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quinta-feira, 9 de maio de 2024

O Brasil no Conselho de Segurança da ONU - Jorio Dauster (Correio Braziliense)

O embaixador Jorio Dauster propõe uma espécie de gestão compartilhada, com todos os países latino-americanos, na hipótese do exercício efetivo do Brasil no CSNU, se e quando ele for admitido na condição de novo membro permanente, caso ocorra a reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu principal órgão decisório (o que atualmente parece bastante difícil).

A Argentina, que sempre se opôs a essa candidatura, talvez concorde com essa "solução", ou expediente, para remediar sua contrariedade, o que também é uma hipótese. 

É uma proposta conciliatória, que talvez tenha boa repercussão entre os pequenos países latino-americanos, o que parece improvável entre os grandes, que vão, provavelmente, insistir na tese da rotatividade, ou seja, uma cadeira permanente, mas para a região, não para um país. 

Existe um erro no artigo de Jorio Dauster, ao proclamar que os cinco membros permanentes do CSNU eram "potências nucleares", quando eles eram apenas os vencedores, a China e a França com muitas dificuldades, pois que tiveram de ser ajudadas pelas duas potências ocidentais.  Como lembrou Ricardo Seitenfus, a nuclearização dos cinco membros foi em datas diferidas, os EUA inclusive só depois, efetivamente, de assinada a Carta da ONU.

Estados Unidos, 1945 

URSS, Rússia, 1949

GB, 1952

Franca, 1960

China, 1964

A miragem do "bilhete de ingresso" no CSNU via armamento nuclear foi durante muito tempo entretido pelos militares brasileiros e até por vários diplomatas, alguns deles até chegando a considerar o FHC um "traidor da pátria", por ter feito o Brasil aderir ao TNP em 1996. Ora, recorde-se que a China e a França só aderiram ao TNP no início dos ANOS 1990!

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9/05/2024

 


O Brasil no Conselho de Segurança da ONU

Jorio Dauster, Embaixador aposentado, consultor de empresas e tradutor

Correio Braziliense, 28/04/2024

 

A inoperância do Conselho de Segurança das Nações Unidas ao ser defrontado com os trágicos conflitos na Ucrânia e em Gaza trouxe de novo ao debate público a questão de sua reforma. Na verdade, esse é um tema que remonta praticamente à criação da ONU, uma vez que o órgão supostamente encarregado da manutenção da paz foi sempre tolhido pelo exercício do poder de veto por um ou mais de seus membros permanentes. Até março do corrente ano, a Rússia (e antes a União Soviética) usou o poder de veto 128 vezes; os Estados Unidos, 85 vezes; o Reino Unido, 29 vezes; a China, 19 vezes; e a França, 16 vezes.

Mais recentemente, após serem vetadas diversas propostas sobre Gaza, o Conselho de Segurança, em 25 de março último, aprovou unanimemente uma resolução (com a abstenção dos Estados Unidos) exigindo o cessar-fogo imediato entre Israel e o Hamas, bem como a libertação imediata e incondicional de todos os reféns. Apesar dessa rara concordância, em que pela primeira vez os Estados Unidos não vetaram uma decisão rechaçada por Israel, a guerra continua sem nenhuma trégua e sem a entrega de qualquer refém.

Malgrado esse retrospecto decepcionante, ou antes devido a ele, a necessidade de reforma do sistema destinado a salvaguardar a paz mundial se torna cada vez mais urgente diante da exacerbação das tensões em vários pontos do globo. De fato, a composição do Conselho de Segurança reflete a configuração de poder presente no fim da Segunda Guerra Mundial, espelhando as condições excepcionais de que dispunham então as cinco potências nucleares.

No entanto, de lá para cá, inclusive em consequência do gradual enfraquecimento da hegemonia norte-americana e da emergência de outras potências, em especial da China, é natural que se busque novos arranjos mais compatíveis com a multipolarização em curso. Ao longo das últimas décadas, várias reformas já foram sugeridas, inclusive uma apresentada há quase 20 anos conjuntamente por Brasil, Índia, Japão e Alemanha, pela qual esses quatro países se tornariam membros permanentes (sem poder de veto) e seriam criados ainda mais dois assentos permanentes (para países africanos) e quatro não permanentes. Obviamente, todas as diversas propostas de reforma têm encontrado diferentes tipos de oposição, sendo, inclusive, conhecidas as posturas da Argentina contra a pretensão brasileira, a da China contra a presença do Japão, a dos Estados Unidos contra a entrada da Alemanha.

Entretanto, cabe persistir embora pareça pouco produtivo que o Brasil simplesmente reitere as reivindicações que faz há pelo menos três décadas. Assim, com vistas a injetar um sopro novo nesse debate até hoje infrutífero, sugiro que o Brasil, sem abdicar da candidatura à condição de único membro permanente da região, ofereça aos outros 32 países da América Latina e do Caribe, caso eleito, a possibilidade de participarem efetivamente das deliberações do Conselho de Segurança ampliado. Com isso, se estaria reconhecendo de modo implícito que os debates conducentes ao alargamento do Conselho deram caráter irrevogavelmente "regional" à futura representação dos países em desenvolvimento, inclusive no caso da África em que, ao contrário da posição reconhecidamente excepcional de que gozam o Brasil e a Índia em suas respectivas regiões, nenhum país ostenta condições idênticas a desses dois.

Em sintonia com os princípios que regem a política externa do governo do presidente Lula, o mecanismo proposto deve ser apresentado como exemplo de democratização das relações internacionais, objetivo advogado por nós e por numerosas nações latino-americanas desde os primórdios da ONU. Serviria assim tanto para atenuar a frustração dos países que não seriam membros permanentes quanto para aumentar a adesão à causa do Brasil pelos países médios e pequenos da região.

Como o objetivo desse novo mecanismo consistiria em permitir o amplo envolvimento dos 32 países associados nos trabalhos do Conselho de Segurança sob a liderança e a coordenação do Brasil, deveria ser estabelecido um sistema de consultas sistemáticas em Nova York com as representações de tais países acerca dos itens constantes da pauta daquele órgão. Por fim, de modo a garantir a efetiva coparticipação dos associados nas matérias levadas a voto, o Brasil lhes submeteria o projeto definitivo de resolução e, dentro de prazos compatíveis com a mecânica decisória do Conselho, receberia suas indicações de "voto virtual": sim, não ou abstenção. Inexistindo consenso devido à posição divergente de três ou mais associados, o Brasil se absteria. Caso o projeto de resolução fosse rejeitado pelo Brasil ou pela maioria dos associados, a posição de todos na região seria explicitada em declaração de voto feita pela delegação brasileira.

Sem dúvida essa ideia pode e deve ser trabalhada pelos meus colegas na ativa, mas estou convencido de que, além de ser superior ao conceito de rotatividade dos novos membros permanentes, pode facilitar as acomodações em outros continentes caso também adotada por eles. Eventualmente, poderíamos então contar com uma frente sólida de 152 nações em desenvolvimento para pressionar pela imprescindível reforma do Conselho de Segurança.

 


domingo, 5 de maio de 2024

A certidão de nascimento de Brasília está em Portugal - José Roberto Bassul (Correio Braziliense)

 Consequência da falta de um projeto museológico no Brasil, muitos arquivos particulares estão sendo expatriados, e é para salvá-los, não para extraditá-los. 

Certos patrimônios teriam sido inegavelmente perdidos, ou deteriorados, se por acaso tivessem permanecido no Brasil. É triste reconhecer isso, mas é verdade.

Paulo Roberto de Almeida

 

Correio Braziliense, 5/05/2024

CIDADE NOSSA

A certidão de nascimento de Brasília está em Portugal

Brasília, de fato, é especial. E isso, em qualquer âmbito, seja nas artes visuais ou na sua capacidade de encantar, reconhecer isso é uma forma de preservar o passado e respeitar o futuro

INÍCIOREVISTA DO CORREIO



REV-0505-CRONICA - (crédito: Editoria de Arte sobre imagem de Lucio Costa)


Especial para o Correio — José Roberto Bassul


O título deste artigo não é uma metáfora, é uma notícia. Boa e triste. Em 2021, todo o acervo de Lúcio Costa foi doado pela família do urbanista à Casa da Arquitectura, uma associação cultural apoiada pelo Estado português. À época, certa ou errada, a neta do inventor de Brasília alegou em entrevista a este jornal que, no Brasil, "falta uma consciência de preservação cultural. Ainda vamos chegar lá, mas, por enquanto, não temos condições". Entre os mais de 11 mil documentos doados está o desenho original do Plano Piloto.

A notícia não deixa de ser boa. Lá estive, em 2023, para a inauguração de Siza e Oscar, para além do mar, uma exposição de fotografias minhas. Pude, então, conhecer a instituição e perceber o cuidado e os meios de que dispõe para a conservação, em ótimas condições, dessa preciosidade.

Mas a notícia é também triste. Ela nos coloca diante de nós mesmos, das nossas fragilidades, da nossa incapacidade de reconhecer, preservar e partilhar a multifacetada, polêmica, trágica, épica e rica história cultural que vimos construindo. Como deixamos escapar de Brasília aquilo que nos constituiu como espaço? E quantos outros legados, individuais ou coletivos, estamos deixando que se apaguem a cada dia?

A cidade que não respeita seu passado não tem futuro. Lúcio Costa sabia disso. Já no preâmbulo de seu Relatório do Plano Piloto vaticinava que Brasília deveria tornar-se, "além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país". Os brasilienses, de nascimento e adoção, têm realizado esse vaticínio. Em meio a imensas dificuldades e barreiras, artistas, produtores, galeristas, curadores e gestores vêm construindo um impressionante patrimônio simbólico neste inquieto e criativo quadradinho.

Seja nas artes visuais, na arquitetura, na literatura, no cinema, no teatro ou na música, não faltam exemplos dessa afirmação. O projeto Plano das Artes, conduzido pela professora da UnB Cinara Barbosa, já mapeou mais de uma centena de espaços autônomos de artes visuais no Distrito Federal. Escritórios de arquitetura multipremiados, a prosa e a poesia de inúmeros talentos, o cinema de Vladimir Carvalho, o teatro de Hugo Rodas, o choro de Hamilton de Holanda, o rock de Renato Russo e Cássia Eller, as obras de Antonio Obá ou o som eletrônico de Alok, ao lado de muitos outros nomes de mulheres e homens, estão aí para não deixar ninguém mentir.

Por que então deixamos fechado o Teatro Nacional de Brasília e perdemos acervos cobiçados como o de Lúcio Costa? Não haverá uma resposta só. É evidente, contudo, que, de um lado, as políticas públicas de cultura têm sido incapazes de disputar, com a força devida, a difícil partilha orçamentária. De outro, salta aos olhos a omissão de nossa elite econômica. Os que aqui formaram grandes patrimônios poderiam, e deveriam, investir mais — e mais democraticamente — na preservação da memória e na expansão criativa das manifestações culturais em todo o Distrito Federal.

Não percamos de vista o que nos é peculiar. Há cidades que são obras da natureza, como o Rio de Janeiro. Outras são obras humanas, como São Paulo. Mas raras são obras de arte, como Brasília.

*José Roberto Bassul é arquiteto e fotógrafo

 


segunda-feira, 11 de março de 2024

O Brasil errou o caminho de volta - Roberto Brant (Correio Braziliense)

O Brasil errou o caminho de volta


Roberto Brant - Correio Braziliense | Política

11 de março de 2024 

"NÃO HA COMO DUViDAR DE QUE, SE AS AUTOCRACiAS SE ASSEGURAREM A HEGEMONiA NO MUNDO, NOSSO MODO DE ViDA, NOSSA CULTURA E NOSSA LiBERDADE CERTAMENTE ESTARÃO PERDiDAS. NÃO SE TRATA AQUI DAS FIGURAS EFÊMERAS DE LULA E BOLSONARO. TRATA-SE DE NOSSA PRÓPRIA EXISTÊNCIA QUE ESTARÁ EM JOGO."

Nestes primeiros dias de março, foi divulgada uma pesquisa da consultoria Quest sobre a avaliação do governo Lula. Os números mostram que 35% da população o avalia positivamente, enquanto 34% o avalia negativamente. Passado pouco mais de um ano de mandato, apenas um terço da população apoia sem reservas a ação do governo. O país está polarizado.

A polarização política, antes de ser uma enfermidade social, é uma prova de que vivemos em uma sociedade democrática. Nas autocracias, as divisões são eliminadas pela força, ostensiva ou disfarçada por artifícios institucionais. As diferenças de opinião política são a própria essência da vida democrática.

Havendo uma divisão tão clara na sociedade, é justo questionar se o governo tem legitimidade para impor a toda a nação políticas e posições francamente parciais e partidárias, especialmente quando elas têm manifestamente consequências de longo prazo.

O desprezo de nossa política externa pela democracia manifestase também na admiração e no apoio sem reservas à ditadura cubana e às manobras de Nicolas Maduro para perpetuar-se no poder. A defesa dessas ditaduras é um acinte e responde exclusivamente às posições ideológicas do partido do presidente, sem levar em conta o que pensa a maioria da sociedade brasileira.

Corremos o sério risco de nos isolarmos em nosso próprio continente e no mundo ocidental. E todos no mundo esperavam "o Brasil de volta", como prometera nosso presidente. Acontece que erramos o caminho.

O governo Lula, em algumas áreas, tem se atribuído um mandato muito mais amplo do que o que recebeu das urnas. Sua vitória, por margem muito estreita, foi o resultado de uma coalizão informal que reuniu parcelas da sociedade com uma visão do mundo e do país muito diversa das posições tradicionais dele e de seu partido. Se na gestão da economia até agora as políticas do governo são coerentes com a natureza daquela coalizão, na política externa o presidente tem extrapolado todos os limites, com alinhamentos geopolíticos e ideológicos que estão muito distantes do sentimento médio do país.

O mundo vive, hoje, uma nova realidade geopolítica, em que se confrontam de um lado as democracias e de outro, as autocracias. O desfecho desse confronto irá moldar toda a vida humana no futuro. Diante dele, todos as demais confrontações perdem significado, em especial a que deseja separar o Ocidente e o Sul Global, principalmente porque, neste universo do Sul Global, é evidente o domínio das autocracias, como se pode ver na composição do Brics.

O interesse nacional do Brasil recomenda que o país deve se manter numa distância prudente desses grandes confrontos, sem perder de vista que qualquer política externa trata de interesses, mas também de ideias. Não há como duvidar de que, se as autocracias se assegurarem à hegemonia no mundo, nosso modo de vida, nossa cultura e nossa liberdade certamente estarão perdidas. Não se trata aqui das figuras efêmeras de Lula e Bolsonaro. Trata-se de nossa própria existência que estará em jogo.

A atual orientação da política externa do Brasil procura ignorar a natureza desse confronto e se aproxima perigosamente das grandes autocracias, afastando-se dos países ocidentais democráticos. E, para tornar tudo ainda mais incompreensível, defende internamente a democracia ao mesmo tempo em que se alinha com todas as ditaduras do nosso continente.

Os exemplos estão aí. A invasão da Ucrânia pela Rússia é o mais audacioso ataque de uma autocracia contra um país democrático, tentando demolir a ordem internacional baseada em leis e em regras. O presidente Lula, na contramão de todos os países democráticos, negou-se a afirmar a responsabilidade russa no conflito e, no mais simbólico gesto 
de simpatia com a tirania de Putin, negou-se a condenar o assassinato do líder da oposição Alexei Navalny, apesar de todas as evidências. Na luta entre as democracias e as autocracias, nosso presidente já tomou partido, e numa direção completamente estranha ao sentimento da nossa população.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Contradições travam reinserção do Brasil no cenário internacional - Ingrid Soares (Correio Braziliense, O Estado de Minas)

 RELAÇÕES EXTERNAS

Contradições travam reinserção do Brasil no cenário internacional

Primeiro ano de governo foi marcado por muitas viagens do presidente ao exterior, com declarações polêmicas e posições conflitantes

O Estado de Minas, 14 de janeiro de 2024

https://www.em.com.br/politica/2024/01/6786350-contradicoes-travam-reinsercao-do-brasil-no-cenario-internacional.html

Original:  

Ao longo de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) realizou uma série de viagens internacionais por quatro continentes: América, Ásia, Europa e África. No total, o chefe do Executivo visitou 24 países. Ao mesmo tempo em que conseguiu retomar a diplomacia brasileira, colecionou declarações polêmicas e discursos ambíguos que geraram desgastes nas relações internacionais e locais.

O petista esteve nos Estados Unidos, na China, na França, na Argentina, na Alemanha e em nações africanas, como Cabo Verde e Angola, por exemplo. Foi à Cúpula do G20, na Índia, visitou Joanesburgo para a Cúpula do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e liderou a delegação brasileira na COP28, em Dubai.

No último dia 5, ao ser criticado pela quantidade de dias fora do país, Lula disse que era preciso recuperar a imagem do Brasil no exterior e destacou que o país "voltou a ser respeitado".

"Eu tenho combinado viagens aqui dentro com viagens para o exterior porque é importante recuperar a capacidade do mercado interno brasileiro, e o Brasil estava alijado da política internacional", explicou.

Em várias oportunidades, porém, Lula deu declarações que contrastaram com a posição histórica de neutralidade defendida pelo Brasil em questões diplomáticas. Em abril, esteve na China, onde afirmou que a ajuda ocidental à Ucrânia estaria prolongando e incentivando a guerra. A posição foi interpretada como um apoio a Vladimir Putin e uma oposição a Washington, gerando reações negativas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia. Um porta-voz do governo americano chegou a dizer que Lula estava "papagueando propaganda russa e chinesa".

Na mesma viagem, Lula sugeriu que a Ucrânia cedesse parte de seu território para uma eventual negociação de paz e afirmou que tanto o líder ucraniano, Volodymyr Zelenski, como o presidente russo, Vladimir Putin, tinham responsabilidade pelo conflito. Também em abril, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, voltou a dizer que a guerra foi uma decisão tomada pelos dois países.

"Colocar a culpa no país invadido foi um erro que ele mesmo teve que recuar depois. Não trouxe nenhuma vantagem e mostrou amadorismo. Defender (o presidente da Venezuela, Nicolás) Maduro também constrange o presidente Lula tanto internamente quanto nos foros internacionais. Todas essas polêmicas foram dispensáveis, já que, no geral, a saída de Bolsonaro foi bem recebida pela comunidade internacional", analisou Wagner Parente, consultor em relações internacionais e CEO da BMJ Consultores Associados.

Em maio passado, na Cúpula de Chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, Lula considerou a presença do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, como um momento "histórico" e chamou de "narrativa" a visão do país vizinho ser uma ditadura. Por isso, foi criticado pela oposição e por outros chefes de estado, como os presidentes de Uruguai e Chile, Luis Alberto Lacalle Pou e Gabriel Boric, respectivamente.

Para o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, "a recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima foi a pior possível, e um esperado encontro com o presidente Zelensky foi sorrateiramente evitado". Ele avalia que a atitude ambígua do chefe de Estado brasileiro prevaleceu no novo foco de tensão criado pela Venezuela, que ameaçou invadir a vizinha Guiana. Lula recomendou "bom-senso" aos dois lados, como se fossem equivalentes. "Trata-se de um padrão costumeiro do lulopetismo: os aliados ideológicos podem atentar contra os direitos humanos, o que não é permitido aos ocidentais", disse Almeida.

O chefe do Executivo ainda esteve duas vezes na Argentina, principal parceiro comercial na América do Sul: em janeiro, para a reunião da Celac, e na cúpula do Mercosul, em julho, mas não foi à posse do novo presidente argentino, Javier Milei. Nos Estados Unidos, encontrou-se com o presidente Joe Biden, em fevereiro. Em setembro, voltou ao país para a sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.

No mesmo mês, embarcou para Nova Delhi, na Índia, para a Cúpula do G20. Na ocasião, disse que Putin não seria preso caso viesse ao Brasil para participar da reunião do Brics, e questionou a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que, em março, havia expedido documento para que o presidente russo seja julgado por crimes de guerra.

Fechando o ano, em dezembro, o presidente esteve na Arábia Saudita, no Catar, nos Emirados Árabes e na Alemanha. Em meio à principal agenda, da COP28, tentou concluir o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, sem sucesso. Na data, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse ser contra o acordo de livre comércio — chamado por ele de antiquado e "mal remendado". "Se não tiver acordo, paciência. Não foi por falta de vontade", retrucou Lula, que depois, já no Brasil, disse ser "um sonho" ver, em sua presidência, o acordo chegar a bom termo.

Neste ano, o presidente promete viajar mais pelo Brasil, mas já programou visitas à Etiópia, para participar da reunião de cúpula da União Africana, e à Guiana, para a conferência do Mercado Comum e Comunidade do Caribe (Caricom).

Concerto sem maestro

A agenda internacional de Lula tem sido positiva em relação à reinserção do Brasil na esfera internacional, observa Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia e vice-presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). No entanto, ressalta que o conteúdo da agenda de Lula parece estar "datado".

"Isso mostra que a nossa diplomacia, em termos de teor, está ultrapassada. Lula discute temas que não estão na pauta internacional, como a reorganização do sistema internacional, reorganização do Conselho de Segurança da ONU. Não é o momento de se discutir essa pauta", aponta Coimbra. Para ele, "existe um vácuo que o Brasil poderia ocupar, um vácuo econômico que seria o diálogo entre o meio ambiente e aquilo que o Brasil poderia oferecer na esfera internacional. Mas essa agenda está negligenciada tratando de temas ultrapassados".

Para a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso, a agenda internacional de Lula chama a atenção, mas não apresenta estratégia clara. "Deixa a impressão de que estamos assistindo a um concerto sem maestro. Embora as viagens e os encontros tenham sido inúmeros e importantes, não veremos resultados concretos a curto prazo, sejam políticos ou comerciais. As gafes e discursos de improviso enfraquecem as ambições do Brasil de aumentar seu 'soft power' e sua liderança regional e global", avalia a acadêmica.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres e em Washington, Rubens Barbosa ressalta que Lula perseguiu prioridades como a volta do Brasil ao cenário internacional, meio ambiente e mudanças climáticas e integração da América do Sul. Conseguiu trazer a COP para Belém, o G20 e o Brics, "porém, deu declarações equivocadas, como quando disse que Zelensky era tão responsável quanto Putin pela guerra. A segunda prioridade foi a mais bem-sucedida, com mudanças internas em relação à Amazônia, os compromissos do Brasil no tocante ao desmatamento, às emissões de gás de efeito estufa, à convocação da reunião do Tratado de Cooperação Amazônica e participação positiva nas COPs. Com relação à América do Sul, convocou, depois de mais de 20 anos, reunião de cúpula com os presidentes, mas escorregou no tratamento a Maduro", observou, acrescentando que Lula enfrenta agora dois grandes desafios: a relação com o presidente da Argentina, Javier Milei, e a disputa entre Venezuela e Guiana pelo território de Essequibo, na fronteira norte do Brasil.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Sandra Utsumi: 'O Brasil ainda está longe do crescimento sustentado' -Vicente Nunes (Correio Braziliense)

 A melhor ebtrevista sobre a economia brasikeira e a global nos ultimos meses: completa, ponderada, abrangente.

ENTREVISTA

Sandra Utsumi: 'O Brasil ainda está longe do crescimento sustentado'

Diretora executiva do Haitong Bank em Portugal, Sandra Utsumi afirma que, depois do salto de 3% do PIB neste ano, o país deverá avançar entre 1,5% e 2% em 2024, resultado muito aquém do necessário para atender as demandas da população.

Para a economista, muito do quadro positivo que se vê hoje no Brasil é resultado do trabalho feito pelo Banco Central, que manteve uma política monetária restritiva a ponto de levar a inflação para dentro das metas definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). A estabilidade dos preços, no entender dela, é fundamental para que os agentes econômicos, empresas e população, se sintam confortáveis para investir e consumir. Ela vê com preocupação a situação fiscal no país, mas acredita que a continuidade da redução da taxa básica de juros (Selic), que já caiu de 13,75% para 11,75% ao ano, dará um alívio nos gastos com a dívida, ajudando, consequentemente, no cumprimento das metas.

Na avaliação de Sandra, o mundo vive hoje uma situação complexa, com guerras e disputas geopolíticas que acabam desviando a atenção do capital estrangeiro do Brasil. Há, contudo, um fator que ajuda o país: a queda dos juros nos Estados Unidos e na Europa, que mantém o apetite por riscos “Com isso, a cotação do dólar deverá se manter próxima da atual, de R$ 4,90”, afirma. Para atrair mais capital externo, a executiva recomenda a continuidade de reformas, como a tributária, aprovada na última sexta-feira pela Congresso. “A simplificação dos impostos beneficia a todos e torna o sistema mais justo”, acrescenta. “Agora, a alíquota do IVA, o Imposto sobre Valor Agregado, não pode ser tão elevada como se tem falado, de 27,5%.”

A diretora do Haitong Bank assinala que a extrema-direita, com Javier Milei, só chegou ao poder na Argentina porque os governos anteriores fracassaram em atender aos anseios da população, o principal deles, o controle da inflação. Diz ainda que o Brasil deve buscar novos parceiros comerciais e não se envolver em disputas políticas com o país vizinho. Assinala que o fim do uso dos combustíveis fósseis está longe, por serem mais baratos, e recomenda ao Brasil correr com os projetos para a transição energética. Veja os principais trechos da entrevista de Sandra Utsumi, que participará, nesta terça-feira, do seminário Desafios 2024: o Brasil no rumo do crescimento sustentado, promovido pelo Correio.

Como avalia o primeiro ano do governo Lula? O crescimento da economia foi maior que o esperado e o desemprego, a inflação e os juros caíram. 

O Brasil teve um desempenho econômico positivo pela consistência de uma política monetária que permitiu a queda da inflação, dos juros e um crescimento forte das exportações pelo segundo ano consecutivo. Sem a atuação firme do Banco Central, que retomou a confiança dos agentes econômicos, certamente o quadro atual não seria o mesmo. A inflação é o que há de pior para uma economia, pois desestrutura tudo e mina o crescimento econômico, o emprego e a renda.

Apesar desses bons resultados, ainda há muitas incertezas no meio do caminho, especialmente, quanto à questão fiscal. Por quê?

A queda de qualidade do desempenho fiscal no Brasil não tem sido ressaltada pelo fato de a maioria dos países, incluindo os desenvolvidos, ter apresentado deslizes desde a pandemia. Daí o fato de o rating soberano do país, medido pelas agências de classificação de risco não ter sofrido alterações. A boa notícia é que a continuidade da queda dos juros em 2024 deverá reduzir um pouco o ônus dos serviços da dívida, ou seja, o Tesouro Nacional terá uma conta menor de juros a pagar aos detentores de títulos públicos. Isso acaba ajudando o ajuste fiscal. É importante deixar claro ainda que, se, de um lado, a vantagem do Brasil é o baixo endividamento externo, de outro, o elevado estoque interno de dívidas acaba sempre por dilapidar a capacidade de financiamento doméstico da economia. Isso, no fim das contas, impede um crescimento maior da atividade.

É possível esperar um 2024 melhor que 2023?

O próximo ano será ainda de crescimento abaixo do potencial do Produto Interno Bruto (PIB) global, e isso deverá afetar também o Brasil, sobretudo, no primeiro semestre, quando há o risco de recessão na Europa e de uma estagnação nos Estados Unidos. A queda dos juros no Brasil não deverá ser suficiente para permitir um crescimento à semelhança de 2023, que foi surpreendente, próximo de 3%. Esperamos um avanço do PIB em 2024 entre 1,5% e 2%.

Quais são, na sua opinião, os maiores desafios do Brasil?
Os maiores desafios do país são os mesmo de sempre: aumentar a competitividade da economia e melhorar o ambiente de investimentos de longo prazo. Reformas que simplifiquem a estrutura fiscal, o desenvolvimento da infraestrutura, a formação de capital humano e outras mais são essenciais. O Brasil ainda está entre os 10 piores países do mundo em termos de distribuição de renda (índice de Gini), e a melhora depende, em grande parte, do investimento em educação e capacitação profissional.

Qual o impacto da reforma tributária aprovada pelo Congresso na economia brasileira? 

O princípio da reforma é promissor, porque acaba com os impostos em cascata no Brasil. Reduz muito a complexidade, com apenas dois impostos, um federal e um estadual, sobre o consumo. Agora, será preciso evitar que o IVA dual seja tão alto, como se tem falado, podendo chegar a 27,5%. As negociações entre governo e estados serão fundamentais para não prejudicar o setor produtivo e os consumidores. Outro ponto positivo é o imposto seletivo sobre produtos que afetam a saúde e o meio ambiente. Agora, é preciso que a reforma seja implementada o mais rapidamente possível, pois o prazo definido pelo Congresso me parece longo diante das necessidades do país de ter um sistema tributário mais simples e justo.

A situação política no Brasil está pacificada? Até que ponto isso preocupa os investidores?

Os investidores deverão estar mais atentos ao contexto geopolítico global do que ao brasileiro em 2024. As eleições municipais devem indicar qual o grau de alinhamento ou não do eleitor com o governo federal, mas não deve influir, significativamente, na percepção do investidor estrangeiro.

O país está no radar do capital estrangeiro? Por quê?

O Brasil não é prioridade para o capital estrangeiro neste momento. Existe, em curso, uma mudança no padrão dos fluxos de investimento. Os recursos de curto prazo deslocam-se com os fatores de curto prazo, como o cenário doméstico e o custo de oportunidade, com base nas taxas de juros dos Estados Unidos. O investimento estrangeiro direto no mundo tem sido afetado pelos atritos comerciais e geopolíticos.

Neste contexto, as multinacionais têm promovido movimentos denominados de ‘reshoring’ (retorno ao país de origem), ‘friend shoring’ (deslocamento para regiões com menor risco de atritos comerciais e geopolíticos) e ‘near shoring’ (estratégia de estar mais próximo do mercado consumidor final). Em termos de competitividade, não têm sido de grande atração para os investidores os avanços que o Brasil tem promovido para melhorar os indicadores de transparência, para simplificar o enquadramento regulatório dos diversos setores da economia, para ampliar a produtividade, com melhora da infraestrutura, da educação e da capacitação da mão de obra, e para tornar a legislação fiscal mais consistente.

A combinação da mudança de estratégia de posicionamento global dos investidores com a lenta evolução dos índices de competitividade fez o Brasil perder posições significativas no ranking de confiança dos investidores nos últimos 10 anos. No exemplo da Kearney FDI Confidence Index, o Brasil, que sempre esteve entre os 10 primeiros destinos de investimento direto até 2015, passou para 22º em 2020, 24º em 2021 e 22º em 2022. O movimento de ‘reshoring’ fez com que os Estados Unidos passassem de terceiro para primeiro destino de investimento direto entre 2015 e 2022, enquanto a China caiu de segundo para o décimo no mesmo período. Dos 25 destinos mais atrativos em 2005, 11 eram países emergentes. Em 2022, somente seis emergentes (China, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Tailândia, Arábia Saudita e Brasil) faziam parte dessa lista.

Até que ponto a decisão do Federal Reserve, o BC dos Estados Unidos, de manter os juros inalterados ajuda o Brasil?

A decisão do Fed de manter os juros veio com uma mudança nas projeções para os próximos três anos, que inclui o início de um corte em 2024. Essa mudança das projeções é o fator que deve beneficiar o Brasil do ponto de vista do custo de oportunidade para os investidores que queiram ter exposição a ativos brasileiros. Favorece também a manutenção da cotação do real ante o dólar próxima dos níveis atuais, de R$ 4,90, mesmo com a redução dos juros promovida pelo Banco Central do Brasil.

Há, realmente, espaço para os Estados Unidos e mesmo a Europa começarem a cortar juros? 

Haverá espaço a partir do último trimestre de 2024 tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. O Banco Central Europeu, no entanto, tende a enfrentar mais desafios com a sua política de meta de inflação, pois uma possível recessão no primeiro semestre do próximo ano ainda deve ser acompanhada de inflação acima dos 2%, devido ao fim dos incentivos e estímulos fiscais para reduzir o impacto na inflação da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Os Estados Unidos podem, eventualmente, antecipar os cortes nos juros no caso de um tombo da economia, também no primeiro semestre, devido ao duplo mandato do Federal Reserve, de crescimento do PIB próximo do potencial e de inflação em torno de 2% ao ano.

O pior da inflação global ficou para trás?

Muito provavelmente. O duplo choque no pós-pandemia, de falhas na cadeia produtiva (supply chain) e de volta repentina do consumo, foi dissipado em grande parte por conta do aperto monetário em 2023. Segundo as últimas estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), a inflação global deve desacelerar de 8,7%, em 2022, para 6% em 2023, 4,4% em 2024 e 3,5% em 2025, próxima, portanto, à média observada antes da crise sanitária.

O que representa para o mundo a desaceleração da economia chinesa?

A China representa, atualmente, um grande mercado consumidor e um grande investidor na economia global. A desaceleração do crescimento chinês para um patamar próximo de 5% reduz o ritmo de consumo e a capacidade de internacionalização. Entretanto, acreditamos que o investimento estratégico deva avançar, com foco em mercados emergentes, em matérias-primas e na geopolítica. Essa estratégia pode favorecer países como o Brasil. Para o mundo, a China ainda está entre os três maiores parceiros econômicos individuais da maioria dos países e a sua desaceleração teve reflexos diretos na balança comercial e na atividade industrial no mundo.

Como vê a guinada da Argentina à direita? Até que ponto isso influencia as relações com o Brasil?

As mudanças de direção política em todas as democracias, seja para a direita, seja para a esquerda, têm sido acompanhadas pela incapacidade dos governos em promover um ambiente de crescimento e de melhora do padrão de vida dos eleitores. Os eleitores argentinos reprovaram a incapacidade do governo anterior de estabilizar a situação fiscal, a falta de consistência na gestão das políticas macroeconômicas e a consequente inflação crônica, que supera os dois dígitos há uma década, passando de 100% neste ano, precarizando a vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. O Brasil tem lidado com relações comerciais fragilizadas com a Argentina nas mais de duas décadas em que o país vizinho enfrenta crises frequentes. No caso de mais atritos por questões de posicionamento político, o Brasil tende a reduzir a exposição ao risco econômico e deve buscar alternativas com outros parceiros comerciais. A Argentina, sem reservas internacionais e a depender das linhas de financiamento do FMI, tem mais necessidade de manter relações de comércio com o Brasil que o inverso.

O mundo enfrenta hoje uma série de conflitos, dois deles nas franjas da Europa. As guerras se tornarão mais frequentes? Qual o impacto para a economia global?

O impacto do aperto monetário na Europa e nos Estados Unidos, em conjunto com a lenta recuperação da economia chinesa, ainda deve prevalecer no primeiro semestre de 2024. O risco de mais fragilidade na economia global tende a manter o desequilíbrio fiscal de boa parte dos governos no mundo pós-pandemia e, consequentemente, tensionar a geopolítica.

A COP28 não conseguiu selar o fim dos combustíveis fósseis? Como o clima vai impactar as economias, sobretudo, as de países produtores de alimentos, como o Brasil?

O fim do uso dos combustíveis fósseis na escala global ainda é uma realidade distante. Mesmo nos países desenvolvidos é uma discussão não consensual e com elevados custos de transição. O acordo da COP28 foi somente o que se pode dizer de um compromisso em debater o fim do uso dos combustíveis fósseis. Não estabelece datas, metas e, tampouco, obrigatoriedade e responsabilidade. O aquecimento global leva à maior imprevisibilidade dos fenômenos meteorológicos e a possibilidade de catástrofes naturais de maior escala. Essa incerteza prejudica, principalmente, a agricultura, as atividades costeiras, por causa da elevação do nível de água dos oceanos, e a população que depende delas. Alguns setores já refletem os custos dessas alterações climáticas, incluindo o das apólices de seguros nos Estados Unidos e na Europa.

O Brasil realmente tem condições de liderar a transição energética no mundo?

Não acredito que haja um país que, individualmente, seja capaz de liderar a transição energética no mundo. Além de uma vontade coletiva, há uma grande necessidade de investimento em novas tecnologias que possam proporcionar a transição energética. Cada país tem uma característica particular de matriz energética, recursos naturais e grau de desenvolvimento. Todos irão precisar de mais energia elétrica de fato, mas não existem ainda fontes sustentáveis e na escala necessária para o crescimento global esperado, próximo de 3% do PIB mundial ao ano.

Algumas atividades como o transporte marítimo também não conseguem ser eficientes com energia elétrica de baterias. Daí a dificuldade de se negociar uma transição energética. Infelizmente, o Brasil não tem acompanhado o ritmo de geração de novas tecnologias no sector de energia como na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, na China e no Japão. Nessas regiões, o compromisso de transição energética está numa fase mais avançada por uma questão de estratégia de longo prazo na geração de energia voltados à independência, principalmente, do petróleo e gás, e sustentabilidade ambiental.

O uso de fontes de energia que emitem gases de efeito estufa ainda são muito mais baratos para o Brasil do que o uso de energia sustentável. Os recursos naturais existem com alguma abundância no país na forma de fontes hídricas, solar, eólica, reaproveitamento de recursos existentes, como biomassa, possibilidade de tecnologias ligadas ao uso do hidrogênio na forma sustentável, sem emissão de gases de efeito estufa, entre outros. Portanto, o Brasil também terá de planejar essa transição e investir nas tecnologias que possam ser adotadas de forma viável do ponto de vista econômico e ambiental.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Entrevista Everardo Maciel sobre desoneração da Folha Salarial - Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza (Correio Braziliense)

Everardo Maciel: "O governo erra com o veto à desoneração da folha"

O ex-secretário da Receita Federal no governo FHC critica a decisão do Planalto, defendida pela equipe econômica, de vetar a desoneração da folha de pagamento. E se diz preocupado com a política perdulária do atual governo, somada a interesses eleitoreiros.

"O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra" - 

Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza

Correio Braziliense, 27/11/2023

Secretário da Receita Federal no governo de Fernando Henrique Cardoso, o pernambucano Everardo Maciel prevê tempos atribulados para a economia brasileira. Ele observa com muita reserva os movimentos do governo Lula, empenhado em aumentar a arrecadação a todo custo. Na avaliação de Everardo, hoje consultor tributário, professor e conferencista, as razões econômicas apresentadas para justificar o veto à desoneração escondem o interesse eleitoreiro de financiar projetos de visibilidade. E cita um pensamento de Norberto Bobbio para criticar a postura do governo: "Política não é tudo".

Na avaliação de Maciel, 76 anos, o atual modelo de desoneração pode ter falhas, mas é seguramente melhor do que o modelo anterior, defendida pela equipe do ministro Fernando Haddad. O ex-chefe da Receita entende como melhor solução derrubar o veto e discutir um modelo condizente com a realidade do século 21.

Quanto à reforma tributária, recém-aprovada pelo Senado e de volta à Câmara, Everardo Maciel é pessimista: prevê aumento de carga tributária, contencioso judicial e conflitos federativos. Ele espera estar errado — não se considera o dono da razão —, mas recorre a Roberto Campos para resumir o seu diagnóstico: "Não corre o risco de dar certo". Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida ao Correio.

O governo erra ou acerta quando veta a desoneração da folha a 17 setores produtivos, especialmente quando se considera essa medida afeta 9 milhões de trabalhadores, com possibilidade de gerar desemprego?

O governo erra. Há mais de 10 anos, para determinados setores — hoje, são 17 —, procedeu-se à mudança da base de cálculo das contribuições previdenciárias patronais, substituindo a folha de salário pelo faturamento. Não houve, portanto, desoneração no sentido estrito, mas mudança de base de cálculo. O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra.

Qual a razão disso?

A verdadeira motivação do veto é aumentar a arrecadação para financiar projetos que não necessariamente importam para o desenvolvimento. Seria, além disso, ingenuidade dissociar essa motivação das eleições municipais do próximo ano. Pondero que não entendo como ilegítima a pretensão de buscar repercussão eleitoral por meio de políticas públicas. Quando, todavia, se recorre a aumento de arrecadação e se abdica de cortar gastos perdulários, que desafortunadamente são expressivos no Brasil, essa legitimidade desaparece. O grande pensador italiano Norberto Bobbio, em Elogio da Serenidade, ensinava: "Política não é tudo. A ideia de que tudo seja política é simplesmente monstruosa".

O ministro Fernando Haddad prometeu compensações para o fim da desoneração, mas só depois de concluída a reforma tributária. É possível?

Primeiro, é preciso dizer que o modelo de financiamento da previdência social por meio da tributação de folha de salários é tendente ao fracasso absoluto, pois há aumento da expectativa de vida, redução da natalidade e substituição da mão de obra por robôs, inteligência artificial e tudo o mais que se associa à revolução tecnológica, que assumiu caráter permanente. Não se trata de fenômeno local, mas universal. A mudança de base de cálculo operada há mais de 10 anos é consistente com essa realidade, cada vez mais robusta. Não afirmo que a mudança para o faturamento seja a melhor solução, porém, no caso específico, é melhor que a regra anterior. Ninguém no mundo tem uma solução pronta e acabada para um novo modelo de financiamento da previdência social. Creio, entretanto, que há um razoável consenso que o velho modelo tende à falência.

E quanto às compensações?

Quanto à promessa de compensação para as consequências do veto, entendo que é uma manobra claramente protelatória ou uma tática diversionista para acolher a derrubada do veto e, aí sim, "compensar" esse gesto, aparentemente generoso, com outras medidas visando, outra vez, a aumentar a tributação. O que entendo ser razoável: derruba-se o veto e, então, se discute uma nova regra que afaste a incidência sobre o faturamento.

O deficit das contas públicas para 2023 está bem acima do previsto, na casa dos R$ 177 bilhões. E o governo já fala em dificuldades para zerar o deficit em 2024. O governo Lula abusou dos gastos ou fez a conta errada?

O atual governo tem vocação claramente expansionista em relação ao gasto público, o que resulta na combinação da indisposição para eliminar os gastos, repito, perdulários com a voracidade para aumentar os gastos, perdulários ou não. Não faz tempo, ouvimos de uma autoridade governamental uma pérola da desrazão: "Gasto é vida". Montar uma política fiscal com base em metas é apostar no acaso. Metas são necessárias como parâmetros para avaliar a execução de políticas setoriais de gastos. Se essas políticas inexistem e de fato não existem, só restam duas possibilidades: recorrer-se à tosca ferramenta do contingenciamento ou pedir perdão, com razoável frequência, caso as metas não sejam cumpridas.

A poucas semanas do recesso parlamentar, há uma lista de questões delicadas em pauta. Elas podem atrapalhar os planos da economia em 2024?

Sim, podem atrapalhar a economia, especialmente, lamento dizer, se algumas delas prosperarem. O descontrole fiscal, a corrupção sistêmica, a instabilidade institucional e, a não menos importante, insegurança jurídica são questões que integram a agenda política nacional. A Argentina é hoje um exemplo extremo dessa terrível patologia social. Talvez, tivéssemos na mesma condição do país vizinho não fossem o Plano Real e as medidas a ele associadas, cuja capacidade de resistência às investidas populistas é admirável. O perigo, contudo, nos espreita.

A reforma tributária voltou para a Câmara e ainda terá um longo período de regulamentação. Qual sua expectativa?

Em minhas entrevistas, artigos e conferências, sempre apontei a impropriedade da solução da PEC 45 e suas variantes. Espero estar errado, afinal não tenho a arrogância dos que pretendem deter o monopólio das verdades absolutas, porém antevejo aumento da carga tributária, do contencioso judicial e dos conflitos federativos. Isso, como dizia Roberto Campos: "Não corre o risco de dar certo". Claro que temos problemas tributários, a maior parte deles resolvível por soluções relativamente simples. Para resolvê-los, todavia, não precisávamos montar uma geringonça.

Na COP28, o Cerrado e o Pantanal brasileiros estarão em evidência. Como o senhor enxerga as querelas sobre questão climática no Brasil?

O Brasil dispõe de um potencial não desprezível de recursos para enfrentar as mudanças climáticas, a exemplo do que existe nos biomas da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. O que precisamos é equilibrar a utilização desses recursos, à margem dos radicalismos conservacionistas e predadores. Estamos longe de produzir um protocolo para a preservação do meio ambiente, inclusive o urbano, que possa assumir protagonismo em termos internacionais.

O Brasil terá sossego nos próximos anos?

Infelizmente, no meu entender, não.