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sábado, 10 de agosto de 2024

Há 50 anos morria Frei Tito, mártir da ditadura - Edison Veiga (DW)

 HISTÓRIA BRASIL

Há 50 anos morria Frei Tito, considerado mártir da ditadura

Deutsche Welle, 10/08/2024

Dominicano, preso e torturado pelo regime, estava exilado na França quando provavelmente buscou a morte. A saga do "frade que leu Marx" se tornou emblemática na luta pelos direitos humanos no Brasil sob ditadura militar.

Frade dominicano cearense, Tito de Alencar Lima morreu aos 28 anos, não conseguindo conviver com o trauma das sevícias sofridas nas mãos da ditadura militar.

Depois que o frade dominicano Tito de Alencar Lima (1945-1974) foi encontrado morto por enforcamento nos arredores de Lyon, na França, em 10 de agosto de 1974, seus amigos acharam uma anotação sintomática em seu surrado exemplar da Bíblia. "É preferível morrer do que perder a vida", ele escrevera.

Embora a causa de sua morte nunca tenha sido esclarecida completamente, tudo indica que Frei Tito, como se tornou conhecido, tenha cometido suicídio por não suportar as sequelas físicas e psicológicas das longas e constantes sessões de tortura a que foi submetido, entre novembro de 1969 e janeiro de 1971, período em que esteve preso pelas forças do regime ditatorial que comandava o Brasil.

"É muito importante comemorar – que significa 'fazer memória' – os 50 anos do martírio de Frei Tito. É uma forma de não admitir que se apaguem a história das atrocidades cometidas pela ditadura militar ao longo de 21 anos, de 1964 a 1985, e alertar as novas gerações para o risco de o Brasil voltar a perder a sua frágil democracia e, de novo, cair em mãos de neofascistas", comenta o frade dominicano e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, que era amigo de Tito e esteve preso junto com ele.

Neste sábado (10/08), ele comanda um evento em homenagem a Tito na Escola Nacional Paulo Freire, no Ipiranga, em São Paulo.

Juventude católica e movimento estudantil

Nascido em Fortaleza, Tito começou a participar de encontros da Juventude Estudantil Católica (JEC) na adolescência. O organismo era um braço social da Igreja, com engajada preocupação política. A partir do ensino médio, passou a integrar o movimento estudantil — postura que se consolidou quando, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e já residindo na capital paulista, filiou-se à União Nacional dos Estudantes (UNE).

A essa altura, ele já havia ingressado para a ordem religiosa dos frades dominicanos. "Conheci o Tito quando ainda éramos estudantes do ensino médio, no início da década de 1960. Entre 1962 e 1964 eu era dirigente nacional da JEC e ele, dirigente do Nordeste. Várias vezes nos encontramos em encontros regionais e nacionais da JEC. E como nós dois tinham o propósito de abraçar a vida religiosa, ingressar na ordem dominicana, nos tornamos confidentes", recorda Betto. "Entrei no convento em 1965, e ele, em 1966. A partir de 1967 passamos a conviver no convento do bairro das Perdizes, em São Paulo. Estudávamos filosofia."

Em 12 de outubro de 1968 Frei Tito foi um dos participantes do famoso Congresso da UNE em Ibiúna. Assim como outros 600 estudantes, acabaria preso pela primeira vez, fichado, e liberado em seguida.

Capa do livro 'Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar', de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles
Biografia 'Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar', de Leneide Duarte-Plon e Clarisse MeirelesFoto: Leneide Duarte-Plon

A segunda, mais longa e mais cruel detenção viria no ano seguinte. "Não tínhamos medo", diz Frei Betto. "Éramos viciados em utopia, acreditávamos na queda da ditadura e no restabelecimento da democracia. O medo veio quando fomos presos em novembro de 1969, acusados de 'terroristas'."

"Pessoas como Tito foram presas pelo regime porque o regime prendia quem era considerado subversivo, que se opunha, com armas ou não", diz a jornalista Leneide Duarte-Plon, autora, em parceria com Clarisse Meireles, da biografia Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar.

Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), uma das razões dessa prisão é que ele era um personagem "com dupla identidade", já que representava tanto uma militância estudantil quanto um grupo de religiosos que constituía uma "rede integrada de apoio a uma das organizações que adotaram a luta armada como forma de oposição, a ALN". Essa Ação Libertadora Nacional "era a mais dinâmica, a mais agressiva, a mais organizada e mais bem preparada em termos técnicos e militares", ressalta.

Dos oito frades presos, quatro foram logo libertados, por falta de provas. E quatro ficaram na prisão: além de Tito e Betto, os também dominicanos Fernando de Brito (1936-2019) e Ivo Lesbaupin (* 1946).

De acordo com Frei Betto, eles participavam do movimento estudantil e adotavam "uma postura de esquerda", engajados na luta contra a ditadura. "Aderimos ao grupo Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos Marighella [político e guerrilheiro marxista]. Nunca pegamos em armas", frisa o dominicano. "Nosso papel era dar apoio aos guerrilheiros urbanos: escondê-los, tirá-los do país clandestinamente, acolhê-los quando feridos em ações armadas etc.."

Sobre o amigo, Betto comenta que "tinha alma de poeta": "Escrevia poemas, tocava violão e dedicava longas horas à oração."

Torturas violentas

O período de prisão de Tito pode ser dividido em duas partes. No início, ele ficou numa cela no Presídio Tiradentes, assim como seus outros colegas religiosos. Até então, pairava sobre ele a acusação de ser aliado da ALN de Marighella. "Ele foi violentamente torturado pelo [delegado] Sérgio Fleury", enfatiza Duarte-Plon.

A situação ficou mais complicada quando se descobriu que ele tinha sido um dos intermediadores mais importantes para os universitários conseguirem o sítio de Ibiúna onde o congresso da UNE havia sido realizado. No início de 1970, Tito passou então a ser um caso Operação Bandeirantes, definida pelos próprios torturadores como "sucursal do inferno" para os opositores do regime.

"Além de ter sido muito torturado ao ser preso, em novembro de 1969, voltou às torturas em fevereiro de 1970, quando a repressão descobriu que ele conseguira o sítio do congresso da UNE", conta Frei Betto.

Em fevereiro de 1970 ele escreveu e conseguiu que vazasse uma carta em que detalhava os métodos de tortura que vinha sofrendo, com direito a instrumentos de sevícia, choques elétricos, pauladas e pontapés. No texto, revela a vontade de se matar, entendendo que no suicídio estaria a única solução para seu sofrimento e para dar visibilidade internacional às atrocidades cometidas pela ditadura.

"O governo [de Emílio Garratazu] Médici sofria pressão no exterior para justificar a prisão de frades acusados de terrorismo", lembra Betto. "Isso nunca havia ocorrido. Então durante três dias torturaram Tito de todas as maneiras, para que assinasse um documento confessando que havíamos participado de operações armadas: choques elétricos, pele queimada por cigarro aceso, pancadas na cabeça, etc.. Ele resistiu. Não assinou."

Seu martírio parecia ter chegado ao fim quando, em janeiro de 1971, acabou liberado porque constava na lista dos presos políticos trocados pela libertação do embaixador suíço que havia sido sequestrado por guerrilheiros. Do Brasil, foi para o Chile, em seguida passou alguns dias na Itália. E, depois, com o apoio de dominicanos, fixou-se na França.

Duarte-Plon conta que lá, ele primeiro se instalou num convento dominicano de Paris e chegou a ingressar na Universidade de Sorbonne. "Mas ele não tinha condições mais de seguir os estudos", comenta. Então foi mandado para o convento Sainte-Marie de La Tourette, em Éveux, perto de Lyon.

Ali passou um ano, até se suicidar", relata a biógrafa. "Ele vivia em desespero, com alucinações, sonhos e visões. A morte era a única saída." Antes, ele já havia tentado o suicídio outras duas vezes: ainda na prisão, cortou os pulsos; na França, intoxicou-se com medicamentos. Em ambas as ocasiões acabou hospitalizado e salvo.

Lápide de Frei Tito no convento Sainte-Marie de la Tourette, mais tarde transferida para o Brasil
Lápide de Frei Tito no convento Sainte-Marie de la Tourette, mais tarde transferida para o BrasilFoto: Leneide Duarte-Plon

Um frade marxista

Seu caso se tornou simbólico. Mas, depois da prisão, Tito jamais ficaria bem. "As sequelas do que ele passou foram muito profundas, abalando sua própria personalidade. Tito passou a ter uma introspecção e um certo pânico incontrolável. Ele se sentia permanentemente ameaçado de sofrer nova prisão, novas torturas", acrescenta o historiador Martinez. "E isso provocou uma destruição psicológica do indivíduo."

Duarte-Plon ressalta que Tito "se declarava um frade que tinha lido Marx e encontrava no marxismo muitas linhas que estariam na mensagem de Cristo": "Ele sempre se declarou marxista. Trabalhava para libertar o povo brasileiro da ditadura e para encontrar a democracia. Foi barbaramente destruído nas salas de tortura. Eles não tinham limite, torturavam até o insuportável."

Dez anos após sua morte, o então cardeal arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns (1921-2016), em celebração litúrgica na Catedral da Sé, afirmou que "Frei Tito não se matou, mas buscou do outro lado da vida a unidade perdida deste lado".

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A DW evita noticiar suicídios, pois há indícios de que relatos sobre o assunto podem incitar a imitar tais ações. Se enfrenta problemas emocionais e tem pensamentos suicidas, não deixe de procurar ajuda profissional. Você pode buscar ajuda no site www.befrienders.org/portugese.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

UE acerta novo pacote de sanções contra Rússia (DW)

 UE acerta novo pacote de sanções contra Rússia

Deutsche Welle, 5/10/2022

Oitavo conjunto de retaliações contra Moscou é resposta do bloco à anexação ilegal de territórios ucranianos e inclui limite a preço do petróleo russo.

Os países integrantes da União Europeia chegaram nesta quarta-feira (05/10) a um acordo sobre novas sanções contra a Rússia. O novo pacote, o oitavo desde o início da invasão russa à Ucrânia em fevereiro, passará por um processo de aprovação formal e, caso não haja objeções, entra em vigor nesta quinta-feira.

"Acabamos de chegar a um acordo político sobre novas sanções contra a Rússia: uma resposta contundente da UE à anexação ilegal de territórios ucranianos por Putin", informou no Twitter o governo da República Tcheca, que ocupa a presidência rotativa da UE.

Limite do preço do petróleo

O pacote inclui o compromisso para estabelecer um teto para o preço do petróleo russo se o valor for acordado com o G7 (grupo de países mais industrializados do mundo) e outros países. O teto do preço do petróleo consiste em só permitir o transporte do petróleo russo e seus derivados para países fora da UE se Moscou vendê-lo a um preço igual ou inferior ao fixado, para reduzir, dessa forma, a receita de que Moscou dispõe para financiar a guerra contra a Ucrânia e também limitar os impactos na crise energética.

O acordo foi alcançado após a aceitação da exigência de Grécia, Chipre e Malta de que a proposta só iria adiante se implementada por uma coalizão mais ampla de países, temendo que suas companhias marítimas percam participação de mercado para concorrentes.

Contra a propaganda do Kremlin

A nova rodada de sanções também atingirá indivíduos, acrescentando à lista de sanções individuais os responsáveis pró-russos nas regiões ucranianas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia, ocupadas pela Rússia. 

As retaliações proíbem ainda os cidadãos europeus de participarem dos conselhos de administração de empresas públicas russas.

A UE também incluirá na lista de russos sancionados Alan Lushnikov, o maior acionista da fabricante de armas russa JSC Kalashnikov Concern, além de artistas ou músicos que participaram de atos de propaganda do Kremlin.

Também é destaque a inclusão da empresa russa Alrosa, uma das maiores produtoras de diamantes do mundo. Além disso, também fazem parte da lista a empresa JSC Goznak, responsável, entre outras coisas, pela impressão dos passaportes que Moscou distribui nas regiões ocupadas de Donbass, e outras empresas relacionadas ao fornecimento de armas ao exército russo e uma envolvida em pesquisas nucleares para uso civil.

A UE também vetará a exportação de tecnologia nos setores de aviação, eletrônicos e produtos químicos e siderúrgicos, entre outros, para privar o Kremlin de tecnologias-chave para a máquina de guerra russa.

"Kremlin continuará pagando"

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, saudou o acordo sobre o pacote de sanções. "Nunca aceitaremos os falsos referendos de Putin nem qualquer tipo de anexação na Ucrânia. Estamos determinados a continuar fazendo o Kremlin pagar", escreveu ela no Twitter.

Uma resposta mais reservada veio do ministro das Relações Exteriores da Lituânia, Gabrielius Landsbergis, que criticou o número de isenções incluídas no último pacote. "O tempo para pacotes fortes acabou e, ao ler os documentos apresentados, às vezes tem-se a impressão de que há mais exceções do que sanções", disse ele a uma rádio lituana na quarta-feira. "No entanto, é melhor do que nada, do que nenhum pacote", disse ele, acrescentando: "Estamos progredindo, embora de forma bastante fraca".

md/rk (Reuters, DPA, EFE, AFP, Lusa)


segunda-feira, 3 de maio de 2021

"Há estratégia por trás de ataques a jornalistas no Brasil" - Diretor da Repórteres Sem Fronteiras, entrevista (DW)

Triste dia, no Brasil, na verdade, com todos os ataques perversos de Bolsonaro contra a imprensa, a grande mídia e a que não lhe é servil...

DIA MUNDIAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA

"Há estratégia por trás de ataques a jornalistas no Brasil"

Diretor da Repórteres Sem Fronteiras identifica uma cadeia de ação estruturada contra jornalistas, encabeçada por Bolsonaro. Em meio à pandemia, presidente tenta responsabilizar a imprensa pelo caos no país, afirma.

    
Jair Bolsonaro

"Com um presidente que espalha mentiras e desinformação, o trabalho da imprensa é vital", afirma diretor da RSF

O Brasil caiu quatro posições no último ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), referente a 2020. Foi o quarto ano consecutivo de queda. Na 111ª colocação, o país entrou na "zona vermelha", que caracteriza um cenário difícil para a atuação jornalística, ao lado de países como Afeganistão, Emirados Árabes Unidos e Guatemala.

Em entrevista à DW Brasil, o diretor da RSF na América Latina, Emmanuel Colombié, afirma haver uma estratégia estruturada de ataques a jornalistas no Brasil. Ele identifica uma cadeia de atuação que vai do presidente Jair Bolsonaro à sua base de apoiadores e cria um "ambiente tóxico" para a atuação dos profissionais de imprensa. 

"O presidente está tentando dizer que os jornalistas são responsáveis pelo caos do país", afirma. "Ele quer esconder a sua incapacidade de lidar com a crise sanitária dizendo que é culpa dos jornalistas. Muita gente acredita nisso. Não à toa, vemos muitos ataques a jornalistas nos protestos e linchamentos digitais, principalmente contra mulheres." 

Colombié ressalta que em meio à pandemia, o trabalho da imprensa é ainda mais importante. "No momento de crise sanitária, o direito de ser informado e informar é tão importante quanto o direito à saúde, pois a informação pode salvar vidas. Com um presidente que espalha mentiras e desinformação sobre a crise, o trabalho dos jornalistas se tornou ainda mais importante. É vital."

O diretor da RSF chama atenção para a existência de um quadro estrutural de violência contra profissionais da informação no país. Nos últimos dez anos, o Brasil registrou 30 assassinatos de jornalistas e comunicadores. O número só não é superior ao observado no México.

Colombié destaca que profissionais que atuam em nível local, sobretudo radialistas, são os principais alvos, por denunciarem a atuação de grupos criminosos e casos de corrupção, sem contar com a mesma visibilidade de jornalistas da grande imprensa. "Há o recrudescimento de uma situação grave de corrupção, violência e influência das milícias", observa.

Nesta segunda-feira (03/05), é celebrado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

DW Brasil: No último ranking de liberdade de imprensa da RSF, o Brasil caiu quatro posições e entrou na zona vermelha de situação difícil. Que fatores levaram a essa situação? 

Emmanuel Colombié: Infelizmente, a nova edição da Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa mostra um mapa mundial cada vez mais sombrio. A posição que o Brasil passou a ocupar é indigna de uma democracia desse grau. O país convive com problemas históricos e uma violência estrutural no campo da liberdade de expressão. O Brasil ainda é um país muito perigoso para jornalistas e comunicadores. Além disso, tem o problema de judicialização da censura. Cada vez mais, jornalistas são alvo de processos judiciais abusivos, acusados de difamação, por exemplo. Podemos falar também da violação constante do sigilo das fontes e da alta concentração da propriedade dos meios de comunicação. Geralmente, nas mãos de famílias que têm conexão direta com a classe política, industrial e, às vezes, com os poderes religiosos. Isso prejudica a qualidade do pluralismo, do debate democrático e a diversidade nesse horizonte midiático.

Agora, é importante mencionar que temos um jogo político muito preocupante. Desde a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, os jornalistas trabalham em um ambiente tóxico. O presidente, os filhos e vários de seus aliados dentro e fora do governo estão insultando, difamando jornalistas e meios de comunicação quase todos os dias. Qualquer ação da mídia que ameace os interesses do presidente e toque nos seus problemas desencadeia uma nova rodada de ataques verbais muito violentos, que obviamente irão fomentar um clima de ódio e desconfiança em relação aos jornalistas no país. É importante mencionar que esses ataques seguem uma estratégia bem definida, cada vez mais estruturada. Não são ataques isolados. Há um sistema organizado de atuação que começa com o próprio presidente e logo chega à família, ao governo e à base da militância, muito bem organizada nas redes sociais. Eles transformam esses ataques em linchamentos digitais e, por vezes, infelizmente, ataques físicos contra jornalistas. Esse sistema organizado tenta, simplesmente, destruir a credibilidade dos jornalistas. Por isso, há um clima tóxico para os jornalistas no Brasil desde o início do governo.

Como esse "ambiente tóxico" que você descreve ameaça a atuação de jornalistas, em termos concretos?

A partir desse sistema organizado de ataques, vemos consequências dentro da própria sociedade sobre essa percepção sobre os jornalistas. A família Bolsonaro tem um método parecido com o que observamos na época do Donald Trump nos EUA, assim como na Venezuela e na Nicarágua. Tentam apresentar a imprensa como inimiga do povo e do Brasil. A partir dessa narrativa, a partir da criação desse ambiente tóxico, os jornalistas vão estar cada vez mais vulneráveis. A pandemia do coronavírus tem evidenciado ainda mais essa situação. O presidente está tentando dizer que os jornalistas são responsáveis pelo caos do país. De alguma forma, ele busca transformá-los em um bode expiatório. Ele quer esconder a sua incapacidade de lidar com a crise sanitária dizendo que é culpa dos jornalistas. Muita gente acredita nisso. Não à toa, vemos muitos ataques a jornalistas nos protestos e linchamentos digitais, principalmente contra mulheres. 

Tem sido também muito difícil para os jornalistas ter acesso a informações públicas sobre o tratamento da crise pelo governo federal. Tem um grande problema de acesso à informação, uma falta de transparência do governo nessa gestão da crise. Cria-se um desafio adicional para os jornalistas em busca de informações confiáveis sobre o número de mortes e de vacinados. É um problema bem significativo. Além disso, o próprio presidente e órgãos institucionais, como a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) difundiram mentiras e notícias falsas sobre o tratamento do coronavírus. Eles promoveram a cloroquina e outros remédios cuja eficácia no combate a esse vírus nunca foi comprovada. Portanto, em meio a ataques permanentes e à falta de acesso a informações, os jornalistas têm que relatar os fatos, porque o presidente é um mentiroso compulsivo, que difunde notícias falsas pessoalmente e por meio de órgãos oficiais. Isso é gravíssimo, são desafios muito complexos. Queria saudar os jornalistas brasileiros que estão trabalhando em um contexto tóxico, muito delicado.

O crime organizado tem se fortalecido no Brasil, com a expansão das milícias nos centros urbanos e dos grupos de pistoleiros no interior e no campo. Como esse contexto afeta a liberdade de imprensa?

Como eu falei, há uma situação estrutural de violência contra a imprensa e de vulnerabilidade, sobretudo, dos comunicadores e jornalistas independentes, afastados dos grandes centros urbanos. A maioria dos casos de jornalistas assassinados nos últimos anos era de radialistas com atuação local. Longe das grandes cidades, eles denunciavam a atuação de milícias e grupos violentos em programas de opinião. É importante falar desse jornalismo comunitário, local. Eles estão difundindo a informação de interesse público e, por fazer esse trabalho fundamental, são atacados, sem que gozem do mesmo nível de visibilidade e proteção que os jornalistas dos grandes veículos nas capitais. Há o recrudescimento de uma situação grave de corrupção, violência e influência das milícias. Existe também o problema de autocensura, justamente gerado pelo controle de alguns mercados por grupos de delinquentes com acesso a poderes políticos. Os jornalistas locais geralmente são os primeiros alvos dessas milícias.

Você acredita que a pandemia trouxe uma valorização maior do jornalismo profissional pelo público?

Eu acho que não. Há mais de um ano, os jornalistas são aqueles que vêm trazer as notícias ruins. As mensagens do momento são terríveis: notícias sobre mortes, contaminação. Já havia, no Brasil, uma percepção frágil da importância do jornalismo. Estamos em uma época de desinformação, com um monte de fake news circulando. Vários jornalistas, comunicadores e políticos são acusados de difundir informações falsas. Esse conteúdo circula de forma muito mais rápida que as informações verdadeiras. É um desafio importante pensar em como viralizar as informações verdadeiras.

Parte da nossa análise é dizer que o jornalismo, neste momento, é a melhor vacina contra a desinformação. Mas é preciso haver um trabalho pedagógico junto às audiências. Em primeiro lugar, deve-se deixar claro que podem ter interesses privados por trás dos jornais. É importante que o público saiba o que tem por trás da informação, o que dialoga com essa ideia de combater eficientemente a propagação de notícias falsas. Além disso, falta um discurso público, por parte dos governantes, de valorização da importância de ter uma imprensa livre, crítica e plural, para ter um debate democrático são e uma diversidade de opiniões que são positivos para o país. Mas temos, aqui no Brasil, um presidente que propõe essa narrativa anti-imprensa. Infelizmente, muitas pessoas acreditam que os jornalistas estão trabalhando contra os interesses do país. Portanto, é preciso haver esse trabalho educativo para dizer que os jornalistas estão aqui para relatar fatos e informar. 

No momento de crise sanitária, o direito de ser informado e informar é tão importante quanto o direito à saúde, pois a informação pode salvar vidas. Com um presidente que espalha mentiras e desinformação sobre a crise, o trabalho dos jornalistas se tornou ainda mais importante. É vital. A imprensa precisa também se olhar no espelho e avaliar se está sendo responsável e respondendo a essa crise de confiança com mais jornalismo de qualidade, ético, com fatos comprovados, para evitar justamente ser atacada nesse campo de desinformação.

Um trabalho jornalístico bem feito não deveria sofrer nenhum tipo de contestação ou ataque. Infelizmente, ainda acontece, mas uma das respostas deve vir também dos próprios jornalistas, para responder a essa crise de confiança. Daqui até o fim do mandato do Bolsonaro, vai ser assim. Vamos ter essa narrativa anti-imprensa, a circulação em todos os canais da base de apoiadores do presidente dessa ideia de que jornalistas são inimigos do povo e estão espalhando notícias falsas para derrubar o presidente. Sabemos que não é assim.

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