O Itamaraty e a diplomacia profissional brasileira
em tempos não convencionais
Paulo Roberto de Almeida
[Entrevista concedida por escrito ao Jornal Arcadas (http://www.jornalarcadas.com.br/), sobre aspectos
da carreira e do funcionamento do Itamaraty na fase recente.]
1) Ministro, o senhor tem um
trabalho conhecido de trazer o debate da diplomacia para a sociedade com seu
blog, o Diplomatizzando, que se tornou como que uma referência informal na área
para postulantes ou interessados nos caminhos do Itamaraty, já que poucos
diplomatas adotam a mesma postura. O que o motivou a criar o blog?
PRA: Sou um rato de
biblioteca, desde antes de aprender a ler, na “tardia” idade de sete anos, e sempre
fui um leitor inveterado, adepto dos meios tradicionais de leitura, pesquisa,
redação, etc. Mas acompanho, ainda que tardiamente, os meios modernos de
comunicação e informação. Como também escrevo, e publico muito, mais em
veículos tipicamente acadêmicos do que livros comercialmente editados, comecei
a receber, por e-mail, muitas consultas,
desde que meus primeiros escritos públicos – geralmente sobre integração
comercial, em especial o Mercosul – começaram a circular. Dada a repetição das
perguntas, e a necessidade de atender a todas as curiosidades e demandas,
comecei inicialmente a utilizar espaços públicos gratuitos – tipo Geocities e
outros – para hospedar textos meus em livre disponibilidade de forma a
satisfazer a demanda, sem precisar a cada vez preparar uma resposta exclusiva.
Daí, quando a produção começou a
crescer em volume e diversidade, resolvi fazer meu próprio site –
o www.pralmeida.org – para atender os
mesmos objetivos, o que deve ter ocorrido em torno de 2000, numa época,
portanto, de cyberspace já consolidado e atuante. Ocorre, porém, que um site,
no sentido convencional de sua formatação, é sempre mais complicado de manter,
de atualizar, e de organizar, do que os formatos mais ou menos prêt-à-porter
que já começam a ficar livremente disponíveis e abertos em provedores
comerciais mas oferecendo esses serviços gratuitamente.
Foi assim que comecei, em torno de
2003-2004, a colocar materiais mais leves num blog, hospedado em blogspot, que
logo revelou-se bem mais prático para carregar textos e outras informações do
que o site original. Na verdade, incompetente como sou na manipulação de todos
os recursos disponíveis nessas ferramentas, acabei abrindo diversos blogs
sucessivamente ou paralelamente, visando alguma especialização ou dedicação
exclusiva para cada um deles. Os objetivos eram sempre os mesmos: carregar e
tornar disponíveis textos meus ou de terceiros suscetíveis de preencher meus
próprios critérios de informação e de debate intelectual: livros, cultura,
relações internacionais, política externa do Brasil, economia e políticas
públicas, com algum narcisismo (ou seja, divulgação própria) misturado nesse
conjunto. Enfim, divertimento puro.
O Diplomatizzando
é o sucessor, o herdeiro, e atualmente praticamente o único de meus muitos
blogs criados, mantidos ou interrompidos desde 2003, e não se prestava
inicialmente, como ainda não se presta hoje, à preparação ao ingresso de
candidatos à carreira diplomática, ainda que eventualmente possa se prestar
também a esse objetivo. Digo que não se destina a esse objetivo, pois não está
concebido didaticamente para fazê-lo, sendo mais uma assemblagem, ou um
ajuntamento altamente dispersivo de materiais diversos que podem tocar,
tangencialmente ou ocasionalmente, no núcleo de requerimentos que compõem os
exames de ingresso no Itamaraty.
Existe ainda uma razão ainda mais
forte, sendo absolutamente sincero, para que o Diplomatizzando não seja visto em conexão com esse objetivo. É que
sendo o Itamaraty uma instituição bastante convencional, com seu ritual e
regras próprias de funcionamento, com um “corpus” ideológico mais ou menos
sedimentado de opiniões e de posições, e sendo eu uma espécie de
“anarco-diplomata”, totalmente livre em minhas opiniões e posicionamentos – que
não necessariamente coincidem entre si – poucas de minhas posições e opiniões
expressas em textos próprios coincidem exatamente com o que pensa a Casa, como
dizemos em nosso jargão. Essa distância tornou-se ainda muito grande nos
últimos treze anos e meio, quando o Itamaraty foi dominado, submergido e
manietado pela ideologia nefasta do lulopetismo, uma assemblagem anacrônica de
ideias confusas a respeito do mundo e da política mundial, especialmente
desajustada nos temas econômico-comerciais, e que muito fez para infelicitar o
desempenho de uma diplomacia que sempre foi considerada de qualidade acima da
média, e tida por sólida em termos técnicos, consistindo numa espécie de
consenso nacional em torno de grandes objetivos nacionais baseados no direito
internacional e em valores e princípios que remontam ao século XIX ou início do
XX: Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e outros. Acresce
que a diplomacia partidária do PT foi especialmente nefasta em face desses
valores e princípios, levando o Brasil a se alinhar a um grupo de ditaduras
ridículos e de regimes deploráveis, em termos de democracia, direitos humanos,
globalização e outras questões relevantes.
Nos últimos anos, creio que meu blog Diplomatizzando foi uma espécie de
quilombo de resistência intelectual a todas essas más ideias e péssimas
práticas da diplomacia partidária dos lulopetistas, sendo eu considerado um
dissidente dentro da comunidade dos diplomatas. Pode ser, assim, que o blog
tenha se tornado um espaço de informação independente, mais confiável que
certos porta-vozes da diplomacia oficial na era lulopetista, mas isso foi
totalmente involuntário, e apenas o resultado de minha inconformidade com o
curso tomado pela diplomacia partidária do lulopetismo.
Em resumo, eu hesitaria em
classificar o Diplomatizzando como
referência nos estudos preparatórios para a carreira diplomática, pois ele não
tinha, não teve, e não tem esse objetivo, e não oferece, justamente, o “prato
feito” dos dogmas oficiais em matéria de informação adaptada aos requerimentos
dos concursos. Candidatos, portanto, tomem a sério a advertência que figurava
numa casa de Pompeia: Cavec canem,
cuidado com o cão. No meu caso, cuidado com o que vocês leem no Diplomatizzando: nem sempre ali está o
argumento ideal para responder a uma questão qualquer dos exames de ingresso,
que são sempre mais convencionais, e conformistas, do que minhas próprias
posições.
2) Ainda no tema da
comunicação, o Itamaraty recentemente vem tentando se remodelar, com o blog
Diplomacia Pública e perfis ativos em mídias e redes sociais. Como enxerga a
relação do Itamaraty com a sociedade hoje, a partir da necessidade de se
comunicar de forma mais horizontal?
PRA: Creio que é
absolutamente indispensável, a qualquer serviço diplomático digno desse nome,
alinhar-se aos maios modernos meios e ferramentas de informação e de
comunicação, e o Itamaraty deve, sim, dedicar esforços e capital humano a essa
área relevante da comunicação pública. Mas, como sempre digo, com meu
anarco-liberalismo radical, sempre se tratará do discurso oficial, da voz de
seu mestre, da verdade do momento, ou aquela que convém ao governo. Cabe,
portanto, a qualquer estudioso buscar fontes independentes de informação e
análise.
3) Tendo ingressado no
Itamaraty quando este ainda era tido como estereótipo de glamour palaciano,
como o senhor enxerga a expansão das fileiras do Ministério e a mudança do
perfil do diplomata ao longo de seus anos de serviço?
PRA: De fato, o serviço
exterior brasileiro democratizou-se tremendamente no curso das últimas duas
décadas, quando requerimentos de ingresso, expansão do próprio serviço exterior,
atração da carreira para frações cada vez mais amplas da sociedade e da
comunidade universitária, enfim, uma série de fatores – a que não estão
ausentes fatores objetivos e independentes do governo ou do Itamaraty, como a
globalização, por exemplo – que se combinam para ampliar o espectro tradicional
de recrutamento de capital humano para a carreira. Ela é bem mais
diversificada, socialmente, etnicamente, ideologicamente, hoje, do que nas
décadas anteriores ao deslanchar da terceira onda de globalização, no início
dos anos 1990.
Quando ingressei no Itamaraty, no
final de 1977 – aliás, por um método não convencional, um concurso direto, e
não os vestibulares para o Instituto Rio Branco – o recrutamento se fazia quase
de forma endogâmica, a partir de das duas grandes capitais culturais do país,
Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio Branco mudou-se do Rio para Brasília apenas
em 1975, e data dessa época um lento processo de mudanças que foram criando um
novo perfil de diplomatas e de outros funcionários do serviço exterior em
Brasília e a partir de Brasília, que tornou-se, provavelmente, uma grande
provedora de candidatos à carreira (inclusive pela consolidação do curso de
relações internacionais na UnB, e pela constante interação entre seus
professores e o Itamaraty).
Não creio que antes dessa época,
digamos no Rio de Janeiro, até o final dos anos 1960, se tratasse de um
“glamour palaciano”, mas é um fato que muitos diplomatas seniores dessa época
vinham de certa tradição belle époque, de modelos britânicos ou franceses de
diplomacia, de certo comportamento reflexo com instituições tradicionais de
outros países, sobretudo europeus. Mas o próprio processo de democratização do
Brasil, a partir do regime militar e com a transferência para Brasília,
resultou em aportes novos tanto à carreira quanto aos padrões comportamentais e
de trabalho do Itamaraty. A grande expansão internacional do Brasil, abertura
econômica, liberalização comercial e o processo já referido de globalização
fizeram o resto, e o serviço diplomático perdeu sua aura de exclusivismo
elitista para se converter num modelo de burocracia estatal relativamente
convencional, com padrões weberianos que foram se disseminando em outras
esferas do serviço público brasileiro. Paulatinamente, com a disseminação das
pós-graduações no exterior, e o manejo de línguas por outros funcionários
públicos, o Itamaraty também perdeu sua preeminência no trato dos assuntos
internacionais setoriais, uma vez que outros ministérios passaram a estar
melhor capacitados para negociações, podendo prescindir – em certos casos com
certo prejuízo até – dos diplomatas para a consecução de programas de
cooperação externa em várias áreas. Em outros termos, nós, diplomatas, deixamos
de ser indispensáveis ou imprescindíveis.
4) Os recentes cortes de
orçamento e a diminuição da voz do MRE no planalto tem afetado o corpo
diplomático das mais diversas formas, indo de atrasos nos aluguéis e contas nas
representações à criação de entidades de classe. Como o senhor enxerga os
impactos dessa crise?
PRA: A negligência dos dois
mandatos – um e meio, de fato – de Dilma Rousseff, do ponto de vista do
Itamaraty, foi devastadora para antigos padrões de um serviço de qualidade,
atingindo, até mais do que o apoio material e financeiro, a autoestima dos
diplomatas pelo seu trabalho profissional, tantas e tamanhas foram as carências
registradas, o desprezo demonstrado pela chefe de Estado agora afastada do
poder, pelos requerimentos e necessidades próprias do serviço exterior
brasileiro. Não quero dizer que os anos Lula tenham sido de satisfação plena,
uma vez que, a despeito de recursos e meios relativamente satisfatórios com que
fomos brindados, a diplomacia tradicional sempre sentiu, ou ressentiu, essa
interferência de amadores em temas de relativa complexidade diplomática, ou até
a imposição de iniciativas amadoras e posturas claramente em contradição com as
tradições do Itamaraty e até com princípios constitucionais (como, por exemplo,
a não intervenção nos assuntos internos de outros países, uma vez que Lula foi
useiro e vezeiro no sentido de apoiar vários candidatos esquerdistas de sua
preferência em disputas presidenciais vizinhas).
Mas a arrogância, ou talvez a
mesquinhez, da sua sucessora constituiu um fator importante na desafeição quase
completa que o corpo funcional do Itamaraty, com exceção de alguns poucos
oportunistas, tinha vis-à-vis a chefe de Estado afastada. De minha lembrança –
e eu convivi com crises cambiais bastante fortes no decurso de minha carreira,
a crise da dívida de 1982, a moratória de 1987, que se estendeu até o início da
década seguinte, as crises financeiras do final dessa década e do início do
milênio – nunca enfrentamos uma crise tão grave como esta, não apenas do ponto
de vista financeiro, como a que passamos a enfrentar desde o início da década,
e especialmente nos dois últimos anos. Espero que a descida para o abismo
termine agora, com o novo governo, que recém está se instalando, inclusive no
Itamaraty.
5) Começando na expansão sob
o Chanceler Amorim e nas turmas de 100, passando por um projeto de expansão e
afirmação da presença brasileira no cenário internacional, chegando à retração
e à crise de hoje, qual o senhor pensa que será o legado do projeto de MRE dos
governos do PT para o Brasil?
PRA: Como sempre existe uma
enorme diferença entre o fato e a versão. A versão que temos atualmente do
regime militar, por exemplo, é aquela que é geralmente transmitida pelos
opositores do regime, esquerdistas derrotados em suas pretensões políticas, mas
altamente bem sucedidos no plano intelectual e acadêmico. Os anos do
lulopetismo foram desenfreados, não apenas em termos de ativismo político e
social, inclusive internacional, mas sobretudo no plano propagandístico. Nunca
antes no Brasil um governo gastou tanto em autopublicidade quanto o fez o regime
lulopetista, e isso alcançou igualmente a política externa e a diplomacia. Eles
construíram a sua versão da história, e ela pode emplacar: “nós fomos mais
ativos, nós fizemos mais justiça social”.
Não podemos, por certo, recusar seu
ativismo exemplar, sob a condução do mais longevo chanceler da história
diplomática brasileira, Celso Amorim, um funcionário muito bem preparado no
plano técnico e intelectual, mas absolutamente fiel aos propósitos e objetivos
do Partido dos Trabalhadores e especialmente aos de seu chefe carismático, por
ele chamado de Nosso Guia. Sou suspeito para me pronunciar sobre esse legado,
uma vez que mantenho uma opinião bastante contrária a muito do que foi feito
nesses últimos trezes anos e meio de lulopetismo, do bom, do mau e do feio (e
até do desconhecido, pois este é também um aspecto que não devemos descurar).
Reconheço o ativismo, a forte presença internacional do Brasil, ainda que
condene métodos e objetivos, como já expressei em diversos dos meus escritos
publicados.
Não pretendo aqui oferecer um balanço
desses anos que classificaria de dissonância e ruptura com nossos padrões
habituais de trabalho, tanto porque já resumo o que penso em um dos meus livros
mais recentes: Nunca Antes na Diplomacia:
a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba:
Appris, 2014). Ali figuram todas as minhas considerações críticas sobre esses
anos nefastos do lulopetismo diplomático. Mas reconheço que sou não apenas
minoria no Itamaraty, mas sobretudo minoria reduzidíssima nos meios acadêmicos,
onde a satisfação com a política externa dos companheiros é proverbial. Agora
que essa época parece perto de se encerrar, e ainda que as mentalidades não se
tenham alterado significativamente, penso talvez oferecer um balanço ainda mais
sincero do que o já oferecido nesse livro.
6) Tomando o cenário que
temos hoje no Brasil, diversos veículos da mídia alegam que a polarização
nacional tem atingido também atingindo o Itamaraty, comprometendo a notória
neutralidade do Ministério. Acredita haver fundamento para isso?
PRA: Absolutamente sim. O
Ministério foi de certa forma domado pelos companheiros, e mesmo quando
diplomatas profissionais procuraram pautar seus trabalhos pelos mais rigorosos
padrões profissionais – de isenção política, de apartidarismo, e de adesão a
alguns cânones cultivados na Casa – todos poderão reconhecer que determinadas
iniciativas ou tomadas de posição poderiam ter adotado outras vias ou outra
formatação diplomática se observados as características que sempre marcaram
nosso desempenho técnico. Eu não usaria o conceito de polarização, como ele
existe em outras esferas do setor público ou na sociedade civil, pois a maior
parte dos diplomatas guardou o velho espírito da instituição; caberia talvez
apenas o de submissão a certas decisões previamente tomadas fora do Itamaraty,
obedecendo mais às simpatias ideológicas – e até a certos compromissos obscuros
– do lulopetismo do que à opinião comum dos diplomatas profissionais ou aos
interesses nacionais em sua totalidade. A partidarização da diplomacia
brasileira fez muito mais mal à política externa do Brasil do que à própria
instituição, que agora vai provavelmente voltar a seus padrões usuais de
trabalho e de formulação de políticas.
7) Seguindo o momento
político do país, debate-se também qual o modelo ideal para o Itamaraty. De
especulações sobre um MRE de Temer a reformulações necessárias para equilibrar
as finanças da pasta, quais o senhor considera como as prioridades que uma
reformulação deveria ter em mente?
PRA: Trata-se de assunto por
demais complexo para ser tratado no âmbito de uma entrevista como esta,
inclusive porque envolve definições maiores de políticas e de organização e
métodos de trabalho que não cabe abordar num espaço aberto como este. As
finanças do Itamaraty são um assunto basicamente técnico, sobre o qual não
deveriam pairar maiores dificuldades atendidas as necessidades da instituição,
aliás bastante modesta no conjunto dos orçamentos públicos. De resto, não
existe modelo ideal de funcionamento para a Casa, pois isso depende de certa competência
técnica, mas sobretudo de uma reflexão independente – de diplomatas e alguns
gestores externos – que possa ser feito no plano dos procedimentos e métodos de
trabalho, que precisam estar adaptados às características específicas do
Itamaraty. Já participei de um grupo de trabalho com tal objetivo, justamente
na era FHC, a de maior modernização e abertura não só da diplomacia como do
próprio Brasil, e creio que se poderia convocar um novo exercício nos mesmos
moldes.
As reformulações mais importantes,
porém, devem ser feitas no próprio âmbito da política externa, e elas serão
feitas, mas não me cabe agora opinar sobre seu sentido ou orientações
específicas. Fica a sugestão para uma entrevista futura.
8) Com as recentes mudanças
políticas na região da América do Sul, o projeto de Mercosul acabou se
estagnando ainda mais. Além disso, diversos fatores, como crises políticas e
econômicas, tem mostrado a fragilidade da integração Sul-Sul e dos BRICS como
força política. É quase consenso que o Brasil precisa repensar a forma como
enxerga a integração regional e internacional e os blocos. Como o senhor acha
que essa reflexão deve ser feita?
PRA: Concordo em que a saída
dos companheiros do poder, e o abandono dos mais anacrônicos objetivos
diplomáticos que eles representavam, oferece uma nova oportunidade para
repensar diferentes vetores de nossa política externa e determinadas
prioridades de nossa diplomacia. Mas seria muita ousadia e pretensão de minha
parte ensaiar opiniões pessoais sobre como deve ser a diplomacia do novo
governo. Mesmo que eu tenha ideias a respeito – e certamente tenho muitas – não
caberia expressá-las aqui. Oportunamente, e se me for dada oportunidade,
expressarei minhas opiniões, de resto já delineadas em diversos dos meus
trabalhos publicados, mas prefiro reservar-me no momento, que é de início de
uma nova etapa em nossa interface externa (e interna também).
Em qualquer hipótese, considero
totalmente válido o dispositivo da Lei do Serviço Exterior que comanda certa
reserva aos funcionários em relação à política externa corrente. Não pretendo
ultrapassar os limites da expressão pública. Talvez eu me retire novamente para
escrever sobre o passado de nossa diplomacia econômica, desta vez um segundo
volume à série iniciada por Formação da
Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no
Império (São Paulo: Senac, 2001 e 2005), que cobria o período 1808-1889,
examinando desta vez nossa diplomacia econômica no decorrer da velha República
e era Vargas (de 1889 a 1944, Bretton Woods), antecipando sobre um terceiro
volume, relativo ao período contemporâneo.
9) O Itamaraty sempre se
pautou como uma incubadora de debates e novas ideias, tanto políticas quanto
literárias para o país, que hoje muito precisa de renovação nesse campo. Para o
senhor, qual deve ser o papel do Ministério em repensar e transformar o Brasil
do futuro?
PRA: Sem qualquer desdouro
para a Casa, esse papel é e sempre será marginal: o Itamaraty é uma casa de
funcionários muito bem preparados para o desempenho das funções que lhes são
cometidas – informar, representar, negociar – mas não lhes cabe, por definição,
a formulação das grandes linhas básicas da política brasileira de
desenvolvimento, que eu reputo ser uma tarefa basicamente interna, de elites
políticas, de tecnocratas esclarecidos, de burocratas com boa formação em
economia. O Itamaraty possui muitas virtudes, mas não creio que tenha acumulado
uma expertise suficiente em matéria de políticas de desenvolvimento, a não ser
como reflexo dos debates que se passam nos foros internacionais (e que nem
sempre refletem nossas características específicas). O Itamaraty tem grandes
talentos, alguns poucos intelectuais, e um número relativamente pequeno de
economistas com formação humanista, que é o terreno que eu acho onde se situam
nossas principais debilidades socioeconômicas.
O Brasil é um país de vastos recursos
naturais, de infinitas possibilidades de desenvolvimento, mas dotado de um
capital humano de baixíssima qualidade, inclusive e principalmente em suas
supostas elites. Nossa produtividade é propriamente medíocre e assim parece que
vai continuar pelos anos à frente, em função de deficiências e de lacunas
educacionais deploráveis, e devastadoras em comparação com outros países de
renda semelhante. Nosso ensino fundamental é péssimo, e foi ainda agravado
pelos anos do lulopetismo militante, especialmente nefasto no plano das
mentalidades, da ideologia pedagógica, infelizmente dominada por essa variante
do maoísmo delirante que se chama pedagogia do oprimido. Nosso “patrono da
educação” se chama Paulo Freire, um grande, um enorme idiota educacional – um cretino
fundamental, como diria Nelson Rodrigues – que influencia ainda hoje a formação
de professoras e de pedagogos que infestam, como modernas saúvas, o MEC e todas
as demais instâncias educacionais.
Se o Itamaraty tiver de ter um papel
qualquer na renovação, ou na reconstrução do Brasil, depois dos anos
devastadores do lulopetismo, penso que seria na reflexão comparada dos melhores
métodos para melhorar nosso ensino e nossas instituições educacionais, do
pré-primário ao pós-doc, pois seu papel na reconfiguração econômica do país,
depois da Grande Destruição lulopetista, será necessariamente modesto, talvez
um pouco em política comercial e acordos de cooperação tecnológica. Claro,
existe toda uma reflexão a ser feita no plano da relações econômicas internacionais
e sobre os melhores caminhos que caberia ao país trilhar, nos anos à frente,
para acelerar nosso ritmo medíocre de crescimento econômico (se algum) e nossa
inserção na economia global. O Itamaraty ainda padece de certo cepalianismo
embutido, um unctadianismo instintivo, que é o velho desenvolvimentismo dos
anos 1950 revestido com novas roupagens e adereços. Não creio que se possa
continuar por essa via.
Se me perguntassem o que eu
escolheria entre o Brics e a Ocde, eu diria claramente esta última, mas não
creio que o Itamaraty esteja pronto, ou o próprio Brasil, para adotar essa nova
opção, que é uma de filosofia econômica liberal e de inserção plena na
globalização. Acredito que, a despeito de novos valores que já aparecem na
paisagem política e econômica do Brasil, inclusive no Itamaraty, nossas elites,
sobretudo as políticas, ainda patinam em velhas concepções anacrônicas de
organização econômica e de recusa de uma opção pela interdependência ativa na
globalização.
O Brasil não é tão atrasado materialmente
falando, quanto ele é atrasado mentalmente, e quando falo de Brasil, falo
exatamente de suas elites políticas e algumas econômicas também. Os diplomatas
podem até ser um pouco superiores a essa média intelectual carente de algumas
luzes de racionalidade, mas não dispõem de poder suficiente, ou de uma
agregação de vontades, para proclamar novas vias para o desenvolvimento do
Brasil. Aqui, como em vários outros setores da vida pública, carecemos de
líderes com perfis de estadistas. Pode ser que o panorama mude, daqui para a
frente, mas continuo moderadamente pessimista. Não que eu seja totalmente
pessimista, mas como disse, nossos padrões educacionais são, permanecem, e
ainda serão por muito tempo, excessivamente medíocres.
Oxalá eu esteja enganado...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de maio de 2016.
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