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domingo, 15 de maio de 2016

Um anarco-diplomata fala sobre a diplomacia em tempos não convencionais - Paulo Roberto de Almeida


O Itamaraty e a diplomacia profissional brasileira em tempos não convencionais

Paulo Roberto de Almeida
 [Entrevista concedida por escrito ao Jornal Arcadas (http://www.jornalarcadas.com.br/), sobre aspectos da carreira e do funcionamento do Itamaraty na fase recente.] 

1) Ministro, o senhor tem um trabalho conhecido de trazer o debate da diplomacia para a sociedade com seu blog, o Diplomatizzando, que se tornou como que uma referência informal na área para postulantes ou interessados nos caminhos do Itamaraty, já que poucos diplomatas adotam a mesma postura. O que o motivou a criar o blog?  




PRA: Sou um rato de biblioteca, desde antes de aprender a ler, na “tardia” idade de sete anos, e sempre fui um leitor inveterado, adepto dos meios tradicionais de leitura, pesquisa, redação, etc. Mas acompanho, ainda que tardiamente, os meios modernos de comunicação e informação. Como também escrevo, e publico muito, mais em veículos tipicamente acadêmicos do que livros comercialmente editados, comecei a receber, por e-mail,  muitas consultas, desde que meus primeiros escritos públicos – geralmente sobre integração comercial, em especial o Mercosul – começaram a circular. Dada a repetição das perguntas, e a necessidade de atender a todas as curiosidades e demandas, comecei inicialmente a utilizar espaços públicos gratuitos – tipo Geocities e outros – para hospedar textos meus em livre disponibilidade de forma a satisfazer a demanda, sem precisar a cada vez preparar uma resposta exclusiva.
Daí, quando a produção começou a crescer em volume e diversidade, resolvi fazer meu próprio site o www.pralmeida.org – para atender os mesmos objetivos, o que deve ter ocorrido em torno de 2000, numa época, portanto, de cyberspace já consolidado e atuante. Ocorre, porém, que um site, no sentido convencional de sua formatação, é sempre mais complicado de manter, de atualizar, e de organizar, do que os formatos mais ou menos prêt-à-porter que já começam a ficar livremente disponíveis e abertos em provedores comerciais mas oferecendo esses serviços gratuitamente.
Foi assim que comecei, em torno de 2003-2004, a colocar materiais mais leves num blog, hospedado em blogspot, que logo revelou-se bem mais prático para carregar textos e outras informações do que o site original. Na verdade, incompetente como sou na manipulação de todos os recursos disponíveis nessas ferramentas, acabei abrindo diversos blogs sucessivamente ou paralelamente, visando alguma especialização ou dedicação exclusiva para cada um deles. Os objetivos eram sempre os mesmos: carregar e tornar disponíveis textos meus ou de terceiros suscetíveis de preencher meus próprios critérios de informação e de debate intelectual: livros, cultura, relações internacionais, política externa do Brasil, economia e políticas públicas, com algum narcisismo (ou seja, divulgação própria) misturado nesse conjunto. Enfim, divertimento puro.
O Diplomatizzando é o sucessor, o herdeiro, e atualmente praticamente o único de meus muitos blogs criados, mantidos ou interrompidos desde 2003, e não se prestava inicialmente, como ainda não se presta hoje, à preparação ao ingresso de candidatos à carreira diplomática, ainda que eventualmente possa se prestar também a esse objetivo. Digo que não se destina a esse objetivo, pois não está concebido didaticamente para fazê-lo, sendo mais uma assemblagem, ou um ajuntamento altamente dispersivo de materiais diversos que podem tocar, tangencialmente ou ocasionalmente, no núcleo de requerimentos que compõem os exames de ingresso no Itamaraty.
Existe ainda uma razão ainda mais forte, sendo absolutamente sincero, para que o Diplomatizzando não seja visto em conexão com esse objetivo. É que sendo o Itamaraty uma instituição bastante convencional, com seu ritual e regras próprias de funcionamento, com um “corpus” ideológico mais ou menos sedimentado de opiniões e de posições, e sendo eu uma espécie de “anarco-diplomata”, totalmente livre em minhas opiniões e posicionamentos – que não necessariamente coincidem entre si – poucas de minhas posições e opiniões expressas em textos próprios coincidem exatamente com o que pensa a Casa, como dizemos em nosso jargão. Essa distância tornou-se ainda muito grande nos últimos treze anos e meio, quando o Itamaraty foi dominado, submergido e manietado pela ideologia nefasta do lulopetismo, uma assemblagem anacrônica de ideias confusas a respeito do mundo e da política mundial, especialmente desajustada nos temas econômico-comerciais, e que muito fez para infelicitar o desempenho de uma diplomacia que sempre foi considerada de qualidade acima da média, e tida por sólida em termos técnicos, consistindo numa espécie de consenso nacional em torno de grandes objetivos nacionais baseados no direito internacional e em valores e princípios que remontam ao século XIX ou início do XX: Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e outros. Acresce que a diplomacia partidária do PT foi especialmente nefasta em face desses valores e princípios, levando o Brasil a se alinhar a um grupo de ditaduras ridículos e de regimes deploráveis, em termos de democracia, direitos humanos, globalização e outras questões relevantes.
Nos últimos anos, creio que meu blog Diplomatizzando foi uma espécie de quilombo de resistência intelectual a todas essas más ideias e péssimas práticas da diplomacia partidária dos lulopetistas, sendo eu considerado um dissidente dentro da comunidade dos diplomatas. Pode ser, assim, que o blog tenha se tornado um espaço de informação independente, mais confiável que certos porta-vozes da diplomacia oficial na era lulopetista, mas isso foi totalmente involuntário, e apenas o resultado de minha inconformidade com o curso tomado pela diplomacia partidária do lulopetismo.
Em resumo, eu hesitaria em classificar o Diplomatizzando como referência nos estudos preparatórios para a carreira diplomática, pois ele não tinha, não teve, e não tem esse objetivo, e não oferece, justamente, o “prato feito” dos dogmas oficiais em matéria de informação adaptada aos requerimentos dos concursos. Candidatos, portanto, tomem a sério a advertência que figurava numa casa de Pompeia: Cavec canem, cuidado com o cão. No meu caso, cuidado com o que vocês leem no Diplomatizzando: nem sempre ali está o argumento ideal para responder a uma questão qualquer dos exames de ingresso, que são sempre mais convencionais, e conformistas, do que minhas próprias posições.

2) Ainda no tema da comunicação, o Itamaraty recentemente vem tentando se remodelar, com o blog Diplomacia Pública e perfis ativos em mídias e redes sociais. Como enxerga a relação do Itamaraty com a sociedade hoje, a partir da necessidade de se comunicar de forma mais horizontal?




PRA: Creio que é absolutamente indispensável, a qualquer serviço diplomático digno desse nome, alinhar-se aos maios modernos meios e ferramentas de informação e de comunicação, e o Itamaraty deve, sim, dedicar esforços e capital humano a essa área relevante da comunicação pública. Mas, como sempre digo, com meu anarco-liberalismo radical, sempre se tratará do discurso oficial, da voz de seu mestre, da verdade do momento, ou aquela que convém ao governo. Cabe, portanto, a qualquer estudioso buscar fontes independentes de informação e análise.

3) Tendo ingressado no Itamaraty quando este ainda era tido como estereótipo de glamour palaciano, como o senhor enxerga a expansão das fileiras do Ministério e a mudança do perfil do diplomata ao longo de seus anos de serviço?




PRA: De fato, o serviço exterior brasileiro democratizou-se tremendamente no curso das últimas duas décadas, quando requerimentos de ingresso, expansão do próprio serviço exterior, atração da carreira para frações cada vez mais amplas da sociedade e da comunidade universitária, enfim, uma série de fatores – a que não estão ausentes fatores objetivos e independentes do governo ou do Itamaraty, como a globalização, por exemplo – que se combinam para ampliar o espectro tradicional de recrutamento de capital humano para a carreira. Ela é bem mais diversificada, socialmente, etnicamente, ideologicamente, hoje, do que nas décadas anteriores ao deslanchar da terceira onda de globalização, no início dos anos 1990.
Quando ingressei no Itamaraty, no final de 1977 – aliás, por um método não convencional, um concurso direto, e não os vestibulares para o Instituto Rio Branco – o recrutamento se fazia quase de forma endogâmica, a partir de das duas grandes capitais culturais do país, Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio Branco mudou-se do Rio para Brasília apenas em 1975, e data dessa época um lento processo de mudanças que foram criando um novo perfil de diplomatas e de outros funcionários do serviço exterior em Brasília e a partir de Brasília, que tornou-se, provavelmente, uma grande provedora de candidatos à carreira (inclusive pela consolidação do curso de relações internacionais na UnB, e pela constante interação entre seus professores e o Itamaraty).
Não creio que antes dessa época, digamos no Rio de Janeiro, até o final dos anos 1960, se tratasse de um “glamour palaciano”, mas é um fato que muitos diplomatas seniores dessa época vinham de certa tradição belle époque, de modelos britânicos ou franceses de diplomacia, de certo comportamento reflexo com instituições tradicionais de outros países, sobretudo europeus. Mas o próprio processo de democratização do Brasil, a partir do regime militar e com a transferência para Brasília, resultou em aportes novos tanto à carreira quanto aos padrões comportamentais e de trabalho do Itamaraty. A grande expansão internacional do Brasil, abertura econômica, liberalização comercial e o processo já referido de globalização fizeram o resto, e o serviço diplomático perdeu sua aura de exclusivismo elitista para se converter num modelo de burocracia estatal relativamente convencional, com padrões weberianos que foram se disseminando em outras esferas do serviço público brasileiro. Paulatinamente, com a disseminação das pós-graduações no exterior, e o manejo de línguas por outros funcionários públicos, o Itamaraty também perdeu sua preeminência no trato dos assuntos internacionais setoriais, uma vez que outros ministérios passaram a estar melhor capacitados para negociações, podendo prescindir – em certos casos com certo prejuízo até – dos diplomatas para a consecução de programas de cooperação externa em várias áreas. Em outros termos, nós, diplomatas, deixamos de ser indispensáveis ou imprescindíveis.

4) Os recentes cortes de orçamento e a diminuição da voz do MRE no planalto tem afetado o corpo diplomático das mais diversas formas, indo de atrasos nos aluguéis e contas nas representações à criação de entidades de classe. Como o senhor enxerga os impactos dessa crise?




PRA: A negligência dos dois mandatos – um e meio, de fato – de Dilma Rousseff, do ponto de vista do Itamaraty, foi devastadora para antigos padrões de um serviço de qualidade, atingindo, até mais do que o apoio material e financeiro, a autoestima dos diplomatas pelo seu trabalho profissional, tantas e tamanhas foram as carências registradas, o desprezo demonstrado pela chefe de Estado agora afastada do poder, pelos requerimentos e necessidades próprias do serviço exterior brasileiro. Não quero dizer que os anos Lula tenham sido de satisfação plena, uma vez que, a despeito de recursos e meios relativamente satisfatórios com que fomos brindados, a diplomacia tradicional sempre sentiu, ou ressentiu, essa interferência de amadores em temas de relativa complexidade diplomática, ou até a imposição de iniciativas amadoras e posturas claramente em contradição com as tradições do Itamaraty e até com princípios constitucionais (como, por exemplo, a não intervenção nos assuntos internos de outros países, uma vez que Lula foi useiro e vezeiro no sentido de apoiar vários candidatos esquerdistas de sua preferência em disputas presidenciais vizinhas).
Mas a arrogância, ou talvez a mesquinhez, da sua sucessora constituiu um fator importante na desafeição quase completa que o corpo funcional do Itamaraty, com exceção de alguns poucos oportunistas, tinha vis-à-vis a chefe de Estado afastada. De minha lembrança – e eu convivi com crises cambiais bastante fortes no decurso de minha carreira, a crise da dívida de 1982, a moratória de 1987, que se estendeu até o início da década seguinte, as crises financeiras do final dessa década e do início do milênio – nunca enfrentamos uma crise tão grave como esta, não apenas do ponto de vista financeiro, como a que passamos a enfrentar desde o início da década, e especialmente nos dois últimos anos. Espero que a descida para o abismo termine agora, com o novo governo, que recém está se instalando, inclusive no Itamaraty.

5) Começando na expansão sob o Chanceler Amorim e nas turmas de 100, passando por um projeto de expansão e afirmação da presença brasileira no cenário internacional, chegando à retração e à crise de hoje, qual o senhor pensa que será o legado do projeto de MRE dos governos do PT para o Brasil? 



PRA: Como sempre existe uma enorme diferença entre o fato e a versão. A versão que temos atualmente do regime militar, por exemplo, é aquela que é geralmente transmitida pelos opositores do regime, esquerdistas derrotados em suas pretensões políticas, mas altamente bem sucedidos no plano intelectual e acadêmico. Os anos do lulopetismo foram desenfreados, não apenas em termos de ativismo político e social, inclusive internacional, mas sobretudo no plano propagandístico. Nunca antes no Brasil um governo gastou tanto em autopublicidade quanto o fez o regime lulopetista, e isso alcançou igualmente a política externa e a diplomacia. Eles construíram a sua versão da história, e ela pode emplacar: “nós fomos mais ativos, nós fizemos mais justiça social”.
Não podemos, por certo, recusar seu ativismo exemplar, sob a condução do mais longevo chanceler da história diplomática brasileira, Celso Amorim, um funcionário muito bem preparado no plano técnico e intelectual, mas absolutamente fiel aos propósitos e objetivos do Partido dos Trabalhadores e especialmente aos de seu chefe carismático, por ele chamado de Nosso Guia. Sou suspeito para me pronunciar sobre esse legado, uma vez que mantenho uma opinião bastante contrária a muito do que foi feito nesses últimos trezes anos e meio de lulopetismo, do bom, do mau e do feio (e até do desconhecido, pois este é também um aspecto que não devemos descurar). Reconheço o ativismo, a forte presença internacional do Brasil, ainda que condene métodos e objetivos, como já expressei em diversos dos meus escritos publicados.
Não pretendo aqui oferecer um balanço desses anos que classificaria de dissonância e ruptura com nossos padrões habituais de trabalho, tanto porque já resumo o que penso em um dos meus livros mais recentes: Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014). Ali figuram todas as minhas considerações críticas sobre esses anos nefastos do lulopetismo diplomático. Mas reconheço que sou não apenas minoria no Itamaraty, mas sobretudo minoria reduzidíssima nos meios acadêmicos, onde a satisfação com a política externa dos companheiros é proverbial. Agora que essa época parece perto de se encerrar, e ainda que as mentalidades não se tenham alterado significativamente, penso talvez oferecer um balanço ainda mais sincero do que o já oferecido nesse livro.

6) Tomando o cenário que temos hoje no Brasil, diversos veículos da mídia alegam que a polarização nacional tem atingido também atingindo o Itamaraty, comprometendo a notória neutralidade do Ministério. Acredita haver fundamento para isso?



PRA: Absolutamente sim. O Ministério foi de certa forma domado pelos companheiros, e mesmo quando diplomatas profissionais procuraram pautar seus trabalhos pelos mais rigorosos padrões profissionais – de isenção política, de apartidarismo, e de adesão a alguns cânones cultivados na Casa – todos poderão reconhecer que determinadas iniciativas ou tomadas de posição poderiam ter adotado outras vias ou outra formatação diplomática se observados as características que sempre marcaram nosso desempenho técnico. Eu não usaria o conceito de polarização, como ele existe em outras esferas do setor público ou na sociedade civil, pois a maior parte dos diplomatas guardou o velho espírito da instituição; caberia talvez apenas o de submissão a certas decisões previamente tomadas fora do Itamaraty, obedecendo mais às simpatias ideológicas – e até a certos compromissos obscuros – do lulopetismo do que à opinião comum dos diplomatas profissionais ou aos interesses nacionais em sua totalidade. A partidarização da diplomacia brasileira fez muito mais mal à política externa do Brasil do que à própria instituição, que agora vai provavelmente voltar a seus padrões usuais de trabalho e de formulação de políticas.

7) Seguindo o momento político do país, debate-se também qual o modelo ideal para o Itamaraty. De especulações sobre um MRE de Temer a reformulações necessárias para equilibrar as finanças da pasta, quais o senhor considera como as prioridades que uma reformulação deveria ter em mente?



PRA: Trata-se de assunto por demais complexo para ser tratado no âmbito de uma entrevista como esta, inclusive porque envolve definições maiores de políticas e de organização e métodos de trabalho que não cabe abordar num espaço aberto como este. As finanças do Itamaraty são um assunto basicamente técnico, sobre o qual não deveriam pairar maiores dificuldades atendidas as necessidades da instituição, aliás bastante modesta no conjunto dos orçamentos públicos. De resto, não existe modelo ideal de funcionamento para a Casa, pois isso depende de certa competência técnica, mas sobretudo de uma reflexão independente – de diplomatas e alguns gestores externos – que possa ser feito no plano dos procedimentos e métodos de trabalho, que precisam estar adaptados às características específicas do Itamaraty. Já participei de um grupo de trabalho com tal objetivo, justamente na era FHC, a de maior modernização e abertura não só da diplomacia como do próprio Brasil, e creio que se poderia convocar um novo exercício nos mesmos moldes.
As reformulações mais importantes, porém, devem ser feitas no próprio âmbito da política externa, e elas serão feitas, mas não me cabe agora opinar sobre seu sentido ou orientações específicas. Fica a sugestão para uma entrevista futura.

8) Com as recentes mudanças políticas na região da América do Sul, o projeto de Mercosul acabou se estagnando ainda mais. Além disso, diversos fatores, como crises políticas e econômicas, tem mostrado a fragilidade da integração Sul-Sul e dos BRICS como força política. É quase consenso que o Brasil precisa repensar a forma como enxerga a integração regional e internacional e os blocos. Como o senhor acha que essa reflexão deve ser feita?



PRA: Concordo em que a saída dos companheiros do poder, e o abandono dos mais anacrônicos objetivos diplomáticos que eles representavam, oferece uma nova oportunidade para repensar diferentes vetores de nossa política externa e determinadas prioridades de nossa diplomacia. Mas seria muita ousadia e pretensão de minha parte ensaiar opiniões pessoais sobre como deve ser a diplomacia do novo governo. Mesmo que eu tenha ideias a respeito – e certamente tenho muitas – não caberia expressá-las aqui. Oportunamente, e se me for dada oportunidade, expressarei minhas opiniões, de resto já delineadas em diversos dos meus trabalhos publicados, mas prefiro reservar-me no momento, que é de início de uma nova etapa em nossa interface externa (e interna também).
Em qualquer hipótese, considero totalmente válido o dispositivo da Lei do Serviço Exterior que comanda certa reserva aos funcionários em relação à política externa corrente. Não pretendo ultrapassar os limites da expressão pública. Talvez eu me retire novamente para escrever sobre o passado de nossa diplomacia econômica, desta vez um segundo volume à série iniciada por Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (São Paulo: Senac, 2001 e 2005), que cobria o período 1808-1889, examinando desta vez nossa diplomacia econômica no decorrer da velha República e era Vargas (de 1889 a 1944, Bretton Woods), antecipando sobre um terceiro volume, relativo ao período contemporâneo.

9) O Itamaraty sempre se pautou como uma incubadora de debates e novas ideias, tanto políticas quanto literárias para o país, que hoje muito precisa de renovação nesse campo. Para o senhor, qual deve ser o papel do Ministério em repensar e transformar o Brasil do futuro?

PRA: Sem qualquer desdouro para a Casa, esse papel é e sempre será marginal: o Itamaraty é uma casa de funcionários muito bem preparados para o desempenho das funções que lhes são cometidas – informar, representar, negociar – mas não lhes cabe, por definição, a formulação das grandes linhas básicas da política brasileira de desenvolvimento, que eu reputo ser uma tarefa basicamente interna, de elites políticas, de tecnocratas esclarecidos, de burocratas com boa formação em economia. O Itamaraty possui muitas virtudes, mas não creio que tenha acumulado uma expertise suficiente em matéria de políticas de desenvolvimento, a não ser como reflexo dos debates que se passam nos foros internacionais (e que nem sempre refletem nossas características específicas). O Itamaraty tem grandes talentos, alguns poucos intelectuais, e um número relativamente pequeno de economistas com formação humanista, que é o terreno que eu acho onde se situam nossas principais debilidades socioeconômicas.
O Brasil é um país de vastos recursos naturais, de infinitas possibilidades de desenvolvimento, mas dotado de um capital humano de baixíssima qualidade, inclusive e principalmente em suas supostas elites. Nossa produtividade é propriamente medíocre e assim parece que vai continuar pelos anos à frente, em função de deficiências e de lacunas educacionais deploráveis, e devastadoras em comparação com outros países de renda semelhante. Nosso ensino fundamental é péssimo, e foi ainda agravado pelos anos do lulopetismo militante, especialmente nefasto no plano das mentalidades, da ideologia pedagógica, infelizmente dominada por essa variante do maoísmo delirante que se chama pedagogia do oprimido. Nosso “patrono da educação” se chama Paulo Freire, um grande, um enorme idiota educacional – um cretino fundamental, como diria Nelson Rodrigues – que influencia ainda hoje a formação de professoras e de pedagogos que infestam, como modernas saúvas, o MEC e todas as demais instâncias educacionais.
Se o Itamaraty tiver de ter um papel qualquer na renovação, ou na reconstrução do Brasil, depois dos anos devastadores do lulopetismo, penso que seria na reflexão comparada dos melhores métodos para melhorar nosso ensino e nossas instituições educacionais, do pré-primário ao pós-doc, pois seu papel na reconfiguração econômica do país, depois da Grande Destruição lulopetista, será necessariamente modesto, talvez um pouco em política comercial e acordos de cooperação tecnológica. Claro, existe toda uma reflexão a ser feita no plano da relações econômicas internacionais e sobre os melhores caminhos que caberia ao país trilhar, nos anos à frente, para acelerar nosso ritmo medíocre de crescimento econômico (se algum) e nossa inserção na economia global. O Itamaraty ainda padece de certo cepalianismo embutido, um unctadianismo instintivo, que é o velho desenvolvimentismo dos anos 1950 revestido com novas roupagens e adereços. Não creio que se possa continuar por essa via.
Se me perguntassem o que eu escolheria entre o Brics e a Ocde, eu diria claramente esta última, mas não creio que o Itamaraty esteja pronto, ou o próprio Brasil, para adotar essa nova opção, que é uma de filosofia econômica liberal e de inserção plena na globalização. Acredito que, a despeito de novos valores que já aparecem na paisagem política e econômica do Brasil, inclusive no Itamaraty, nossas elites, sobretudo as políticas, ainda patinam em velhas concepções anacrônicas de organização econômica e de recusa de uma opção pela interdependência ativa na globalização.
O Brasil não é tão atrasado materialmente falando, quanto ele é atrasado mentalmente, e quando falo de Brasil, falo exatamente de suas elites políticas e algumas econômicas também. Os diplomatas podem até ser um pouco superiores a essa média intelectual carente de algumas luzes de racionalidade, mas não dispõem de poder suficiente, ou de uma agregação de vontades, para proclamar novas vias para o desenvolvimento do Brasil. Aqui, como em vários outros setores da vida pública, carecemos de líderes com perfis de estadistas. Pode ser que o panorama mude, daqui para a frente, mas continuo moderadamente pessimista. Não que eu seja totalmente pessimista, mas como disse, nossos padrões educacionais são, permanecem, e ainda serão por muito tempo, excessivamente medíocres.
Oxalá eu esteja enganado...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de maio de 2016.

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