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sábado, 10 de agosto de 2024

Há 50 anos morria Frei Tito, mártir da ditadura - Edison Veiga (DW)

 HISTÓRIA BRASIL

Há 50 anos morria Frei Tito, considerado mártir da ditadura

Deutsche Welle, 10/08/2024

Dominicano, preso e torturado pelo regime, estava exilado na França quando provavelmente buscou a morte. A saga do "frade que leu Marx" se tornou emblemática na luta pelos direitos humanos no Brasil sob ditadura militar.

Frade dominicano cearense, Tito de Alencar Lima morreu aos 28 anos, não conseguindo conviver com o trauma das sevícias sofridas nas mãos da ditadura militar.

Depois que o frade dominicano Tito de Alencar Lima (1945-1974) foi encontrado morto por enforcamento nos arredores de Lyon, na França, em 10 de agosto de 1974, seus amigos acharam uma anotação sintomática em seu surrado exemplar da Bíblia. "É preferível morrer do que perder a vida", ele escrevera.

Embora a causa de sua morte nunca tenha sido esclarecida completamente, tudo indica que Frei Tito, como se tornou conhecido, tenha cometido suicídio por não suportar as sequelas físicas e psicológicas das longas e constantes sessões de tortura a que foi submetido, entre novembro de 1969 e janeiro de 1971, período em que esteve preso pelas forças do regime ditatorial que comandava o Brasil.

"É muito importante comemorar – que significa 'fazer memória' – os 50 anos do martírio de Frei Tito. É uma forma de não admitir que se apaguem a história das atrocidades cometidas pela ditadura militar ao longo de 21 anos, de 1964 a 1985, e alertar as novas gerações para o risco de o Brasil voltar a perder a sua frágil democracia e, de novo, cair em mãos de neofascistas", comenta o frade dominicano e escritor Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, que era amigo de Tito e esteve preso junto com ele.

Neste sábado (10/08), ele comanda um evento em homenagem a Tito na Escola Nacional Paulo Freire, no Ipiranga, em São Paulo.

Juventude católica e movimento estudantil

Nascido em Fortaleza, Tito começou a participar de encontros da Juventude Estudantil Católica (JEC) na adolescência. O organismo era um braço social da Igreja, com engajada preocupação política. A partir do ensino médio, passou a integrar o movimento estudantil — postura que se consolidou quando, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e já residindo na capital paulista, filiou-se à União Nacional dos Estudantes (UNE).

A essa altura, ele já havia ingressado para a ordem religiosa dos frades dominicanos. "Conheci o Tito quando ainda éramos estudantes do ensino médio, no início da década de 1960. Entre 1962 e 1964 eu era dirigente nacional da JEC e ele, dirigente do Nordeste. Várias vezes nos encontramos em encontros regionais e nacionais da JEC. E como nós dois tinham o propósito de abraçar a vida religiosa, ingressar na ordem dominicana, nos tornamos confidentes", recorda Betto. "Entrei no convento em 1965, e ele, em 1966. A partir de 1967 passamos a conviver no convento do bairro das Perdizes, em São Paulo. Estudávamos filosofia."

Em 12 de outubro de 1968 Frei Tito foi um dos participantes do famoso Congresso da UNE em Ibiúna. Assim como outros 600 estudantes, acabaria preso pela primeira vez, fichado, e liberado em seguida.

Capa do livro 'Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar', de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles
Biografia 'Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar', de Leneide Duarte-Plon e Clarisse MeirelesFoto: Leneide Duarte-Plon

A segunda, mais longa e mais cruel detenção viria no ano seguinte. "Não tínhamos medo", diz Frei Betto. "Éramos viciados em utopia, acreditávamos na queda da ditadura e no restabelecimento da democracia. O medo veio quando fomos presos em novembro de 1969, acusados de 'terroristas'."

"Pessoas como Tito foram presas pelo regime porque o regime prendia quem era considerado subversivo, que se opunha, com armas ou não", diz a jornalista Leneide Duarte-Plon, autora, em parceria com Clarisse Meireles, da biografia Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar.

Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), uma das razões dessa prisão é que ele era um personagem "com dupla identidade", já que representava tanto uma militância estudantil quanto um grupo de religiosos que constituía uma "rede integrada de apoio a uma das organizações que adotaram a luta armada como forma de oposição, a ALN". Essa Ação Libertadora Nacional "era a mais dinâmica, a mais agressiva, a mais organizada e mais bem preparada em termos técnicos e militares", ressalta.

Dos oito frades presos, quatro foram logo libertados, por falta de provas. E quatro ficaram na prisão: além de Tito e Betto, os também dominicanos Fernando de Brito (1936-2019) e Ivo Lesbaupin (* 1946).

De acordo com Frei Betto, eles participavam do movimento estudantil e adotavam "uma postura de esquerda", engajados na luta contra a ditadura. "Aderimos ao grupo Ação Libertadora Nacional, comandado por Carlos Marighella [político e guerrilheiro marxista]. Nunca pegamos em armas", frisa o dominicano. "Nosso papel era dar apoio aos guerrilheiros urbanos: escondê-los, tirá-los do país clandestinamente, acolhê-los quando feridos em ações armadas etc.."

Sobre o amigo, Betto comenta que "tinha alma de poeta": "Escrevia poemas, tocava violão e dedicava longas horas à oração."

Torturas violentas

O período de prisão de Tito pode ser dividido em duas partes. No início, ele ficou numa cela no Presídio Tiradentes, assim como seus outros colegas religiosos. Até então, pairava sobre ele a acusação de ser aliado da ALN de Marighella. "Ele foi violentamente torturado pelo [delegado] Sérgio Fleury", enfatiza Duarte-Plon.

A situação ficou mais complicada quando se descobriu que ele tinha sido um dos intermediadores mais importantes para os universitários conseguirem o sítio de Ibiúna onde o congresso da UNE havia sido realizado. No início de 1970, Tito passou então a ser um caso Operação Bandeirantes, definida pelos próprios torturadores como "sucursal do inferno" para os opositores do regime.

"Além de ter sido muito torturado ao ser preso, em novembro de 1969, voltou às torturas em fevereiro de 1970, quando a repressão descobriu que ele conseguira o sítio do congresso da UNE", conta Frei Betto.

Em fevereiro de 1970 ele escreveu e conseguiu que vazasse uma carta em que detalhava os métodos de tortura que vinha sofrendo, com direito a instrumentos de sevícia, choques elétricos, pauladas e pontapés. No texto, revela a vontade de se matar, entendendo que no suicídio estaria a única solução para seu sofrimento e para dar visibilidade internacional às atrocidades cometidas pela ditadura.

"O governo [de Emílio Garratazu] Médici sofria pressão no exterior para justificar a prisão de frades acusados de terrorismo", lembra Betto. "Isso nunca havia ocorrido. Então durante três dias torturaram Tito de todas as maneiras, para que assinasse um documento confessando que havíamos participado de operações armadas: choques elétricos, pele queimada por cigarro aceso, pancadas na cabeça, etc.. Ele resistiu. Não assinou."

Seu martírio parecia ter chegado ao fim quando, em janeiro de 1971, acabou liberado porque constava na lista dos presos políticos trocados pela libertação do embaixador suíço que havia sido sequestrado por guerrilheiros. Do Brasil, foi para o Chile, em seguida passou alguns dias na Itália. E, depois, com o apoio de dominicanos, fixou-se na França.

Duarte-Plon conta que lá, ele primeiro se instalou num convento dominicano de Paris e chegou a ingressar na Universidade de Sorbonne. "Mas ele não tinha condições mais de seguir os estudos", comenta. Então foi mandado para o convento Sainte-Marie de La Tourette, em Éveux, perto de Lyon.

Ali passou um ano, até se suicidar", relata a biógrafa. "Ele vivia em desespero, com alucinações, sonhos e visões. A morte era a única saída." Antes, ele já havia tentado o suicídio outras duas vezes: ainda na prisão, cortou os pulsos; na França, intoxicou-se com medicamentos. Em ambas as ocasiões acabou hospitalizado e salvo.

Lápide de Frei Tito no convento Sainte-Marie de la Tourette, mais tarde transferida para o Brasil
Lápide de Frei Tito no convento Sainte-Marie de la Tourette, mais tarde transferida para o BrasilFoto: Leneide Duarte-Plon

Um frade marxista

Seu caso se tornou simbólico. Mas, depois da prisão, Tito jamais ficaria bem. "As sequelas do que ele passou foram muito profundas, abalando sua própria personalidade. Tito passou a ter uma introspecção e um certo pânico incontrolável. Ele se sentia permanentemente ameaçado de sofrer nova prisão, novas torturas", acrescenta o historiador Martinez. "E isso provocou uma destruição psicológica do indivíduo."

Duarte-Plon ressalta que Tito "se declarava um frade que tinha lido Marx e encontrava no marxismo muitas linhas que estariam na mensagem de Cristo": "Ele sempre se declarou marxista. Trabalhava para libertar o povo brasileiro da ditadura e para encontrar a democracia. Foi barbaramente destruído nas salas de tortura. Eles não tinham limite, torturavam até o insuportável."

Dez anos após sua morte, o então cardeal arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns (1921-2016), em celebração litúrgica na Catedral da Sé, afirmou que "Frei Tito não se matou, mas buscou do outro lado da vida a unidade perdida deste lado".

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A DW evita noticiar suicídios, pois há indícios de que relatos sobre o assunto podem incitar a imitar tais ações. Se enfrenta problemas emocionais e tem pensamentos suicidas, não deixe de procurar ajuda profissional. Você pode buscar ajuda no site www.befrienders.org/portugese.


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Bandeirantes: o mito e a história - Edison Veiga (BBC-Brasil)

Um excelente artigo sobre a verdade e os mitos sobre os bandeirantes. (PRA)

 

Como os bandeirantes, cujas homenagens hoje são questionadas, foram alçados a 'heróis paulistas'

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53116270?fbclid=IwAR3RtG5xoKqQPNRhEmSxNXioTi-6DBuw5cvQWsMtkomzrOnpzy1R1bJWXHY

Edison Veiga, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, 20 junho 2020

 

Retrato de Domingos Jorge Velho mostra "muitas das características que acabaram por se tornar uma convenção de como representá-los", diz historiador

 

Eles eram rudes, geralmente iletrados, passavam longos períodos embrenhados em matas e campos desconhecidos, comiam mal e perseguiam índios. Figuras típicas do Brasil colonial, diretamente responsáveis pelas incursões "do homem branco" pelos confins então desconhecidos do Brasil, os bandeirantes acabaram elevados ao panteão dos heróis — sobretudo dos paulistas —, em um movimento iniciado no fim do século 19, incorporado aos discursos das comemorações do primeiro centenário da Independência, em 1922, reforçado na Revolução Constitucionalista de 1932 e consolidado nas celebrações do Quarto Centenário de São Paulo, em 1954. 

Documentos do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo atestam que o primeiro logradouro público a ser batizado com o termo foi a rua dos Bandeirantes, no bairro do Bom Retiro, em maio de 1891. De lá para cá, o povo paulista ganhou a avenida dos Bandeirantes, a rodovia dos Bandeirantes, o canal de TV Bandeirantes e até a sede oficial do governo do estado se chama Palácio dos Bandeirantes. 

Monumentos e estátuas são inúmeros. Do Monumento às Bandeiras, obra de Victor Brecheret (1894-1955) concluída em 1953, à estátua do Borba Gato, polêmico trabalho de Júlio Guerra (1912-2001), inaugurada em 1957, não faltam homenagens aos bandeirantes pelas ruas e espaços públicos da cidade.

Na esteira dos movimentos que pedem a retirada de monumentos racistas ao redor do mundo — alguns indo às vias de fato —, o Brasil vive, sobretudo nas redes sociais, fenômeno semelhante. E o alvo tupiniquim são os bandeirantes. 

"É importante que a gente derrube, reescreva, renomeie. Mas que fique registrada a historicidade disso", opina à BBC News Brasil o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão (UEM) e membro do instituto Proprietas, que fomenta discussões sobre o bem comum.

 

"Não basta derrubar, não basta renomear. É preciso registrar o momento histórico em que isso ocorreu, por que isso ocorreu. Afinal, se trata de disputas por memória. E nos momentos em que essas questões emergem, memórias em disputa podem provocar renomeações e derrubadas. Isso é positivo."

Segundo o historiador Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), quem primeiro elegeu os bandeirantes, também chamados de sertanistas, como heróis foram os membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), na década de 1890, em conjunto com genealogistas de então. 

"Os sertanistas, vistos como bárbaros por grande parte dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, e por artistas cariocas, foram progressivamente enaltecidos nos círculos literários e intelectuais paulistas como líderes do processo de construção territorial do Brasil", contextualiza ele.

"Romances, artigos em jornais e na revista do IHGSP, livros de história, monumentos escultóricos públicos e pinturas históricas foram os maiores responsáveis pela disseminação de uma visão positiva dos bandeirantes, que enalteciam como heróicos os feitos de 'desbravamento' — a retirada do bravio dos sertões — por meio da destruição das missões jesuíticas espanholas, de quilombos, como o de Palmares, e de populações indígenas sertanejas das capitanias do Norte, atual Nordeste."

"A figura do bandeirante como aquele herói que ampliava as fronteiras da então colônia, ou daquele que descobre as riquezas minerais, começou a ser construída a partir da ascensão econômica de São Paulo, especialmente a partir dos fim do século 19 e início do século 20", explica o historiador Luís Soares de Camargo, diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo. 

"O contexto histórico é fácil de ser entendido: São Paulo despontava como a grande potência econômica, mas faltava-lhe uma base historiográfica que desse uma base a esse novo papel do povo paulista. Faltava um 'herói' para dar mais consistência a uma tese de que desde o passado São Paulo já estava à frente das demais capitanias. Assim, alguns historiadores deram início a esse processo de glorificação do passado paulista e a figura que mais se adequava era a dos sertanistas. Forte, corajoso, guerreiro."

Professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Paulo Henrique Martinez também atribui a consolidação do mito do bandeirante ao poderio econômico experimentado por São Paulo a partir do início do século 20. 

"Houve a consagração e associação deste espírito aventureiro [dos bandeirantes] com os empreendimentos econômicos no estado de São Paulo, impulsionados pelo café e que alcançaram o mercado imobiliário, ferrovias e navegação, bancos e indústria", comenta ele à BBC News Brasil.

 

Os "que vão ao sertão"

Uma pesquisa nas atas da Câmara de São Paulo comprova que o termo bandeirante não existia antes do fim do século 19. "A documentação oficial não se referia a eles nem como bandeirantes nem como sertanistas", pontua Camargo. "O mais próximo que vi é 'homens que vão ao sertão'."

Em 16 de maio de 1583, por exemplo, a Câmara registrou a reclamação de Jerônimo Leitão, capitão de São Vicente, indignado com as pessoas que iam "ao sertão" sem sua licença, causando "prejuízo" para a capitania. Ele contava estar "informado de muita devassidão" nessas empreitadas mata adentro.

Camargo aponta o historiador e monge beneditino Gaspar Teixeira de Azevedo (1715-1800), mais conhecido como Frei Gaspar da Madre de Deus, como o primeiro a chamar, em livro, de bandeiras as incursões pelo sertão — o faz em "Memórias Para a História da Capitania de São Vicente", publicado originalmente em 1797. "Mas ele ainda não empregava o termo bandeirantes. Chamava-os apenas de paulistas", atesta Camargo. 

Em 1870, o historiador, militar e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) publicou "História Geral do Brasil". Na obra ele também usa o termo bandeiras — mas não menciona nem bandeirantes nem sertanistas.

Segundo as pesquisas do historiador Camargo, a primeira menção do termo bandeirante pela imprensa ocorreu em 11 de abril de 1837. Uma nota publicada pelo jornal "Pharol do Império", do Rio de Janeiro, narrando que um "bandeirante", Sebastião Fernandes Tourinho, chefiou em 1573 uma expedição que "subiu pelo Rio Doce, e atravessando imensos sertões desceu pelo Jequitinhonha para a província da Bahia conduzindo escravos, algumas amostras de esmeraldas ou safiras". 

Em 1867 o escritor e jornalista português José da Silva Mendes Leal (1820-1886) publicou o romance Os Bandeirantesem cuja primeira página o leitor já é apresentado a "um viageiro de trajo modesto e boa presença". 

Na tese de doutorado "Entre Batismos e Degolas: (Des)caminhos Bandeirantes em São Paulo", defendida na USP, a socióloga e antropóloga Thaís Chang Waldman afirma que o primeiro registro da palavra bandeirante em um dicionário de língua portuguesa data de 1871. Trata-se do dicionário publicado pelo frei Domingos Vieira, diz Waldman, no qual "bandeirante é definido como 'o afiliado da bandeira, ou companhia de exploração das matas virgens". 

A pesquisadora ainda cita o dicionário Houaiss, edição de 2009, em que "o bandeirante é registrado como substantivo masculino que denomina um 'indivíduo que no Brasil colonial tomou parte em bandeira (expedição)'". 

Vale ressaltar que a palavra bandeirante, portanto, passa a ser utilizada quando o ciclo das bandeiras já estava encerrado — conforme assinala o historiador e sociólogo Ricardo Luiz de Souza no artigo "A Mitologia Bandeirante: Construção e Sentidos".

Martinez lembra que o "termo bandeirante se refere aos integrantes das bandeiras, expedições de portugueses e colonos ao interior do continente sul-americano que resultavam em múltiplos ganhos: conhecimento geográfico, escravização de indígenas, estabelecimento de povoações e pontos de apoio a futuras expedições, localização de minas de ouro e prata, terras para agricultura, entre outros".

Taunay: o 'formulador' do mito

Mas para compreender totalmente a instauração do mito do bandeirante como herói paulista é preciso voltar a um intelectual da primeira metade do século 20: o historiador, biógrafo, romancista, tradutor e professor Afonso d'Escragnolle Taunay (1876-1958). 

"A construção desse imaginário histórico teve nele o seu principal formulador e divulgador, em várias obras históricas e no Museu Paulista [o Museu do Ipiranga]", ressalta Martinez.

"Taunay escreveu muito para jornais e depois refundia os textos em livros sem citar nenhuma fonte de documentação e das publicações anteriores", contextualiza o historiador. "Mas esse mito foi sendo construído ao longo de décadas e as caracterizações sofrem variações de autor para autor."

Entre 1924 e 1950, Taunay publicou "História Geral das Bandeiras Paulistas", obra em 11 tomos. Como diretor do Museu do Ipiranga — cargo ocupado de 1917 e 1953 —, o historiador também contribuiu para a consolidação desse imaginário. "Ele encomendou toda a representação iconográfica e a estatutária do bandeirismo que decora os salões do museu", diz Martinez. "O ano chave aqui foi 1922, nos preparativos para as comemorações do centenário da Independência do Brasil." Taunay trabalhou, segundo o historiador, para "enaltecer o papel dos paulistas na conquista territorial do interior do continente".

Camargo vê Taunay como o primeiro a "tratar o bandeirante como herói". 

"É preciso lembrar que sua tarefa foi facilitada pelo acesso que ele teve aos documentos do Arquivo Histórico Municipal. Autor positivista, que somente dá crédito a partir de provas documentais, ele teve nesses documentos a prova necessária para suas análises", afirma.

A própria imagem do bandeirante, com suas características físicas e vestuário, acabou sendo criada nesse momento. 

"Não existem retratos de bandeirantes realizados no momento em que esses homens viveram. Por isso, nada sabemos sobre suas fisionomias e pouco sobre como andavam vestidos pelos sertões", pontua o historiador Marins. 

Como exemplo, ele cita o retrato de Domingos Jorge Velho (1641-1705), obra executada em 1903 por Benedito Calixto (1853-1927). "Foi a primeira representação visual de um bandeirante a entrar na coleção do Museu Paulista. Nessa tela, já aparecem muitas das características que acabaram por se tornar uma convenção de como representá-los: traços europeus e pele branca, chapéus de aba larga, botas de cano alto, bacamarte e a pose altiva inspirada diretamente nos retratos de reis, a partir do modelo de Hyacinthe Rigaud para o célebre retrato de Luís 14, hoje no Louvre", contextualiza ele.

 

Taunay trabalhou, segundo historiador, para "enaltecer o papel dos paulistas na conquista territorial do interior do continente"

 

Segundo o historiador, as obras encomendadas por Taunay acabaram "reforçando as características visuais [dos bandeirantes] e trazendo outras, como o uso do gibão acolchoado em losangos, cobrindo o tronco". 

"Essas características iconográficas estabelecidas no Museu Paulista foram muito utilizadas em dois momentos chave da história paulista: a Revolução de 1932 e o Quarto Centenário de São Paulo", prossegue Marins. "Foi assim que apareceram em cartazes, cédulas, selos, porcelanas, anúncios comerciais, murais e em monumentos públicos, como o Monumento às Bandeiras, inaugurado em 1953, e no Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932, inaugurado em 1955, ambos no Ibirapuera (principal parque da cidade de São Paulo)."

Aos poucos, o paulista passa a se identificar — e a ser identificado — como bandeirante, como o sucessor do bandeirante. 

Em sua tese, a antropóloga Waldman se debruçou sobre a transformação da acepção da palavra. A resposta estava em jornais antigos. "Notei que na década de 1920 o termo paulista já era amplamente evocado como bandeirante nas mais diferentes colunas jornalísticas, seja em discussões sobre 'a moda bandeirante', 'o esporte bandeirante', 'a lavoura bandeirante', 'a jurisprudência bandeirante', 'o meio social bandeirante', 'a terra bandeirante', entre tantas outras referências que remetem a São Paulo de então e aos seus habitantes", escreve ela. 

"Mas afinal, quem é esse personagem que se insere em frentes, espaços e ramos tão diversos? Desbravador do Brasil, assassino, herói, genocida e mártir?", afirma a antropóloga. "(Des)portador do sertão, caçador de índios, destruidor de quilombos e soldado pacificador do gentil inimigo? Ou capitão do mato, sertanista e pioneiro no garimpo do ouro e das pedras preciosas? Inimigo dos espanhóis e dos jesuítas, defensor dos interesses da Coroa portuguesa e ao mesmo tempo insubmisso vassalo do rei de Portugal? E ainda aristocrata, bruto, milionário, despojado e self-made man? Mameluco, português, indígena? Caipira, monçoneiro, tropeiro, cafeicultor? Quatrocentão, modernista, imigrante, migrante, negro e mulher paulista?"

No artigo "Bandeirantismo e Identidade Nacional", publicado em Terra Brasilis, revista da Rede Brasileira de História da Geografia e de Geografia Histórica, a geógrafa Silvia Lopes Raimundo afirma que o "discurso regionalista, centrado na figura do bandeirante", se tornou ponte entre o local e o nacional em São Paulo. 

"Na historiografia paulista produzida nesse período as ideias de conquista e civilização aparecem relacionadas com qualidades que as elites desejavam ver no Brasil da época, tais como progresso, modernidade, riqueza e integração territorial", escreve ela. "Nesse momento o estudo do movimento das bandeiras também foi utilizado para destacar a singularidade do habitante de São Paulo e seu papel na conquista e, posteriormente, na ocupação do território."

Taunay não foi o único a definir o bandeirante. Outra obra de referência nesse quesito é "Vida e Morte do Bandeirante", publicada em 1929 pelo jurista e escritor José de Alcântara Machado de Oliveira (1875-1941). Outro autor que também contribui para esse imaginário foi o caricaturista, pintor, cronista, escritor e ilustrador Belmonte, como era conhecido Benedito Carneiro Bastos Barreto (1896-1947) — é dele o livro "No Tempo dos Bandeirantes". "Suas representações dos bandeirantes serviram como inspiração para outros artistas também representarem essa figura do herói", comenta Camargo. "Acredito até que Júlio Guerra, autor do monumento 'Borba Gato', se inspirou em Belmonte para fazer sua estátua."

"A construção de uma mitologia implica na invenção de tradições, e a mitologia bandeirante foi utilizada neste sentido pelas elites paulistas; para enobrecer suas origens", escreve Souza.

Momentos-chave

Durante o movimento conhecido como Revolução de 1932, quando tropas paulistas estavam guerreando contra o restante do país, a ideia do bandeirante servia como argumento a diferenciar os de São Paulo dos brasileiros de outros Estados. 

No livro "Confederação ou Separação" publicado em 1933, o historiador e sociólogo Alfredo Ellis Júnior (1896-1974) partiu do caráter do bandeirante para defender que os paulistas eram "diferentes" dos demais. "Eles [os bandeirantes] eram apelidados de 'portugueses', de 'vicentinos' ou de 'paulistas'. Jamais foram brasileiros", escreveu. 

A relação com os bandeirantes estava presente até nos nomes dos batalhões. Muitos deles homenageavam figuras históricas do tipo, como Fernão Dias, Paes Leme Raposo Tavares e Anhanguera. "A revolução usou algumas imagens dos bandeirantes como os grandes heróis paulistas para conquistar corações e mentes durante o período", afirma o pesquisador e colecionador Ricardo Della Rosa, autor do livro "Revolução de 1932: A História da Guerra Paulista em Imagens, Objetos e Documentos". "Isso foi feito de forma intensiva, por meio da propaganda de guerra."

Essa ligação persistiu no pós-revolução. Maior exemplo é o Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, mais conhecido como Obelisco do Ibirapuera, monumento feito por Galileo Emendabili (1898-1974) entre 1947 e 1970. "É o maior ícone de todos. Carrega essa simbologia", comenta Della Rosa. "As faces externas do Obelisco trazem associações de imagens do passado bandeirante paulista com o soldado de 32."

 

Taunay trabalhou, segundo historiador, para "enaltecer o papel dos paulistas na conquista territorial do interior do continente". Aqui, retrato dele feito pelo artista Henrique Manzo

 

Essas mensagens viveram um auge nos anos 1950, sobretudo por conta das comemorações pelos 400 anos da fundação de São Paulo. "Em vários momentos a figura [do bandeirante] foi exaltada, mas o grande ápice foi mesmo em 1954 por conta das comemorações do Quarto Centenário. Naquela época, a figura gigante do bandeirante passou a ilustrar anúncios e outras publicações que exaltavam a cidade e seu povo. Nos jornais da época era comum essa utilização", afirma Camargo.

Pesquisador da história de São Paulo, Della Rosa afirma que esse movimento de revisão do heroísmo bandeirante começou a ser visto no fim dos anos 1960. 

"Observamos uma degradação da imagem do bandeirante, que deixava de ser herói e passava a ser retratado como um escravizador e matador de índios", pontua. 

Em sua opinião, tal revisionismo é cheio de riscos — e ele não concorda com a ideia de retirar monumentos ou renomear espaços públicos, por exemplo. "Hoje em dia vejo uma espécie de revisionismo histórico que me preocupa bastante, é o que coloca o bandeirante como se ele descesse ali, entrasse no sertão, com um exército de homens brancos… É preciso lembrar que os índios já eram bélicos. O europeu é outro ser bélico. Quando este chegou, acabou se associando a alguns índios e, se não fossem essas associações, não teriam existido as bandeiras. Colocar tudo na conta do bandeirante é um desconhecimento histórico."