Antes do início da era do Nunca Antes no Brasil, eu já me preocupava com as políticas que seriam colocadas em prática, e ousava contrariar o otimismo dominante: eu achava que o PT iria "salvar" a burguesia, e continuaria deixando as crianças pobres na mesma situação, e com uma educação deplorável.
Aparentemente fui desmentido durante um bom tempo, enquanto vicejavam favores para os pobres e dezenas de políticas ditas sociais, mas parece que a realidade se encarregou de me confirmar em meus temores mais evidentes, no final de 2002, ou seja, antes mesmo que começasse o reino dos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida
Pensando
adiante: como a nova maioria salvou a burguesia e todos os seus bens
(advertência
preventiva)
Paulo Roberto de Almeida
Sou um amigo, simpatizante e mesmo um promotor ativo da causa
transformadora do Brasil, isto é, do partido da “reforma social profunda”,
ainda que não seja membro efetivo de nenhum partido, seita ou agrupação
política ou religiosa. Minha adesão à reforma é, contudo, total e de nenhuma
forma subscrevo às velhas maneiras de fazer política, assim como não me
considero neoliberal ou ainda um reformista “abstrato”. Como qualquer outro
brasileiro engajado no movimento mudancista, portanto, recebi como extremamente
auspiciosa a vitória do partido da reforma e aguardo com muitas expectativas
otimistas a assunção da nova maioria e sua implementação dos projetos de
reforma anunciados durante tanto tempo.
Apenas acontece que, ademais de simpático à causa da mudança,
sou também um bom observador da realidade política e, acima tudo, um
“racionalista” em políticas econômicas, uma vez que minha experiência de
observador social indica que certas aventuras econômicas redundaram em
indizível sofrimento para as camadas mais humildes da população, geralmente por
via do imposto inflacionário e por políticas redistributivas altamente
regressivas do ponto de vista dos que mais necessitam (usualmente via
“serviços” educacionais e previdenciários que se dirigem aos mais
privilegiados). Por isso, tomei a iniciativa de registrar no presente texto
“prospectivo” algumas reflexões preventivas que – a despeito de não serem
destinadas a publicação – se dirigem aos que, como eu, seguem a atualidade
política e pretendem contribuir para a manutenção dos compromissos com a
mudança, de uma maneira responsável e sensata, preservando equilíbrios
econômicos fundamentais mas avançando no sentido de diminuir os graus
anormalmente elevados de iniquidade social que ainda caracterizam a Nação
brasileira.
Os pontos que se seguem não observam nenhum ordenamento
particular, mas são indicativos de um cenário que está sendo implementado
gradualmente, qual seja, o discurso pré-posse, a atitude voluntarista na
assunção ao poder, a atuação de velhos e novos grupos de interesse em direção
da nova maioria, a reação dos velhos militantes e comprometidos com o “projeto
nacional”, os resultados esperados das políticas implementadas, e as conclusões
práticas que podem ser tiradas preventivamente dessa movimentação excepcional a
que está assistindo a sociedade brasileira. Finalmente, permito-me formular
algumas recomendações genéricas que refletem minha própria visão do mundo e que
servem como fecho a um texto que pretende continuar sob reserva até nova
conferência dentro de algum tempo (2 ou 4 anos a partir de dezembro de 2002).
1. Mudou o mundo,
mudou o Brasil e mudou o partido: nessa ordem?
O Brasil assistiu, em meados de 2002, a uma das mais
importantes mudanças políticas já ocorridas na história republicana, movimento
que tentei captar nos textos de meu livro A
Grande Mudança (São Paulo: Códex Editora, 2003). Ocorreu aquilo que os marxistas
chamariam de transformação da “superestrutura política da sociedade”,
colocando-a em compasso mais afirmado com sua infra-estrutura social. Essa
mudança relevante tem sido apresentada, pelos principais protagonistas, como
uma “conseqüência natural” das transformações em curso no mundo e no próprio
Brasil, mas quero crer que ela é, antes de mais nada, o resultado de uma
mudança de atitude e de mentalidade das próprias lideranças políticas que agora
converteram-se na nova maioria social e política da Nação.
Em outros termos, a conversão à responsabilidade fiscal, as
declarações de respeito aos contratos e o novo realismo nas relações com o FMI,
para citar três exemplos dessa mudança paradigmática, não foram ditadas pelas
circunstâncias externas, que não se alteraram dramaticamente nos poucos meses
de campanha eleitoral presidencial. Ou, se mudança houve, ela foi no sentido do
aprofundamento da “crise da globalização”, de uma acrescida dependência do
Brasil dos “mercados financeiros globalizados”, de um sensível agravamento da
nossa “fragilidade financeira externa”, ou seja, em todos aqueles elementos que
figuravam no lado perverso do figurino da “ruptura”, ainda proclamada no último
encontro oficial do partido mudancista.
Cabe registrar, em todo caso, a bem-vinda mudança de atitude,
que constitui o primeiro passo na direção de novas responsabilidades
governativas, o que só pode ser saudado de maneira otimista. O que se espera
agora é que essa mudança de atitude se traduza em atos concretos no sentido da
mudança de cenário social com preservação da estabilidade macroeconômica e da
continuidade da inserção do Brasil no sistema internacional globalizado, pois
foi esse o mandato recebido nas urnas. A conferir, portanto.
2. O que fazer com a
memória do passado?: as virtudes do autocontrole
As declarações de mudança não bastaram, contudo, para
instilar confiança nos “mercados”, que continuaram a atribuir notas baixas ao
chamado “risco Brasil”, com uma deterioração lamentável do valor da moeda e dos
títulos de crédito brasileiro negociados externamente (e conseqüente elevação
dos prêmios para renovação de crédito). Em virtude desse fenômeno, muito bem
percebido pela nova equipe dirigente, passou-se a ostentar tremendo
autocontrole, com poucas declarações públicas no sentido daquelas teses antes
proclamadas como integrando o menu da ruptura: redução dos juros, políticas
setoriais ativas, medidas redistributivas e de correção de “desequilíbrios”
sociais ou regionais, enfim, a panóplia de iniciativas de tipo voluntarístico
que denotavam a tendência, consciente ou inconsciente, de “querer fazer algo”
para corrigir as tremendas iniquidades que obviamente ainda caracterizam o
cenário social brasileiro.
Há, todavia, uma tendência latente a “resolver” esses
“problemas urgentes” via implementação de políticas ativas em vários setores de
notórias carências sociais e, de fato, a componente “social” do novo governo
cresceu bastante em relação à estrutura administrativa existente até então, com
as previsíveis novas fontes de pressão sobre o orçamento. Resta saber se a
política do “pau na máquina” permite, efetivamente, resolver os problemas que
se pretende encaminhar por via administrativa. Alimentar os carentes, por
exemplo, é uma tarefa gigantesca e auto-perpetuadora, com dispêndio de recursos
nos meios – cadastro, distribuição física e controle dos resultados – e uma ingente
repetição dos mesmos “remédios” em todas as fases do processo. Existem
certamente formas mais eficientes de se despender o dinheiro público, atuando
talvez na “produção” de emprego e na “criação” de renda de maneira a gerar um
circulo virtuoso no próprio processo produtivo, não necessariamente na demanda
agregada (elogiável e keynesianamente correta, mas de difícil sustentação em
condições de precário equilíbrio orçamentário).
Um pouco de auto-contenção seria recomendável nesta fase de
testes.
3. Os novos “amigos do
social”: atenção com os aliados
Todo governo tem amigos sinceros, os de sempre (e
conhecidos), um imenso contingente de novos amigos, pouco sinceros e de fato
oportunistas, e um número indeterminado de novos lobistas em favor de alguma
“causa importante”. Na verdade, se trata dos velhos lobbies do passado, mas reciclados em “amigos do social”, mas que
são ainda mais amigos do poder e de suas inestimáveis possibilidades de
distribuição de recursos. Basta conferir uma agenda de endereços ou a lista de
chamadas telefônicas registradas pela secretária para verificar como a mesma
fauna se reproduz nos mesmos gabinetes, agora sob responsabilidade de novos
ocupantes, pouco afeitos a esse tipo de manobras em favor de políticas ativas
em tal ou qual setor.
Mesmo entre os velhos amigos, existem aqueles unicamente
preocupados em reivindicar a “recuperação das perdas do passado”, o que promete
uma irônica inversão de papéis entre velhos e novos guardiães do Tesouro.
Velhos acadêmicos por certo retomarão o antigo slogan sobre a necessidade de um governo que se ocupe de “algo além
da estabilidade monetária”, o que também não deixa de ser incômodo do ponto de
vista ideológico. Configura-se, portanto, uma pressão irreprimível pela
conformação de políticas setoriais ativas e pela “restauração” de vários
segmentos sociais “massacrados” por anos de política austera e insensível.
Todos – industriais, agricultores, universitários, cientistas, funcionários,
aposentados, artistas, coletores de frutas nativas – têm uma causa a defender,
que geralmente se confunde com o interesse nacional ou com alguma prioridade
estratégica do ponto de vista do emprego e da renda agregada. Difícil resistir.
4. A turma do “Projeto
Nacional”: o que fazer com ela?
Justamente, falando de interesse nacional, existe uma
categoria especial de formuladores do destino pátrio que invariavelmente se
reflete nas lamúrias em torno da falta de um “projeto nacional”. Ele pode ser
setorial – no terreno científico e tecnológico, por exemplo – ou pode mesmo ser
global, como algumas velhas receitas acadêmicas (geralmente anti-globalização)
recomendam. Em qualquer hipótese, é promessa de dias e dias, noites e noites, meses
de discussão acalorada para uma “proposta de consenso”, geralmente um grosso
calhamaço com muitos pontos de dissenso e várias generalidades que ainda
necessitarão detalhamento operacional e (sobretudo) quantificação orçamentária.
Alguém tem idéia de quantos “projetos nacionais” existiram na história do
Brasil (no regime republicano obviamente)? Eles foram registrados, têm copyright ou, pelo menos, funcionaram na
prática? Foram de baixo para cima – alguém é capaz de citar um? – ou de cima
para baixo (ao estilo varguista)?
Enfim, sempre existirão os que acham absolutamente
indispensável dispor de um projeto nacional antes de passar à ação. Que seja: o
pacto social está aí para isso mesmo e pode-se mesmo trabalhar de maneira
concreta, com idéias registradas e prontas para serem testadas, mediante um
conselho de desenvolvimento econômico e social que precisa ser representativo
de todos aqueles setores que “contam” (no PIB e na opinião pública). Um pouco
de utopia não faz mal a ninguém e ela existe precisamente para impulsionar
novas idéias, mobilizar iniciativas e energias e permitir um grau superior de
esforço concentrado em favor de algum objetivo transcendente.
Tudo depende de bem determinarmos em que direção deve incidir
esse esforço. Eu, por exemplo, proponho que ele incida prioritariamente sobre a
escola pública nos dois primeiros níveis e no ensino técnico
profissionalizante: como melhorar sua qualidade, como introduzir mecanismos de
aperfeiçoamento e de avaliação contínuos dos professores, como aumentar os
recursos para o ensino em todos os níveis. De modo geral, não recomendaria que
se fizessem esforços no setor produtivo, pois aqui as possibilidades são
propriamente infinitas e a iniciativa privada pode fazer melhor que qualquer
governo.
5. Medindo resultados
antes que eles aconteçam: um pouco de futurologia
Se ouso praticar um pouco de astrologia social, meu ceticismo
natural – que não é doentio, mas geralmente desconfiado das virtudes dos
governos, talvez por anarquismo – indicaria que as energias e esforços da nova
maioria social vão acabar reproduzindo as preferências das coalizões
organizadas em torno do governo, cujo perfil não é difícil adivinhar. Pode-se
esperar, assim, várias “políticas ativas” em setores considerados estratégicos
do ponto de vista econômico (com ênfase na indústria), do desenvolvimento
tecnológico, da defesa da soberania do País, enfim, aqueles que lograrem
transmudar-se em projetos coerentes e quantificados. A peça orçamentária de
2004 começará a refletir essa nova realidade, que cabe portanto seguir com um
certo grau de detalhamento no curso dos próximos meses. Estarei sendo pessimista?
6. Tirando minhas
conclusões: conseguiremos nos lembrar das crianças?
Se ouso ser realista – ou estarei sendo apenas maldoso? –,
diria que a nova maioria social conseguirá, ao cabo de três ou quatro anos de
políticas ativas, salvar a burguesia e todos os seus bens (industriais e
banqueiros reunidos no mesmo partido reformista). Os antigos ganhadores
continuarão ganhando numa situação de mudança que será lenta, gradual e
restrita, e os antigos perdedores continuarão perdendo relativamente, ainda que
com direito a discurso e afagos desta vez.
Quem são os perdedores? Do meu ponto de vista são as crianças
em geral, as crianças pobres em particular, que necessitariam de quatro vezes
mais recursos do que o disponível atualmente para mantê-las bem alimentadas,
vestidas e provistas de livros nas escolas que deveriam funcionar em turnos
ampliados. Não há maneira de resolver, agora, o problema dos adultos pobres,
mesmo analfabetos e sem emprego, pois o dispêndio teria de ser então muito
maior, para resultados duvidosos no terreno da prática. O investimento nas
crianças não produz, obviamente, resultados em quatro anos, talvez em dez ou
quinze, mas se não começarmos agora não teremos resultado algum nem em quatro
ou em oito anos.
Não gostaria de, ao retomar este texto em quatro anos, chegar
à conclusão de que a burguesia vai muito bem, obrigado, no novo Brasil, e que
as crianças pobres continuam, sim, existindo como antes, “a despeito dos
esforços conduzidos”.
7. Uma proposta
modesta: que tal, por uma vez, nos ocuparmos dos pobres?
A mudança social no Brasil deveria começar por objetivos
muito modestos, quase que prosaicos em sua simplicidade governativa: coloquemos
todas as crianças em escolas de qualidade, façamos um esforço brutal na
formação e treinamento de professores (bem remunerados obviamente) e
acompanhemos essas crianças em direção de estágios mais avançados de formação,
não necessariamente no caminho do ensino superior, mas do ensino médio de igual
ou melhor qualidade que a melhor das escolas primárias no Brasil e dos cursos
de capacitação profissional que, melhor do que os “canudos”, contribuirão para
incorporar ao mercado de trabalho imensos contingentes de cidadãos brasileiros
hoje excluídos de qualquer possibilidade de aumento de renda e de bem estar.
Reputo essencial que esse esforço concentrado se faça, à
frente e acima de quaisquer outras prioridades “setoriais” do novo governo,
pois ele é a única garantia de que, dentro de quatro ou oito anos, o panorama
social brasileiro comece de fato a ser transformado no sentido pretendido pela
nova maioria. Não tenho certeza de que o famoso coeficiente de Gini (que mede a
concentração da renda) – teimosamente estacionado em patamares vergonhosos
durante os últimos anos, ou décadas, de baixo crescimento econômico – será
alterado de forma dramática ao cabo desse esforço concentrado, mas tenho sim
certeza de que ele não se modificará se nada for feito no terreno educacional e
da capacitação profissional.
Anexo: Pensando um
pouco adiante: como conciliar políticas sociais e políticas setoriais na
administração da nova maioria.
Para não terminar de maneira pessimista, gostaria de
reafirmar minha confiança na capacidade da nova administração em conduzir o
processo de mudança no sentido apontado acima, com a preservação da
estabilidade econômica e da abertura econômica internacional, que considero
indispensáveis à consecução dos demais objetivos sociais.
O problema que vejo na consecução das metas transformistas se
situa na própria concepção do processo governativo que parecem ostentar
determinados setores da nova maioria. Essa concepção se situa na linha de
continuidade do Estado interventor, na mentalidade de que o governo “precisa”
corrigir, redirecionar, estimular determinados impulsos “naturais” dos mercados,
de molde a poder criar um ambiente mais “propício” ao crescimento econômico com
desenvolvimento social. Longe de mim proclamar uma volta ao laissez-faire e a concepções doutrinais
típicas de um liberalismo impraticável nas modernas condições do jogo econômico.
Mas denoto uma inclinação espontânea dos principais responsáveis políticos da
nova maioria por um tipo de ação que faça do Estado uma entidade capaz de
orientar o mercado na direção das “boas políticas” setoriais (elas só podem ser
setoriais, pois os mercados normalmente são segmentados), o que redunda na
inevitável concentração de recursos públicos nos setores politicamente mais
ativos (que nunca são, obviamente, as crianças pobres, mas marmanjos fortes e
espertos).
Talvez um critério simples possa permitir separar as
políticas “necessárias” daquelas que são apenas “complementares” ao objetivo
principal, que suponho ser o da diminuição da desigualdade social, não a
transformação do Brasil em grande potência econômica, tecnológica ou mesmo
militar (condições que serão sempre decorrência dos investimentos educacionais,
não suas fontes primárias). Esse critério seria o de que, na formulação das
políticas setoriais, atenção especial deve ser dada aos efeitos que tais
investimentos terão na disseminação de políticas horizontais de igualdade de
chances. Em termos concretos e para citar apenas um exemplo, algum acréscimo de
investimentos na educação de terceiro grau teria de ser pensado na perspectiva
de seus efeitos sobre os ciclos iniciais de ensino público, em suas diversas
vertentes, diretas e indiretas. Não é obviamente fácil determinar o grau de
“inclusividade educacional” de determinadas ações do “Estado indutor”, na
medida em que essa indução se prende a objetivos diretamente produtivos, mas um
pouco de treino e algum bom-senso podem ajudar.
Em todo caso, deixo aqui registrado (ainda que de forma
reservada e não destinada a publicação) o meu pensamento geral – contra
políticas setoriais muito ativas por parte do Estado, em especial contra
políticas intervencionistas no setor produtivo – e o meu pensamento particular
– a prioridade absoluta para o ensino público de qualidade e o apoio às
crianças pobres – neste início de um novo governo que promete, mais do que em
qualquer outra época da história nacional, transformar o Brasil de maneira
radical no curso dos próximos quatro ou oito anos. Não podendo eu mesmo
contribuir diretamente – por especialização profissional de origem ou falta de
oportunidade administrativa – para esse processo de mudanças, pretendo
registrar escrupulosamente, de maneira honesta e objetiva, a substância mesma
do movimento mudancista e oferecer, ao cabo daqueles prazos, uma avaliação
ponderada sobre os resultados alcançados.
Os dados estão lançados: rendez-vous
na primeira etapa de balanço da nova situação.
Washington, 984: 16 e 17 novembro 2002;
revisão,
atualização: 29 dezembro 2002
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