaense é a primeira colocada no Itamaraty". A paranaense do título era Eugênia Barthelmess, hoje embaixadora em Cingapura. "Isso me inspirou a seguir essa carreira", relata.

Ainda em 2018, Padovan participou do documentário Exteriores - Mulheres Brasileiras na Diplomacia, um projeto do Grupo de Mulheres Diplomatas, criado em novembro de 2013. Inspirado no documentário francês Par Une Porte Entreouverte ("Por Uma Porta Aberta"), contou com o depoimento de nove embaixadoras, duas conselheiras e duas secretárias.

O documentário, escrito por Ana Beatriz Nogueira e dirigido por Ivana Diniz, resgata as histórias de outras pioneiras da diplomacia brasileira, como Odette de Carvalho Souza (1904-1969), a primeira embaixadora brasileira, e Mônica de Menezes Campos (1957-1985), a primeira diplomata negra.

Indagada sobre como mudar esse cenário de desigualdade de gênero, Gisela Padovan afirma que é preciso ter consciência do problema e não se escorar no falso discurso da meritocracia. "O argumento de que 'não há mulheres', largamente utilizado pelas chefias do Itamaraty, não se sustenta quando se verifica que dezenas de mulheres, igualmente qualificadas, seguem sendo preteridas em escolhas ou votações feitas, aliás, por comissões formadas majoritariamente por homens".

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60961480

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Itamaraty caminhando para cotas de gênero? "Mulheres no Itamaraty, a luta por mais espaço" - Daniel Rittner (Valor)

Já existem cotas constitucionais e "raciais" para ingresso no Itamaraty, mas as mulheres representam apenas 25% (ou menos) do corpo diplomático. Não é culpa do Itamaraty: os exames são totalmente não identificados, assim é impossível fazer discriminação contra as mulheres.

Paulo Roberto Almeida


 OPINIÃO

Na lista semestral de promoções no Itamaraty, de três promovidos a embaixador, uma mulher. Apenas 16% dos postos no exterior têm uma mulher na chefia. Nas 25 embaixadas ou missões com maior lotação de diplomatas (dez ou mais), só homens estão no comando. Segundo o jornal Valor Econômico, no último dia 25, a presidente da comissão, senadora Kátia Abreu, disse ter ficado sabendo como as mulheres eram minoria na lista de promoções e escreveu para o chanceler Carlos França: "Decepção total." Segundo ela, havia um compromisso de ir aumentando a participação feminina entre ministros de primeira classe até 30% no fim de 2022.

Mulheres no Itamaraty, a luta por mais espaço

Nenhuma das 25 maiores embaixadas brasileiras é chefiada por mulher

08/12/2021 05h00  Atualizado há 3 horas

Saiu no último dia 24 a lista semestral de promoções no Itamaraty, evento aguardado com mais ansiedade por diplomatas do que o discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU ou a próxima reunião de cúpula do Mercosul. De três promovidos a embaixador, uma mulher. Nove avançaram na carreira para ser ministros de segunda classe - de novo, uma representante do sexo feminino. Entre 12 que se tornaram conselheiros, terceiro degrau na hierarquia do serviço exterior, elas são apenas três.

Um abismo nos separa de 1918, quando o chanceler Nilo Peçanha autorizou por escrito que uma mulher fizesse concurso para o ministério: “Não sei se as mulheres desempenhariam com proveito a diplomacia, onde tantos atributos de discrição e de capacidade são exigidos. Melhor seria, certamente, para seu prestígio, que continuassem à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública”. A candidata passou em primeiro lugar. Um banheiro feminino foi construído às pressas no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro.

Muitas mulheres sustentam que, mais de um século depois, a paridade de gênero ainda é uma ilusão na diplomacia. No dia seguinte à última lista de promoções, a Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado fez a sabatina de cinco embaixadoras que vão ocupar representações brasileiras no exterior: Claudia Buzzi (Suíça), Maria Luisa Escorel (Suécia), Susan Kleebank (Hungria), Andrea Watson (Honduras) e Vivian Sanmartin (Namíbia). Deu uma bela foto de todas juntas. Razões para celebrar?

Apenas 16% dos postos no exterior têm uma mulher na chefia. Nas 25 embaixadas ou missões com maior lotação de diplomatas (dez ou mais), só homens estão no comando. Nunca houve embaixadora em Washington, em Buenos Aires, Londres, Tóquio, Pequim ou na OMC. Nunca houve ministra das Relações Exteriores ou secretária-geral (número 2) do Itamaraty, o que deixa o Brasil mais como exceção do que como regra na América Latina. Países como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Peru e Venezuela já tiveram ministras.

É como se dissessem: elas são boas o suficiente para o Leste Europeu, a América Central, a África ou para departamentos administrativos - todas funções relevantes, que ninguém entenda mal, mas sem o mesmo status, admita-se. Na hora de falar sobre Estados Unidos ou União Europeia, sobre ONU ou comércio, os homens entram em cena. Para registro: hoje nenhuma mulher exerce cargo em nível de DAS 5 ou DAS 6 - acrônimos que Brasília lê como posição de chefia ou poder - em unidades do Itamaraty responsáveis por temas econômico-comerciais.

Vale conferir o testemunho da diplomata aposentada Vitória Alice Cleaver, 77 anos, melhor aluna do Instituto Rio Branco em 1970-1971. “Era comum que a primeira lotação, quando o candidato tinha se classificado em primeiro lugar, ele pudesse escolher. E eu tinha o sonho de trabalhar na Divisão das Nações Unidas. Fiquei decepcionada quando soube que eu seria direcionada para o Cerimonial”, contou Cleaver, em documentário produzido pelo Grupo de Mulheres Diplomatas, coletivo criado em 2013 e que hoje congrega mais de um terço das diplomatas brasileiras.s

Não se trata da lógica fria dos números. Eugênia Barthelmess, hoje embaixadora do Brasil em Cingapura, descreve da seguinte forma no documentário: “Terno e gravata estão para a nossa vida civil como as insígnias para a vida militar. São a insígnia do prestígio, da respeitabilidade, da confiabilidade, de um poder tranquilo. A diplomata vestida da maneira mais elegante, mais sóbria, não alcança esse nível de respeitabilidade que o mais jovem dos secretários tem aqui, por estar usando terno e gravata”.

No último dia 25, logo após a sabatina das embaixadoras na CRE, a presidente da comissão, senadora Kátia Abreu (PP-TO), disse ter ficado sabendo como as mulheres eram minoria na lista de promoções e escreveu para o chanceler Carlos França: “Decepção total.” Segundo ela, havia um compromisso de ir aumentando a participação feminina entre ministros de primeira classe até 30% no fim de 2022. “Não adianta. A comissão que elege quem vai ser promovido só tem homens. Então, é impossível não haver as preferências de amizade”, notou.

O caminho, segundo Kátia Abreu, talvez seja um projeto de lei que reserve pelo menos 30% das vagas de embaixador para mulheres. No ritmo atual de promoções, seria necessário esperar mais dez anos para atingir esse percentual. Não é o Itamaraty um mundo à parte, e ele padece de desafios existentes em toda a sociedade. Porém, na vanguarda do serviço público e como um centro de excelência do Estado brasileiro, pode enfrentar o problema de modo exemplar.

Daniel Rittner é repórter especial em Brasília e escreve às quartas-feiras
E-mail: daniel.rittner@valor.com.br

https://valor.globo.com/brasil/coluna/mulheres-no-itamaraty-a-luta-por-mais-espaco.ghtml

quinta-feira, 8 de março de 2018

Dia internacional da mulher: nota da ADB

Mensagem da ADB/Sindical pelo
Dia Internacional das Mulheres


No Dia Internacional das Mulheres, a ADB/Sindical homenageia todas as mulheres, em especial as mulheres diplomatas, e recorda que há, ainda, um longo caminho a ser percorrido para superar a desigualdade entre homens e mulheres na carreira diplomática.

O dia 8 de março é uma data para celebrar a luta histórica das mulheres na conquista de direitos, no combate ao assédio e a quaisquer outras formas de discriminação e de violência. É também uma data para avaliar os desafios a serem superados e as metas que ainda devem ser alcançadas, como a maior representatividade feminina em cargos de comando, a superação de preconceitos e a passagem do discurso à prática quanto à implementação de medidas que promovam o empoderamento feminino e assegurem a punição adequada em casos de assédio, discriminação e outras formas de violência contra a mulher.

A ADB/Sindical recorda que coube à diplomacia brasileira, por meio de Bertha Lutz, atuar com protagonismo na inserção do princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres na Carta das Nações Unidas, na Conferência de São Francisco, em 1945. Esse pioneirismo deve ver-se refletido também no trabalho e no cotidiano do Ministério das Relações Exteriores, por meio de um engajamento efetivo com ações que promovam maior igualdade de gênero e que demonstrem um compromisso firme e constante de vigilância quanto a posturas de discriminação e de violência contra a mulher, dentro e fora do Ministério.

Em um ano em que se completam cem anos do ingresso da primeira mulher na carreira diplomática e em que a Organização das Nações Unidas anunciou ter alcançado paridade de gênero nos cargos de direção de seu Secretariado, a ADB/Sindical manifesta seu firme compromisso com a promoção, proteção e ampliação dos direitos das mulheres, ressaltando também avanços recentes no Ministério como a criação do Comitê Gestor de Gênero e Raça, o engajamento do Grupo de Mulheres Diplomatas e a aprovação recorde de mulheres na turma de 2017 do Instituto Rio Branco.

A ADB/Sindical defende que a maior diversidade nos quadros da carreira diplomática, em termos de gênero e raça, favorecerá uma maior e melhor representatividade dos anseios da sociedade brasileira na elaboração da política externa, bem como na condução dos trabalhos do Ministério das Relações Exteriores. A carreira diplomática deve ser uma expressão real dos valores defendidos pela política externa brasileira. Nesse contexto, a defesa da igualdade de gênero assim como o repúdio e o combate a quaisquer formas de assédio constituem uma agenda fundamental para os trabalhos da ADB/Sindical, que atua em defesa da diplomacia e dos(as) diplomatas brasileiros(as).

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A "cultura" diplomatica e as mulheres: respostas a um questionario - Paulo Roberto de Almeida (2006)

Respostas a um questionário de pesquisa, que permaneceram inéditas desde então.


Alguns aspectos da cultura diplomática
Respostas a questionário no âmbito de Projeto “Mulheres e Relação entre os Gêneros nas Diplomacias Brasileira e Portuguesa”

Respostas a Professora da USP

Comentários de Paulo Roberto de Almeida
Ministro de segunda classe da carreira diplomática
(ingresso por concurso direto em 1977, sem curso no Instituto Rio Branco)

Brasília, 25 de fevereiro de 2006


Opiniões sobre alguns aspectos da carreira diplomática

1-A carreira diplomática é reconhecidamente masculina. Em sua opinião, quais os estereótipos que circulam no quotidiano do MRE e no IRBr, quanto à participação das mulheres na carreira.

            PRA: A carreira já foi exclusivamente masculina, no passado remoto (ou não tão remoto, em alguns países). Depois se tornou essencialmente masculina, na segunda metade do século XX, como resultado de uma lenta evolução em direção de maiores oportunidades e chances para o gênero feminino, embora muito lentamente.
Acredito, pessoalmente que estereótipos e preconceitos devem ter sido superados, no momento atual, mas as evidências estatísticas sugerem o contrário, com uma participação feminina inferior a um quarto do total dos quadros.
Não obstante a não discriminação no recrutamento, em seu formato impessoal e anônimo, como adotado atualmente, a carreira ainda permanece como predominantemente masculina, refletindo um pouco o quadro geral da estrutura profissional do mercado de trabalho da sociedade brasileira, que reserva a maior parte das funções gerenciais e executivas para o elemento masculino.
Não creio que essas diferenças nos “volumes” respectivos de homens e mulheres na diplomacia reflitam estereótipos ainda predominantes, mas tão simplesmente uma herança do passado que persiste no presente. Determinadas profissões permanecem essencialmente masculinas, como podem ser as engenharias, outras se tornaram essencialmente femininas, como a psicologia, outras, enfim, realizaram uma bem sucedida transição para a “feminização”, como pode ter ocorrido com a medicina. No caso da diplomacia, essa transição ainda não se deu, mas os estereótipos têm pouco a ver com a situação atual.


2- Quais os obstáculos que as mulheres encontram para a ascensão na carreira?

            PRA: Eles podem ser divididos entre os “estruturais” e os “específicos”. Os primeiros seriam comuns a todas as profissões, no sentido em que existem elementos que penalizam a mulher devido a seus muitos encargos familiares e de maternidade, redundando numa menor dedicação ao trabalho, devido aos afastamentos pelas razões apontadas acima. Eles são comuns a praticamente todas as profissões que requerem empenho e dedicação intensos, o que pode redundar em sacrifícios familiares e matrimoniais.
            Os específicos estariam ligados à história da carreira, que já teve, sim, aspectos extremamente negativos para a inserção e o sucesso da profissional feminina. Quando surgiu o Instituo Rio Branco, o concurso estava limitado aos homens, numa flagrante inconstitucionalidade. Depois, as mulheres foram sendo na prática discriminadas com promoções mais delongadas, não atribuição de chefias (na Secretaria de Estado ou no exterior) e uma subordinação de fato à carreira do marido em caso de casais de diplomatas (anteriormente a mulher era obrigada a “agregar”, ou seja, sair da lista de antiguidade, quando da remoção do marido para o exterior, prática que perdurou ainda até os anos 1980).
            Atualmente, todos os obstáculos formais foram levantados, e as novas gerações não praticam nenhum tipo de discriminação subreptícia, mas podem ter restado algumas mentalidades ainda resistentes à plena equalização de chances...


3-O senhor cita o embaixador Geraldo Eulálio, este aponta predicados e inconvenientes, resultantes do ingresso das mulheres na carreira. Em sua opinião, quais seriam, os predicados e os inconvenientes?

            PRA: Não estabeleço qualquer tipo de diferencial, em princípio, entre homens e mulheres, e não creio que qualquer um dos gêneros detenha qualquer vantagem ou desvantagem inerente à sua condição no maior ou menor sucesso na carreira. A única coisa que posso constatar é que a carreira ainda impõe certas obrigações de disponibilidade – sobretudo em termos de viagens e missões ao exterior, reuniões se estendendo fora dos horários normais de trabalho etc. – que podem representar algum ônus para a mulher, que ainda é vista, a despeito de todo o progresso realizado na nossa sociedade, como a principal responsável pelo cuidado, atenção e educação com os filhos. A sociedade ainda não está organizada para permitir plena igualdade de chances – faltam creches e outras condições que permitiriam à mulher exercer plenamente qualquer atividade na qual tenha interesse – o que termina inevitavelmente penalizando a mulher.
            Por outro lado, a sociedade é também bem mais exigente, em termos de apresentação, cuidados pessoais, vestimentas etc., com a mulher do que com o homem, o que pode ser também um ônus adicional na carreira, mas isto é apenas uma hipótese.
            Do ponto de vista dos comportamentos, igualmente, existe mais leniência para com os homens, no que se refere ao círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos que podem ser considerados como “ocasionais”.
            Tudo isto não está ligado a “predicados” o “inconvenientes”, mas a percepções sociais sobre o papel e a imagem de cada um dos gêneros.


4-Vige a visão difundida pelos organismos da Onu, como também por ONGS e teóricas feministas, de que as mulheres são mais capazes do que os homens, para negociar a paz, até de participar positivamente na resolução dos conflitos armados. Qual a sua opinião sobre estas afirmações?

            PRA: Não há nenhum fundamento para esse tipo de opinião, que se prende mais a estereótipos comuns em nossa sociedade do que a determinações “estruturais” ligadas aos gêneros. Agora, é um fato histórico que as sociedades evoluíram tradicionalmente segundo uma divisão sexual de funções que sempre deu à mulher atribuições domésticas e aos homens os encargos externos, inclusive a “arte da guerra”. Este é um fato histórico, não um destino inelutável, aliás em fase de evolução crescente, com a incorporação das mulheres a todas as responsabilidades guerreiras em número crescente de sociedades modernas, sendo os EUA e Israel exemplos conspícuos destas tendências.
Creio que não há nenhuma determinação a priori capaz de diferenciar entre os gêneros na capacidade de fazer a paz ou a guerra. Opiniões nesse sentido são simplesmente desprovidas de fundamentação científica.


5-Seriam as mulheres, melhores interlocutoras, do que os homens, nas negociações, de qualquer natureza?

            PRA: Em absoluto, não há nem pode existir uma determinação dessa natureza, pois isso desafia a lógica e o bom senso. Homens ou mulheres não negociam enquanto gênero, mas enquanto funcionários burocráticos de uma organização mais vasta, e eles devem, portanto, ater-se às instruções expedidas pelos seus serviços diplomáticos respectivos, e não responder a suas orientações idiossincráticas. Os indivíduos podem fazer alguma diferença em qualquer negociação, mas isso não se prende ao seu gênero, e sim à sua capacidade de melhor conduzir um processo negociador, o que responde à sua formação enquanto indivíduos, não importando o sexo.


6-No MRE haveria distinção na distribuição das missões, entre homens e mulheres? Por quê?

            PRA: Desconheço qualquer orientação nesse sentido. Em tempos remotos, chefes de administração poderiam ostentar ou esconder algum preconceito nesse sentido, mas não creio que esse tipo de comportamento tenha lugar no período atual. Nenhuma das funções diplomáticas apresenta qualquer conotação específica a um gênero qualquer.
            Pode-se pensar, outrossim, que negociações em torno dos direitos da mulher seriam mais bem conduzidas pelas próprias interessadas, em vista da discriminação de fato que ainda cerca o gênero feminino na maior parte das sociedades modernas e concedo que seria mais interessante ter mulheres nessas posições.
Mas o princípio é talvez perigoso, uma vez que redundaria em dar a outras minorias – infelizmente os temas ligados à mulher costumam ser enfeixados na mesma categoria das “minorias discriminadas” – o “direito original” de representar seus pares, o que pode conduzir a um sistema similar ao do “apartheid” ou da segregação, no qual apenas os próprios representantes daquela categoria têm o direito de falar em seu nome. A sociedade como um todo teria o dever de opinar e decidir o que é melhor para o conjunto dos cidadãos, não apenas um grupo determinado. As distorções que poderiam ser criadas por esse tipo de orientação podem ser mais danosas do que os supostos benefícios que ela traria.


7-Quais as missões, ditas apropriadas para as mulheres?

            PRA: Não atribuo legitimidade a esse tipo de questão, mas caberiam as ponderações feitas acima.
            De toda forma, considerando-se que a mulher não é uma “minoria” – classificação que ainda ocorre em determinadas instâncias da vida nacional e nos foros internacionais – e sim metade da humanidade, seria totalmente racional que todos os temas envolvendo mulheres, crianças, adolescentes, direitos reprodutivos e de certa forma educação tivessem um forte componente de representação e até de “direção” feminina.
A humanidade estaria bem melhor se isso ocorresse, considerando-se que o critério básico para se julgar o avanço civilizacional de qualquer povo é o tratamento concedido à mulher.


8-Quais as missões mais apropriadas para os homens?

            PRA: Absolutamente nenhuma, de qualquer tipo, que não possa igualmente ser atribuída à mulher.
            Entendo, por outro lado, que por razões eminentemente práticas, missões que envolvam certo diferencial “civilizatório” tenham de atender a esse critério de distinção entre sexos. Um exemplo apenas, no limite do possível imaginável: não se enviaria alguma chefe de missão de paz da ONU negociar com rebeldes de alguma tribo ou comunidade étnica cujas tradições e cultura envolvam esse tipo de discriminação sexista. É bem conhecido o fato de que determinadas sociedades colocam a mulher em patamar inferior ao do homem, daí a “impraticidade” de se colocar uma mulher negociadora à frente de alguma missão que envolva esse tipo de comunidade.
            Isso não quer dizer que a missão seja mais apropriada para o homem, apenas que o critério de desempenho tem de levar em conta esse aspecto peculiar na seleção do negociador principal.


9- As embaixatrizes são fundamentais na carreira dos embaixadores, sobretudo, no estrangeiro, devido ao trabalho complementar, por exemplo, a organização de eventos, recepções etc. Qual é a sua opinião a respeito disso?

            PRA: De fato, isso ainda ocorre, e não apenas no estrangeiro, na medida em que a carreira diplomática foi tradicionalmente reservada aos homens – como a militar, aliás – e que o papel da mulher sempre foi pensado como o de coadjuvante. A presença, ainda predominante, dos homens como atores principais e das mulheres como meras “acompanhantes”, faz com que esse papel ainda seja importante. De certa forma, “se espera” que seja assim.
            No futuro, provavelmente, isso vai diminuir e as sociedades se tornarão absolutamente igualitárias, mas trata-se de evolução lenta, que depende do aprofundamento das mudanças nos costumes sociais e também das formas de organização das sociedades.
            Minha opinião pessoal é a de que a mulher do chefe do posto, ou de qualquer outro diplomata, tem de ser “libertada” dessa corvéia, pois se trata de imposição social, não de missão voluntariamente assumida. Em bases individuais, não deveria haver discriminação na preparação de recepções entre amigos. Nas recepções oficiais, se deveria simplesmente terceirizar o serviço, convertê-lo em uma obrigação profissional no sentido prático da palavra, não impor um “serviço não remunerado” a qualquer um dos cônjuges apenas porque ele é o acompanhante do diplomata (aqui sem qualquer distinção de sexos). Aliás, a mulher não deveria sequer ser cogitada como “acompanhante” do marido apenas para acompanhar; ela deveria ser convidada enquanto indivíduo independente, e decidir por ela mesma se deseja comparecer ou não.


10- No caso, dos maridos das embaixadoras, teriam relevância no trabalho complementar, ou em outro, outros? Qual/ais ?

            PRA: Não se demanda, por hábito, do marido da embaixadora, as mesmas obrigações que se costuma demandar às embaixatrizes, mas isso é preconceito residual. Não consigo ver qualquer tipo de missão especial associada ao “marido”, a não ser, pateticamente, como acompanhante da mulher.
            Os comentários acima são válidos neste particular também.


11- A família, cônjuge e filhos, são de vital importância na carreira diplomática? Por quê?
            Não deveria ser, uma vez que a atividade diplomática é uma função de Estado, que é exercida por burocratas aos quais se atribuem encargos independentemente do sexo. Na prática, a questão do “acompanhante” – que não precisa necessariamente ser o cônjuge legal – assume um papel social relevante. Os filhos são de menor importância no desempenho das funções, pois normalmente não se leva em conta essa dimensão nos eventos sociais da diplomacia corrente.
            A diplomacia, de toda forma, evoluiu muito entre o início do século XIX e os tempos modernos. Do congresso de Viena às reuniões absolutamente burocráticas da ONU, estilos foram se consolidando. Não se fazem mais bailes ao estilo de Viena e não se organizam mais saraus diplomáticos, nos quais a presença feminina era puramente decorativa (ou até podia ter outras funções, que não tinham de toda forma muito a ver com a negociação de posições em si).
            A família ainda é um componente fundamental de organização da sociedade humana e como tal interfere no desempenho de funções oficiais, mas não deveria haver, a rigor, qualquer “cruzamento” entre desempenho na carreira e status familiar ou matrimonial. Não creio, assim, que essa questão seja de “vital importância” na carreira, que como se sabe integra vasto componente de solteiros, muitos deles claramente homossexuais. Sem conhecer estatísticas precisas, acredito que a proporção de homossexuais na carreira seja superior à do conjunto da sociedade, isto por razões culturais específicas à carreira. Esse aspecto diminui, portanto, o peso da família na carreira.


12- Quando o diplomata/a diplomata, são solteiros, quem substitui a família nuclear?(cônjuge e filhos)

            PRA: Não creio que essa substituição seja necessária, em qualquer hipótese. A questão só se justifica numa visão tradicional dos papéis sociais e da própria diplomacia.
No passado, quando a discriminação social era mais forte contra os homossexuais – que tendem a ser “solteiros” em maior número --, muitos homossexuais, de ambos os sexos, mas basicamente os homens, tendiam a constituir famílias, justamente para não sofrerem discriminações. Essa tendência é cada vez menos freqüente, mas ainda ocorre nos tempos atuais, tendo em vista que a evolução dos costumes ainda não foi completa. Poucos países adotaram, por exemplo, o chamado “casamento gay”, mas paulatinamente haverá, futuramente, uma maior aceitação de casais homossexuais nos meios diplomáticos também.


13-Esse papel seria exercido pelos pais, irmãos, amigos?

            PRA: A questão não se coloca, nem absolutamente, tendo em vista as tradições da diplomacia – que considerava apenas o status matrimonial do diplomata, geralmente homem –, nem relativamente aos padrões atuais do exercício da carreira. Não se exige que um diplomata solteiro tenha qualquer tipo de acompanhante, mas se espera que o diplomata casado se faça acompanhar do cônjuge em determinados eventos sociais.


14-O trabalho complementar da mulher seria remunerado pelo MRE, um salário, um pró-labore, ou outra modalidade?

            PRA: Não creio que um serviço público de tipo “republicano” tenha de remunerar “acompanhantes” por atividades sociais ligadas ao status do funcionário, mas entendo que o cônjuge deveria ser desobrigado de trabalhar gratuitamente na preparação de eventos oficiais. O trabalho deveria ser profissionalizado e terceirizado, com responsabilização apenas do titular da função pela prestação de contas, ainda que ambos se engajem voluntariamente em atividades não remuneradas ligadas a esse tipo de evento (como horas extras incorridas em alguma recepção oficial, etc.). Sou contra qualquer tipo de pró-labore em eventos puramente sociais, e isso não tem nada a ver com o sexo do cônjuge.


15- Os filhos dos diplomatas receberiam algum tipo de subsídio, por exemplo, para estudos, creches etc.?

            PRA: Isso não tem nada a ver com a condição de filhos ou com a carreira diplomática. Isso tem a ver com disposições legais ou constitucionais quanto à educação das crianças ou quanto à vida no exterior a serviço do país. Se uma sociedade impõe a obrigação do ensino, ela tem o dever de oferecer meios para que os pais possam ter escolas à disposição para o tipo de ensino esperado dos cidadãos dessa sociedade.
            Em alguns casos especiais, funcionários no exterior – diplomatas, militares etc. – podem não ter condições de oferecer escola a seus filhos salvo em regime de pagamento em instituição particular. Creio que funções no exterior deveriam estar associadas a subsídios ao ensino e à habitação em função de condições peculiares do posto, a serem examinadas pelo chefe do posto, em consulta com o serviço oficial nacional. Parece-me normal que chefes de família possam dispor desse tipo de subsídio, pois suas necessidades superam as de um funcionário solteiro, sem obrigações familiares (e constitucionais, em certos casos).
            Não deve haver subsídio a nenhum indivíduo, filho ou pai, apenas intervenção pública ligada a um determinado serviço – ensino ou habitação – quando isso se revelasse absolutamente indispensável, tendo em vista as peculiaridades mencionadas (que geralmente envolvem inexistência de escolas públicas de qualidade, culturas muito distantes da realidade nacional, custo elevado da habitação, etc.).


16- Caso haja alguma ajuda, para as mulheres ou para os filhos, seria no estrangeiro e, também, no Brasil?

            PRA: Apenas no exterior. No Brasil, se espera que o chamado “espírito republicano” prevaleça, ou seja, a sociedade tem de oferecer ensino público a todos os que fazem essa demanda. A decisão pela instituição particular é de natureza privada, caso contrário se estaria discriminando contra a maioria da sociedade – ao alocar recursos de impostos -- para um serviço que seria hipoteticamente oferecido apenas a alguns poucos (diplomatas, ou funcionários públicos). A missão no exterior impõe alguns “custos” que talvez convenha “socializar”, mas o princípio deveria ser aplicado com extrema parcimônia.


17-E para os maridos das diplomatas?

            PRA: Cônjuge de diplomata, de qualquer sexo, não é função, é uma condição social. A diplomacia é um serviço público e os recursos do Estado devem estar estritamente vinculados ao desempenho de funções públicas. Sou contra qualquer tipo de subsídio atribuído a indivíduos, mas sou a favor de algum tipo de subsídio, caso necessário, se isso ocorrer por necessidade de serviço.


18-E no caso dos/as solteiros/as, o trabalho complementar, exercido por outrem, teria alguma ajuda de custo?

            PRA: Em hipótese alguma. Deve haver estrita e total separação entre a esfera privada e a esfera pública.


19-Como as diplomatas conciliam a atividade profissional e a vida familiar?

            PRA: Sem dúvida, parece complicado, pois a atividade profissional, e não apenas a diplomática, impõe por vezes uma dedicação que interfere e prejudica a esfera familiar. A família pode ser sacrificada em alguns casos. A disponibilidade de recursos – financeiros ou de outro tipo – pode paliar determinados serviços – como baby-sitter, empregados, etc. – mas o déficit de atenção exclusiva aos filhos permanece. Não faço distinção entre sexos aqui, pois entendo que as obrigações familiares e matrimoniais se impõem a ambos, igualmente. Na prática, a carga mais pesada acaba caindo com a mulher, que tem de fazer muito maior esforço para um bom desempenho na carreira do que os homens.


20-Como os diplomatas conciliam a vida profissional e a vida familiar?

            PRA: Os diplomatas homens geralmente colocam a profissão à frente da família, salvo casos raros. Esta é uma constatação, não uma escolha ou demonstração de preferência. Raramente o diplomata homem vai recusar uma missão no exterior, ou o comparecimento a um evento social, por razões de ordem familiar, alegando que sua mulher ou os filhos necessitam de sua presença no lar. Esse tipo de justificativa não é considerada legítima, e isso se aplica mesmo fora do serviço diplomático.


21-Essa conciliação seria diferenciada, se no estrangeiro ou no Brasil?  

            PRA: No exterior, os constrangimentos são ainda maiores, em detrimento da mulher e dos filhos, no entendimento de que na sociedade de origem existem esquemas alternativos para a “solidariedade familiar” que não existem no estrangeiro, um meio novo e relativamente desconhecido para o casal diplomático.
            Mas, toda essa questão não deveria ser um “problema de Estado” e sim pertencer à esfera privada ou familiar. Cabe ao indivíduo que tem família tentar conciliar suas obrigações pessoais e familiares com as profissionais, não ao Estado tentar acomodar o serviço público, que deve ser exercido em bases impessoais, às conveniências dos servidores individuais.


22- É possível a embaixatriz, exercer uma atividade profissional própria?

            PRA: Certamente, mas isso depende de arranjos entre os Estados, uma vez que o estatuto diplomático restringe, de ordinário, o exercício de atividade remunerada. Havendo acordo entre os países – que geralmente implica em levantamento da imunidade tributária para aquele tipo de atividade – não deveria haver obstáculos a essas atividades. Quase todos os Estados ostentam regimes tributários incidindo sobre a renda individual, a que estão imunes os diplomatas por receberem seus proventos de um Estado estrangeiro – o que é regido pela Convenção de Viena sobre relações diplomáticas. Mas caso haja preferência pela atividade remunerada – o que se distingue de atividades de tipo assistencial, por exemplo --, parece normal que o Estado possa tributar essa atividade. 


23- E o marido da embaixadora?

            PRA: Não há, nem deve haver, nenhum tipo de distinção.


24-Os filhos seriam obstáculo para a ascensão na carreira das diplomatas? Por quê?

            PRA: Intrinsecamente não. Na prática, pode haver algum impacto, na medida em que a atenção e a dedicação aos filhos podem redundar na recusa de alguma missão no exterior, durante um determinado período da vida dos filhos. Como registrado acima, não se espera que o homem recuse uma missão, sob a alegação de que precisa cuidar dos filhos à noite, enquanto sua mulher, hipoteticamente, estuda. Espera-se que o casal tenha ajuda familiar. Mas, existe maior compreensão para esse tipo de caso, quando a mulher está em fase de aleitamento, por exemplo. Esse tipo de “escolha” pode resultar em menores chances de ascensão profissional para a mulher.


25-E para a carreira dos diplomatas? Por quê?

            PRA: Já respondido acima. A sociedade ainda não está organizada para dispensar total igualdade de tratamento a homens e mulheres.


26-A Plataforma de Ação, resultante da Conferência de Pequim, orienta os países membros da ONU, entre outras, para a implementação da estratégia “gender mainstreaming”, isto é, os programas e as políticas em todas as instâncias governamentais devem contemplar o recorte de gênero, maneira de ajudar na eliminação da discriminação sofrida pelas mulheres.Como o senhor, aquilata essa implantação no MRE? Enfrenta obstáculos ? quais?

            PRA: Confesso que não acompanhei esse tipo de assunto e não tenho idéia de sua implementação no MRE. Sou a rigor favorável a que toda a sociedade, e não apenas o serviço público, invista em melhores condições para que a mulher possa se desempenhar profissionalmente em toda a sua plenitude. Isso implica em algum tipo de “subsídio”, em troca da função social da maternidade, o que se traduz em creches em grande número, a serem pagas em função da renda familiar. Mecanismos de mercado têm de ser encontrados para “remunerar” a mulher por suas funções reprodutivas e educacionais. 


27- Os curricula dos cursos de preparação para a carreira diplomática, abordam a questão de gênero?

            PRA: Não, segundo meu conhecimento. Eu seria contrário a qualquer discriminação por gênero, positiva ou outra, numa função que deve ser apenas e tão somente pública.


28-A questão das mulheres e gênero, é tema transnacional, diz respeito às relações internacionais. Este tema, em sua opinião, recebe a devida importância, pelo MRE?

            PRA: Ele só é um tema “transnacional” por um razão civilizacional muito clara: as mulheres foram discriminadas, e ainda o são, na maior parte das sociedades, por um tempo longo na história da humanidade. O tema deveria deixar de ser objeto de tratamento especial se e quando o status da mulher vir a ser o de uma completa igualdade de direito – o que ainda não é o caso em diversas sociedades, sobretudo da vertente islâmica – e o de uma igualdade de fato, o que ainda está longe, aparentemente, de ocorrer no futuro previsível.
            Confesso que não tenho a menor idéia de como o tema vem sendo tratado no MRE, pois jamais me dediquei a esse tipo de assunto. Entendo que o MRE tenha um discurso que pode ser classificado de “politicamente correto” nesse particular – pois seria difícil que fosse de outro modo – e que sua prática, como em vários outros setores, deixe algo a desejar, na medida em que isso exige mudança de hábitos, de pensamento, e até certo investimento em coisas novas, não tradicionais na agenda diplomática.


29-Haveria desistência, por parte dos interessados, da carreira diplomática? Por quê?

            PRA: Ocorrem poucas desistências na carreira diplomática, em ambos os gêneros. Não possuo estatísticas a respeito, mas suspeito que seja menos do que 1% dos ingressados. As motivações são sempre de ordem pessoal e familiar, pois a carreira é relativamente tranqüila, no sentido em que todo o funcionalismo público o é: estabilidade, garantia de salários, aposentadoria integral (até a pouco) e outras prebendas associadas à carreira. Os que o fazem são motivados, geralmente, por razões puramente pessoais, e não remunerativas, muito embora possa haver uma enorme diferença entre ganhos no exterior e vencimentos no Brasil (como ocorre em diversos serviços diplomáticos, aliás).
            A carreira também impõe certo stress familiar – postos difíceis, por exemplo – e sobre as mulheres em particular, o que pode motivar algumas desistências, mas não disponho de evidências a respeito. 


30-Em sua opinião, como o MRE, convive com a agenda das ONGs, nacionais e internacionais?

            PRA: Entendo que há, atualmente, uma convivência respeitosa, dependendo do tema e das circunstâncias. Todo serviço público, e não apenas o diplomático, se julga detentor de um mandato e de uma responsabilidade, que decorrem de arranjos institucionais e de disposições burocráticas formalizadas. As ONGs não estão submetidas aos mesmos princípios, daí uma ausência intrínseca de legitimidade política em seu trabalho, que não pode ser desprezada. O MRE, como outros ministérios, presta contas ao chefe do Executivo e eventualmente ao Congresso (e também ao Tribunal de Contas, aos órgãos da receita pública, etc.). A quem prestam contas as ONGs? Aparentemente apenas a suas clientelas, e estas são, necessariamente, sempre setoriais e parciais e portanto discriminatórias.
            Isso conflita, em princípio, com o caráter nacional e impessoal do serviço público.
            Em determinadas circunstâncias, no entanto – geralmente ligadas às agendas social, humanitária, ambiental, trabalhista, etc. –, pode ocorrer maior “osmose” entre o MRE e algumas dessas ONGs. Mas, o próprio das negociações diplomáticas é o caráter por vezes confidencial de qualquer arranjo preliminar, até que possam ser barganhadas soluções aceitáveis para todas as partes. Isso conflita também com a natureza do trabalho das ONGs, que fazem da transparência e da chamada “public accountability” um princípio de trabalho.
            Não creio, pessoalmente, que o MRE deva prestar contas a ONGs, mas apenas informá-las, no limite do aceitável, como se faz com a sociedade em geral.
            Mas, as ONGs também podem ser parceiras no trabalho diplomático, desde que as responsabilidades de cada ator estejam claramente definidas.
            Sou contrário, por exemplo, ao excesso de transparência e de “participacionismo” em negociações internacionais, por razões de ordem prática. Todo e qualquer acordo internacional envolve, inevitavelmente, renúncia de soberania e perdas parciais ou relativas para determinados grupos ou setores da sociedade nacional. Se o processo for “aberto” em demasia, qualquer acordo se tornará impossível, pois grupos organizados – chamemo-los de ONGs, se quisermos – estarão sempre atentos a que seus interesses não sejam discriminados. Isso torna impossível qualquer progresso concreto em qualquer área. Um exemplo disso são as negociações em torno dos subsídios agrícolas: eles devem ser eliminados, pois além de irracionais economicamente, estrito senso, são discriminatórios para com os países dependentes da agricultura. Ora, as “ONGs” do setor impedem qualquer solução ao problema.
            Em síntese, minha posição seria: cooperação com as ONGs, OK, ma non troppo, ou seja, sem qualquer exclusivismo ou captura por interesses particulares.


31- Gostaria que o senhor, caso queira, me contasse algo a respeito da carreira, da sua experiência, e ou da dos seus colegas.

            PRA: Não represento a vertente típica do Itamaraty, para representar um funcionário padrão, em virtude de uma dedicação paralela e simultânea às lides acadêmicas. Nem sei se represento o típico diplomata, por vir de uma família modesta e provavelmente ter opiniões formadas sobre o caráter da carreira diplomática que conflitam com as opiniões ou posições da quase totalidade dos membros da carreira.
            Sou, por exemplo, contra a estabilidade no serviço público, inclusive de diplomatas. Sou contra a aposentadoria integral, de qualquer funcionário público. Sou contra cotas, por gênero ou raças, o que a rigor não existe, mas as demandas nesse sentido se exercem. Sou contrário a interferências externas nas decisões da Casa – em matéria de promoções ou de remoções, por exemplo – e acredito que qualquer interferência ou pedido externo deveria ser objeto de discriminação, de eventual advertência ou sanção ao “objeto” do pedido, ou seja, ao diplomata em questão. Sou a favor de processos democráticos de avaliação de desempenho, como testes, consultas internas, votação secreta, etc. Sou a favor de completa transparência nas contas públicas, com exibição dos gastos na internet, em todas as esferas, salvo aquelas que impliquem confidencialidade ou segredos de Estado (o que deve ser, de toda forma objeto de controle por órgãos especiais). Sou a favor da completa separação do orçamento de funcionamento do MRE das contribuições aos organismos internacionais, que não podem sofrer cortes, pois se trata de dever do Estado, não do ministério. Sou a favor de uma visão restrita das responsabilidades negociadoras externas, que hoje podem estar dispersas em vários ministérios e assim dar campo à descoordenação de posições na frente internacional. Creio também que a autorização legislativa deva ser requerida para o caso de denúncia de tratados, e não apenas para sua ratificação. Creio que a assinatura de um tratado já envolve a obrigação de sua comunicação ao Congresso.
            Estas são posições hoje não todas consolidadas ou admitidas no serviço diplomático ou no serviço público. Elas têm a ver com o tratamento “administrativo” do serviço exterior, mais do que com suas orientações políticas, que devem ter caráter impessoal, não ideológico e não partidário.
            Quanto a minhas posições pessoais no que se refere aos “deveres” de um diplomata, elas estão parcialmente consolidadas num texto que pode ser lido neste link: http://paulomre.blogspot.com/2005/12/62-dez-regras-modernas-de-diplomacia.html
            No que se refere, à minha própria carreira, creio que ela não apresenta nada de excepcional para ser registrada, a não ser pelo fato da já mencionada compatibilização do serviço público com atividades acadêmicas e intelectuais intensas. Um pouco dessa produção paralela pode ser conferida em meu site pessoal (www.pralmeida.org), ou em meu blog (http://paulomre.blogspost.com).


Sugestões, críticas etc.

            PRA: A tendência a estudos de “gênero”, assim como a qualquer outro microestudo em particular – grupos minoritários, raciais ou religiosos – pode acarretar uma relativa “deformação” analítica do objeto de estudo, uma vez que um determinado problema passa a ser visto por essa ótica particular, abstraindo-se razões e circunstâncias externas a ele, ou próprias à sua temporalidade e contexto social mais vasto.
            As sociedades em geral foram no passado marcadas por práticas que hoje em dia são consideradas inaceitáveis, nos planos racial, sexual ou outro. No caso em espécie, deve-se levar em conta que os serviços diplomáticos nacionais eram “naturalmente” misóginos ou sexistas, pois assim era a sociedade, da mesma forma como preconceitos raciais – judeus, negros, amarelos, etc. – eram mais freqüentes nesses contextos.
            A voga do “relativismo histórico” ou a tendência ao “politicamente correto” podem ser tão nefastas para a isenção analítica quanto essas antigas manifestações discriminatórias e segregacionistas.

            Numa outra vertente, grupos sociais objeto de alguma pesquisa geralmente tendem a ostentar uma opinião mais edulcorada de sua própria situação e de suas opiniões do que a realidade efetiva das coisas, que pode ser menos reconfortante para sua imagem pública. Os diplomatas exibem, em geral, uma alta opinião de si mesmos, e são confirmados nessa crença por uma imagem pública geralmente construída e cuidadosamente mantida. Existem, por outro lado, estereótipos, derivados de situações passadas, que não mais correspondem à situação presente.
            O que pode ser dito do serviço exterior brasileiro é talvez seu caráter relativamente impermeável à sociedade, como pequena “osmose” mantida com a sociedade como um todo, ou com outras agências do Estado. Essa mesma característica, por outro lado, garante uma certa isenção em relação a pressões externas e mantém a qualidade do serviço, que tende a ser altamente competitivo no plano interno. Mas, pode estar ocorrendo, também, certo déficit de “public accountability”.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de janeiro de 2006

(segue complemento de questionário nas páginas seguintes)


Correspondência de Maria Quinteiro em 20 de fevereiro de 2006:

From: Maria Quinteiro [mailto:mquim@usp.br] 

Sent: Monday, February 20, 2006 11:54 AM

To: Paulo Roberto de Almeida

Subject: sobre o artigo e otras cositas mas

Prezado professor Paulo Roberto,
Muito obrigada pela atenção no envio do artigo. Bons tempos o do glamour da rota Elizabeth Arden. Público e privado, conviviam "harmoniosamente", aliás, como hoje. O princípio republicano, fragilizado como anda, de repente, vira natural.
Professor, quanto à sua entrevista é maravilhosa, deu-me pistas para aprofundar aspectos da vida diplomática. Eu concordo com as críticas que fez ao final. Da minha parte,vou procurar estudar um segmento social, com sua s particularidades, historicamente construídas, porém, tentarei contextualizar as diplomacias nas respectivas sociedades. É um trabalho acadêmico não militante.
Professor, eu lhe peço o favor, se possível me elucidar pontos das suas respostas, tais como:
A) na questão 1, o sr. poderia me falar um pouco mais sobre a " herança que persiste", ela faz parte da cultura do MRE, não é?
B) Como é isso?; o que é essa herança?
C) Na questão 3 -Daria para me falar mais sobre o que chama de círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos "ocasionais", quando se refere aos comportamentos do MRE, quanto aos homens?
D) Poderia me falar mais sobre as famílias das embaixadoras/embaixatrizes ou de qualquer outro diplomata?

O aspecto da/s família/s é de extrema importância, neste estudo.
E) Na sua opinião, as famílias, têm a ver com um dos pilares de ascensão na carreira, no passado e hoje?
F) Seria, também, importante a família constituída pelo casamento?
G) Haveria diferenciação no peso de cada uma?
H) De que maneira se dão esses apoios familiares para a ascensão na carreia? 
I) No caso dos solteiros/as este estado, dificultaria a sua ascensão na carreira?
J) E no caso dos/as homossexuais?

Professor, se puder, gostaria imenso dessas suas opiniões.
Ainda não entrei nos links que sugere.
Enviei emails, assim que mos forneceu, para as senhoras diplomatas, porém até o momento, não obtive nenhuma entrevista. É assim mesmo, há receios inúmeros, quando não se conhece pessoalmente a pesquisadora, ainda que eu tivesse dado a minha garantia de anonimato.
Professor obrigada
abraços
Maria


Respostas de Paulo Roberto de Almeida em 25 de fevereiro de 2006:

A) Na questão 1, o sr. poderia me falar um pouco mais sobre a " herança que persiste", ela faz parte da cultura do MRE, não é?
PRA: A “herança que persiste” é a de que o recrutamento e da carreira serem, atualmente, “predominantemente” masculinos, depois de terem sido exclusivamente e essencialmente masculinos no passado remoto e até o segundo terço do século XX, pelo menos. Trata-se de uma “herança social”, mais do que “funcional”, como pode ocorrer nas carreiras militares, até recentemente dominadas exclusivamente pelo elemento masculino, mas que igualmente tendem a se diversificar, oficialmente na questão da admissão do gênero feminino, oficiosamente em relação a possíveis “desvios” do “padrão normal” de heterossexualidade ainda hoje predominante.
A carreira diplomática, diferentemente da carreira militar, não precisaria ser misógina, pelo menos não a partir dos anos 1930, quando a mulher conquista o direito de voto e de participação na política. E, no entanto, ela continuou não declaradamente misógina durante muito tempo, e deliberadamente misógina quando da formalização do concurso de ingresso via Instituto Rio Branco, em 1945 (o que teve de ser derrubado no STF em meados da década seguinte). Na seqüência, ela continuou moderamente anti-feminina, com diversos dispositivos atuando em desfavor da mulher nos casos de remoção e casamento dentro da carreira. Em favor do Itamaraty, diga-se que isso não constituia propriamente uma “cultura do MRE”, mas provavelmente da sociedade brasileira como um todo.
Esses “traços culturais” podem ter diminuido na fase presente, o que não impede a contínua subrepresentação da mulher na diplomacia, mas aqui a “misoginia”, suposta ou real, do Itamaraty não apresenta maior incidência prática. A despeito dos progressos realizados, a carreira continua predominantemente masculina porque nas inscrições e no número de aprovados nos concursos a mulher continua subrepresentada, não mais por discriminação, mas por expressão numérica fidedigna dos candidatos à carreira. Não tenho os números à disposição, mas suspeito que as mulheres constituam algo entre 25 e 30% dos candidatos à carreira, e depois constituam algo como dez ou 15 % das turmas do Rio Branco. Valeria checar os números dos últimos anos com o IRBr.

B) Como é isso?; o que é essa herança?
PRA: Creio que ficou explicitado nos comentários acima.

C) Na questão 3 -Daria para me falar mais sobre o que chama de círculo de relacionamentos e na disponibilidade para engajamentos "ocasionais", quando se refere aos comportamentos do MRE, quanto aos homens?
PRA: Trata-se de questão não exclusiva ao Itamaraty, mas característica de círculos relativamente fechados, que criam uma cultura própria e um intensa convivência social e familiar. Espera-se da mulher um comportamento irrepreensível, caso contrário sua imagem social pode ficar afetada. Quanto ao homem, considera-se “normal” que ela tenha aventuras ou que seja um galanteador, mesmo casado. Creio que esses elementos possam influenciar trajetórias de carreira, embora eles também possam ser utilizados pela mulher diplomata como alavanca de ascensão funcional, numa relação mais de tipo “mercantil”. No geral, não creio que eles determinem uma “cultura” própria ao Itamaraty, e sua influência é mais episódica ou individual do que propriamente social ou “ambiental”.

D) Poderia me falar mais sobre as famílias das embaixadoras/embaixatrizes ou de qualquer outro diplomata?
PRA: Há que distinguir entre as embaixadoras, a maior parte delas solteiras, descasadas ou divorciadas, e as embaixatrizes, que seriam simplesmente “acompanhantes” das carreiras de seus maridos. Não conheço “histórias de vida” de casais diplomatas, ou exempos de trajetórias de mulheres diplomatas ou de mulheres de diplomatas para discorrer a respeito. Creio que algumas entrevistas com as próprias representantes ajudaria na confecção de alguns “cases”, mas não sei se há cases típicos.
Em todo caso, o papel das mulheres de diplomatas hoje diminuiu sobremaneira, com a diminuição geral das recepções diplomáticas, como parece corresponder a uma certa imagem do diplomata belle époque.

O aspecto da/s família/s é de extrema importância, neste estudo.
E) Na sua opinião, as famílias, têm a ver com um dos pilares de ascensão na carreira, no passado e hoje?
PRA: Hoje menos do que no passado, inclusive porque a sociedade está mais tolerante com os comportamentos “desviantes”, ou seja os homossexuais assumidos.

F) Seria, também, importante a família constituída pelo casamento?
PRA: Aparentemente sim, mas não creio que o ingresso na carreira leve em conta, como no passado, o perfil familiar do candidato. Dependendo da banca de avaliação individual no ingresso, esse fator poderá ser mais ou menos considerado, isso se houver alguma banca de avaliação individual, o que por exemplo não ocorreu em 2005. Um membro de banca hipoteticamente homossexual poderá até favorecer o ingresso de “assemelhados” na carreira, ao passo que um membro homofóbico poderia, teoricamente, “vetar” um candidato “desviante”.
Da mesma forma, ao longo da carreira, grupos e clãs de “desviantes” podem se constituir ao longo da carreira, com um certo sentido de proteção grupal. No passado, membros do grupo mantinham extrema discrição, no presente os temores de discriminação são menores.
Não temos exemplos, ainda, de casais homossexuais, mas talvez o fenômeno não demore muito para se manifestar na carreira. Já existem diversos diplomatas militantemente adeptos da causa gay na carreira, o que não significa entretanto qualquer tendência em termos de mérito ou demérito relativos na carreira. O fenômeno ainda é novo.
Em todo caso, a situação familiar deixou de ser um critério relevante para fins de ascensão funcional ou sucesso na carreira.

G) Haveria diferenciação no peso de cada uma?
PRA: Não sei avaliar. Medido pela minha própria experiência, com família preservada ao longo da carreira, não creio que esse fator tenha sido relevante para o sucesso profissional. A maior parte da minha “turma” já se divorciou e outros se revelaram homossexuais, mas não creio que esse fator constitua uma diferenciação na carreira.

H) De que maneira se dão esses apoios familiares para a ascensão na carreia?
PRA: Existem, ainda, algumas “dinastias” – isto é, filhos de diplomatas – na carreira, e creio que isso pode ajudar em algum aspecto em determinados momentos da carreira. Da mesma forma, casamentos “endogâmicos” – isto é, de jovens secretários com filhas de embaixadores, o que parece mais comum – podem, em algum momento, contribuir para algum bom posto ou promoção, mas isso pode não ser preservado ao longo da carreira, pois alguns desses casamentos de “interesse” podem não se sustentar, ou o “protetor” pode vir a perder força ou sair da carreira. De toda forma, a carreira, como um todo, é feita de trabalho e de relações pessoais e sociais, o que indica que relações familiares podem contribuir para o sucesso na carreira, mesmo se o diplomata em questão não for dos mais brilhantes ou de melhor desempenho estritamente funcional.
As “dinastias”, aparentemente, já não são tão numerosas como o foram no passado, e os casamentos “endogâmicos” tendem a se processar, atualmente, bem mais entre pares do que na situação típica do “jovem diplomata-filha de embaixador”, tanto porque a carreira se ampliou e os contatos intimos diminuiram, sobretudo em Brasília. A carreira é hoje menos uma carreira “aristocrática” e mais uma carreira profissional, quase “normal”, com jovens de classe média, bem mais do que os típicos filhos da elite como no passado.

I) No caso dos solteiros/as este estado, dificultaria a sua ascensão na carreira?
PRA: Não tenho uma idéia formada a esse respeito, mas creio que a situação familiar do profissional diplomata é, hoje em dia, bem menos relevante em termos de desempenho na carreira. Não se percebe uma diferenciação na ascensão funcional entre os dois grupos.

J) E no caso dos/as homossexuais?
PRA: Um dos estereótipos mais comuns, fora do ambiente do Itamaraty, é o do diplomata gay, o que provavelmente não corresponde à verdade, mas talvez expresse uma dessas verdades de senso comum que tendem a perdurar. Existiriam mais gays na carreira diplomática do que em outras carreiras? Difícil dizer, mas o preconceito existe e se manifesta de diversas formas.
O fato é que há provavelmente maior “taxa de procura” pela carreira diplomática entre gays, do que no caso de outras carreiras, mas isso teria de ser objeto de pesquisa para eventual confirmação.
Em alguns momentos da história, grosso modo até os anos 1970, os gays podem ter sido discriminados, mas a partir de meados dos anos 1980 e sobretudo nos dias que correm acredito que isso não seja mais verdade. Estou me referindo a homossexuais homens, pois o caso das mulheres parece ser mais raro, ainda que existente. Neste caso, não tenho idéia de qualquer impacto na carreira, pois se trata de casos esparsos e pouco representativos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de fevereiro de 2006