Codex Diplomaticus
era o título em latim que muitas chancelarias de antiga tradição usavam para
designar a sua coleção, ou códice, de atos internacionais: tratados solenes,
acordos de cooperação, convenções setoriais ou simples memorandos de
entendimentos, assinados com potências estrangeiras e, de modo geral, mais
entre soberanos que trocavam embaixadas ad hoc, do que entre dois Estados
nacionais. Esses grossos volumes, que na Idade Média tardia eram feitos em
pergaminho, e muitos deles encadernados com madeira e couro, passaram também a
conter, na era do papel, atos multilaterais assinados ao cabo de alguma
conferência diplomática reunindo diversas dessas potências, geralmente na
sequência de grandes conflitos militares, como foi o caso dos tratados de
Westfália (1648). Foi a partir desse doloroso despertar da era moderna que se
deu início ao costume de repertoriar os documentos que faziam parte dos
tratados de aliança e de convivência entre Estados nacionais, quando o latim
ainda era a língua por excelência das relações internacionais e consolidava,
como tal, o registro dos atos mais importantes da política externa dos seus
soberanos.
O
Brasil, obviamente, não é parte original dessa tradição: não esteve na
conferência que restabeleceu a paz europeia, depois da guerra de Trinta Anos,
nem jamais usou o latim como sua língua diplomática. Na primeira grande
conferência em que esteve representado – mas indiretamente, como Reino Unido,
em Viena –, a língua usada já era o francês, que continuou muito em voga na
diplomacia brasileira até depois do final da Segunda Guerra Mundial. Mas, à
diferença do suporte dialetal e diplomático que presidiu ao final do último
grande conflito militar da era napoleônica, a Primeira Guerra Mundial, e ao
tratado de Versalhes, o inglês suplantou rapidamente o francês como a língua de
trabalho e de referência das conferências multilaterais e dos grandes atos
internacionais, provavelmente desde a primeira “declaração das nações unidas,”
de 1942, ainda com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha unicamente. Nem se
mencione o latim, que o próprio Vaticano pensa abandonar como língua oficial de
seus documentos mais importantes; parece que nem nos seminários se estuda latim
convenientemente.
Pode parecer estranho, assim, alguém
pretender apresentar um simulacro de Codex
Diplomaticus Brasiliensis, que sequer é assemelhado a um repertório dos
atos internacionais do país, que devem estar devidamente registrados na sua
chancelaria diplomática. Não seja por isso: eu estava tentando achar um nome
para esta minha segunda coleção especializada de resenhas de livros ligados às
relações internacionais e à política externa do Brasil e como o nome me era
simpático, e estava disponível, resolvi me apropriar dele, sem pedir licença a
ninguém. Sem falsas analogias, portanto, segue aqui um dos derivativos do meu
primeiro “códice” de leituras diplomáticas, que veio a lume com o título mais
ou menos nobiliárquico de Prata da Casa.
A despeito de ser enorme, esse livro ainda está disponível aos curiosos na
plataforma Academia.edu, mas ele vem sendo esquartejado aos poucos em volumes
mais modestos.
Separei,
em primeiro lugar, a verdadeira “prata da casa”, que eram as centenas de
mini-resenhas de livros de diplomatas que publiquei nos últimos dez anos no
boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, a ADB; ele já se encontra
disponível na mesma plataforma (e vem sendo regularmente acessado, como posso
constatar). Faço agora o mesmo com as resenhas mais longas dos livros escritos
e publicados por colegas de carreira. Mas também pretendo fazer o mesmo com os
de não diplomatas.
Comparecem,
portanto, aqui mais de 40 autores identificados nominalmente, com a
particularidade de que existem livros com mais de dois autores, mas também
obras coletivas, com muitos autores, alguns deles diplomatas, São quase seis
dezenas de livros, embora alguns títulos se repitam devido ao fato de terem
sido objeto de novas edições, como é o caso de alguns do próprio autor desta
coleção. Se ela é o equivalente de um Codex, ou códice, eu não sei, mas ela
certamente comporta os mais importantes, ainda que não todos, os títulos
produzidos dentro da carreira nas duas últimas décadas. Como se pode constatar,
os diplomatas também escrevem e publicam, o que é um sinal de que a Casa não
está fechada sobre si mesma, como muitos querem fazer acreditar.
Que
os diplomatas escrevam, isso é um truísmo pleonástico, se me permitem a
redundância. Entre telegramas e outros atos de ofício, os diplomatas passam a
vida na palavra escrita, o que é complementado pela oralidade das conferências
multilaterais e das muitas reuniões bilaterais ou regionais, sem mencionar os
encontros informais, que constituem, provavelmente, o essencial da carreira:
prepara-se tudo de antemão, se possível com entendimentos preliminares em torno
de algum acordo geral ou setorial, e depois se passa à finalização, sob a forma
de algum acordo ou tratado internacional. Tudo isso fazia – deve ainda fazer –
objeto de notas detalhadas que vão parar nos arquivos da nossa diplomacia,
embora eu mantenha fundadas suspeitas de que alguns episódios recentes não
tenham recebido o mesmo tratamento meticuloso.
Mas
eu não quero me referir aqui aos expedientes oficiais, geralmente redigidos num
diplomatês insosso que nunca me agradou particularmente. Aliás, os poucos
diplomatas que se distinguiram na vida pública do país, o fizeram como artistas
ou intelectuais, não especificamente como diplomatas, e os que o fizeram
possuíam uma escrita elegante e refinada, não necessariamente conforme aos
cânones da diplomacia. Desafio qualquer um de meus colegas a me apontar um
burocrata que tenha entrado para a história – do país ou mesmo de sua
diplomacia – apenas porfiando o diplomatês que somos obrigados a usar na
chancelaria: talvez o Visconde de Cabo Frio, mas ele não seria um candidato à Academia
Brasileira de Letras, não é mesmo? Quem o fez, por exemplo, foram Oliveira Lima
e o Barão do Rio Branco, nessa sequência, e não precisamente por seus escritos
“diplomáticos”, e sim pela pesquisa histórica ou os artigos de atualidade
internacional que produziram no contexto da atuação política do Brasil no
cenário internacional. Todos os demais contemplados ao longo de mais de um
século se distinguiram nas letras e no labor das diversas áreas das
humanidades.
Mas,
ainda que muitos não acreditem, diplomatas também escrevem coisas diferentes
dos telegramas e ofícios de chancelaria, e isso merece registro e comentários.
Pois foi exatamente essa virtude que me motivou a sempre buscar resenhar as
obras de colegas contemporâneos – e alguns de tempos outros também – não apenas
como mero registro burocrático, o que seria o dever e a obrigação de algum
encarregado de códices de sua chancelaria, mas por simples empatia com essas
obras, que me foram dadas conhecer através de uma leitura atenta, mas não por
isso menos crítica. Não sou adepto do elogio hipócrita, nem dos adjetivos
grandiloquentes: o que tenho a dizer, eu escrevo, tout simplement. Talvez seja por isso que algumas das minhas
mini-resenhas ficaram naquele espaço que a própria Igreja extinguiu, e que antigamente
se chamava limbo.
Estão
aqui organizados, portanto, segundo uma estruturação temática mais conforme o
caráter geral de cada obra, todos os livros que integravam a segunda parte do Prata da Casa, ou seja, as resenhas mais
longas de livros de diplomatas. Ficaram ainda de fora todas as demais obras que
também pertencem ao mesmo universo, ou seja, às relações internacionais, em
geral, e à política externa do Brasil, em particular, mas que foram escritas
por “paisanos”, ou autores não diplomatas, alguns até estrangeiros. A esses
dedicarei um terceiro volume, provavelmente agregando à coleção alguns livros
de caráter geral, mas que interessam à cultura diplomática em seu sentido
amplo.
Como
parece inevitável numa Casa que tem o seu “santo protetor”, o Barão comparece
aqui diversas vezes e, como não poderia deixar de ser, na primeira parte da
coletânea, voltada para o cenário histórico da diplomacia brasileira. Talvez
seja uma deformação acadêmica desde resenhista, que sequer é historiador de
formação, mas o fato é que quase a metade das obras resenhadas foram inseridas
nessa categoria, embora muitas delas também o pudessem ser na de
multilateralismo ou na de regionalismo. A decisão por dividir as resenhas
nessas cinco grandes seções, me deixa na incômoda posição de exibir apenas duas
humildes resenhas para obras puramente literárias, embora muitas outras tenham
sido objeto de mini-resenhas no volume Polindo
a Prata da Casa. Numa outra encarnação, quem sabe?, eu possa voltar como um
grande leitor de novelas, romances e poesia, mas, nesta aqui, a deformação já
parece incontornável: sou um incurável viciado em literatura especializada nas
humanidades e nas ciências sociais aplicadas (e com incompetência manifesta em
várias delas).
Como
já disse em outra ocasião, artigos de resenhas, ou review-articles, ao estilo
da New York Review of Books – e a
maior parte dos textos aqui inseridos se enquadra nessa categoria –, têm mais a
virtude de destacar mais as preferências e as inclinações intelectuais do
próprio resenhista do que, talvez, o espírito da obra e as motivações de seus
autores, mas não vejo nisso um problema maior na confecção e publicação destes
textos de “bibliomania”. Afinal de contas, todos têm o direito de exibir, a
qualquer título, suas afinidades eletivas e seus gostos pessoais em matéria de
artes, culinária e intelecto. As minhas estão claramente expressas nas revisões
críticas que elaborei a respeito das obras que busquei ler de forma atenta e
anotada.
Desde
já esclareço que estas resenhas não são, nem de longe, as de todas as obras de
diplomatas que me chegaram às mãos e que integram a minha biblioteca. Como
poderão constatar, poucas das obras que aqui comparecem foram publicadas pelo
próprio Itamaraty, e as que o foram não fazem parte daquilo que se poderia
chamar de “corveia diplomática”, ou seja, os trabalhos de final de curso, na
etapa inicial do Rio Branco, ou naquela intermediária do Curso de Altos
Estudos. Talvez apenas três ou quatro, dentre as quase 60 obras lidas e
resenhadas, pertencem a essa categoria dos trabalhos “oficialmente
encomendados”, mas as dessa vertente que eu escolhi resenhar se situavam, de
certa forma, num outro terreno que não o do “longo memorando” interno à
carreira, que geralmente são aqueles trabalhos que ficam marcados pela adesão
à, e pelo conformismo com a doutrina do momento. Não que eu tenha qualquer
hostilidade contra obras “de carreira” – tanto porque quase todas elas foram
objeto de leitura e de uma mini-resenha de minha parte – mas é que elas não
expressam, por assim dizer, aquela característica que é inerente ao artista ou
ao verdadeiro intelectual, que é a
liberdade de pensamento.
Creio
já ter dito que o Itamaraty é uma espécie de Vaticano da diplomacia, que tem a
sua própria, por sinal uma das melhores do mundo; é que ele também cultiva
esses valores essenciais ao seu funcionamento, que são a hierarquia, a
disciplina e a adesão ao dogma do momento. Tudo isso combina mal com essa
qualidade que eu tanto prezo, que é a capacidade de dizer o que se pensa, no mais
puro exercício dessa faculdade humana que é o livre arbítrio, sem mestre, sem
patrão, sem verdades reveladas. Nunca fui adepto do conformismo ambiente, e por
isso mesmo preciso terminar e publicar o meu Dicionário dos Disparates Diplomáticos que pretende, à la Bouvard e
Pécuchet, compilar as mais belas pérolas destes tempos não convencionais.
Enquanto
ele não vem, permito-me oferecer aos curiosos, aos necessitados, aos que
praticam o hábito saudável da leitura – sem contra indicações, a não ser a de
despertar o ceticismo sadio em quem aprecia um mundo de certezas – esta
coletânea de leituras já feitas, em torno de um pequeno universo que é tão
diverso quanto o próprio, com a vantagem de não necessitar buscar em
bibliotecas ou em sebos aquele livro de que se tinha ouvido falar mas não
estava ao alcance da mão, ou da tela de e-reader ou de computador. Se eu
reunisse todas as resenhas feitas ao longo de uma vida dedicada aos livros,
construída por eles e na companhia desses singelos objetos de prazer
intelectual, elas provavelmente ocupariam vários volumes, centenas de páginas e
teriam aquele aspecto de gabinete de curiosidades que também caracteriza a
busca incessante dos dois personagens de Flaubert.
Livros,
pelo menos os impressos, apresentam esse incômodo de natureza material de
ocuparem muito espaço e de demandarem certa organização, sob o risco de não
encontrar algum específico, depois de certo tempo (o que já me levou, algumas
vezes, a comprar duas vezes a mesma obra, ou ir buscar em bibliotecas o que eu
já não mais encontrava no patrimônio privado), e de acabar descobrindo para sua
surpresa que a biblioteca particular já se converteu num labirinto à la Borges,
relido por Eco, ou num cemitério dos livros esquecidos, à la Carlos Ruiz Zafón.
Depois das resenhas dos que estão aqui presentes, ainda penso reproduzir num
volume adicional aqueles que integravam a Terceira Parte do Prata da Casa, com uma nova organização
e, provavelmente, mais algumas adições.
Os
leitores deste volume não precisam ser necessariamente os pesquisadores de
temas da diplomacia brasileira ou jovens candidatos à carreira. Qualquer um que
encontre prazer na leitura terá, nas páginas que se seguem, a curiosidade de
consultar, ou até de comprar os próprios, pelo menos assim espero. Quanto aos
diplomatas autores que ficaram “esquecidos” na minha seleção de leituras,
apresento minhas humildes desculpas pela discriminação involuntária, que foi
unicamente motivada por falta de oportunidade, ou, mais frequentemente, de
tempo. Como também já disse em outras ocasiões, vou necessitar de mais ou menos
150 anos adicionais para conseguir ler os livros que me esperam em minha
biblioteca, nas que frequento habitualmente, em todas as livrarias que
percorro, e agora nas ofertas digitais que pululam todos os dias na minha tela
ou se oferecem nos book-reviews que
leio regularmente.
Na
verdade, meu projeto secreto é o de ler e resenhar tudo o que de mais
importante, na minha área, se publicou 150 anos para trás, aproximadamente, o
que oferece, como se pode ver, um bom pedaço de história da cultura
contemporânea, mas que seja intelectualmente relevante. Entre essas leituras,
certamente aparecerão vários livros de colegas diplomatas, do Brasil atual e do
passado, o que justificaria, talvez, o início de um outro projeto, um de
“Leituras Diplomáticas”, se a nossa Casa fosse racional em suas loucuras. Mas
isso é conversa para uma outra oportunidade. Por enquanto, fiquem com a meia
centena de livros que se oferecem a todos os que aqui adentrarem.
Paulo Roberto de Almeida
(o mesmo bibliomaníaco incurável, sempre...)
Hartford, 2 de novembro de 2014