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sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Odette de Carvalho e Souza: a poderosa embaixadora, enfrentou o machismo no Itamaraty - Folha de S. Paulo

 Anticomunista ferrenha, 1ª embaixadora do Brasil teve cargo poderoso no Itamaraty 


Odette de Carvalho e Souza chefiou postos no exterior e soube navegar em ambiente masculino apesar de resistências Odette de Carvalho e Souza foi a primeira mulher promovida a ministra de primeira classe no Brasil, em 1956, quando também se tornou diretora do Departamento Político e Cultural (DPC) do Itamaraty. Poderoso, o órgão lidava com relações bilaterais e organismos multilaterais durante a expansão da então recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU). Na prática, segundo a estrutura do ministério à época, o posto fazia de Odette a número 3 da pasta, abaixo apenas do chanceler e do secretário-geral. A diplomata também foi chefe dos Serviços de Estudos e Investigações do Ministério das Relações Exteriores a partir de novembro de 1937, quando Getúlio Vargas iniciou o Estado Novo (1937-1945). Mais tarde, já na chefia do DPC, participou do controle de atividades políticas de funcionários da casa. Os Serviços de Estudos e Investigações tinham por objetivo "tratar da obra de repressão ao comunismo, mediante estudo especializado da doutrina marxista, sua infiltração no nosso país e meios de combatê-la de maneira prática e eficiente", segundo memorando escrito por Odette como argumento para a criação do órgão, após a Intentona Comunista de 1935, e acessado pela pesquisadora Adrianna Setemy. Nessa época, Odette lidou com autoridades de segurança, como Filinto Müller, chefe da polícia política do período repressivo sob Vargas e senador na ditadura militar pela Arena, sigla que sustentava o regime. Na Suíça durante a Segunda Guerra Mundial, ela chamou a atenção como conselheira técnica e secretária de delegações do Brasil em conferências internacionais de trabalho e paz. Nesse período, também foi representante do país na Entente Internacional Anticomunista. Embora seu papel na organização ainda não esteja claro, seu trabalho sugere que ela se conectava com grupos anticomunistas para além da atuação pública no ministério e na imprensa, para os quais escreveu com regularidade artigos sobre esse e outros temas, assinando "O. de Carvalho e Souza". Se, por um lado, sua presença destacada no país europeu mostra como ela desbravou território até hoje muito masculinizado, ela reflete também as dificuldades das mulheres na diplomacia naquele período. Odette articulara para trabalhar na representação brasileira em Londres, mas viu a designação publicada no Diário Oficial perder efeito antes que assumisse o posto devido à atuação do próprio embaixador no país, Raul Regis, que sugeriu a Odette o cargo na Suíça. "Num país [Reino Unido] que expressamente condenou a entrada de mulheres para o corpo diplomático, e numa corte de tradições conservadoras, só lhe adviriam inúmeros embaraços decorrentes da sua inclusão na lista diplomática. A aparição dessa senhora, como única mulher [...], a quanto comentário irônico não nos iria expor", escreveu Regis. A forma com que era chamada exemplifica o sexismo refletido na justificativa. "Dona Odette" estava em funções semelhantes ou hierarquicamente superiores a homólogos homens, que recebiam o título de seus cargos antes de seus nomes. A ela, porém, muitas vezes eram destinadas outras formas de tratamento, como "dona", "senhora" e "senhorita". Também sobravam comentários sobre sua aparência física, por vezes acompanhados de elogios a seu profissionalismo, humor e inteligência. "Quando o nome dela é mencionado no Itamaraty, normalmente isso é feito como galhofa, dizia-se que era uma pessoa que perseguia os outros. No máximo é isso que se fala, não do legado profissional dela: quem era, o que fez de bom e de ruim", diz a diplomata Carolina von der Weid, autora, com Eduardo Uziel, do capítulo sobre Odette no livro "DiplomatAs: Sete Trajetórias Inspiradoras de Mulheres Diplomatas". E, a despeito de suas ideias, ou talvez em parte devido a elas —a embaixadora defendia o lugar central da mulher na família, com abordagem conservadora em que tomava distância das discussões sobre liberdade sexual, por exemplo—, Odette soube navegar em um ambiente pouco afeito às mulheres. "A presença dela no ministério fez com que eu não tivesse a ideia de que ali pudesse ser uma casa machista quando ingressei no Instituto Rio Branco. Ela era respeitada. As pessoas que encontrei em Bruxelas tinham carinho por ela", afirma a embaixadora Thereza Quintella, primeira mulher egressa do Instituto Rio Branco a alcançar o cargo —ela também foi pioneira na direção da escola de diplomatas. Odette começou a atuar profissionalmente sem passar pelo instituto; na Bélgica, chefiou a delegação do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia, para onde foi Quintella quando a embaixadora já havia deixado o posto. Além dos cargos em Israel e Bélgica, Odette chefiou postos na Costa Rica e em Portugal. Há, entretanto, poucas publicações sobre a trajetória da diplomata, que vem sendo resgatada recentemente em livros, artigos e documentários. Sua relação (ou a ausência dela) com movimentos feministas de seu tempo, diante de seu pioneirismo, e seu papel na organização internacional anticomunista são exemplos de facetas da embaixadora que ainda carecem de estudos mais detalhados. "Odette era sábia para jogar com os grupos da época. Independentemente da filiação política, ela deixava clara sua ambição e tinha proeminência. Chama a atenção o silenciamento de seu legado", afirma Weid. Odette de Carvalho e Souza foi aposentada em 2 de outubro de 1969, por ter completado 65 anos de idade. Faleceu no ano seguinte, aos 66, na cidade do Porto, em Portugal. Não deixou filhos.


terça-feira, 25 de abril de 2023

Nem tudo são flores: europeus sinalizam descontentamento com Lula - Ivan Finotti (FSP)

 Se Lula imaginava que seria recebido com flores e aplausos onde quer que fosse, se enganou, e já deve ter percebido que sua postura no tocante à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia— em relação à qual permanece visivelmente pró-Rússia, por diferentes motivos —, visivelmente não agradou americanos e europeus. Não adianta repetir que fará as melhores escolhas para o Brasil soberanamente, só pensando nos “interesses nacionais”, que isso não é visto como legítimo, do ponto de vista do Direito Internacional, nem é verdade, pois são suas simpatias ideológicas que o ditaram. Os americanos ainda estão tentando convencê-lo de aderir a “bons modos”, mas os europeus já sinalizaram o que é inaceitável.

Paulo Roberto de Almeida

Documento secreto indica preocupação da União Europeia com o governo Lula

Arquivo vazado do bloco europeu expressa reservas em relação a postura do presidente sobre Guerra da Ucrânia e meio ambiente

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/documento-secreto-indica-preocupacao-da-uniao-europeia-com-o-governo-lula.shtml

Ivan Finotti

MADRI

A União Europeia está preocupada com a posição do Brasil em relação à Guerra da Ucrânia e com a falta de cumprimento de obrigações na área ambiental, indica um documento oficial e confidencial que trata das relações do bloco europeu com quatro países emergentes: Brasil, Chile, Nigéria e Cazaquistão.

Se as "informações não públicas", conforme é dito no texto, não trazem informações bombásticas, são um vislumbre do trabalho de bastidores da diplomacia atual e traçam um instantâneo de como o Brasil é visto neste momento pela Europa. O documento, obtido nesta segunda-feira (24) pela Folha, teve seu teor inicialmente divulgado pelo site de notícias americano Politico.

Apesar de os líderes europeus se mostrarem aliviados com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e com a volta do Brasil ao cenário internacional —após quatro anos de apagão sob o ex-presidente Jair Bolsonaro—, o texto mostra preocupação com as recentes declarações do petista.

“Relançar a parceria estratégica com o Brasil" é um dos pontos do documento descritos como de interesse da comunidade europeia. "UE preocupada que o foco de Lula na reindustrialização possa se tornar protecionista" é outro tópico citado.

Entre os interesses do Brasil, diz a UE, está "ser reconhecido e tratado como ator global" e a "diversificação do fornecimento de fertilizantes (dependência excessiva da Rússia e da Belarus)", entre outros.

Preparado por diplomatas do bloco, o "Plano de Ação da UE sobre as Consequências Geopolíticas da Invasão Russa da Ucrânia em Países Terceiros" detalha estratégias para reaproximar ou manter a proximidade dos quatro países.

O arquivo de sete páginas reserva, após a introdução, uma página para cada nação, exibindo pontos divididos em quatro partes: "interesses da UE", "interesses do país terceiro", "desafios" e "oportunidades".

Na introdução, há um breve resumo da situação de cada país e a do Brasil diz o seguinte: "O atual governo mostra sinais de disposição para intensificar a cooperação. Uma estrutura para fortalecer o engajamento já existe, uma vez que a UE já tem uma parceria estratégica que pode ser reativada. O avanço do acordo UE-Mercosul será de fundamental importância. Mas a UE também precisará aumentar os investimentos em energia e nas áreas digital e de sustentabilidade".

A introdução revela a razão do relatório: "Tornou-se claro logo após o início da invasão russa da Ucrânia que suas consequências eram globais. A resposta da UE baseou-se, portanto, no apoio à Ucrânia, no combate à Rússia e no apoio aos parceiros em todo o mundo para lidar com consequências globais".

O texto dos diplomatas europeus cita ainda um "um ambiente geopolítico competitivo" em que há "não apenas uma batalha de narrativas, mas também uma batalha de ofertas" como justificativa para a renovação de estratégias nas parcerias internacionais. Em especial, infere-se, com os quatro países citados. "O ‘Plano de Ação’ faz exatamente isso: com base na geografia, na influência regional e na abrangência política da UE, selecionamos países prioritários para negociar uma oferta com cada um deles, adaptada aos interesses deles e aos nossos", diz o documento.

A seguir, o texto apresenta resumos dos países emergentes priorizados no documento. No caso da Nigéria, lembra que "haverá um novo presidente e um novo governo após a posse em maio. Um diálogo ministerial está planejado." Em seguida, o relatório sugere que a UE deve facilitar o fornecimento de vistos aos cidadãos do Cazaquistão "em vista de um relacionamento aprimorado".

Quanto ao Chile, "quase não há atritos bilaterais no relacionamento com a UE, e há um engajamento de alto nível em todas as políticas com esse parceiro de mentalidade semelhante. (...) Mas a UE deve estabelecer uma boa sequência de visitas e diálogos como parte de um pacote geral".

Ao fim, o relatório ainda apresenta o que chama de "narrativas para o público externo", sugerindo forma de abordar os temas com os outros países. Entre essas narrativas estão frases mais genéricas como "o Plano de Ação tem como objetivo unir forças com os parceiros, para o benefício de nossos povos e com o objetivo final de contribuir para a estabilidade e o crescimento globais" e "ações necessárias para enfrentar os desafios comuns e aproveitar as oportunidades, para as quais mobilizaremos todos os instrumentos à nossa disposição".

Confira a seguir a íntegra dos pontos confidenciais listados pelo "Plano de Ação da UE" em relação ao Brasil, divididos em quatro blocos.

Interesses da União Europeia

Relançar a parceria estratégica com o Brasil

Concluir o acordo de Associação UE-Mercosul

Obter maior apoio político do Brasil na ONU, globalmente e regionalmente

Acesso ao mercado e aumento de oportunidades no Brasil para negócios e investimentos da UE

Obter o reconhecimento brasileiro para as garantias de segurança alimentar da UE

Impulsionar a cooperação em transformações verdes e digitais, ação climática e ambiente

Garantir matérias-primas essenciais para o Acordo Verde da UE

Abordar a atuação da China na adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio

Fortalecer a cooperação em defesa e segurança


Interesses do Brasil

Ser reconhecido e tratado como um ator global (inclusive em relação à reforma da ONU)

Concluir o Acordo de Associação UE-Mercosul (ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de resolver desequilíbrios nas relações UE-Mercosul)

Atrair mais comércio, investimento e tecnologia da UE e aproveitar as oportunidades em clima, energia e mineração

Melhorar o acesso ao mercado da UE para produtos agrícolas

Diversificação do fornecimento de fertilizantes (dependência excessiva da Rússia e da Belarus)

Agregar valor à matéria-prima exportada

Apoio ao desenvolvimento de instituições democráticas, direitos indígenas e meios de subsistência, redução da pobreza, desenvolvimento sustentável e políticas sociais, educação

Fortalecer a cooperação em defesa, segurança e espaço (Centro de Alcântara)


Desafios

O Brasil vê as propostas legislativas autônomas da UE (legislação do Acordo Verde) como medidas unilaterais protecionistas, em especial a legislação sobre desmatamento e a CBAM (Mecanismo de Ajuste de Limites de Carbono). Essa preocupação também foi levantada pelo BR nas discussões em andamento sobre a finalização do Acordo UE-Mercosul

O Brasil sente falta de uma agenda positiva para o engajamento mútuo: nenhuma cúpula desde 2014

UE preocupada que o foco de Lula na reindustrialização possa se tornar protecionista

UE preocupada com a possibilidade de o Brasil querer reabrir o Acordo do Mercosul

UE preocupada com a posição do Brasil sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia e com a falta de cumprimento de obrigações em relação a clima, ambiente e aprovação sanitária dos produtos da UE


Oportunidades

A política externa está de volta ao topo da agenda do Brasil, com o presidente Lula ansioso para obter êxitos (o Acordo de Associação UE-Mercosul poderia ser um deles)

Forte alinhamento de políticas com o governo Lula, por exemplo, nas transições verde e digital, direitos humanos, direitos indígenas, combate ao garimpo ilegal de ouro, defesa e segurança

Possível avanço no combate ao desmatamento e biodiversidade se a UE conseguir apoiar o Brasil na criação de empregos e na adaptação às novas regulamentações da UE

Alavancar o papel do Brasil como um ator construtivo na região, inclusive na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos)

Ajudar no processo de adesão do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e à presidência do G20 (2024)


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Política externa: cem dias do Itamaraty sob Lula têm reconstrução de pontes e prioridades errantes - Mayara Paixão (Folha de S. Paulo)

Cem dias do Itamaraty sob Lula têm reconstrução de pontes e prioridades errantes

Política externa liderada por Mauro Vieira e Celso Amorim faz acenos múltiplos, retoma protagonismos e vive pressão interna
Mayara Paixão
Folha de S. Paulo, 9.abr.2023


SÃO PAULO - Estava um clima tão descontraído —dentro dos padrões do rito diplomático— que, a certa altura, Celso Amorim esqueceu que seu interlocutor era russo e começou a falar em português. Do outro lado de uma mesa gigante no Kremlin, estava Vladimir Putin, que por uma hora conversou com o enviado de Lula.

O russo riu. Foi uma quebra de gelo que, para o assessor especial da Presidência e ex-chanceler, cristalizou a receptividade que nem ele esperava. Amorim, afinal, foi à Rússia vender a Putin a ideia de Lula sobre o "clube da paz" para frear a guerra em curso na Ucrânia.

A viagem representou o mais recente aceno da política externa brasileira novamente sob a batuta de Lula. Os cem primeiros dias do novo Itamaraty foram marcados por acenos múltiplos em várias direções. O desafio, agora, é esclarecer o que será prioridade.

Com a ressaca do bolsonarismo —um período que apartou o Brasil da China, seu principal parceiro econômico, e tornou o país quase um pária— o clima geral sobre a agenda externa capitaneada por Lula, pelo chanceler Mauro Vieira e por Celso Amorim é de otimismo.

Mas diplomatas e acadêmicos salientam que, daqui para a frente, é preciso medir a materialidade dessas propostas e, claro, quais sairão primeiro do papel. "Quando há uma multiplicidade de prioridades, pode-se incorrer em erros de concretização e materialização de alguns projetos", diz Hussein Kalout, pesquisador de Harvard e membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Em três meses a pasta fez acenos à América do Sul aos EUA, à China —para onde Lula viaja nesta semana—, à União Europeia, à agenda ambiental, à igualdade de gênero e à Guerra da Ucrânia.

Foi também um período inicial de ampla agenda no exterior. Enquanto Lula esteve em Portugal, antes mesmo da posse, na Argentina, no Uruguai e nos EUA, Vieira fez, além dessas, outras cinco viagens oficiais —como à Alemanha, para a Conferência de Segurança de Munique, e a Índia, para reunião do G20.

Ao todo, segundo levantamento da Folha junto ao Itamaraty, foram 65 encontros bilaterais de Vieira com chanceleres e ministros desde 1º de janeiro. Ao Brasil, já vieram seis chanceleres nestes cem dias —de Japão, Grécia, França, Portugal, Uruguai e Angola.

Figuras próximas aos principais formuladores da atual política externa argumentam que a multiplicidade de acenos se trata, na verdade, da construção de pontes necessárias para fazer avançar áreas prioritárias, como a agenda climática, o combate às desigualdades e a mediação da paz e da democracia (na Ucrânia e em outros lugares, como na Venezuela, para onde Amorim também foi enviado por Lula).

O próprio chanceler adota essa linha. À Folha Vieira afirma que, nestes cem dias, o foco inicial foi "normalização" das relações com o mundo. "Transmitimos aos nossos parceiros uma mensagem clara, de que o Brasil retomou suas linhas tradicionais de política externa, como parceiro comprometido sempre com o diálogo."

"Com os canais já plenamente restabelecidos, o momento é o de trabalhar no seguimento e na retomada de projetos com nossos vizinhos sul-americanos, com a América Latina como um todo, com os EUA, China e Europa, e também com nossos parceiros africanos", acrescenta o chanceler.

Os cem primeiros dias também não deixaram de registrar certos entraves. Nos EUA, onde Lula esteve em fevereiro, a frustração se deveu ao valor enxuto destinado pelo governo de Joe Biden ao Fundo Amazônia: US$ 50 milhões (R$ 260 milhões).

Mas a proximidade da administração do democrata à do petista não deixa de ser vista com bons olhos por especialistas na agenda climática. "É impressionante como a filantropia internacional se moveu [desde a eleição de Lula]", avalia Renata Piazzon, membro da Coalizão Brasil Clima e diretora do Instituto Arapyaú.

Ela diz que caberá ao Itamaraty, em articulação com outros ministérios, saber aproveitar o momento. "Nos próximos dois ou três anos, temos que surfar nessa onda de olhares voltados para o Brasil, porque ela vai passar rapidamente"

Houve, ainda, a resposta à pressão da Alemanha —cujo premiê, Olaf Scholz, veio ao Brasil— para não enviar armas à Ucrânia. E as rusgas com Washington após a decisão de receber navios de guerra do Irã.

Com a União Europeia, o esforço é para tirar do papel um acordo comercial com o Mercosul gestado há mais de 20 anos. A expectativa vendida por Lula, de assinar as tratativas finais até o meio do ano, parece compartilhada por parte da diplomacia do bloco europeu. Em certa medida, o arranjo vem também com a expectativa de fazer deslanchar a aliança sul-americana. Há, no entanto, arestas a serem aparadas com o Uruguai, que publicamente manifesta querer arranjos por fora do Mercosul, em especial com a China.

Lula, aliás, embarca para o gigante asiático na terça (11) —iria no último dia 26, mas a viagem foi adiada pelo quadro de saúde do presidente. Em Pequim, devem ser publicizados mais de 20 acordos bilaterais.

Com a viagem, Lula também almeja mostrar "equilíbrio pragmático" entre as duas principais potências globais, EUA e China. A ideia é enfatizar a defesa de um mundo multipolar, sem alinhamento automático a Washington ou Pequim. A Guerra da Ucrânia, por óbvio, também será posta em discussão.

Mas a proposta de Lula para o chamado "clube da paz" é vista com pouco crédito mesmo entre alguns aliados. A avaliação é de que, a despeito do crédito de colocar o Brasil como um interessado em atuar pelo fim do conflito, não há materialidade na proposta.

Para o ex-chanceler Celso Lafer, a medida dialoga, em partes, com "um componente de antiamericanismo da instintiva tradição de correntes do PT". "E propicia menor abertura para a tragédia da Ucrânia e da sensibilidade política dos que a respaldam", diz.

"A credibilidade do Brasil como um terceiro em prol da paz não aumenta com a viagem de Amorim a Moscou, não acompanhada de prontas e explícitas iniciativas em relação à Ucrânia", acrescenta Lafer. "Correm o risco de serem vistos como um terceiro aparente, que não é neutro e busca se beneficiar de um conflito que é pluridimensional."

Amorim, depois de retornar da Rússia, argumentou à Folha que um cessar-fogo realmente não está na agenda imediata. Mas sinalizou a vontade de Brasília de se mostrar disponível para quando houver a possibilidade de esboçar um plano de paz.

Para Kalout, "antes da paz, que não está dada, o Brasil pode ser proponente de ações humanitárias". "Isso é muito mais importante no momento. O Brasil está fazendo todo um movimento tático para garantir um assento na mesa. Mas pode não ser da forma como o Brasil espera. É preciso recalibrar o discurso."

Outro ponto sensível tem sido a relação com ditaduras como Venezuela e Cuba. Enquanto o governo Lula parece querer ser um dos mediadores de acordos entre regime e oposição em Caracas, o discurso sobre Nicarágua sofreu alterações após Daniel Ortega ser acusado por um comitê da ONU de práticas nazistas.

Brasília chegou a ofertar nacionalidade aos mais de 300 expatriados de Ortega e tem manifestado preocupação com o contexto regional, mas evitado críticas mais assertivas à ditadura centro-americana.

Outra frente abraçada no ministério foi a igualdade de gênero. Para enviar uma mensagem aos parceiros internacionais, a pasta criou o cargo de alta representante para temas de gênero. A escolhida foi a diplomata Vanessa Dolce de Faria. O tema ganha contornos mais sensíveis, porém, nas fileiras do próprio Itamaraty, onde há pressão crescente por paridade. Entre as diplomatas, a visão é de que a pasta tem adotado boas políticas, mas que para isso tem sido necessária pressão constante e pública.

Há também um receio de que as esparsas e ainda raras nomeações femininas sejam uma espécie de token —símbolo feito para atenuar demandas e reclamações. O temor foi expressado em carta enviada pela embaixadora Irene Vida Gala ao senador Renan Calheiros (MDB-AL), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.

No texto obtido pela reportagem, Gala, presidente da recém-fundada Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, aponta que, de 23 indicações para os maiores postos diplomáticos, apenas uma é feminina —Maria Luiza Viotti, em Washington. Pouco depois da pressão, a diplomata Claudia Vieira Santos foi indicada para a Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena.

"Tem de haver pressão continuada da nossa parte e reconhecimento, por parte da chefia do Itamaraty, de que eles precisam conversar com a gente", diz Gala. "Não adianta a chefia do ministério nos demonizar ou desqualificar como lideranças na questão de gênero. As diplomatas têm apoio dentro do governo e na sociedade civil."

Na última semana, o Itamaraty iniciou ciclos de conversa sobre gênero, raça, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIA+. No discurso de abertura, ao qual a Folha também teve acesso, Mauro Vieira reconheceu a necessidade de avançar na inclusão. "O Itamaraty reproduziu discriminações e preconceitos herdados do colonialismo e da escravidão. Esperamos, a partir desse diálogo, seguir avançando na dimensão étnico-racial", disse.

Para os próximos meses, também estarão na agenda da diplomacia brasileira a organização do encontro de líderes do G20, a partir de dezembro, a ser sediado no Brasil, e da cúpula dos países amazônicos, prevista para agosto. "Buscaremos respostas conjuntas para os desafios da sustentabilidade e da criminalidade ambiental", afirma o chanceler.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/cem-dias-do-itamaraty-sob-lula-tem-reconstrucao-de-pontes-e-prioridades-errantes.shtml

quarta-feira, 22 de março de 2023

Tribulações de um presidente atrapalhado e trapalhão, boquirroto e vulgar - Igor Gielow (FSP)

  1. Lula em modo palanque incomoda aliados, diplomatas e EUA

Folha de S. Paulo, 22.mar.2023 às 12h08
Igor Gielow

A verborragia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não deixou o chamado modo palanque após a vitória na eleição de outubro passado, tem deixado o campo do folclore político e passado a preocupar aliados e integrantes do governo.

O mais recente episódio ocorreu na terça (21), quando em entrevista ao site esquerdista Brasil 247 o petista disse que Operação Lava Jato foi orquestrada em conjunto com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos para destruir empreiteiras brasileiras.

"Tenho consciência de que a Lava Jato fazia parte de uma mancomunação entre o Ministério Público brasileiro, a Polícia Federal brasileira e a Justiça americana, o Departamento de Justiça", afirmou, confundindo o Poder Judiciário e o órgão equivalente ao Ministério da Justiça nos EUA.

Ele já havia feito tal ilação sem provas antes, que tentou inclusive levantar na Justiça brasileira, com o mesmo argumento apresentado na terça. "Era para destruir. Porque as empresas da construção civil brasileira estavam ocupando espaço no mundo inteiro", afirmou.

Lula desconsidera que só a Petrobras recebeu quase R$ 7 bilhões de volta em acordos de leniência, repatriação e colaboração de empreiteiras e outras firmas envolvidas com corrupção apurada pela Lava Jato.Iniciada em 2014, a ação desmontou a política organizada no Brasil, terraplanando o terreno para a ascensão de Bolsonaro. Ela que caiu em descrédito devido a abusos, como os de seu juiz-símbolo, Sergio Moro, ex-ministro do governo anterior e hoje senador pela União Brasil do Paraná.

Uma coisa, apontam diplomatas brasileiros e americanos ouvidos, é fazer uma acusação de envolvimento de um governo amigo em tal ação enquanto se está fora do poder. Outra, com consequências, é fazê-lo sentado na cadeira de presidente.

Para turvar o cenário, há o fato de que Lula irá viajar na sexta (24) para a China, missão que está sendo vista com extrema cautela pelo Departamento de Estado americano. Desde a campanha eleitoral, quando conversavam sobre o cenário brasileiro de forma reservada sobre Lula, diplomatas de Washington focavam suas questões acerca da posição do petista sobre a rival geopolítica dos EUA na Guerra Fria 2.0.

O governo de Joe Biden, hostil a Jair Bolsonaro (PL), fez gestos inéditos de apoio ao sistema eleitoral colocado em dúvida pelo então presidente brasileiro, que ajudaram a esfriar os ânimos de setores com ambições de ruptura institucional, que sonhavam com a repetição do apoio de Washington visto no golpe militar de 1964.

Lula havia começado com uma jogada tática inteligente, indo até Biden de forma algo improvisada para uma conversa antes da visita oficial à China. Ali, focaram no que é agenda comum: ambiente e democracia. O plano de Lula para mediar a paz na Ucrânia, que o líder Xi Jinping irá certamente elogiar em Pequim para se mostrar imparcial apesar da aliança com a Rússia, foi basicamente ignorado.

No Itamaraty, a busca por uma política independente é tradição, mas as posições brasileiras têm sido equilibradas para demonstrar equidistância. O que preocupa diplomatas, contudo, é a animosidade antiamericana transparecida por Lula, que remonta ao discurso tradicional da esquerda brasileira.

Hoje, já há comentários entre americanos de que Lula está sendo injusto com Biden, que trabalhou em prol de uma transição pacífica de poder no Brasil. Eles lembram que, se a China é o maior parceiro comercial brasileiro, posto que atingiu no governo Lula-2 em 2009, os EUA seguem sendo os segundos, isso para não falar na conexão cultural inerente ao fato de que ambos são países ocidentais.

No campo doméstico, aliados importantes do presidente consideram que ele precisa moderar seu tom. O presidente de um partido vital de seu arco de governo afirma que ele poderia ser menos enfático em sua campanha contra o Banco Central independente, por exemplo, mas compreende que para o Planalto é bom haver um bode expiatório enquanto o governo sofre para fazer deslanchar sua agenda legislativa.

O mesmo é dito, com menos convicção da utilidade, sobre as críticas à privatização da Eletrobras. Esse político afirma que mesmo Lula sabe da inviabilidade política de reverter a venda, até por falta de apoio no Congresso, e que erra ao falar para sua base à esquerda.

Enquanto Bolsonaro fornece a matéria-prima, como no caso dos atos golpistas do 8 de janeiro ou no episódio das joias da Arábia Saudita, diz o aliado, tudo bem. O problema é a insistência nos gestos à ala minoritária de seus apoiadores com itens que desagradam a maioria deles.

Um petista próximo do presidente avalia que nada disso não vai mudar, dado que Lula está, segundo ele, "com sangue nos olhos como se fosse seu último mandato". Mas ele aponta gestos conciliatórios também: o petista está levando consigo para a China uma comitiva bastante representativa de setores que eram associados ao bolsonarismo no agronegócio, por exemplo.

O problema maior, diz esse aliado, é o estilo. Na mesma entrevista ao 247, o petista lembrou que, quando estava preso, dizia que "só vai estar tudo bem quando eu foder esse Moro", em referência ao ex-juiz que o sentenciou à cadeia.

Não foi o primeiro palavrão público usado por Lula em sua carreira política, longe disso, como o episódio em que chamou o então presidente Itamar Franco de "FDP" em 1993 lembra. O emprego do recurso, algo que aconteceu pontualmente em seus primeiros mandatos, tornou-se comum no governo de Bolsonaro.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/lula-em-modo-palanque-incomoda-aliados-diplomatas-e-eua.shtml

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Reeleição de Bolsonaro seria uma calamidade climática - Mathias Alencastro (Folha de S. Paulo)

 Reeleição de Bolsonaro seria uma calamidade climática

Manutenção da política ambiental atual é maior ameaça à soberania nacional desde a Independência
Mathias Alencastro
Folha de S. Paulo, 23.out.2022 às 13h12

As discussões sobre as consequências de uma eventual reeleição de Jair Bolsonaro no segundo turno giram, obviamente, em torno dos seus riscos para a democracia.

Todavia, no plano internacional, ela também marcaria o fim de um período dramático na luta contra a crise climática, severamente abalada pela Guerra da Ucrânia e pelo regresso em força de fontes fósseis de energia, e inauguraria uma nova era na geopolítica.

Existe um arcabouço teórico, jurídico e até militar pronto a ser colocado em prática caso o governo brasileiro prossiga na sua lógica de autodestruição ambiental. A sua dimensão mais conhecida é a proposta aprovada no Parlamento Europeu, em setembro, para obrigar os importadores da União Europeia a provar o cumprimento de exigências ambientais por parte dos fornecedores.

Apesar de enfrentar resistências entre governos dos Estados-membros, a aprovação final da medida seria tornada irreversível pela pressão da opinião pública da UE depois da reeleição de Bolsonaro.

A internacionalização da Amazônia seguiria avançando entre gritos de "a Amazônia é nossa". No contexto da aproximação da Colômbia de Petro com a Otan, a general Laura Richardson, do Comando Sul dos EUA, mencionou um "esboço" de iniciativas similares com o governo Bolsonaro, em discussão desde julho.

O fato de o Itamaraty ter circulado às pressas uma instrução interna na semana passada esclarecendo a fala da autoridade americana deixou evidente o incômodo com a questão no atual contexto eleitoral.

Pela posição crucial da Amazônia na manutenção do aumento da temperatura global abaixo de 1,5 ºC, a aceleração do desmatamento pode radicalizar a ação externa. Stephen Walt, outro grão-mestre das relações internacionais ao lado de John Mearsheimer, uma celebridade desde o início da Guerra da Ucrânia, teorizou sobre intervenções lideradas pela ONU contra países que ameaçassem a existência humana com a sua política ambiental. O governo Biden deu um passo nessa direção ao colocar o clima no centro da segurança internacional na Estratégia de Segurança Nacional divulgada na semana passada.

O bolsonarismo poderia buscar formas de contornar a pressão internacional até a decisiva eleição presidencial americana de 2024. O encontro noticiado por Fábio Zanini entre o chanceler Carlos França e Mario David, assessor internacional do premiê húngaro, Viktor Orbán, provavelmente não tratou do fechamento de Supremas Cortes e de outras especialidades locais.

David, que foi relator do acordo de livre comércio do Peru e da Colômbia no Parlamento Europeu, é um especialista na defesa de regimes violadores de direitos humanos e ambientais em instituições europeias.

Por fim, a solidariedade do Brics com um país alvo de sanções ocidentais até poderia trazer alívio econômico. Todavia, ao abdicar da condição de mediador em potencial entre os blocos orientais e ocidentais, o Brasil estaria se integrando à China da forma mais subalterna e assimétrica possível.

Todas essas pressões podem ser facilmente revertidas por um governo democrático. Mas se a política ambiental de Bolsonaro continuar —e for reforçada por um Congresso antiambiental—, o Brasil encararia a maior ameaça à sua soberania nacional desde a Independência.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Trigo é o fato novo na agricultura brasileira - Rubens Barbosa

Trigo é o fato novo na agricultura brasileira, diz representante do setor

Entrevista com Rubens Barbosa

Folha de S. Paulo, 27/09/2022

Desorganização do mercado de commodities deu novos preços ao cereal

Após a soja e o milho, o Brasil passará a ser um grande player internacional no setor de trigo. A Covid e a guerra entre Rússia e Ucrânia trouxeram novos desafios para o mercado internacional de commodities.

Um dos principais desafios ocorre na cadeia do trigo, produto que está entre os mais afetados pela guerra, devido à importante participação dos dois países envolvidos no conflito no fornecimento mundial desse cereal.

A desorganização do mercado de commodities, trazida por esses eventos, deu novos preços ao cereal. A alta e novas tecnologias da Embrapa vão permitir um impulso na produção de trigo em áreas tropicais do país.A avaliação é de Rubens Barbosa, presidente-executivo da Abitrigo (Associação Brasileira da Indústria do Trigo). Segundo ele, em busca de uma segurança alimentar, vários países devem procurar o Brasil para investimentos nesse setor.

Um dos interessados é a Arábia Saudita, cujo Salic (Sadi Agricultural and Livestock Investiment), que investe em projetos no exterior para garantir o abastecimento alimentar do país, já manifestou interesse em investir mais nos setores avícolas e de grãos do Brasil. O trigo está no radar desses investidores.

O mercado de trigo vai continuar com preços aquecidos. Mesmo com a liberação das exportações de cereais da Ucrânia, os preços não voltam imediatamente ao patamar anterior à guerra. E esse conflito não tem sinais de um processo de paz.

Internacionalmente, os preços continuam elevados porque os fretes e os seguros estão caros. Internamente, as commodities sofrem o efeito do dólar e do custo Brasil.

Haverá um período de ajustamento, mas isso não ocorrerá tão cedo, afirma Barbosa.

Além dos efeitos da guerra, o trigo está sendo afetado por circunstâncias específicas de cada país. Vários produtores mundiais sofrem o efeito da seca, e o principal fornecedor brasileiro, a Argentina, já não deverá produzir os 21 milhões de toneladas esperados, mas 18 milhões.

"Apesar de tudo isso, não vejo nenhuma perspectiva dramática no fornecimento do cereal ao Brasil, à exceção dos efeitos de mercado, como frete e seguros. O trigo existe e não haverá problema de abastecimento para nós", diz Barbosa.

Alguns países da África e do Oriente Médio, antes dependentes da Ucrânia e da Rússia, tiveram de reorientar suas compras, inclusive buscando produto no mercado brasileiro, que deverá exportar mais de 3 milhões de toneladas neste ano.

O agronegócio vem sendo um dos principais setores da economia brasileira, mas o país precisa muito de um planejamento. Para o representante da Abitrigo, não é possível uma dependência tão grande de matérias-primas, como o fertilizante. A perspectiva de produção desse insumo é de longo prazo, e, mesmo assim, ainda com larga dependência.

O país precisa se cercar das novas tecnologias de produção. Além disso, tem de se conscientizar de que o protecionismo vai ser muito forte a partir de agora.

Para Barbosa, a União Europeia começa a propor uma legislação muito dura, e o Brasil precisa desenvolver uma rastreabilidade para mostrar que os produtos não vêm de áreas desmatadas.

A avaliação do futuro também é importante para esse setor. A China não quer ficar mais tão dependente do Brasil. Está indo para a África e elevando a produção interna.

Se os brasileiros tiveram uma grande facilidade no mercado externo até agora, vão necessitar de um bom planejamento para o futuro, inclusive buscando novos mercados.

O Brasil tem de levar a sério alguns fatos e tomar medidas em questões sensíveis, como a ambiental. "O país não pode permitir que o ilícito continue. Essa é uma questão fundamental e um dos principais problemas que temos." Para o representante da Abitrigo, o governo que assumir em janeiro vai ter de levar muito a sério esse assunto.

O trigo é o fato novo para a agricultura brasileira, e em cinco anos o Brasil será autossuficiente no cereal. O país deverá produzir próximo de 10 milhões de toneladas neste ano, chegando perto do consumo, que é de 12 milhões.

Para Barbosa, a evolução da produção brasileira de trigo é uma questão de segurança alimentar. Trigo e arroz são os cereais mais presentes na mesa do consumidor brasileiro, e a indústria se preocupa com essa vulnerabilidade atual do setor.

Na avaliação do representante da entidade, com a evolução dos preços, o trigo se torna mais atrativo do que o milho. Preço, novas variedades da Embrapa e diversificação regional do plantio vão auxiliar na expansão de que o país necessita.

Barbosa destaca, ainda, a evolução da qualidade do produto brasileiro, que ganha aceitação lá fora. O trigo nacional está indo para mercados da Ásia, do Oriente Médio e da África.

Estimativas de Jorge Lemainski, chefe-geral da Embrapa Trigo, indicam que o país deverá produzir 20 milhões de toneladas de trigo em 2030.

 Fonte: Folha de S. Paulo

sábado, 3 de setembro de 2022

A reconstrução da política externa brasileira e das relações com a América Latina - Marcelo Viana Estevão de Moraes (FSP)

 A reconstrução da política externa brasileira e das relações com a América Latina

Marcelo Viana Estevão de Moraes

Doutor em ciências sociais pela PUC-Rio e pesquisador do Centro de Altos Estudos de Governo e Administração (Ceag/UnB)




Folha de S. Paulo, 01 de setembro de 2022


Hoje, além do conflito por procuração em curso entre a Otan e a Rússia no território ucraniano, o cenário mais amplo aponta para tensões crescentes entre os EUA e a China na disputa por hegemonia global.

Essa tendência traz desafios para o Brasil, que se encontra no hemisfério americano, sob a influência geopolítica direta do "hegemon", mas cuja economia depende cada vez mais das relações comerciais com a China. Um quadro de riscos e de oportunidades a demandar perspicácia e destreza na condução da política externa para a defesa do interesse nacional.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, declarou em conferência na Universidade George Washington que a China representa o mais sério desafio de longo prazo à ordem internacional: seria o país que não apenas pretende reformar essa ordem como detém também os recursos de poder para tanto.

A própria guerra na Ucrânia talvez não ocorresse se a Rússia não estivesse fortalecida em razão da parceria estratégica firmada com a China e que funciona como um vetor fundamental para a integração econômica e logística eurasiática, com destaque para a BRI (Belt and Road Initiative).

Nesse cenário, o desafio para o Brasil é retomar o fio condutor de sua política externa ativa e altiva, evitando alinhamentos geopolíticos automáticos com potências ou blocos, tendo por base uma agenda ecumênica de paz e desenvolvimento na perspectiva do Sul Global, privilegiando a interlocução com a América do Sul e a América Latina para a consecução de uma estratégia coletiva regional, por meio do resgate da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e do adensamento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

Priorizar a América Latina e, especialmente, a América do Sul

O Brasil, por suas dimensões econômicas, territoriais e populacionais, parafraseando Paulo Nogueira Batista Júnior, não cabe no quintal de ninguém, mas qualquer estratégia deve considerar que isoladamente o país tem baixa margem de manobra, dado que seus recursos de poder são relativamente escassos.

Uma estratégia coletiva sul-americana e latino-americana amplia o poder de barganha e negociação.

O grande jogo geopolítico brasileiro desdobra a projeção sobre seu entorno em círculos concêntricos de influência.

O primeiro círculo e o mais importante é a região platina, zona de maior densidade econômica e populacional da América do Sul.

O segundo círculo incorpora os demais países do subcontinente, em especial o bioma amazônico, e o Atlântico Sul, por onde transita quase todo o comércio exterior brasileiro.

O terceiro círculo congrega toda a América Latina e o Caribe, bem como a Antártida e a costa ocidental da África.

Os três círculos conformam o entorno geoestratégico do Brasil, região em que sua presença ativa é vital para seu desenvolvimento e sua segurança, e que deve servir de plataforma de projeção para o mundo.

No início deste século, entre outras iniciativas, o Brasil liderou a criação da Unasul e da Celac.

A Unasul foi uma organização internacional criada pelos 12 Estados sul-americanos em 2008 com o objetivo de, entre outros, articular as ações dos diversos países nos vários campos das políticas públicas, devendo funcionar como instrumento denso de governança desse espaço regional bioceânico.

A Celac, criada posteriormente, em 2010, também foi impulsionada pelo Brasil com a realização em Salvador, em 2008, da primeira cúpula autônoma dos países latino-americanos e caribenhos, sem a tutela de anglo-saxões e ibéricos. Sua vocação é a concertação política e a cooperação para o desenvolvimento.

O abandono da Unasul e da Celac por parte do governo Bolsonaro significou um retrocesso da política externa brasileira.

A Unasul e a Celac foram atingidas por uma campanha psicológica adversa acerca de uma suposta União das Repúblicas Socialistas da América Latina (Ursal) -uma enorme bobagem que viralizou com fake news.

Esse retrocesso não foi um fato isolado.

Houve a subordinação da política externa a um americanismo ideológico radical de extrema direita -o trumpismo- que compromete o diálogo com o atual governo estadunidense, e a avacalhação do Itamaraty, órgão que sempre funcionou como referência de excelência burocrática para a administração civil brasileira.

O Brasil é indispensável para o êxito da integração por ser multivetor no espaço regional: o projeto regional se articula com o objetivo nacional brasileiro de consolidar sua integração territorial interna; viabiliza potenciais sinergias entre os sistemas nacionais em todas as esferas (produtiva, comercial, logística etc.) associando o acesso ao Pacífico, por meio de corredores interoceânicos, à marcha para o oeste brasileira; favorece a instituição de uma doutrina estratégico-militar regional que avançava no Conselho de Defesa Sul-Americano, fundamental para o controle do entorno oceânico vital da grande "jangada de pedra" sul-americana, a segurança da extensa fronteira terrestre brasileira e a cooperação em torno do desenvolvimento sustentável da Amazônia.

No entanto, a eventual recondução do atual mandatário manterá o país como pária, no ponto mais baixo de sua reputação internacional, como um problema para o mundo e não como portador de soluções.

Só uma liderança respeitada internacionalmente e testada na arte da política e da administração poderá fazer a diferença desejada e aproveitar a conjuntura regional favorável à retomada dos projetos de integração.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

A cidade baiana que resistiu aos ataques portugueses na guerra da independência (FSP)

 

CIDADE BAIANA AFRONTOU PORTUGUESES, RESISTIU A CANHÕES E FOI 1ª CAPITAL DA 'BAHIA BRASILEIRA'!

Folha de SP, 24/06/2022 

Uma escuna militar com 26 marinheiros portugueses estava fundeada no rio Paraguaçu, principal rota fluvial entre o Recôncavo baiano e a Baía de Todos os Santos, com os canhões apontados para a Vila de Cachoeira.

As ameaças não dissuadiram os principais líderes políticos da vila, que em junho de 1822 decidiram afrontar os portugueses e a aclamar Dom Pedro de Alcântara como "regente constitucional e defensor perpétuo do Brasil". A retaliação não tardou e a vila foi alvejada por uma saraivada de tiros e balas de canhão.

O episódio, que neste sábado (25) completa 200 anos, marcou o início de uma "Bahia brasileira" e desencadeou a guerra pela Independência no estado, que opôs os portugueses e os nascidos no Brasil em uma série de batalhas que acabaram com a vitória brasileira em 2 de julho de 1823.

"Cachoeira foi a primeira capital brasileira da Bahia. Enquanto Salvador ainda era uma capital portuguesa e submetida a Lisboa, Cachoeira formou um conselho interino que passou a governar a província", afirma o historiador Sérgio Guerra Filho, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

A aclamação de Dom Pedro respondia a uma consulta feita pelos deputados que representavam a Bahia nas cortes de Lisboa. O documento chegou com atraso ao Brasil e, por isso, "estava muitos graus abaixo da temperatura política na Bahia", como aponta historiador Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020).

O ponto de ebulição foi atingido em fevereiro, quando o brigadeiro português Inácio Luís Madeira de Melo virou governador em armas da Bahia sob forte resistência. Um levante foi sufocado pelas tropas portuguesas, que assassinaram a abadessa Joana Angélica no Convento da Lapa.

O triunfo português em Salvador fez com que os revoltosos buscassem abrigo no Recôncavo baiano, onde começaram a organizar uma resistência ao comando português na província.

O período entre fevereiro e junho de 1822 foi marcado por articulações políticas, pela defesa de um centro de Poder Executivo no Brasil liderado por D. Pedro e pela compra de armas, munição e pólvora.

Por isso, quando a canhoneira portuguesa aportou no rio Paraguaçu, trancando a entrada e saída de embarcações do porto de Cachoeira, os brasileiros estavam preparados para resistir.

A aclamação a D. Pedro na Câmara Municipal foi comemorada em uma missa em ação de graças na Igreja Matriz de Cachoeira, em celebração conhecida como Te Deum. Ao fim da cerimônia religiosa, foram disparados os primeiros tiros.

Além das balas de canhão que vieram da escuna, portugueses que moravam na cidade também reagiram, entrincheirados, com tiros de armas de fogo contra aqueles que celebravam a insurreição nas ruas e praças de Cachoeira.

Um dos atingidos foi Manoel Soledade, personagem cuja participação na batalha ainda hoje é um mistério. Na versão mítica, eternizada em 1931 no quadro do artista Antônio Parreiras (abaixo), Manoel teria seria o responsável pelo toque do tambor das tropas brasileiras e tombou sob o instrumento.

O historiador cachoeirano Cacau Nascimento diz que não foi bem assim: "Manoel Soledade era um intelectual negro, uma figura influente. Ele recebeu um tiro após sair da missa e ficou ferido, mas não teve participação militar nas batalhas."

Os brasileiros reagiram para tentar neutralizar o ataque das forças portuguesas e instauraram uma Junta Interina Conciliatória e Defesa, embrião do que a partir de setembro se consolidaria em um governo paralelo da Bahia.

O clima de guerra instaurou-se na vila. A embarcação portuguesa seguiu atacando de forma violenta, atingindo edificações de Cachoeira.

A escuna canhoneira foi tomada apenas em 28 de junho, quando uma bandeira branca subiu na embarcação após ser cercada por uma flotilha improvisada com canoas e saveiros. Capitão e marujos foram presos e enviados à cadeia pública de Inhambupe, vila do sertão baiano.

A Junta de Defesa recebeu adesões de Santo Amaro e São Francisco do Conde e passou a ter pretensões mais amplas: governar a província e preparar a tomada de Salvador, ainda sob jugo português.

A escolha de Cachoeira como centro da resistência foi natural. A vila era estratégica por causa do porto, que escoava a produção de fumo, couro e algodão. Tinha na época cerca de 20 engenhos de cana-de-açúcar que se mantinham com a força de trabalho escravo.

O enfrentamento aos portugueses uniu comerciantes, coronéis, proprietários de terra e donos de engenho, que escalaram escravizados para formar parte das tropas que partiriam para cercar a capital.

"Foram vários grupos que se unificaram para a resistência. Mesmo com interesses conflitantes, eles se uniram em torno de um Brasil livre", afirma Luís Antônio Costa Araújo, historiador e provedor da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira.

O interesse por maior autonomia se transformou em um nacionalismo que levou parte dos líderes a trocar sobrenomes lusitanos por outros com referências nativas, como Baiense, Baitinga, Morici, Baraúna, Pitombo, Tanajura, Gê Acaiaba e Dendê Bus.

Entre junho e outubro de 1822, foram criados em Cachoeira batalhões patrióticos, formados principalmente por brancos pobres, negros libertos e negros escravizados enviados pelos seus senhores.

Entre eles, estavam a Companhia dos Caçadores de Santo Amaro, os Voluntários da Vila de São Francisco e os Voluntários do Príncipe Dom Pedro, cujos soldados ficaram conhecidos como "periquitos" pelo fardamento verde.

Foi deste batalhão que participou uma das principais heroínas da guerra: Maria Quitéria de Jesus, uma jovem e exímia atiradora que se disfarçou de homem para ser aceita no batalhão.

Proibida pelo pai de se alistar no batalhão, ela vestiu um uniforme do cunhado, cortou seus cabelos e se apresentou como um homem sob a alcunha de "soldado Medeiros". Mesmo depois de descoberta mulher, permaneceu no batalhão e lutou nas batalhas em Salvador e na foz do rio Paraguaçu.

O reforço oficial viria nos meses seguintes, quando o Exército Pacificador partiu do Rio de Janeiro com armamentos, 38 oficiais e 260 soldados para reforçar as tropas que conquistariam Salvador em 2 de julho de 1823.

Depois de 200 anos, os filhos da terra lutam para preservar o legado da resistência cachoeirense, seja pela exaltação ao passado de "cidade heroica", seja pelas tradições dos descendentes de quilombos, inviabilizados ao longo dos últimos dois séculos.

Neste 25 de junho, como acontece desde 2007, Cachoeira passa a ser a capital da Bahia por um dia. Por mais um ano, a cidade vai exaltar a figura do caboclo, que representa a participação popular nas batalhas contra os portugueses, com desfile cívico, sambas de roda e saudações nos terreiros de Candomblé.

"O desafio é manter a tradição. Houve uma carnavalização da data, que cai em meio aos festejos de São João. A data passou a ser uma coisa mais festiva e menos cívica", explica o escritor e artista plástico Davi Rodrigues, que tem nas tradições populares de Cachoeira o centro de seu trabalho.

Outro desafio é enfrentar a ruína econômica de uma cidade que saiu do apogeu no século 19, quando ganhou uma ponte de ferro sobre o rio Paraguaçu, ao declínio no século 20, com a derrocada do porto, da ferrovia, da indústria do fumo e dos engenhos de açúcar.

Estagnada com cerca de 30 mil habitantes, caiu de 2ª maior cidade baiana para o 83º município em população do estado.

Mitigar as desigualdades sociais e raciais são um desafio ainda maior em uma cidade com mais 80% da população negra, boa parte dela pobre. Foi só em 2020 que a cidade deu um passo na representatividade e elegeu sua primeira prefeita negra em 490 anos de história.

Para Luís Antônio Costa Araújo, a cidade heroica de Cachoeira —que com seu casario histórico é considerada Patrimônio Cultural Brasileiro— deve trabalhar para fazer do seu legado o ponto de partida para transformação econômica e social: "Isso aqui é um lugar sagrado".

segunda-feira, 20 de junho de 2022

O fantasma do holocausto nuclear reaparece e assusta - The Economist; Sergio Duarte e Cristian Wittmann

 Putin ameaça o mundo com uma nova corrida nuclear


The Economist, in: 
O Estado de S. Paulo20/06/2022

Há quase 120 dias, Vladimir Putin lançou sua invasão à Ucrânia alertando para a possibilidade de um ataque nuclear. Após exaltar o arsenal atômico da Rússia e prometer subjugar a Ucrânia, ele ameaçou países que se sentissem tentados a interferir com consequências “que vocês jamais viram em toda sua história”. Desde então, a TV russa passou a atormentar seus espectadores com conversas de armagedon.

Mesmo que Putin jamais use a bomba na Ucrânia, ele já abalou a ordem nuclear. Depois de suas ameaças, a Otan limitou o apoio que estava preparada para oferecer, com duas implicações ainda mais preocupantes por terem sido afundadas pelos tambores da campanha de guerra convencional da Rússia. Uma delas foi que Estados vulneráveis que veem a guerra através do olhar da Ucrânia sentirão que a melhor defesa contra um agressor com armas nucleares é ter o próprio armamento atômico. A outra é que outros Estados com armas nucleares acreditarão que são capazes de se beneficiar copiando as táticas de Putin. Se isso ocorrer, algum país certamente concretizará sua ameaça em algum lugar. Este não pode ser o legado devastador desta guerra.

A ameaça nuclear já vinha crescendo antes da invasão. A mistura de normas, tratados, garantias mútuas, lisonjas, persuasão, mecanismos técnicos, medo e tabu que impediu o mundo de ver armas nucleares usadas contra exércitos ou cidades desde 1945 parecia bastante irregular mesmo antes de Vladimir Putin, presidente da Rússia, alertar, no dia 24 de fevereiro, que quem atravessasse o caminho da Rússia arriscaria “consequências… como vocês nunca viram em toda a sua história”.

Em termos de controle de armas, quase todos os pactos entre os Estados Unidos e a Rússia caducaram. Moscou estava desenvolvendo novas armas, como o Poseidon, não cobertas pelos acordos que permanecem. O arsenal nuclear da China está se expandindo rapidamente. Quanto a impedir a disseminação das armas, décadas de pressão internacional não conseguiram impedir que a Coreia do Norte adquirisse armas nucleares e aumentasse sua sofisticação e a gama de alvos contra os quais poderiam ser usadas.

O único acordo de não proliferação notável feito na última década, no qual o Irã limitou seu programa nuclear em troca de alívio de sanções, estava por um fio, com a república islâmica mais perto de uma bomba do que nunca. Agora está ainda mais perto. E a falta de progresso em direção ao desarmamento por parte de EUA, Reino Unido, China, França e Rússia, os Estados com armas nucleares que fazem parte do Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT), continuava a erodir a legitimidade do regime que o tratado estabeleceu.

China, Coreia do Norte têm expandido e melhorado seus arsenais nucleares
A Coreia do Norte possui dezenas de ogivas. O Irã, afirmou a ONU esta semana, conseguiu suficiente urânio enriquecido para fabricar sua primeira bomba. Apesar do pacto Novo Start limitar mísseis balísticos intercontinentais da Rússia e dos EUA até 2026, o acordo não cobre armas como torpedos atômicos. O Paquistão está aumentando rapidamente seu arsenal. A China está modernizando suas forças nucleares e, afirma o Pentágono, as expandindo.

Toda essa proliferação reflete o enfraquecimento da repulsa moral que restringe o uso de armas atômicas. À medida que as memórias de Hiroshima e Nagasaki desvanecem, as pessoas deixam de entender como a detonação de uma pequena bomba em campo de batalha, do tipo que Putin poderia acionar, é capaz de desencadear a escalada para a aniquilação mútua de cidades inteiras. EUA e União Soviética conviveram com a possibilidade de um impasse nuclear de apenas dois lados. Há um alarde insuficiente diante da perspectiva de várias potências nucleares com dificuldades para manter a paz.

A invasão da Ucrânia colabora para esse mal-estar. Mesmo se Putin estiver blefando, suas ameaças corroem garantias de seguranças concedidas a Estados não nucleares. Em 1994, a Ucrânia entregou as armas atômicas soviéticas que mantinha em seu território em troca de compromissos de Rússia, EUA e Reino Unido de que não seria atacada. Ao tomar a Crimeia e apoiar separatistas nas regiões do Donbas em 2014, a Rússia quebrou de maneira flagrante essa promessa. Os americanos e os britânicos, que praticamente não fizeram nada, também quebraram suas promessas.

Isso dá uma razão extra para Estados vulneráveis adquirirem armas atômicas. O Irã pode considerar que renunciar à bomba não lhe valeria nenhum benefício duradouro e ter a bomba neste momento não lhe causaria tantos problemas quanto no passado. Se o Irã testar uma bomba, como Arábia Saudita e Turquia responderiam? Coreia do Sul e Japão, que detêm conhecimento para se armar independentemente, colocarão menos fé nos compromissos do Ocidente em protegê-los em um mundo mais perigoso.

A estratégia de Putin de sinalizar com ameaças atômicas é ainda mais corrosiva. Nas décadas seguintes à 2.ª Guerra, as potências nucleares consideraram acionar armas atômicas em batalha. Mas nas últimas cinco décadas, tais alertas foram apenas para países que, como o Iraque e a Coreia do Norte, ameaçavam usar armas de destruição em massa. Putin é diferente, pois invoca ameaças atômicas para ajudar suas forças invasoras a vencer uma guerra convencional.

E elas parecem ter funcionado. É verdade que o apoio da Otan à Ucrânia tem sido mais robusto do que o esperado. Mas a aliança tem hesitado em enviar armamentos “ofensivos”, como aeronaves. Apesar de o presidente dos EUA, Joe Biden, ter enviado vastas quantidades de armas, na semana passada ele se opôs a fornecer mísseis capazes de atingir alvos dento da Rússia. Outros na Otan parecem pensar que a Ucrânia deveria estabelecer um acordo com a Rússia, porque infligir uma derrota sobre Putin poderia colocá-lo contra as cordas, com consequências nefastas.

Dano causado pelo presidente russo é de difícil reparação
Essa lógica estabelece um precedente perigoso. A China poderia impor condições similares caso ataque Taiwan, argumentando que a ilha já é parte do território chinês. Mais Estados poderão concentrar mais armamentos de batalha, o que desdenharia do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, sob o qual eles estão sujeitos a trabalhar pelo desarmamento.

O dano causado por Putin será difícil de reparar. O Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, que entrou em vigor no ano passado e foi firmado por 86 países, pede sua abolição. Mas países armados temem ficar mais vulneráveis, mesmo que o desarmamento coletivo possa fazer sentido.

É importante perseguir controles de armamentos com verificação escrupulosa. A Rússia pode ser relutante, mas está empobrecida. Bombas nucleares custam caro, e o país precisa reconstruir suas forças convencionais. Os EUA poderiam aposentar seus mísseis terrestres sem comprometer sua segurança, em troca de cortes da Rússia. Ambos os lados podem concordar sobre especificidades técnicas, como não atacar o comando nuclear, controles e infraestrutura de comunicações em um conflito convencional. Em última instância, o objetivo deveria ser atrair a China.

Essas negociações serão mais fáceis se a tática nuclear de Putin fracassar – ele poderá começar garantindo que não atacará a Ucrânia. Biden escreveu na semana passada que os EUA não detectaram preparativos. Mas países como China, Índia, Israel e Turquia, com acesso ao Kremlin, deveriam alertar Putin a respeito de sua fúria caso, Deus nos livre, ele realmente vier a usar uma arma nuclear.

Poupar a Ucrânia de um ataque nuclear é essencial, mas não basta. O mundo deve garantir que Putin não prospere com sua atual agressão como prosperou em 2014. Se Putin acreditar mais uma vez que suas táticas funcionaram, ele fará mais ameaças nucleares no futuro. Se ele também concluir que a Otan pode ser intimidada, convencê-lo a recuar será mais difícil. Outros aprenderão com seu exemplo. A Ucrânia, portanto, precisa de armas mais avançadas, mais ajuda econômica e mais sanções sobre a Rússia para fazer o Exército de Putin bater em retirada.

Países que consideram esta guerra apenas um combate europeu passageiro negligenciam a própria segurança. E não poderiam estar mais errados aqueles argumentando em nome da paz, afirmando que a Ucrânia precisa alcançar uma trégua com a Rússia neste exato momento para não acabar atolada numa guerra que é incapaz de vencer, contra um inimigo que já perdeu o ferrão. Se Putin pensar que a Otan perdeu sua determinação, a Rússia poderá continuar perigosa. E se Putin for convencido de que suas ameaças nucleares representam a diferença entre a derrota e qualquer resultado que preserve sua reputação, a Rússia poderia ficar ainda mais perigosa. TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

https://www.estadao.com.br/internacional/the-economist-putin-ameaca-o-mundo-com-uma-nova-corrida-nuclear/


Ratificação de tratado que proíbe armas nucleares confirmaria vocação pacífica do Brasil

Primeira reunião do Tratado de Proibição de Armas Nucleares será realizada em Viena de 21 a 23 de junho

Folha de S. Paulo, 20 de junho de 2022

Sergio Duarte
Embaixador, foi alto representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. É presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais

Cristian Wittmann
Professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul, é membro da Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN, na sigla em inglês)

A primeira reunião das partes contratantes do Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) será realizada em Viena de 21 a 23 de junho. O TPAN reitera e reforça os compromissos do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), estabelece medidas de cunho humanitário e oferece um caminho para a eliminação daquelas armas de forma ordenada, segura e verificável.

O TPAN entrou em vigor em janeiro de 2021. Até agora, foi assinado por 86 países, dos quais 62 já o ratificaram. O Brasil teve participação destacada na negociação do tratado e foi o primeiro a assiná-lo em 2017, mas ainda não o ratificou. Por isso, comparecerá à reunião na qualidade de signatário, não na de membro pleno do instrumento.

A reunião será uma importante oportunidade para levar adiante a implementação do tratado e facilitar a consecução do objetivo de um mundo livre de armas nucleares. Espera-se a adoção de documentos substantivos que corroborarão os compromissos assumidos e indicarão ações específicas a serem concretizadas, além da aprovação de uma declaração política e de um plano de ação.

Entre as propostas já formuladas estão a fixação de prazos para que os países nucleares que aderirem ao TPAN eliminem seu armamento e para que aqueles que abrigam essas armas em seus territórios as removam. O TPAN, aliás, é o primeiro instrumento internacional que proíbe o estacionamento de armas nucleares em terceiros países. Outra proposta a ser examinada é a definição de um prazo para a destruição de todas as armas nucleares. O TPAN, no entanto, não é uma obra acabada; muito esforço ainda será necessário para tornar realidade seus elevados propósitos.

No entanto, países armados com os engenhos bélicos de efeitos mais cruéis e indiscriminados jamais inventados –as armas nucleares– continuam a buscar uma ilusória supremacia e a despender enormes recursos financeiros para aperfeiçoar cada vez mais o potencial destruidor de que dispõem. Ao mesmo tempo, afirmam a intenção de utilizar o poderio atômico nas circunstâncias que considerem adequadas e recusam-se a participar de quaisquer iniciativas que possam levar a medidas efetivas de desarmamento.

Uma única bomba nuclear lançada sobre uma grande cidade mataria instantaneamente uma ampla parcela da população. Muitos mais pereceriam em pouco tempo, vítimas da radiação e de outros efeitos altamente perniciosos. A detonação de apenas uma fração dos arsenais existentes causaria danos ambientais irreversíveis e poderia provocar a extinção da espécie humana.

A humanidade precisa se libertar da complacência em relação a esses gravíssimos perigos. A acumulação de armas de destruição em massa não aumenta a segurança de seus possuidores e ameaça diretamente a segurança de todos os países.

Em sua Constituição e como parte dos principais instrumentos internacionais e regionais de que faz parte, o Brasil se comprometeu a não obter armas nucleares. A conclusão do processo de ratificação do TPAN pelo Congresso é matéria de interesse nacional e confirmará os compromissos assumidos, assim como a vocação pacífica e a liderança brasileira na busca de um mundo livre de armas nucleares.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/06/ratificacao-de-tratado-que-proibe-armas-nucleares-confirmaria-vocacao-pacifica-do-brasil.shtml