O problema de muitos artigos acadêmicos -- e o que vai abaixo, reconheço, é de melhor qualidade do que a média -- é que seus autores vivem num mundo que não existe, naquele em que basta ter um bom "projeto nacional" -- e ninguem, NUNCA, disse como chegar lá, se pelos tecnocratas do Executivo, no Congresso Nacional, numa assembleia de acadêmicos, ou uma mistura disso tudo -- que seja aceito por algum Príncipe consciente, educado (digamos, um Bismarck progressista), que possa não só fazer desse projeto nacional seu programa de governo, mas que disponha sobretudo de meios para implementá-lo, e isso independentemente dos orçamentos, das demais condições institucionais, dos acordos internacionais, do ambiente geral, interno e externo do país e de sua economia. Ou seja, é um mundo regido pela vontade e pela representação -- com minhas desculpas a Schopenhauer -- no qual a visão esclarecida de alguns acadêmicos consegue transformar a realidade por alguma varinha mágica ultra-eficiente e sobretudo rápida.
O artigo até faz um diagnóstico razoável dos problemas brasileiros. Seu único, e ENORME problema, é que parte do pressuposto que o Estado, esse ente formidável que tudo pode e tudo faz, pode orientar processos sociais de tal magnitude como o perfil e a substância da industrialização brasileira, e quase não há espaço, nesse esquema, para as forças de mercado, ou seja, para os processos reais.
Que tal se o Estado criasse as condições de base para que os industriais trabalhassem sem as travas -- tributárias, burocráticas, corruptoras, subvencionistas deformadas -- que existem hoje?
Que tal se, por uma vez, o Estado deixasse de ser o demiurgo que tudo sabe e tudo pode e deixasse o Brasil se aproximar das forças e tendências normais de mercado, em direção de suas vantagens comparativas?
Quem sabe um dia o Brasil vai ser um país livre do fascismo econômico, que também existe sob a forma mental dos acadêmicos que tudo sabem e tudo recomendam?
Paulo Roberto de Almeida
A cortina de fumaça da "desindustrialização"
Alexandre de Freitas Barbosa
Valor Econômico, 24/05/2012
Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).
O debate a respeito da desindustrialização dá a sensação de que uma nova peste assola o País. A discussão vai se enredando num cipoal de dados e conceitos de desnortear. Cada qual vê a "desindustrialização" que quer, como se uma cortina de fumaça ocultasse o real e seus processos dinâmicos, muitas vezes inacessíveis a olho nu. De modo a colocar os pingos nos "is" e retomar a credibilidade do debate, não custa recorrer à história econômica brasileira e a alguns pressupostos teóricos mínimos.
O Brasil passou por um processo de industrialização entre 1930 e 1980. Antes de 1930, tínhamos crescimento de indústrias. O motor da economia estava na demanda externa, que nutria as nossas exportações de produtos primários, especialmente o café. A industrialização viabilizou o deslocamento do eixo dinâmico da economia, na feliz expressão de Celso Furtado. A economia avançava agora por meio das transformações geradas pela indústria, como explicitou a professora Maria da Conceição Tavares. Apesar de todas as distorções, o Brasil foi um dos poucos países da periferia capitalista que experimentaram uma autêntica mutação industrial, nos termos de Antônio Barros de Castro.
Esses ensinamentos devem ser levados em consideração se quisermos entender como do passado emergiu o presente e quais as oportunidades o futuro reserva para a indústria brasileira no novo quadro internacional.
Em termos bastante sintéticos, nos anos 80, a indústria manteve-se congelada, mas perdeu produtividade, tanto pelo fechamento forçado da economia para gerar superávits comerciais num contexto de estagnação, como também pelas transformações tecnológicas gestadas lá fora.
Nos anos 90, a indústria modernizou-se, apesar de ter se enfraquecido, perdendo elos da cadeia produtiva e eliminando empregos, em virtude de um regime macroeconômico que, além de profundamente instável, aguçava a pressão competitiva. Foi então que passou a circular pela primeira vez o fantasma da desindustrialização. Os neoliberais a defendiam: a industrialização havia ido longe demais. A esquerda não tinha dúvida: o Brasil se desindustrializara, tendo perdido o bonde da história.
Durante os anos 2000, o quadro mudou sobremaneira. O Brasil voltou a crescer e o regime macroeconômico - facilitado pelo ambiente externo, e pelas medidas de estímulo à demanda interna - permitiu que o produto e o emprego industriais se expandissem de maneira relevante, bem acima dos anos 90. Entretanto, mais precisamente no ano de 2011, o Produto Interno Bruto (PIB) total passou a crescer bem à frente do industrial, que inclusive se mostrou estagnado no ano passado.
Desde então, dois diagnósticos prevalecem. Muitos economistas situados à esquerda condenam a desindustrialização, tomando-a como um fato indiscutível. O País estaria matando a possibilidade de agregar progresso técnico e transformando-se numa grande fazenda exportadora. Desindustrialização rima com primarização.
Já os neoliberais - agora eles estão divididos - repartem-se em dois grupos. Uns encaram a desindustrialização como uma tendência de toda economia em estágio de maturidade. Outros admitem que há um problema industrial, que se deve à nossa reduzida competitividade, causada pelos impostos e salários, e à precária qualificação da força de trabalho, eterna culpada pela baixa produtividade.
Sugere-se aqui uma hipótese alternativa: o problema parece residir na (in)capacidade de se engendrar uma nova interação entre a indústria de transformação - que soubemos construir e manter a duras penas, deixando, entretanto, que algumas importantes rachaduras se instalassem - e a dinâmica econômica. Esta é, por sua vez, afetada pela nova realidade global em termos conjunturais (leia-se guerra cambial) e estruturais (ascensão chinesa com industrialização integral e competitiva a partir de cadeias produtivas fortes).
O baixo crescimento recente tem a ver com o fato de que o regime macroeconômico, neste novo contexto, deixou de trazer a expansão quantitativa e qualitativa da indústria. O conjunto de medidas adotadas pelo governo procura ajustar este regime, de modo a contemplar maior espaço para a produção industrial interna, sem o que será impossível chegar a uma taxa de investimento superior a 20%.
Ao contrário, supor que devamos celebrar a melhoria nos termos de intercâmbio trazida pela China, modernizando apenas a indústria que se mostrar competitiva, significa ocultar interesses escusos que não querem perder com a mudança de enfoque da política econômica.
No atual contexto, a indústria não precisa mais correr à frente do PIB, como acontecia durante a industrialização. Mas ela deve ser remodelada a partir de uma nova orquestração entre Estado, setor privado nacional e capital transnacional, que defina as suas frentes de expansão. Trata-se de decidir "a indústria que queremos e podemos ter", mantendo um núcleo duro capaz de gerar encadeamentos produtivos e de incorporar progresso técnico; e que possa se aproveitar do dinamismo dos setores de serviços, infraestrutura, construção civil e agrícola, expandindo o seu potencial de acumulação e da economia como um todo.
Vivemos, de fato, uma transição estrutural, que, no limite, pode acarretar o esvaziamento da nossa estrutura industrial, caso esta perca musculatura e capacidade para acompanhar o movimento da demanda interna e de ocupar novos nichos nos mercados internacionais. Mas é cedo demais para entregar os pontos.
Se quisermos alterar o nosso padrão de desenvolvimento, no sentido de ampliação da produtividade e de redução da desigualdade, uma indústria forte e competitiva - apontando para os setores de fronteira tecnológica e mantendo os setores intensivos em trabalho e recursos naturais - torna-se fundamental.
Não se trata de tarefa fácil, capaz de ser enfrentada apenas com ações de curto prazo e reuniões do governo com os setores organizados. Falta projeto nacional, que pense a indústria para além da indústria.