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quarta-feira, 6 de março de 2024

Taxação dos super ricos? Podem até fazer, mas não vai servir para quase nada - Entrevista com o economista francês Gabriel Zucman

Comentário preliminar de Maurício David, economista, ex-funcionário do BNDES: 

 Citação do dia sobre a proposta (demagógica e utilizada oportunisticamente pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad como cortina de fumaça pelas críticas dentro do próprio PT e até pelo ex-candidato presidencial e Vice-presidente do PDT Ciro Gomes sobre a política econômica do governo Lula) :

“Não tem a mais remota possibilidade de prosperar”.

O ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel foi taxativo com relação à proposta  apresentada pelo economista francês Gabriel Zucman e endossada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad usando de certa demagogia como forma de atenuar as críticas que êle Haddad vem recebendo de setores da esquerda do próprio PT : “Não tem a mais remota possibilidade de prosperar”.

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segunda-feira, 4 de março de 2024

Entrevista | Gabriel Zucman: Taxar ricos pode funcionar mesmo sem consenso 


Por Marcelo Osakabe / Valor Econômico

Cobrança de 2% sobre fortunas pode render R$ 250 bilhões, estima economista francês

Um imposto global sobre os bilionários pode ser efetivo mesmo que não exista consenso global sobre o tema. Essa é a aposta do economista francês Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, para quem mesmo a ausência dos Estados Unidos, país que abriga perto de um terço dos cerca de 2,7 mil bilionários do mundo, não impede que o novo tributo seja eficiente.

Convidado pelo governo brasileiro para apresentar sua proposta de taxar as grandes fortunas globais em 2% aos ministros de finanças e presidentes de bancos centrais do G20, na semana passada, Zucman estima que a medida pode render US$ 250 bilhões por ano, metade do que se estima que as nações desenvolvidas precisarão para enfrentar mudanças climáticas.

A proposta chega ao G20 em um momento em que os “dois pilares” propostos pela OCDE para combater a evasão tributária global, que envolvem o imposto corporativo mínimo sobre multinacionais de 15% e o imposto sobre serviços e produtos digitais, sofrem revezes e questionamentos. O economista não vê perigo em sobrepor as agendas e argumenta não ser necessário que a grande maioria adote o imposto para que ele seja efetivo. “Basta que um número suficiente de países implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele”, diz, em entrevista ao Valor.

Aos 37 anos, o francês se firmou como uma das vozes que advogam contra a crescente concentração de riqueza global — em sua avaliação, um dos fatores por trás não apenas de crises econômicas, mas também do enfraquecimento dos regimes democráticos. Protegido de Thomas Piketty, com quem colaborou em alguns trabalhos, inclusive o famoso “O Capital no Século XXI”, ele também ganhou fama por usar uma vasta gama de dados, incluindo vazamentos como os “Panama Papers”, para elucidar os caminhos pelos quais grandes corporações transnacionais e bilionários se esquivam dos fiscos.

Com dados, ele mostra, por exemplo, que a adoção de mecanismos de compartilhamento automático de informações bancárias entre países reduziu a evasão tributária de grandes em empresas a um terço do que era dez anos atrás. Apesar disso, a perda de receita tributária devido a essas práticas apenas deixou de crescer, estagnando em cerca de 10% do total declarado em imposto corporativo no mundo todo.

Sobre os 2.756 bilionários encontrados em sua pesquisa — dos quais 105 habitam a América Latina —, Zucman mostrou que o planejamento tributário permite que a imposto efetivo pago por essa elite caia a uma faixa entre zero e 0,5%. É sobre esse grupo que o imposto global pretende cair, ao menos num primeiro momento, diz.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Como foi a abordagem do governo brasileiro para que participasse do G20?

Gabriel Zucman: Ao assumir a presidência do G20, o Brasil queria tornar a desigualdade e a progressividade fiscal prioridades na agenda. Nos contactaram para saber se estaríamos interessados em trabalhar em conjunto para avançar com ideias ambiciosas, olhando o futuro da cooperação tributária internacional e a luta comum contra a desigualdade.

Depois dessa apresentação, continuarão a trabalhar juntos?

Zucman: Sim. A presidência do G20 nos encarregou de elaborar um relatório sobre aspectos práticos de imposto mínimo coordenado sobre super-ricos, bem como resumir estudos existentes e simular diferentes planos possíveis para esse tributo. Vamos começar a trabalhar nesse relatório imediatamente e a ideia é entregar o resultado nos próximos meses, durante a chefia do Brasil no G20.

Como foi a aceitação da proposta no encontro?

Zucman: Duas coisas me chamaram a atenção. Uma é o número de países — alguns muito importantes — que disseram apoiar fortemente a proposta, como Brasil e França. A [secretária do Tesouro dos EUA, Janet] Yellen afirmou que existe algo parecido, embora não tenha sido aprovado. A segunda é que muitos outros países expressaram apoio à proposta de criar novos acordos internacionais focados na questão da progressividade fiscal, tributação dos ricos e combate à desigualdade. O Brasil foi especialmente elogiado por colocar essas questões na agenda do G20. É preciso deixar claro também que as discussões estão em um estágio muito inicial, começaram, literalmente, esta semana [passada]. Há necessidade de uma discussão internacional inclusiva, para aprofundar detalhes.

Por que 2%?

Zucman: Decidimos por propor 2% apenas para ter um ponto de partida para o debate. Ele pode ser considerado baixo, já que muitos países cobram mais de seus ricos. Ao mesmo tempo, o fato é que o planejamento tributário faz com que a carga efetiva seja menor em muitos casos. Por isso, uma taxa de 2% já faria diferença se levarmos em consideração a regressividade efetiva dos nossos sistemas tributários atuais. Com 2%, você pode compensar muito ou, em alguns países, toda essa regressividade. Claro, não é suficiente para tornar o sistema tributário global progressivo. Mas isto também é algo a debater. Existem bons argumentos para adotar taxas mais altas.

Que outros aspectos importantes precisam ser definidos?

Zucman: O destino das receitas é algo em aberto. É preciso uma necessidade discussão internacional e inclusiva. Basicamente, há duas maneiras de abordar isso. Uma é pensar que uma determinada pessoa que construiu uma enorme fortuna vivendo em um país por 60, 70 anos, se beneficiou dos e serviços públicos desse país. Por isso, seria legítimo que ao menos parte dessa arrecadação fique nesse mesmo país. Outra linha argumenta que bilionários acumulam riqueza na forma de participações em empresas que tem negócios em todo o mundo, emitem carbono e contribuem para a mudança climática. Sob essa perspectiva, você pode favorecer uma distribuição muito mais ampla das receitas entre os países. Mesmo a barra sobre os cerca de 3 mil bilionários pode ser baixada. Em um primeiro estágio, é conveniente focar nesse grupo porque ele é pequeno e sua riqueza é relativamente fácil de mensurar.

Os dois pilares do tributo mínimo global estão sob forte desconfiança. Não existe risco de perder o foco e acabar prejudicando outras medidas em implementação?

Zucman: Houve um progresso importante nos últimos anos. O Pilar 2 está sendo implementado em cerca de 35 países neste ano e poderá alcançar muitos dos 140 países que assinaram o acordo da OCDE adiante. Talvez alguns deles não ratifiquem o acordo, como é o caso dos EUA no momento. Mas isto não é problema. Você não precisa, necessariamente, de implementação global para o imposto mínimo. O texto do imposto contém um princípio muito importante, o de que países participantes terão direito de tributar multinacionais localizadas em nações que não ratificaram o acordo, para assegurar que a tributação alcance esses 15%. Basta que um número suficiente de países implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele. A mesma lógica pode ser aplicada aos super-ricos.

Os mecanismos em implementação têm tido problemas também, como o fato de que empresas continuam migrando seus lucros para pagarem menos impostos e também de que estão sendo criados novas brechas, às vezes dentro da própria sistema tributário doméstico. Como combater essa tendência?

Zucman: O que acredito que está faltando é, na essência, uma debate mais aberto sobre essas políticas. São detalhes que vêm sendo discutidos em fóruns altamente técnicos, pouco inclusivos, e isso abriu as portas para brechas e isenções aparecerem. Mas é possível corrigir isso e vejo alguns caminhos. A alíquota de 15%, é claramente muito baixa. A maioria dos países tem alíquotas bastante baixas, mas é difícil argumentar por que empresas multinacionais deveriam ser autorizadas a pagar muito menos que firmas pequenas ou médias. Existe um problema com isenções concedidas, que muitas vezes fazem com que a taxa efetiva acabe menor que 15%. Outro problema diz respeito ao tratamento dos créditos tributários para a pesquisa e desenvolvimento. Algumas vezes isto não é entendido como redução da carga tributária, mesmo que economicamente seja algo equivalente.

Me parece que está advogando por uma espécie de governança global sobre o tema.

Zucman: Eu acredito, de fato, que é precisamos de novos acordos tributários em âmbito multilateral. A forma como a globalização foi regulada na década de 1980 simplesmente não funcionou. Muito se falou sobre mobilidade de capitais e de comércio, mas houve silêncio em relação ao tratamento ou a necessidade de progressividade tributária. E digo que não funcionou porque ajudou a fomentar a desigualdade global.

O retrocesso da globalização, uma fragmentação maior do mundo, não torna a implementação destas propostas mais difícil?

Zucman: Não acredito que este ambiente seja mais desafiador que no passado. O que realmente importa é ter vontade política de alguns países, uma “coalizão de dispostos”. A razão pela qual acredito que isto é possível é que existe uma demanda popular avassaladora por tais políticas praticamente em quase todos os países. No Brasil, nos Estados Unidos ou na França, se você perguntar se as pessoas acreditam que seus ricos pagam impostos o suficiente, a grande maioria dirá que não. Vejo apoio maciço nesta direção, e o fato de que não é preciso unanimidade joga nessa direção. Nem EUA nem China ratificaram o imposto mínimo sobre multinacionais, mas ainda assim ele está caminhando. Claro que a política pode interferir. O governo de Joe Biden é mais simpático à proposta. Se Trump ganhar, claramente isso mudará. Mas, novamente, a ausência dos EUA não é motivo para inação.

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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Entrevista Everardo Maciel sobre desoneração da Folha Salarial - Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza (Correio Braziliense)

Everardo Maciel: "O governo erra com o veto à desoneração da folha"

O ex-secretário da Receita Federal no governo FHC critica a decisão do Planalto, defendida pela equipe econômica, de vetar a desoneração da folha de pagamento. E se diz preocupado com a política perdulária do atual governo, somada a interesses eleitoreiros.

"O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra" - 

Ana Dubeux, Carlos Alexandre Souza

Correio Braziliense, 27/11/2023

Secretário da Receita Federal no governo de Fernando Henrique Cardoso, o pernambucano Everardo Maciel prevê tempos atribulados para a economia brasileira. Ele observa com muita reserva os movimentos do governo Lula, empenhado em aumentar a arrecadação a todo custo. Na avaliação de Everardo, hoje consultor tributário, professor e conferencista, as razões econômicas apresentadas para justificar o veto à desoneração escondem o interesse eleitoreiro de financiar projetos de visibilidade. E cita um pensamento de Norberto Bobbio para criticar a postura do governo: "Política não é tudo".

Na avaliação de Maciel, 76 anos, o atual modelo de desoneração pode ter falhas, mas é seguramente melhor do que o modelo anterior, defendida pela equipe do ministro Fernando Haddad. O ex-chefe da Receita entende como melhor solução derrubar o veto e discutir um modelo condizente com a realidade do século 21.

Quanto à reforma tributária, recém-aprovada pelo Senado e de volta à Câmara, Everardo Maciel é pessimista: prevê aumento de carga tributária, contencioso judicial e conflitos federativos. Ele espera estar errado — não se considera o dono da razão —, mas recorre a Roberto Campos para resumir o seu diagnóstico: "Não corre o risco de dar certo". Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida ao Correio.

O governo erra ou acerta quando veta a desoneração da folha a 17 setores produtivos, especialmente quando se considera essa medida afeta 9 milhões de trabalhadores, com possibilidade de gerar desemprego?

O governo erra. Há mais de 10 anos, para determinados setores — hoje, são 17 —, procedeu-se à mudança da base de cálculo das contribuições previdenciárias patronais, substituindo a folha de salário pelo faturamento. Não houve, portanto, desoneração no sentido estrito, mas mudança de base de cálculo. O retorno à forma de tributação anterior, a partir de 1º de janeiro próximo, implica aumento significativo da tributação sobre a folha de pagamentos, justamente em setores intensivos em mão de obra.

Qual a razão disso?

A verdadeira motivação do veto é aumentar a arrecadação para financiar projetos que não necessariamente importam para o desenvolvimento. Seria, além disso, ingenuidade dissociar essa motivação das eleições municipais do próximo ano. Pondero que não entendo como ilegítima a pretensão de buscar repercussão eleitoral por meio de políticas públicas. Quando, todavia, se recorre a aumento de arrecadação e se abdica de cortar gastos perdulários, que desafortunadamente são expressivos no Brasil, essa legitimidade desaparece. O grande pensador italiano Norberto Bobbio, em Elogio da Serenidade, ensinava: "Política não é tudo. A ideia de que tudo seja política é simplesmente monstruosa".

O ministro Fernando Haddad prometeu compensações para o fim da desoneração, mas só depois de concluída a reforma tributária. É possível?

Primeiro, é preciso dizer que o modelo de financiamento da previdência social por meio da tributação de folha de salários é tendente ao fracasso absoluto, pois há aumento da expectativa de vida, redução da natalidade e substituição da mão de obra por robôs, inteligência artificial e tudo o mais que se associa à revolução tecnológica, que assumiu caráter permanente. Não se trata de fenômeno local, mas universal. A mudança de base de cálculo operada há mais de 10 anos é consistente com essa realidade, cada vez mais robusta. Não afirmo que a mudança para o faturamento seja a melhor solução, porém, no caso específico, é melhor que a regra anterior. Ninguém no mundo tem uma solução pronta e acabada para um novo modelo de financiamento da previdência social. Creio, entretanto, que há um razoável consenso que o velho modelo tende à falência.

E quanto às compensações?

Quanto à promessa de compensação para as consequências do veto, entendo que é uma manobra claramente protelatória ou uma tática diversionista para acolher a derrubada do veto e, aí sim, "compensar" esse gesto, aparentemente generoso, com outras medidas visando, outra vez, a aumentar a tributação. O que entendo ser razoável: derruba-se o veto e, então, se discute uma nova regra que afaste a incidência sobre o faturamento.

O deficit das contas públicas para 2023 está bem acima do previsto, na casa dos R$ 177 bilhões. E o governo já fala em dificuldades para zerar o deficit em 2024. O governo Lula abusou dos gastos ou fez a conta errada?

O atual governo tem vocação claramente expansionista em relação ao gasto público, o que resulta na combinação da indisposição para eliminar os gastos, repito, perdulários com a voracidade para aumentar os gastos, perdulários ou não. Não faz tempo, ouvimos de uma autoridade governamental uma pérola da desrazão: "Gasto é vida". Montar uma política fiscal com base em metas é apostar no acaso. Metas são necessárias como parâmetros para avaliar a execução de políticas setoriais de gastos. Se essas políticas inexistem e de fato não existem, só restam duas possibilidades: recorrer-se à tosca ferramenta do contingenciamento ou pedir perdão, com razoável frequência, caso as metas não sejam cumpridas.

A poucas semanas do recesso parlamentar, há uma lista de questões delicadas em pauta. Elas podem atrapalhar os planos da economia em 2024?

Sim, podem atrapalhar a economia, especialmente, lamento dizer, se algumas delas prosperarem. O descontrole fiscal, a corrupção sistêmica, a instabilidade institucional e, a não menos importante, insegurança jurídica são questões que integram a agenda política nacional. A Argentina é hoje um exemplo extremo dessa terrível patologia social. Talvez, tivéssemos na mesma condição do país vizinho não fossem o Plano Real e as medidas a ele associadas, cuja capacidade de resistência às investidas populistas é admirável. O perigo, contudo, nos espreita.

A reforma tributária voltou para a Câmara e ainda terá um longo período de regulamentação. Qual sua expectativa?

Em minhas entrevistas, artigos e conferências, sempre apontei a impropriedade da solução da PEC 45 e suas variantes. Espero estar errado, afinal não tenho a arrogância dos que pretendem deter o monopólio das verdades absolutas, porém antevejo aumento da carga tributária, do contencioso judicial e dos conflitos federativos. Isso, como dizia Roberto Campos: "Não corre o risco de dar certo". Claro que temos problemas tributários, a maior parte deles resolvível por soluções relativamente simples. Para resolvê-los, todavia, não precisávamos montar uma geringonça.

Na COP28, o Cerrado e o Pantanal brasileiros estarão em evidência. Como o senhor enxerga as querelas sobre questão climática no Brasil?

O Brasil dispõe de um potencial não desprezível de recursos para enfrentar as mudanças climáticas, a exemplo do que existe nos biomas da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado. O que precisamos é equilibrar a utilização desses recursos, à margem dos radicalismos conservacionistas e predadores. Estamos longe de produzir um protocolo para a preservação do meio ambiente, inclusive o urbano, que possa assumir protagonismo em termos internacionais.

O Brasil terá sossego nos próximos anos?

Infelizmente, no meu entender, não.


sábado, 5 de abril de 2014

A destruicao do Estado brasileiro - Everardo Maciel

Destruindo o Estado brasileiro

Everardo Maciel
O Globo, 04/04/2014
Constitui singular paradoxo a crescente destruição do Estado brasileiro nos governos de partidos de tendências, ao menos no discurso, estatizantes.
A mídia oferece, dia após dia, abundantes exemplos de má gestão, incúria contumaz, desqualificação técnica nas decisões. É notório o fracasso das políticas públicas de segurança pública, educação, saúde, mobilidade urbana etc.
A razia realizada na Petrobras e Eletrobras produziu uma catástrofe, com expressiva perda de valor de mercado, endividamento elevado e recorrentes prejuízos. O dano é de tal magnitude que se anunciado, em passado recente, seria tido como alucinação.
No Banco do Brasil e na Caixa Econômica há uma contínua e crescente perda de qualidade nos serviços prestados, sem falar na temerária política de crédito do BNDES.
Esse estranho desapreço pelo Estado explica, também, as práticas de fisiologismo e de aparelhamento, sua variedade radical. Os ministérios passam a ser um múltiplo do número de partidos que integram a denominada “base aliada”, aos quais se somam as “tendências” e as bancadas, em cada uma das casas congressuais, dos partidos.
As “indicações”, contudo, não se limitam aos ministérios. Alcançam, além disso, as diretorias das autarquias, fundações, agências reguladoras e estatais, o que gera um caldo de cultura próprio para o florescimento de todas as modalidades de corrupção.
Para os conselhos de administração das estatais são designadas autoridades de elevado coturno como forma apenas de elevar seus vencimentos, fraudando descaradamente o conceito de teto de remuneração dos servidores públicos.
Esse processo é de tal sorte exuberante que, em Brasília, a demanda dos órgãos públicos ultrapassou os limites fixados no plano urbanístico para projetar-se sobre os espaços antes destinados à atividade privada, assumindo proporções mastodônticas.
Receio que nenhuma pessoa bem informada, salvo os responsáveis pelas atividades de protocolo, conheça, simultaneamente, os nomes dos ministérios e de seus respectivos titulares.
Para justificar esse estado de coisas se recorre à cínica tese da governabilidade, deduzida do chamado presidencialismo de coalização, que frequentemente se converte em colisão por motivos poucos virtuosos.
Como reação primitiva à promiscuidade na provisão das funções públicas de confiança, exsurge o corporativismo, que tanto quanto o fisiologismo e o aparelhamento é uma forma nociva de indevida apropriação do Estado.
A aversão à meritocracia se estende ao Judiciário. É particularmente ultrajante a trajetória de humilhações a que se submetem magistrados, membros do Ministério Público e advogados que almejam assento nos tribunais. São obrigados a recrutar, quase sempre sem o mínimo pendor para a tarefa, apoio de políticos e dos membros dos tribunais para exercer aquilo que deveria decorrer tão somente de sua qualificação jurídica e moral. No limite, esse perverso ritual tende a comprometer a imparcialidade dos julgamentos.
Nesse quadro patológico, tem destaque o desprestígio do princípio constitucional da eficiência. Não há avaliações, minimamente consistentes, dos servidores ou dos serviços públicos. Não se buscam soluções para os problemas com base em critérios de eficiência, que sequer existem. A cada deficiência se responde, toscamente, com expansão do efetivo de pessoal, sem nenhuma preocupação com suas repercussões sobre o equilíbrio fiscal.
Ainda no âmbito da eficiência, é lamentável a banalização das greves no serviço público. Tornou-se comum o que deveria ser um recurso extremo, revelando a supremacia do interesse corporativo sobre o coletivo, tendo o povo como vítima indefesa. Sem lei, por negligência dos Poderes Executivo e Legislativo, as greves hoje são limitadas, precariamente, por uma decisão do STF.
Esse Estado inchado e ineficiente, que flerta com o abismo, decorre, principalmente, da voracidade intervencionista combinada com uma visão centrada na perpetuação do poder.
Sua reconstrução é tarefa para estadistas.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A selva selvagem do sistema tributario brasileiro (sistema?!) - Everardo Maciel


Everardo Maciel
O Globo, 2/05/2013

Todos os especialistas sabem que temos um precário modelo de tributação do consumo - possivelmente o mais complexo do mundo.
Nele, tem especial destaque as distorções provocadas pela guerra fiscal do ICMS, que decorre de uma combinação de fatores que vão desde a renúncia do Governo Federal à indispensável tarefa de coordenação de um imposto de vocação nacional até o fracasso das políticas de desenvolvimento regional, daí passando à obsolescência das sanções às entidades que concedem benefícios em desacordo com as regras estabelecidas pela Lei Complementar nº 24, de 1975.
Ao exacerbar-se, a guerra fiscal gerou em um confronto aberto entre os que não admitem a competição fiscal lícita e os que proclamam a necessidade de concessão de benefícios fiscais, sem qualquer restrição.
As intervenções do Judiciário, invariavelmente declarando a inconstitucionalidade da guerra fiscal, foram sempre respondidas com mudanças formais na lei impugnada, preservados os meios para dar curso às concessões ilícitas.
Para reverter esse quadro, o Governo Federal apresentou vários projetos.
A guerra dos portos, consistindo em inacreditáveis benefícios à importação, foi enfrentada pela Resolução nº 13, do Senado. Essa via, contudo, afrontou o preceito constitucional que remete à lei complementar (art. 155, § 2º, inciso XII, letra g) o disciplinamento das concessões e revogações de benefícios no âmbito do ICMS.
O recurso à Resolução representou, além disso, um flagrante desvio de finalidade da competência do Senado, porquanto a fixação das alíquotas interestaduais daquele imposto pretende tão somente proceder à partilha horizontal de rendas.
Ao reduzir para 4% as alíquotas das operações interestaduais subsequentes à importação de mercadorias, a Resolução admitiu casuísticas exceções, a exemplo das mercadorias com conteúdo local superior a 40%, as sem similar nacional, as destinadas às indústrias de automação, informática e TV digital, as importadas pela Zona Franca de Manaus e o gás natural importado.
A indeterminação dos conceitos e as extravagâncias dos requisitos estão promovendo um festival de liminares, sem falar das acumulações de créditos de dificílima liquidez.
Para os demais casos de guerra fiscal, foram propostas medidas que incluem um projeto de lei complementar abrindo exceções ao requisito da unanimidade, a “uniformização” das alíquotas interestaduais do ICMS e a criação de fundos para compensar perdas dos entes federativos.
O projeto de lei complementar pretende sustar, até 31.12.2013, a exigência de unanimidade nas decisões dos Secretários da Fazenda, reduzindo o quórum para 3/5, a fim de permitir a convalidação de benefícios concedidos ilegalmente, desconhecendo completamente a vedação constitucional de a União conceder isenções de tributos estaduais (art. 151, inciso III) e o requisito de aprovação por lei estadual específica que regule exclusivamente a matéria (art. 150, § 6º).
A regra, de resto, inviabilizará investimentos futuros, que não lograrão concorrer com empreendimentos incentivados.
O projeto de Resolução visando “uniformizar” as alíquotas interestaduais, em relação à matéria, é o mais complexo modelo já concebido pela mente humana.
Afora o longo processo de redução das alíquotas, o projeto é pródigo em exceções: Zona Franca de Manaus, Áreas de Livre Comércio, gás natural, transporte aéreo, produtos agropecuários, situações alcançadas pela malsinada Resolução nº 13 e mercadorias sujeitas a um enigmático “processo produtivo básico” a ser aprovado pela União (sic). Assim, as duas alíquotas atuais se converterão em várias, a pretexto de “uniformização”!
Isto posto, a guerra fiscal continuará, por ausência de sanções legais, a tributação ficará mais complexa e mais créditos se acumularão. Ao contribuinte restará pagar uma conta superior a R$ 400 bilhões a serem destinados aos fundos compensatórios, nos próximos 20 anos. A despeito das evidências, sou cético quanto à possibilidade de elaborar-se algo pior.

Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal. 

terça-feira, 5 de março de 2013

Esquizofrenia tributaria brasileira - Everardo Maciel

A marcha da insensatez (2a. parte)
Everardo Maciel
O Globo, 4/03/2013

Em artigo publicado aqui em 04.02.2013 (“A Marcha da Insensatez”, primeira parte), tomei por empréstimo o primoroso título da obra da escritora e historiadora norte-americana Barbara Tuchman, para destacar uma evidência de insensatez na política tributária brasileira, que consiste no omisso e confuso tratamento dispensado ao planejamento tributário.

Retorno ao tema, em virtude da profusão de exemplos de insensatez tributária.

Na França, o presidente François Hollande, reproduzindo a demagógica criação do imposto sobre grandes fortunas, nos anos 1980, pelo também socialista presidente François Mitterrand, acaba de elevar a alíquota máxima do imposto de renda das pessoas físicas para 75%.

A iniciativa, além de confiscatória, estimulará abertamente o planejamento tributário e a mudança de domicílio fiscal (Gérard Depardieu, mais importante ator francês, já assumiu a cidadania russa, sob as bênçãos de Vladimir Putin). Tal como foi concebida, a medida será contraproducente e não vai, por isso mesmo, reequilibrar as desastradas contas públicas francesas. Quem viver, verá.

A tributação pode ser um instrumento para redução das desigualdades, desde que exercida nos limites da razoabilidade. Não sem razão se diz que os paraísos fiscais, de tão notória nocividade, só existem porque foram precedidos por infernos fiscais.

A insensatez tributária não se revela apenas por meio da extração desproporcional, como no exemplo francês. Pode manifestar-se, também, na falta de clareza do texto legal ou na indisposição do fisco de atender, em tempo hábil, às demandas do contribuinte.

Se clareza remete à moralidade, presteza é atributo da eficiência e se inscrevem ambas no âmbito dos princípios constitucionais da administração pública, que também alcançam a legalidade, a impessoalidade e a publicidade.

A guerra fiscal do ICMS atingiu contornos inimagináveis. Nesse contexto, a Resolução nº 13, de 2012, do Senado Federal constitui um exemplo de falta de clareza, potencializada por uma solução de baixíssima qualidade técnica, sem falar de sua presumida inconstitucionalidade.

Na chamada guerra dos portos, a obsessão dos Estados pela atração, a qualquer custo, de investimentos passou inacreditavelmente a privilegiar o produto importado vis-à-vis o nacional, constituindo um raro caso de discriminação territorial inversa.

Na ânsia de enfrentar essa questão, promulgou-se uma Resolução do Senado, em lugar de uma lei complementar, de tramitação legislativa mais exigente, conforme preconiza o art. 155, § 2º, inciso XII, alínea g da Constituição.

Não bastasse a inconstitucionalidade da norma, construiu-se um cipoal de requisitos burocráticos atentatórios ao bom senso, com destaque para a obrigação de identificar as margens dos negócios visando apurar um caricato “conteúdo nacional”, ofendendo uma elementar regra comercial.

A Justiça, felizmente, está afastando as absurdas exigências, não sendo desarrazoado que o STF venha considerar inconstitucional a norma aprovada.

De resto, por que só a guerra dos portos é indesejada? Seriam legais, ao contrário do que tem reiteradamente decidido o STF, as demais formas de guerra fiscal?

Não é bem assim. O que falta, em verdade, é disposição, por parte do Poder Público, para buscar-se uma solução constitucional, abrangente e eficaz para a ilegal guerra fiscal. A preferência é pela insensatez apressada.

A demora na solução de consultas tributárias, formuladas pelos contribuintes, converteu-se em algo patológico. Seria a legislação tão complexa que nem mesmo o fisco sabe adequadamente interpretá-la? Haveria razões para isso, pois ninguém desconhece a complexidade. A melhor explicação, entretanto, é a incúria, em ofensa ostensiva ao princípio constitucional da eficiência.

Outra pérola de insensatez é a tardia cobrança, pelos Estados, do imposto sobre doações em espécie. Até então, apenas o Estado de São Paulo fazia essa cobrança.

Essas operações são isentas de imposto de renda. Desse modo, os contribuintes informavam as doações efetivadas na declaração anual, na convicção de que não haveria ônus tributário.

De repente, à sorrelfa, a Receita Federal decidiu transferir essas informações para os fiscos estaduais, que passaram a fazer lançamentos retroativos aos últimos cinco anos, acompanhados de juros e multas. Antes disso, ressalvado o Estado de São Paulo, esse imposto jamais fora cobrado. Trata-se de mais um episódio de deslealdade tributária.

Em decorrência dessa insensatez, o contribuinte será induzido a buscar formas lícitas de evitar o pagamento do imposto, a exemplo da conversão da doação em empréstimo.

Sendo irrisória a participação do imposto sobre doações em espécie nas receitas estaduais, o que se pretende, afinal, com esse lançamento?

Espero que, na resposta, não esteja incluída a ideia de um curioso programa de deseducação tributária patrocinado pelo fisco, estimulando o planejamento tributário. Essa hipótese de incidência deveria, tão somente, ser extinta.

Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Grandes crimes, grandes ladroes - Everardo Maciel

Segundo o ex-Secretário da Receita, Lula é um criminoso doentio (dixit). Também acho. E com doses de megalomania, achando que tudo o que faz é grandioso. Pode ser, até o crime e a torpeza de não se envergonhar dele.

Paulo Roberto de Almeida 

O caixa 2

Everaldo Maciel
O Estado de S.Paulo, 03 de setembro de 2012

Fiquei estarrecido quando tomei conhecimento, pela mídia, de que a mais alta autoridade da República, à época que eclodiu o denominado escândalo do mensalão, alegara tratar-se de um mero caixa 2.
Uma autoridade fiscal chegaria ao limite da perplexidade ao ouvir de um contribuinte que praticara crime de sonegação por omissão de receita, por exemplo, a justificação de que fora tão somente um cândido exercício de caixa 2. Pois bem, esse mau contribuinte poderia acrescentar que se inspirara em discurso de autoridade.
O advogado, no exercício de uma função essencial ao Estado Democrático de Direito, tem a obrigação de buscar a absolvição ou, ao menos, a redução das penas que, em tese, seriam aplicáveis a seus clientes. O que espanta, todavia, é ver políticos e advogados festejarem o crime do caixa 2, diante da possibilidade de prescrição. Bradam solenemente: Foi apenas caixa 2! É a banalização da indecência.
Crime deve ser confessado de forma compungida e envergonhada, de cabeça baixa, com um mínimo sinal de arrependimento. Somente criminosos doentios se vangloriam de suas iniquidades.
Essas condutas funcionam como uma espécie de cupins da frágil estrutura de valores da sociedade brasileira. Somadas a outras, que de tão pequenas às vezes não são percebidas, vão minando as convicções das pessoas e arruinando o processo civilizatório.
A alegação do caixa 2 é um episódio neste processo de aviltamento dos valores. Não é, todavia, fato isolado. O ovo da serpente há muito se encontra instalado no Estado brasileiro.
A redemocratização no Brasil, infelizmente, revigorou a condenável prática do fisiologismo. Não tendo sido decorrente de uma ruptura institucional, mas de um processo conciliatório, a redemocratização trouxe à mesa do governo personagens antes abrigados na oposição.
Os novos protagonistas da cena política exigiram, legitimamente, que fossem representados na administração, já sobrecarregada pelos oriundos da velha ordem. A Nova República iniciou a temporada das "indicações". Foi a festa do velho fisiologismo.
A arena política passou a ser povoada por uma miríade de partidos e tendências, em que prevaleceram interesses localizados, pretextando o que foi chamado de presidencialismo de coalizão. O clássico fisiologismo, então, se sofisticou.
Se antes as postulações dos partidos políticos se limitavam às "indicações", num novo estágio elas se direcionaram para despudoradas demandas por "diretoria que fura poço" e tesouraria de estatais.
Mais recentemente, surgiu o que se chamou de aparelhamento, em que se vislumbrava um comprometimento ideológico dos indicados. Não é nada disso, entretanto, ainda que, em alguns momentos, se escutassem murmúrios de teses obscuras, cada vez mais subjugadas pelo pragmatismo. Aparelhamento é apenas outra denominação do fisiologismo, aplicável à ambição de grupelhos políticos não tradicionais. Qualquer que seja o nome, o que fica evidente é o propósito de manter-se no poder e dele se servir.
Chegou-se à ousadia de cobrar fidelidade da toga ao poder. Muitos se espantam quando magistrados decidem de forma diferente da expectativa dos que os nomearam. Marianne, símbolo da República desde a Revolução Francesa, deve estar ruborizada.
Essas práticas pouco edificantes se combinam com barganhas e negócios que têm por base as emendas parlamentares ao Orçamento. Serão elas, mantido o modelo existente, uma fonte inesgotável de escândalos. Não raro, os acusadores de hoje se convertem nos acusados de amanhã. A maldição está num sistema completamente vulnerável à corrupção.
O afrouxamento moral do Estado tem outras faces. Qual o respaldo moral para cobrar as dívidas dos contribuintes, se o Estado não paga precatórios, atrasa tanto quanto possível restituições e compensações de tributos e faz uso de todos os recursos procrastinatórios para evitar a liquidação de sentenças em que foi condenado? Essa assimetria de conduta, tão recorrente, é um desserviço à República.
Não me surpreendo, embora deplore, quando vejo cidadãos, publicamente, dizendo que não pagam impostos porque os políticos são corruptos. É o império da torpeza bilateral.
O que impressiona, de mais a mais, é constatar que essa crise axiológica, que não é recente, vem crescendo continuadamente, sem que nada interrompa sua execrável trajetória.
Há uma novidade, todavia. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos réus do mensalão, independentemente das decisões que venham a ser tomadas, trouxe a lume alguns conceitos alentadores, superando o ranço positivista que pretende a supremacia do formalismo sobre os fatos. O que se colhe fora do juízo, ainda que não sejam provas cabais, robustece as evidências extraídas no rito judicial. Nenhuma destinação, por mais meritória que seja, sacraliza dinheiro oriundo de peculato. Deve-se alegar caixa 2 em tom contrito e penitente. Como contraponto, pessoas inocentes têm o direito de ser declaradas inocentes. É uma réstia de esperança, até mesmo para os céticos, como eu.
* CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA, FEDERAL (1995-2002)